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1 ESTRATÉGIAS DA MÍDIA CONTRA-HEGEMÔNICA NO BRASIL E NA ARGENTINA FRENTE À ATUAL CONJUNTURA CONSERVADORA Patrícia Paixão [email protected] Universidade de São Paulo Brasil

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ESTRATÉGIAS DA MÍDIA CONTRA-HEGEMÔNICA NO BRASIL E NA ARGENTINA

FRENTE À ATUAL CONJUNTURA CONSERVADORA

Patrícia Paixão

[email protected]

Universidade de São Paulo

Brasil

2

RESUMO

Este texto tem como objetivo estudar as estratégias de comunicação de alguns blogs, sites e

coletivos midiáticos progressistas da América Latina, com foco no Brasil e na Argentina,

verificando de que forma esses veículos alternativos têm funcionado como um “antídoto” à visão

hegemônica e sectária dos grandes conglomerados midiáticos da região, contribuindo para a

valorização das iniciativas dos países do continente e sua integração. A parcialidade e a falta de

pluralismo, em prejuízo da captação da realidade em todos os seus aspectos, é um problema que os

grandes conglomerados jornalísticos latino-americanos parecem estar longe de superar. Como

grandes empresas inseridas na lógica capitalista, e dependentes que são de grupos políticos e

econômicos, a mídia hegemônica dos países do continente realiza, comumente, uma cobertura

fragmentada da realidade, sem dar espaço a todas as vozes e nuances presentes nela. Com

frequência, atuam como porta-vozes das elites da região, agendando assuntos e vieses, no processo

de produção da notícia, que são do interesse desses setores. Costumam “se vender”, em seu

marketing, como “imparciais”, quando se comportam como verdadeiros partidos políticos, como

aponta o jornalista brasileiro Perseu Abramo, no livro Padrões de Manipulação da Grande Imprensa.

De acordo com Abramo (2004), os meios de comunicação recriam a realidade por meio da

manipulação da notícia para exercerem poder na sociedade onde atuam. Contra o interesse público,

que deveria permear o jornalismo, determinadas visões de mundo são privilegiadas. Iniciativas

latino-americanas são comumente divulgadas como “atrasadas” em contraposição a determinados

paradigmas europeus e norte-americanos, tidos como “desenvolvidos” pelas elites regionais. Em

contrapartida à essa visão uníssona e conservadora, graças à impulsão e desenvolvimento da

internet observa-se hoje em diferentes países da América Latina o surgimento de veículos digitais

progressistas que desmascaram a “velha mídia” e propõem à sociedade visões alternativas,

contribuindo com a pluralidade. Dentre outros, pode-se destacar, no Brasil, o Jornal GGN, do

jornalista Luís Nassif, o blog Viomundo, de Luiz Carlos Azenha, o Blog do Miro, de Altamiro

Borges, a Mídia Ninja e a rede de coletivos Fora do Eixo. Já na Argentina pode-se citar o blog do

pesquisador e professor universitário Martín Becerra, o site Página 12, o coletivo fotográfico

3

M.A.f.I.A (Movimiento Argentino de Fotógrafxs Independientes Autoconvocadxs), o portal de

notícias Notas Periodismo Popular, dentre outros. O presente estuda aborda as estratégias desses

veículos alternativos, por meio da análise qualitativa de alguns de seus textos e do impacto de suas

publicações (número de seguidores e compartilhamentos), e através de entrevistas com seus

responsáveis.

ABSTRACT

The objective of this text is studying the communication strategies of some latin american blogs,

sites and alternative media groups, focusing on Brazil and Argentina, verifying how these vehicles

have worked as an "antidote" to the hegemonic and sectarian view of the large media conglomerates

of the region, contributing to the valorization of the initiatives of the countries of the continent and

their integration. Partiality and lack of pluralism, to the detriment of the capture of reality in all its

aspects, is a problem that the great Latin American journalistic conglomerates seem far from

overcoming. As major corporations embedded in the capitalist logic, and dependent on political and

economic groups, the hegemonic media of the countries of the continent usually perform a

fragmented coverage of reality without giving space to all the voices and nuances present in it. They

often act as spokesmen for the region's elites, scheduling issues and biases in the news production

process, which are of interest to these sectors. In their marketing, they tend to sell themselves as

