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Estado do Maranhão

Instituto de Pesquisa econômico-social e informática-IPI

Centro de estudos pesquisa e planejamento-CENPLA

Aspectos

Antropológicos

1

Estado do Maranhão

Instituto de Pesquisa econômico-social e informática-IPI

Centro de estudos pesquisa e planejamento-CENPLA

PESQUISA POLIDISCIPLINAR “PRELAZIA DE PINHEIRO”

Vol.3 – ASPÉCTOS ANTROPOLÓGICOS

2

Governo do Estado do Maranhão

Governador: Prof. Pedro Neiva De Santana

Sistema Estadual de Planejamento

Secretário do Planejamento: Paulo Assis Marchesini

INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICO-SOCIAIS E INFORMÁTICA

Coordenador Geral: Darson Dagoberto Duarte

Coordenador Geral Adjunto: José Augusto Dos Reis

MUSEU NACIONAL, Rio de Janeiro, GB, Pesquisa Polidisciplinar “Prelazia de

Pinheiro”; aspectos antropológicos, por Dr. Roberto da Matta, Regina de Paula Santos

Prado, Laís Mourão Sá. São Luís, IPEI. 1975.

V.3 tab.

Conteúdo: Hipótese de trabalho: Significação Social da religiosidade popular. -Sobre a

classificação de entidades sobrenaturais. - Sobre a classificação dos funcionários

religiosos da Zona da Baixada Maranhense. –Rede de solidariedade: um estudo sobre o

parentesco e o compadrio no interior maranhense. – Colonização e resistência cultural. –

Antropologia social da Baixada maranhense: epílogo com proposta de um modelo.

391/397.001. 5 (812.12)Prelazia de Pinheiro)

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICO- SOCIAIS E INFORMÁTICA

(maranhão)

CENTRO DE ESTUDOS, PESQUISAS E PLANEJAMENTO.

Reservam-se aos autores os

Direitos de reprodução total ou

Parcial dos trabalhos aqui publicados.

3

S U M Á R I O

1. HIPÓTESE DE TRABALHO: SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DA RELIGIOSIDADE

POPULAR-------------------------------------------------------------------------------------------5

Dr. Roberto da Matta

1.1 - Introdução-------------------------------------------------------------------------------------7

1.2 - O outro lado da atividade Missionária-----------------------------------------------------7

1.3 - Localizando o problema---------------------------------------------------------------------8

1.4 - Definindo os Fiéis----------------------------------------------------------------------------9

1.5 - Separando Domínios-----------------------------------------------------------------------10

1.6 - Implementando a Ação---------------------------------------------------------------------11

2. SOBRE A CLASSSIFICAÇÃO DE ENTIDADES SOBRENATURAIS-----------13

Laís Mourão Sá

2.1- Introdução ------------------------------------------------------------------------------------15

2.2 - O domínio -----------------------------------------------------------------------------------16

2.3- Categorias-------------------------------------------------------------------------------------16

2.3.1- Deus-----------------------------------------------------------------------------------------16

2.3.2- Diabo----------------------------------------------------------------------------------------17

2.3.3 - Santos--------------------------------------------------------------------------------------17

2.3.4 - Outros--------------------------------------------------------------------------------------19

2.3.5 – Vagantes ----------------------------------------------------------------------------------21

2.4 - CRITERIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DIAGRAMA--------------------------------22

3. SOBRE A CLASSIFICAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS E RELIGIOSOS DA ZONA

DA BAIXADA MARANHENSE--------------------------------------------------------------25

Regina de Paula Santos Prado

3.1 - Introdução------------------------------------------------------------------------------------27

3.2 - Em busca do domínio----------------------------------------------------------------------29

3.3 - O CONJUNTO DE CATEGORIAS DO DOMÍNIO E O PRÓPRIO DOMINIO

DO SISTEMA-------------------------------------------------------------------------------------30

3.3.1- O Padre-------------------------------------------------------------------------------------31

3.3.2 - Rezador------------------------------------------------------------------------------------35

3.3.3 - Benzedor e Parteira----------------------------------------------------------------------40

3.3.4 - Pajé----------------------------------------------------------------------------------------46