"impartial" when they behave like true political parties, as the Brazilian journalist Perseu Abramo

points out in the book Definitions of Manipulation of the Great Press. According to Abramo (2004),

the media recreates reality through the manipulation of news to exercise power in the society where

they act. Against the public interest, which should permeate journalism, certain worldviews are

privileged. Latin American initiatives are commonly reported as "backward" in contrast to certain

European and North American paradigms, regarded as "developed" by regional elites. In contrast to

this unanimous and conservative vision, thanks to the growth and development of the Internet, the

emergence of progressive digital vehicles that reveal the "old media" and propose to society

alternative visions, contributing to plurality . Among others, one can highlight in Brazil the Jornal

GGN, by the journalist Luís Nassif, the blog Viomundo, by Luiz Carlos Azenha, Blog do Miro by

4

Altamiro Borges, the Ninja Media and the group network Fora do Eixo. Already in Argentina can be

mentioned the blog of the researcher and university professor Martín Becerra, the site Page 12, the

photographic collective M.A.f.I.A (Movimiento Argentino de Fot ó grafxs Independentes

Autoconvocadxs), the news portal Notes Popular Journalism, among others. The present study deals

with the strategies of these alternative vehicles, through the qualitative analysis of some of their

texts and the impact of their publications (number of followers and shares), and through interviews

with those responsible.

Palavras-chave

Mídia contra-hegemônica, Brasil, Argentina.

Keywords

Counter-hegemonic media, Brazil, Argentina

I. Introdução

A concentração da mídia nas mãos de poucos e poderosos grupos empresariais representa

um dos problemas mais sérios a serem enfrentados hoje pelos países latino-americanos. A afirmação

que à primeira vista pode parecer exagerada, já que as nações do continente convivem com chagas

profundas em diferentes aspectos da economia, política e sociedade, se justifica, quando

constatamos que não existe de fato democracia e, portanto, plena liberdade de voz e ação para os

povos latino-americanos, num contexto em que conglomerados de jornalismo impõem uma única

visão de mundo como sendo a correta.

Observamos, em boa parte dos países da região, impérios midiáticos atuando a serviço dos

interesses de seus donos. Consolidados no século XX, como empresas inseridas na lógica do

sistema capitalista, esses impérios apresentam-se, com frequência, como porta-vozes das elites

agrárias e industriais e dos grupos políticos e econômicos conservadores do continente.

5

Foi assim que a imagem de “atraso” relacionada à América Latina, em contraposição aos

paradigmas da Europa e dos EUA, tidos como inovadores e representativos do progresso, foi

“comprada” por diferentes setores das nações da região. É desta forma também que a integração

entre os países do continente vem sendo prejudicada, por ser considerada algo “menor” ou

“desvantajosa”, nos enfoques de diversos veículos jornalísticos.

No Brasil e na Argentina, focos deste estudo, a situação foi agravada no momento em que

ascenderam ao poder forças políticas alinhadas aos chamados “barões da mídia”: Michel Temer

(PMDB), no Brasil, que chegou à Presidência em 2016, após a deposição de Dilma Rousseff (PT)1,

e Maurício Macri (PRO – Proposta Republicana), eleito em novembro de 2015, na Argentina. Vale

destacar que Temer e Macri ocuparam a Presidência com demonstrações de entusiasmo por parte

dos veículos de imprensa dos dois países.

Felizmente, frente à verdadeira “ditadura da informação” imposta pelos conglomerados

jornalísticos regionais, aumenta a cada dia o número de veículos contra-hegemônicos -

considerados aqui como meios de comunicação populares e alternativos, que lutam para oportunizar,

de fato, o pluralismo que a grande mídia diz ofertar, e desmascarar coberturas jornalísticas que

pouca relação têm com os fatos reais.

Este artigo teve como objetivo estudar as estratégias de parte da mídia contra-hegemônica

brasileira e argentina na atual conjuntura dos dois países, verificando o que foi alterado em suas

ações e planejamento, em face do novo cenário.

Teriam esses veículos recrudescido suas estratégias diante de uma conjuntura favorável aos

interesses das elites da região e seus porta-vozes midiáticos? Esse é o problema de pesquisa que

procurou-se investigar.

1 Dilma foi eleita em 2010 e reeleita em 2014. Ela teve seu mandato interrompido por um processo de impeachment em

2016, que teve como argumento um crime fiscal, as chamadas “pedaladas fiscais”, manobras contábeis que envolveriam

o uso de recursos de bancos federais para maquiar o orçamento federal – prática adotada sem punição,

contraditoriamente, por diferentes governadores brasileiros e pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz

Inácio Lula da Silva. O processo de impeachment foi engendrado pelas forças de oposição, que conspiraram com o

vice-presidente, Michel Temer, do PMDB.

6

Os resultados apontados aqui são parte de um estudo maior que estou desenvolvendo para a

minha tese de doutorado sobre mídia contra-hegemônica na América Latina, a ser apresentada ao

Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina, da Universidade de São Paulo (USP).

II. Marco teórico

O artigo teve como marco teórico o pensamento do sociólogo e jornalista Perseu Abramo,

que compara os jornais a partidos políticos, e mostra como a imprensa muitas vezes manipula as

informações, embora apresse-se em destacar que faz uma cobertura imparcial, desatrelada de

interesses. Também foram usados os conceitos de hegemonia e contra-hegemonia do filósofo

marxista Antonio Gramsci (é a partir deles que são desenvolvidos, neste artigo, os conceitos de

mídia hegemônica e contra-hegemônica).

Uma das principais características dos grandes conglomerados de mídia é seu vínculo

estreito com forças conservadoras da economia e da política. Esse problema é ainda mais marcante

em países em desenvolvimento, como o Brasil e a Argentina, onde a depedência financeira dos

veículos jornalísticos é maior.

Apesar de se venderem como “independentes” e “plurais”, os grupos jornalísticos brasileiros

e argentinos não oferecem igual oportunidade de voz aos diferentes atores de suas sociedades.

No livro Padrões e Manipulação da Grande Imprensa (2004), Perseu Abramo desmascara a

auto-proclamada “objetividade” da imprensa comercial-burguesa, mostrando que uma das

características marcantes do jornalismo praticado hoje é a manipulação.

(...) a maior parte do material que a imprensa oferece ao público tem algum tipo de

relação com a realidade. Mas essa relação é indireta. É uma referência indireta à

realidade, mas que distorce a realidade. Tudo se passa como se a imprensa se

referisse à realidade apenas para apresentar outra realidade, irreal, que é a

contrafação da realidade real. É uma realidade artificial, não-real, irreal, criada e

desenvolvida pela imprensa e apresentada no lugar da realidade real. A relação que

existe entre a imprensa e a realidade é parecida com a que existe entre um espelho

deformado e um objeto que ele aparentemente reflete: a imagem do espelho tem

algo a ver com o objeto, mas não só não é o objeto como também não é a sua

imagem: é a imagem de outro objeto que não corresponde ao objeto real.

7

Abramo compara os veículos jornalísticos a partidos políticos, que recriam a realidade por

meio de padrões de manipulação da notícia, para poderem exercer poderes na sociedade onde atuam.

Nesse sentido, segundo o autor (2004, p. 45), “os órgãos de comunicação também procuram

conduzir a sociedade, em parte ou no todo, na direção da conservação ou da mudança das

instituições sociais; têm, portanto, um projeto histórico relacionado com o poder”.

Bem anteriormente a Abramo, Antonio Gramsci apontava os jornais como “partidos

políticos” que interferem nos modos de seleção e interpretação dos acontecimentos. Na pesquisa

Gramsci e a imprensa: jornalismo, hegemonia e contra-hegemonia, o professor Dennis de Moraes,

autor do livro Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da

informação, ressalta que Gramsci denunciava o alinhamento ideológico de grandes jornais ao poder,

bem como as fórmulas verticalizadas de controle do noticiário e da opinião. No artigo Os jornais e

os operários, de 1916, Gramsci (2005) ressaltava que os jornais burgueses “apresentam os fatos,

mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa com prejuízo

da política e da classe operária”.