3.4 - CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO COMPONENCIAL DAS

CATEGORIAS------------------------------------------------------------------------------------57

3.5 - Bibliografia----------------------------------------------------------------------------------59

4

4- REDE DE SOLIDARIEDADE: UM ESTUDO SOBRE O PARENTESCO E O

COMPADRIO NO INTERIOR MARANHENSE-------------------------------------------61

Regina de Paula Santos Prado

4.1-Introdução-------------------------------------------------------------------------------------63

4.2-Parentesco-------------------------------------------------------------------------------------64

4.2.1 - O povoado: entidade Afetiva -----------------------------------------------------------64

4.2.2 - Parentesco: repertório -------------------------------------------------------------------66

4.2.3 - Parentela: uma relação-------------------------------------------------------------------69

4.2.4 - Unidade doméstica: casa minha x casa alheia----------------------------------------71

4.3 - Compadrio ----------------------------------------------------------------------------------74

4.3.1 - Batismo e Dimensão de socialização--------------------------------------------------75

4.3.2 - Compadrio: um contrato bilateral------------------------------------------------------80

4.3.3 - “Credo” e compadrio --------------------------------------------------------------------81

4.4 - Incesto----------------------------------------------------------------------------------------84

4.5 - Conclusão------------------------------------------------------------------------------------85

5- COLONIZAÇÃO E RESISTÊNCIA CULTURAL---------------------------------------88

Laís Mourão Sá

5.1 - Introdução------------------------------------------------------------------------------------91

5.2 - Ideologia e práticas missionárias---------------------------------------------------------95

5.2.1 - As origens sociológicas da missão-----------------------------------------------------95

5.2.2 - Os princípios ideológicos da missão---------------------------------------------------96

5.3 - A cultura camponesa e as novas instituições da missa ------------------------------110

5.3.1 - A instituição do catequista-------------------------------------------------------------110

5.3.2 - Modelos genéricos de apreensão das novas instituições --------------------------120

5.3.3 - O batismo e a missa -------------------------------------------------------------------125

5.3.4 - A legião ----------------------------------------------------------------------------------131

5.3.5 - A roça comunitária----------------------------------------------------------------------138

5.4 - Bibliografia---------------------------------------------------------------------------------147

5.5 - Anexo: brincadeira de Bumba-Meu-Boi do Gama (Maranhão, 1972) ------------149

6- ANTROPOLOGIA SOCIAL DA BAIXADA MARANHENSE: EPÍLOGO COM

PROPOSTA DE UM MODELO--------------------------------------------------------------165

Roberto da Mata

6.1 - Introdução----------------------------------------------------------------------------------167

6.2 - Hipóteses iniciais--------------------------------------------------------------------------167

6.3 - Por um modelo do mundo rural---------------------------------------------------------171

6.3.1 - O sistema social-------------------------------------------------------------------------171

6.3.2 - O sistema politico-----------------------------------------------------------------------174

6.3.3 - O problema da mediação e o sistema politico---------------------------------------175

6.3.4 - O sistema religioso e o sistema social------------------------------------------------180

5

1. HIPÓTESE DE TRABALHO: SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DA RELIGIOSIDADE

Dr. Roberto da Matta

- Antropólogo -

Dezembro-1971

1.1 - INTRODUÇÃO

1.2 - O OUTRO LADO DA ATIVIDADE MISSIONÁRIA

1.3 - LOCALIZANDO O PROBLEMA

1.4 - DEFININDO OS FIÉIS

1.5 - SEPARANDO OS DOMÍNIOS

1.6 - IMPLANTANDO A AÇÃO

Toda ação humana tem dois aspectos fundamentais: de um

lado uma prática e de outro lado um código de

comportamento que a norteia. A atuação missionária na

prelazia não foge a regra. A pesquisa examinará a prática

missionária e ainda os dois lado da religiosidade popular

da qual nada se sabe. O enfoque primordial da pesquisa

cuidará da religiosidade regional em situação de contato

com a religiosidade oficial ou erudita. Postula-se como

hipótese de trabalho que são os dois os domínios que

disputam a população local: o código religioso tradicional

(religiosidade popular) e um código super-imposto a ele,

ou seja, o código missionário. A população manipula os

dois códigos. Assim, o problema central da pesquisa

enquadra-se no teste da hipótese de trabalho e da

verificação das situações em que a população usa uma ou

outra ideologia quando se trata de orientar a sua prática. O

autor antes de recomendar a adoção de um diário de

campo e de sugerir a convivência intensiva com os

habitantes do local, observa a necessidade de seguir o

preceito antropológico: ouvir muito mais do que falar,

aprender muito mais do que ensinar.