A falta de transparência desses grupos jornalísticos com relação ao seu real posicionamento

político leva a população a acreditar em muitas de suas coberturas, que claramente são manipuladas,

mas vendem-se como objetivas.

Felizmente, uma rede formada por veículos jornalísticos contra-hegemônicos, de diferentes

naturezas, em diversos países latino-americanos, vem conseguindo desmascarar a suposta

independência desses conglomerados jornalísticos, mostrando seus verdadeiros interesses, e o

desvirtuamento que eles promovem na cobertura dos fatos.

E como classificar um veículo como contra-hegemônico? Pode-se responder a essa questão

a partir dos conceitos de hegemonia e contra-hegemonia de Gramsci. Para o filósofo italiano,

hegemonia é a dominação que uma classe exerce sobre as outras. Essa dominação, inclui, além do

aspecto político, a cultura, a ideologia e a moral. Ou seja, o consenso obtido pela classe hegemônica

sobre as demais, nesse sistema de dominação, passa não apenas pela direção política, mas pela de

outros meios, inclusive os de comunicação. Gramsci entendia os jornais como importantes

ferramentas de disputa política, como aparelhos privados de hegemonia, que cumprem, ao lado de

8

outros tipos de aparelhos, a função de órgãos formadores de consenso, para que as classes

dominadas aceitem as colocações da classe que detém o poder, “de modo que uma só força modele

a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de

poeira individual e inorgânica” (GRAMSCI, 2000, p. 265).

De acordo com o professor Dênis de Moraes (2010, p.20), no artigo Comunicação,

Hegemonia e Contra-hegemonia: a contribuição teórica de Gramsci”2, o filósofo italiano situa as

ações contra-hegemônicas como instrumentos cuja função é “(...) denunciar e tentar reverter as

condições de marginalização e exclusão impostas a amplos estratos sociais pelo modo de produção

capitalista. A contra-hegemonia institui o contraditório e a tensão no que até então parecia uníssono

e estável.”

Podemos situar nesse campo de ação os veículos que buscam furar o monopólio mantido

pelas grandes empresas de mídia brasileiras e argentinas, mostrando outras visões de mundo, e

denunciando o privilégio que esses grupos dão às classes detentoras do poder. Baseando-se em

Gramsci, portanto, consideramos estes veículos como sendo contra-hegemônicos.

III. Metodologia

Para desvendar as estratégias que a mídia contra-hegemônica brasileira e argentina tem

utilizado frente ao contexto atual de seus países foi utilizada como principal método de pesquisa a

entrevista com representantes de alguns veículos significativos, que possuem prestígio e grande

número de seguidores no campo da contra-hegemonia.

Da Argentina, foram entrevistados Javier Tolcachier, pesquisador do Centro de Estudos

Humanistas de Córdoba e comunicador na agência internacional de notícias Pressenza; Néstor

Busso, presidente do Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (Farco) e Camila Parodi, do

coletivo editorial argentino Marcha3.

2Disponível em:< http://www.seer.ufrgs.br/debates/article/viewFile/12420/8298> Acesso em 15 jun 2017. 3 Coletivo jornalístico argentino surgido em 2011, que tem como objetivo combater a lógica da imprensa de mercado e

buscar a multiplicação de vozes na sociedade. Site disponível em< http://www.marcha.org.ar/> Acesso em 22 jul 2017.

9

Do Brasil, foram entrevistados o jornalista Altamiro Borges, coordenador do Centro de

Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé (que congrega diversos veículos de mídia contra-

hegemônica do país), e a jornalista Vivian Fernandes, coordenadora do Brasil de Fato (site de

notícias e radioagência. Possui jornais regionais no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, em São Paulo,

no Paraná e em Pernambuco).

Vale destacar que, inicialmente, tinha-se como objetivo entrevistar apenas representantes de

veiculos digitais, porém, após uma pesquisa exploratória sobre o assunto, verificou-se a importancia

de incluir a Farco (representante das rádios comunitárias), que tem atuação bastante significativa na

Argentina, no campo da contra-hegemonia.

IV. Análise e discussão dos dados

Atualmente, as iniciativas de comunicação contra-hegemônica no Brasil e na Argentina são

numerosas e de diferentes naturezas. Dentre diversos veículos alternativos no Brasil pode-se citar o

Jornal GGN, do jornalista Luís Nassif, o blog Viomundo, de Luiz Carlos Azenha, a Mídia Ninja e a

rede de coletivos Fora do Eixo. Já na Argentina pode-se citar o blog do pesquisador e professor

universitário Martín Becerra, o site Página 12, o coletivo fotográfico M.A.f.I.A (Movimiento

Argentino de Fotógrafxs Independientes Autoconvocadxs), o portal de notícias Notas Periodismo

Popular, dentre outros.

Altamiro Borges4 ressalta o caráter histórico e diversificado da mídia contra-hegemônica no

Brasil:

Desde que surgiram essas grandes empresas de comunicação que defendem os

interesses privados, há formas de imprensa alternativa no Brasil. Os anarquistas

rapidamente perceberam que, ao investir na sua própria imprensa, teriam como

difundir suas ideias e fazer frente à imprensa tradicional, que vivia demonizando-os.

A mesma coisa aconteceu com os comunistas, com o movimento sindical. Quando

eu penso em imprensa contra-hegemônica, penso não só em blogs, revistas, mas na

imprensa sindical, na imprensa comunitária, na imprensa dos movimentos de

mulheres, dos movimentos dos negros, das comunidades LGBT. Quer dizer,

veículos que vão se constituindo exatamente para defender causas que, na mídia

hegemônica, são demonizadas.

4 Em entrevista presencial concedida a esta pesquisa em 17 de julho de 2017.

10

De acordo com Javier Tolcachier5, na Argentina há um grande e diversificado rol de meios

contra-hegemônicos que realizam comunicação democrática. Alguns deles, segundo Tolcachier, são

“meios universitários, cooperativos, meios gestionados por sindicatos, meios ligados a povos

indígenas, emissoras comunitárias. Quase todos encontram-se aderidos a diversas redes

institucionais.”

Néstor Busso6, presidente do Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (Farco)7, ressalta a

força das emissoras comunitárias na comunicação contra-hegemônica do país.

Na Argentina há algumas rádios comunitárias que não são pequenas, que já tem um

nível de potência, audiência e alcance relativamente grande e, através desses meios,

se tenta mostrar a mobilização social e os protestos. (...) Acredito que as rádios

comunitárias são a principal rede de meios que representam a expressão dos setores

populares na Argentina. Certamente são o setor mais organizado dessa

comunicação popular.

Camila Parodi8 reforça a multiplicidade de veículos contra-hegemônicos no país vizinho.

Dentre eles, ela cita la Red de Medios Alternativos9 – RNMA (Rede de Meios Alternativos), em que

confluem muitos meios gráficos, audiovisuais e rádios comunitárias do país; o Emergente, com uma

lógica similar ao brasileiro Mídia Ninja 10 , e o Resumen Latinoamericano (Resumo Latino-

americano), que tem como slogan La otra cara de las noticias de América Latina y el Tercer Mundo

(A outra cara das notícias da América Latina e do Terceiro Mundo). “Cada um conta com formas

específicas de trabalho, mas o que une todos é a organização da informação e do editorial, de forma

horizontal e em regime de assembleia, a presença nas ruas, a articulação com os movimentos

sociais, entre outras ações”, destaca Camila.