6

1.1 – INTRODUÇÃO

Dize-me com quem andas que

Eu te direi que és

(Ditado popular)

Alguém1 já deve ter dito que não há melhor modo de conhecimento do

homem do que através das produções do homem. De fato, poder-se-ia ir ainda mais

longe, afirmando que a práxis é o único modo possível de conhecimento, porque ela é

de fato o ponto onde se pode detectar descontinuidades entre os seres viventes entre si e

entre homens entre si.

Num contexto mais técnico e mais antropológico, tal formulação

implica numa distinção entre dois aspectos fundamentais de toda ação humana: uma

aparência, uma prática, e, de outro lado, um código de comportamento. Uma cozinheira

te receitas para fazer seus pratos, um cientista tem padrões para elaborar os seus

trabalhos, um missionário tem uma religião que lhe fornece conceitos e preceitos para a

ação individual e coletiva.

Um estudo, portanto, de qualquer ação humana, terá sempre e

necessariamente que implicar num exame do outro lado. De fato, sempre há outro lado

quando se trata de homens e de sociedades.

Nesta minha tentativa de formular um campo para pesquisa, desejo

inicialmente ressaltar qual o outro lado da problemática proposta para a investigação.

Em seguida, conceituar aquilo que se pode entender por religiosidade e, finalmente,

delimitar alguns problemas mais gerais. Será somente nesta ultima parte que farei

algumas considerações sobre certas técnicas de pesquisa e alusões metodológicas.

1 Convém esclarecer que esta formulação para pesquisa antropológica foi aceita depois de

várias tentativas anteriores neste campo. A primeira, de certa forma, se deve ao trabalho pioneiro do

pe.Bertrad Drapeau e de seu colega Jean-Paul Renaud, que em 1969/70 fizeram várias pesquisas

antropológicas na região, base de suas teses para a universidade Laval , de Quebec. A seguir, a pedido dos

coordenadores da pesquisa, o antropólogo Bruce Corrie formulou um anteprojeto de pesquisa

antropológica e visitou a região durante o mês de fevereiro de 1971, apresentando alguns modelos teóricos

e formulando hipótese sobre as manifestações da religiosidade e o seu mecanismo no contexto social e

cultural da área. O seu precioso estudo constitui três trabalhos mimeografados, e são partes da pesquisa

como um todo. O atraso de alguns meses no inicio da pesquisa dificultou a continuidade do trabalho

antropológico, retomado a partir de dezembro de 1971 com uma equipe constituída das antropólogas

Regina Prado e Laís Mourão, tendo como assessor e coordenador o antropólogo Roberto da Matta, diretor

do Programa de Antropologia Social do Museu Nacional do Rio de Janeiro (UFRJ). As formulações aqui

feitas o são no caráter de hipóteses (e não afirmações definitivas)que o trabalho de campo irá ou não

comprovar.(nota do CENPLA).

7

1.2 - O OUTRO LADO DA ATIVIDADE MISSIONÁRIA

Pelo que aprendi, a prática missionária na região da Prelazia de

Pinheiro (como qualquer outra atividade do mesmo tipo) tem dois lado: há uma prática

e há uma ideologia que reifica essa prática, ou seja , um código que norteia a navegação

social da missão e o comportamento dos missionários. Pelo que sei os resultados de tal

prática nem sempre foram satisfatórios e a própria missão está disposta a revê-la na

região. Coloca-se, pois, o problema da prática e , ainda que o problema do código que

engendra essa prática deva ter sido também colocado , não se trata de propor uma

pesquisa sobre ele. O ponto de partida é, pois, que apenas um lado da atividade seja

analisado sociologicamente. Pois bem, como ponto de partida, seria crucial um estudo

das raízes dessa prática: sua ideologia, sua ordem oculta, o outro lado dela. O segundo

problema é que os fieis também possuem uma prática e ideologia. Nada se sabe sobre

ela, sendo preciso estuda-la para se se possa penetrar neste universo com mais

facilidade. Sabe-se que, a par de uma “religião oficial” existe outro lado, oculto,

misterioso, chamado de “religiosidade popular”.