5 Em entrevista concedida a esta pesquisa por e-mail, em 9 de julho de 2017 (tradução nossa).

6 Em entrevista concedida a esta pesquisa, por intermédio de arquivo de áudio no WhatsApp, em 20 de julho de 2017

(tradução nossa). 7 Site do Farco disponível em:< http://www.farco.org.ar/> Acesso em 22 jul 2017. 8 Em entrevista concedida a esta pesquisa, por email, em 12 de julho de 2017 (tradução nossa). 9 Site da RNMA. Disponível em:< http://www.rnma.org.ar/>. Acesso em 27 jul 2017. 10 Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) é uma rede descentralizada de mídia de esquerda, com

atuação em mais de 250 cidades no Brasil. Sua abordagem é conhecida pelo ativismo sociopolítico, declarando-se ser

uma alternativa à imprensa tradicional. A Mídia Ninja faz parte da mesma rede a que pertence o coletivo Emergente, a

rede Facción (Facção).

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O Brasil e a Argentina vivem, nesse momento, um cenário bastante adverso à mídia contra-

hegemônica. Com claro alinhamento neoliberal, os governos Temer e Macri vêm retirando pouco a

pouco algumas conquistas obtidas no período em que Néstor e Cristina Fernández Kirchner e Luiz

Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff estavam no poder, na Argentina e no Brasil, respectivamente.

Apesar de terem decepcionado as forças progressistas de seus países em diversas pontos (Lula e

Dilma, por exemplo, seguiram, na política econômica, praticamente a mesma cartilha neoliberal de

seus antecessores, distanciando-se significativamente das bandeiras históricas do Partido dos

Trabalhadores), esses governos implementaram programas sociais e medidas que contribuíram para

a redução da pobreza e a ascensão das classes menos favorecidas da sociedade, e tiveram uma

postura mais soberana e de integração com os demais países latino-americanos. Cristina Kirchner,

em especial, teve um posicionamento mais combativo em relação às elites do país, inclusive os

empresários de mídia. Enfrentou uma verdadeira “guerra” com a imprensa argentina, ao

implementar a regulamentação da mídia (popularmente chamada no país de Ley de Medios – Lei

dos Meios).

Segundo Javier Tocalchier, “as medidas tomadas pelo novo governo [Macri] abriram

caminho para uma fulminante concentração midiática – muito maior que antes – e, ao mesmo

tempo, a eliminação e/ou precarização de toda voz crítica”. Diante desse cenário, o comunicador da

agência internacional Pressenza destaca que, dentre outras linhas de trabalho, a mídia contra-

hegemônica argentina vem atuando com as seguintes estratégias:

1.Batalhar legalmente contra a inconstitucionalidade das atuações do governo em

matéria comunicacional, que violou uma lei vigente sem propor uma nova

legislação nos órgãos competentes para substituí-la. 2. Denunciar publicamente a

ilegitimidade dessas ações e da afronta ao direito à comunicação através, por

exemplo, de uma apresentação formal na Comissão Interamericana de Direitos

Humanos (CIDH). (...) 3) Elaborar um programa coletivo, chamado os “novos” 21

Puntos por una Comunicación Democrática [21 Pontos por uma Comunicação

Democrática], atualizando o programa anterior – também formado por 21

princípios – que foram a base que alcançou a lei hoje ignorada pelo governo Macri.

4) Assegurar, com diversas táticas, a sobrevivência das emissoras que hoje estão

postas em risco pela falta de financiamento estatal.

12

Néstor Busso, do Farco, avaliza a opinião de Tocalchier. Segundo ele, a chegada de

Maurício Macri ao governo significou um grande retrocesso em matéria de liberdade de expressão e

direito à comunicação.

As políticas de Macri favorecem aos grandes grupos econômicos e a concentração

da propriedade dos meios, e há dificuldades para os meios populares alternativos.

Houve, inclusive casos de fechamentos de algumas rádios populares (...). A

principal dificuldade é a paralisia do fundo de fomento para meios comunitários,

criado pela Lei dos Meios. Hoje esses meios estão vivendo com o fundo de

projetos do ano de 2015. Não foi dado o resultado dos concursos correspondentes

ao ano de 2016, e não foram chamados concursos que corresponderiam a 2017.

Nossa rede, o Fórum Argentino das Rádios Comunitárias teve seus projetos e

convênios com o Estado cancelados, e isso significa falta de recursos. Portanto, do

ponto de vista econômico, há grande dificuldade para os meios comunitários hoje

na Argentina.

Camila Parodi, da Marcha, afirma que, diante do novo cenário, as estratégias dos meios

alternativos argentinos encontram-se mais articuladas, “já que com o governo Macri a situação

política e econômica foi agravada e nos exige maior permanência nas ruas”. O objetivo das mídias

alternativas, segundo Camila, é dar visibilidade, em caráter de denúncia, às medidas e políticas de

direita levadas a cabo pelo governo Macri, “como é o caso das repressões ao campo popular, a

criminalização da pobreza, a implementação de políticas de cortes em programas sociais e ajustes, o

aumento das tarifas, a especulação imobiliária, dentre tantas outras”. Camila ressalta que estas

estratégias precisam ser bem planejadas e amplas, de forma que permanentemente a voz dos meios

populares gere um incômodo. Ela defende que o momento que as mídias contra-hegemônicas vivem

na Argentina exige formas comunicativas revolucionárias que busquem romper com a dependência

tecnológica e mercantil, e que operem sem o jogo das corporações de comunicação. “Por isso outra

estratégia dos meios alternativos nesse contexto de permanente hostilidade é a utilização de redes

sociais (telegram, twitter, facebook, instagram, entre outras), com as quais é possível romper a

barreira de serem meios voltados apenas a militantes, conseguindo atingir outro público”, salienta

Camila. É preciso, de acordo com ela, comunicar as notícias de forma criativa, mesclando áudios,

vídeos, imagens, notas de opinião, entrevistas, dados gráficos, para diversificar o foco, desde o

momento de recebimento da informação.

13

Altamiro Borges destaca que hoje no Brasil o comportamento da mídia contra-hegemônica é

diferente, em face do cenário conservador: “Nos governos Lula e Dilma a mídia contra-hegemônica

apoiava o projeto no geral, mas era muito crítica, e agora está sendo só crítica, até por ser um

governo ilegítimo, fruto de um golpe midiático”.

Vivian Fernandes11, coordenadora do Brasil de Fato, avaliza a opinião de Borges:

Nossa linha editorial sempre foi independente a governos, mas é claro que a gente

faz certas leituras em relação a algumas ações governamentais. Nos governos

anteriores, da Dilma e do Lula, havia alguns pontos com os quais concordávamos,

como a guinada que foi dada em prol da integração latino-americana e do

privilégio às relações dos blocos do sul. Então, com aqueles governos ainda

conseguíamos ter algumas pautas positivas. Com o governo atual o número de

pautas negativas aumentou muito. Hoje vivemos uma maré de derrotas. Cobrir

Brasília agora é cobrir um golpe atrás do outro.

A jornalista ressalta que o acesso à informação também ficou mais complicado:

Antes a gente pedia uma informação e normalmente recebíamos o que

precisávamos. Já esse governo bloqueia muito a informação, porque não quer que

seja mostrado que ele está cortando investimento em políticas públicas. Isso sem

contar no número de processos que temos enfrentando. A direita hoje está muito

mais raivosa. Não aceita que seus erros sejam apontados. Estamos numa trincheira

muito maior de resistência.

É consenso entre os entrevistados que o caminho para fortalecer a mídia contra-hegemônica,

amplificando seus efeitos contra a ditadura da informação promovida pelos grandes conglomerados

de mídia, é a união.

É imprescindível a unidade em rede, em alianças infocomunicacionais abertas e

permanentes, respaldadas por organizações sociais, universitárias ou de

solidariedade internacional progressistas. É preciso produzir “escala” mediante a

convergência de uma grande quantidade de pequenas unidades de produção

independentes, diversas e autónomas. Urge impulsar um programa de aliança

público-comunitária de onde seja possível, a nível municipal, estadual ou, se o

signo político permitir, a nível nacional, para projetar esse programa a redes de

nível regional e internacional. (TOLCACHIER, 2017)

11 Em entrevista presencial concedida a esta pesquisa em 11 de setembro de 2017.

14

O comunicador da agência Pressenza considera ainda que é preciso despertar na população o

pensamento crítico sobre esse assunto, numa tarefa de “educomunicação” que permita às pessoas

exercitarem um olhar mais atento à informação que elas recebem, mostrando que todo o conflito

gira em torno do mesmo objetivo: “a priorização do bem-estar e da evolução geral contra o afã

violento e a ganância de uma minoria. (...) Trata-se de uma segunda alfabetização”.