1.3 - LOCALIZANDO O PROBLEMA

Sabe-se, também, que a prática missionária não foi totalmente

infrutífera. Ela de fato, entre muitas outras coisas, atraiu adeptos que se aliaram

totalmente a missão e tornaram-se “catequistas”. Tal grupo pode representar uma

categoria muito especial, mas de um ponto de vista sociológico, ele representa o melhor

índice de compreensão do trabalho da missão na região. Se a prática missionária gerou

um grupo de catequistas, isso representa uma verdadeira encarnação da atuação da

missão naquela área. Em outras palavras, somando-se a atividade da missão ás crenças

locais, engendrou-se um tipo de gente especial que de um lado representa a ideologia da

missão personificada, de outro, a negação de tudo aquilo que existe na área, em termos

religiosos. Tal categoria representa o verdadeiro amigo. Conhecer tal amigo é conhecer

bem a missão. De modo que estudar quem são essas pessoas é uma tarefa crucial neste

estudo. Tomo como ponto de partida que tais associados atualizam um padrão de

conduta caracterizado por ser provavelmente sectário. Eles devem ser mais moralistas

do que os padres da missão, devem ser mais “cristãos” do que os membros da missão

devem rejeitar tudo que diz respeito à religiosidade local e fatalmente representam uma

caricatura só dos padres, como também do ideal cristão que os padres têm em mente

produzir. Tal conduta, caracterizada por oposições e contradições revelaria não só o

“outro lado” da atividade missionaria, como também o “outro lado” da religiosidade

local. Tudo que tais pessoas adotam deve ser fundamental para os padres (ou foi

percebido desse modo), tudo que eles rejeitam deve ser fundamental para os moradores

da região. O estudo desta categoria, portanto serviria como verdadeiro índice dos dois

códigos em mútua conversão, pois o fracasso da prática missionária revela , ainda , uma

“conversão” em curso na própria missão. Uma conversão do código da própria área,

porque ninguém consegue escapar da dialética de relação social, sempre feita a dois.

8

1.4 – DEFININDO OS FIÉIS

Colocado de modo superficial e um tanto quanto brutalmente o

problema do sucesso da Missão – um sucesso, aliás, rejeitado – quero fazer uma

consideração sobre ele, antes de passar ao problema da religiosidade.

Como antropólogo marcado por viagens de campo, defrontei-me

algumas vezes com o mesmo problema. Também encontrei índios “convertidos”

radicalmente à civilização dos brancos, rejeitando uma série de padrões de sua própria

sociedade. Geralmente tais pessoas são marginalizadas na própria comunidade em que

vivem e usam o antropólogo (também ele agente de mudança social e portador de um

código de comportamento) como um trampolim para cavarem um lugar onde possam

ficar em paz. Nada mais representativo do agente colonial (esse antropólogo

desavisado...) do que o nativo que amanhece vestido com uma camisa bem sua, anda

com uma caderneta no bolso e tenta escrever uma escrita cabalística, cujo efeito é

mágico porque ele, na realidade, não sabe escrever. Sua atividade é de imitação (essa

poderosa atividade humana) e, como tal, assume aspectos mágicos e ritualizados. Ele é

o espelho do antropólogo no campo e certamente ensina uma lição, pois suas ações são

as ações do agente colonial em plena atividade e a todo vapor. É preciso ver nele a

minha própria caricatura, porque nele eu estou representado. Não se trata propriamente

de um fracasso do antropólogo, mas da crueldade imposta pela comunicação entre os

homens porque há uma violência na comunicação, na interpretação, na análise. E há

uma brutalização na mudança social...

Retomemos, porém, o fio da reflexão. É preciso ter uma ideia de

religião e da religiosidade (a prática da religião). O defino operacionalmente religião

como Peter Berger e, muito antes dele, com E. Durkheim: religião é aquele aspecto da

ordem social (ou de uma ação social) que remete a um domínio (ou domínios) situado

fora do “aqui e agora”. O domínio da religião é o domínio das reificações primeiras (ou

últimas) das ações sociais. Neste domínio estão os axiomas do modo mais claros e mais

preciso e, também, do modo mais arbitrário. Um exemplo simples: uma criança precisa

ir para a cama as nove porque é criança! (Esse é o ponto irredutível da ordem dada pelo

pai, desde que todas as respostas aos “porque” falharam e a criança continua

perguntando). Um homem deve ser bom porque assim Deus quer que seja! O domínio

da religiosidade é o da ancoragem final das ações humanas.

Nesta colocação, tudo aquilo que traz ordem (e reificar é,

fundamentalmente, ordenar) remete à religiosidade, desde que se achegue ao nível da

ideologia ou da reificação. Como diz Berger, “todo gesto de ordenação é um sinal de

transcendência”, sendo, portanto uma ação religiosa.

Descongestionando, pois, os conceitos dos preconceitos (já que

“religiosidade” é habitualmente uma categoria distintiva, utilizada por aqueles que se

reconhecem dentro de uma ortodoxia oficial), entende-se, do ponto de vista

antropológico, que religião e religiosidade, aplicam-se tanto aos missionários enquanto

tais, como a população local. No entanto, o enfoque primordial da pesquisa cuidará da

“religiosidade regional em situação de” contato com outra “religiosidade oficial ou

erudita’, Só por tabela, e como decorrência de uma técnica de interpretação é que a

9

pesquisa introduzirá, fornecerá, indiretamente, pistas para o começo de uma possível

análise da religiosidade do próprio universo missionário”.

Do mesmo modo tal colocação ajuda a compreender outros aspectos

da interação Missão/região. Isso porque é bastante provável que a Missão veja a

religiosidade como um domínio específico da vida social (como de fato indica o

processo histórico de secularização da civilização ocidental, onde a vida social foi

dividida em pedaços, veja-se o ditado “amigos, amigos, negócios à parte” ), enquanto a

Antropologia Social tem revelado que, na maioria das sociedades humanas, tal domínio

não aparece destacado dos outros, sendo tal processo característico das chamadas

grandes civilizações.

Ora, se a religiosidade em muitos casos faz parte da própria pratica

social, o único modo de abordá-la adequadamente é pelo estudo desta prática e suas

ideologias, Por outro lado, tal formulação indica – ao menos teoricamente – que, onde

há uma sociedade, há uma religiosidade e que, no caso da Prelazia de Pinheiro, a

“religião oficial” representa uma intrusão na prática religiosa que é parte e parcela da

própria religião. Tal perspectiva coloca, portanto, alguns problemas.

1.5 – SEPARANDO DOMÍNIOS

Pode-se perfeitamente postular, como uma hipótese de trabalho, que

na região há um código “religioso” tradicional (a chamada religião popular) e um outro

código, superimposto a ele, seu competidor, que é a religiosidade do missionário. A

preocupação de uma Missão qualquer é de fato integrar a região numa comunidade

universal do mesmo modo que o intuito do Governo seria igualmente integrar a região

numa comunidade nacional, criar-lhe um lugar dentro da economia capitalista. O

reverso de tal situação (o seu “outro lado”) é que a região está dividida entre um código

local e um código nacional no plano social e político e, no plano espiritual, entre um

conjunto de crenças “populares” e outro aparentemente muito mais elaborado e de

pretenso caráter universalista.

Existem, pois, por hipótese, dois domínios que “disputam” a

população local. Mas vendo o “outro lado”, pode-se igualmente dizer que a população

local manipula esses dois domínios e seus respectivos códigos. Tal situação, que é

muito comum quando se trata de suas culturas diferentes, como no caso de contrato

entre índio e brancos, torna-se confusa quando se trata de dois segmentos de uma

suposta sociedade única, no caso, da sociedade brasileira. O problema da comunicação é

assim muito mais relacionado às oportunidades que tem uma dada população de

manipular o código tradicional, e o código que se lhe apresenta como alternativa, do que

propriamente de se oferecer a ela um código alternativo altamente eficiente. Creio,

assim, que o problema desta pesquisa será o teste destas hipóteses de trabalho e a

verificação das situações em que a população usa uma ideologia ou outra quando se

trata de explicar, justificar ou simplesmente colocar determinados suportes para as suas

ações sociais e instituições.