Camila Parodi, da Marcha, afirma que seu coletivo mantém permanente diálogo com

veículos alternativos do continente latino-americano, como o Brasil de Fato, no Brasil, e o

Colômbia Informa, na Colômbia. “No atual contexto, só nos resta potencializar esses espaços, de

forma que a informação de toda Nossa América possa chegar às nossas realidades”.

Vivian, do Brasil de Fato, confirma a interação que o site possui com a Marcha e outros

veículos contra-hegemônicos do continente. Segundo ela, o Brasil de Fato busca fazer uma

cobertura em conjunto com outras forças progressistas latino-americanas:

Realizamos encontros de articulação com veículos contra-hegemônicos desses

países. Em novembro de 2015, por exemplo, organizamos um grande encontro que

aconteceu na Escola Nacional Florestan Fernandes [escola de formação do MST -

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra], em Guararema [interior de São Paulo].

O evento reuniu cerca de 30 meios de comunicação de todo o continente.

Contamos também com um grupo no WhatsApp que usamos para trocar pautas e

informações entre nós. Trabalhamos muito em parceria com esses veículos. Isso é

muito importante para termos acesso aos fatos que vêm acontecendo nos diferentes

países do continente. Se dependermos da mídia tradicional, não ficamos sabendo

do que está acontecendo de fato.

Néstor Busso, do Farco, concorda com a importancia das diferentes mídias contra-

hegemônicas atuarem em parceria.

Estou convencido de que precisamos trabalhar unidos. O Farco é parte da Alela –

Associação Latino-americana de educação radiofônica – que tem produções e

distribuição a nível continental. Produzimos diariamente três informativos latino-

americanos, realizados em diferentes países. Temos que fortalecer sem dúvida a

unidade dos setores populares em Nossa Pátria Grande

15

Para Altamiro Borges, do Centro de Mídia Alternativa Barão de Itararé, a união é a única

forma de enfrentar a atual conjuntura. “O Chávez12 usava uma frase bonita que diz: ‘Ou a América

do Sul e a América Latina se integram, ou ela se desintegra’. Nossas elites não concordam com isso,

mas esse é o caminho”.

V. Conclusão

A plena democracia e a integração e fortalecimento do continente latino-americano no

cenário global dependem substancialmente de um processo de democratização da estrutura

midiática dos países da região, hoje fortemente concentrada nas mãos de poucos empresários que há

anos mantêm poder nessas nações.

A mídia contra-hegemônica, não só no Brasil e na Argentina, mas em outras pátrias irmãs,

exerce papel fundamental, oportunizando espaço a vozes que são silenciadas nos veículos

hegemônicos, e desmascarando a cobertura supostamente imparcial desses meios jornalísticos, cujo

único objetivo é atender os interesses de forças políticas e econômicas conservadoras, alinhadas aos

preceitos neoliberais e, portanto, contra o Estado de bem-estar social e a integração do continente.

As estratégias desses veículos alternativos, sempre críticas aos ocupantes do poder, foram

fortalecidas diante da nova conjuntura, marcada por governos alinhados à grande mídia.

A união desses meios contra-hegemônicos, não só em termos locais (dentro de cada nação),

mas em termos regionais (no continente), é um camino seguro para a luta contra esse estado de

coisas.

VI. Bibliografia

ABRAMO, P. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Editora Perseu Abramo,

2004. 63p.

12 Hugo Chávez Frias foi o 56.º presidente da Venezuela, tendo governado o país por 14 anos, de 1999 até sua morte em

2013. Foi líder da Revolução Bolivariana. Chávez defendia a doutrina bolivarianista, promovendo o que denominava de

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