10

Esperaria que, em determinados momentos, o código do catolicismo

missionário fosse plenamente usado e que, em outros, o código de “pajelança” fosse

utilizado. Isso não traria conflitos abertos ou necessários e, pelo contrário, reforçaria a

posição de que afinal regras sociais e códigos de comportamento estão ai para serem

usados. São recursos como quaisquer outros à disposição de uma dada população.

1.6 – IMPLEMENTANDO A AÇÃO

Para que tal pesquisa seja bem sucedida, é preciso seguir à risca o

preceito básico da Antropologia: ouvir muito mais do que falar, aprender muito mais do

que ensinar. As técnicas de pesquisa serão as que permitam descobrir como a vida

social desta gente se organiza.

Deve haver uma ordem oculta qualquer por trás das escolhas sociais

desta população e o primeiro passo será descobrir essa ordem. Em geral os homens se

organizam em grupos e o primeiro momento será localização destes grupos. Depois, a

verificação do seu peso específico em cada situação e problema. Para tanto, creio que a

convivência intensiva com os habitantes do local forneça as pistas principais. Em

antropologia, o antropólogo é um homem dentro de um quarto escuro: quem risca o

primeiro fósforo é o antropólogo formulando uma hipótese geral (isso foi feito aqui),

Mas quem ilumina gradativamente o quarto são seus informantes. A convivência, deste

modo, deverá trazer insights sobre a situação e estes insights devem ser seguidos com

entrevistas informais. Cabe basicamente a sensibilidade do antropólogo a descobertas de

certas conexões, porque sem ligar, não se pode descrever. Daí porque eu recuso o uso

do formulário que, de saída divida o continuum da vida social em pequenas perguntas,

partindo-o de modo irremediável. A descrição que vem de formulários ou questionários

é, sempre, uma descrição em pedaços, não integrada e, do meu ponto de vista,

deficiente. O problema da pesquisa em Antropologia é integrar e só se pode integrar

buscando os princípios de ordem fundamentais e discutindo esses princípios em detalhe.

Assim sendo, recomendo que seja feito um diário de campo, algumas

entrevistas formais (para a coleta de dados mais duros e fáceis de obter) e,

principalmente, desenhos das comunidades (ou comunidade, bairro, etc...) e diagramas

de fronteiras de grupos sociais, esquemas, etc..., pedindo aos próprios informantes que

seja seus executores.

Será deste modo que vejo o reinicio das atividades antropológicas na

área e estou certo de que assim alguns resultados positivos serão efetivamente obtidos.

11

2. SOBRE A CLASSIFICAÇÃO DE ENTIDADES SOBRENATURAIS

Laís Mourão Sá

- Antropóloga –

1972

2.1 – INTRODUÇÃO

2.2 – O DOMÍNIO

2.3 – CATEGORIAS

2.3.1 – Deus

2.3.2 – Diabo

2.3.3 – Santos

2.3.4 – Outros

2.3.4.1 – Mãe-d’água

2.3.4.2 – Curupira

2.3.4.3 – Curacanga e Lobisomem

2.3.4.5 – Vagantes

2.4 – CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DIAGRAMA

Trata o presente trabalho de um exercício sobre a aplicação do

método da Antropologia Cognitiva ao material colhido no

povoado de Barroso, município de Bequimão, na região da

Baixada Maranhense, que tenta apreender de que modo a

população local classifica suas entidades sobrenaturais. O

método utilizado foi o da comparação, ou seja, verificou-se de

que modo as categorias se relacionam e se essa relação

permanece ou se modifica, não havendo, portanto, a

preocupação com o problema da origem. O domínio considerado

mais geral é o dos seres que pensam, porque separa as diversas

categorias abordas e define os limites do campo semântico em

que o trabalho está inserido, chegando-se, após uma série de

critérios extraídos desse mais geral, a caracterizar

detalhadamente as entidades sobrenaturais aqui estudadas.

12

2.1 – INTRODUÇÃO

O que pretendemos aqui é fazer um exercício sobre a aplicação do

método da Antropologia Cognitiva ao material de que dispomos2. Apresentaram-se

algumas dificuldades principalmente devido ao fato de que este matéria não foi colhido

com a preocupação de aplicar o método, razão pela qual muitas lacunas não puderam

ser preenchidas durante a análise. Por ser nosso intuito cobrir toda a vasta área da

religiosidade local, evidentemente havia material suficiente para se tentar apreender de

que modo a população local classifica suas entidades sobrenaturais. Os informantes

utilizados eram, em sua maioria, leigos. Dentre os especialistas, contavam-se uma

rezadeira-parteira, uma benzedeira, uma pajoa3.

Muitos dos dados que utilizamos neste exercício foram deduzidos a

partir de mitos de origem, expressões linguísticas utilizadas em contextos específicos,

relatos de experiências vividas pelos informantes ou de casos conhecidos pela

comunidade. Outras vezes os dados saíram de entrevistas que tinham por objetivo

estabelecer relações mais precisas entre as categorias.

2 Material referente a trabalho de campo realizado durante os meses de janeiro-fevereiro-março, na região

da Baixada Maranhense, município de Bequimão, povoado de Barroso, Objetivo geral da pesquisa:

levantamento dos principais aspectos da organização social para inferir-se daí a importância e o alcance

do nível religioso da comunidade.

3 Cf. trabalho Regina Prado sobre as categorias de funcionários religiosos (capítulo seguinte).

13

É importante notar, também, que o pensamento religioso na cultura

local se elaborou a partir de três origens distintas: a indígena, a africana e a do

catolicismo ibérico, tradicional, veiculado pelo colonizador português e seus agentes

missionários. Na pratica, o quadro que encontramos apresenta, evidentemente, uma

unidade própria, não cabendo, portanto, uma preocupação básica com o delimitar das

estruturas originais de cada tipo de influência. Porém, muitas vezes constatamos que

existem como que “pedaços” de estruturas vindas dos três quadros originais,

combinando-se na cultura local de modo ambíguo, devido à perda do quadro de

referência global de onde provém. Quando isso ocorreu, tentamos o recuso à fonte

original, como, por exemplo, no caso da influência indígena Tenerehara4, com o

objetivo de verificar de que modo as categorias se relacionam aí, e se essa relação

permanece ou se modifica no caso presente. Isto é, o recurso metodológico foi o da

comparação, e não a preocupação histórica cm o problema da origem.

2.2 – O DOMÍNIO

A cultura local não possui uma expressão global para referir o

conjunto das entidades sobrenaturais que classifica. Analiticamente, o próprio conceito

de “entidade sobrenatural” se revela ambíguo, na medida em que o domínio do religioso

cobre uma extensão tão vasta da vida social que o limite entre profano-sagrado, ou

natural-sobrenatural, se torna extremamente difuso só podendo ser definido em termos

de situações específicas.

Tentamos, então, identificar as categorias a partir da definição de

religioso com a qual vínhamos operando, e analisar a posteriori qual seria a melhor

forma de definir o domínio. Desde nossas hipóteses de trabalho iniciais, definimos o

religioso como tudo aquilo que transcende o aqui e o agora da vida social, atingindo o

limite do axiomático. Assim, todas as explicações ou ações que não se encaram na

realidade imediata da vida cotidiana, constituem objeto de um estudo do nível religioso

da vida social. Procuraremos identificar quais as entidades que surgem neste contexto,

defini-las e estabelecer os critérios pelos quais se delimita o domínio aqui considerado.

2.3 – CATEGORIAS

2.3.1 – Deus

Deus fez tudo o que existe sobre a terra. O bem e o mal. É ele que dá a

“sina”5 das pessoas, santos ou pajés. Ele reina sobre tudo e explica tudo num nível mais

geral, o que não impede de haver outras explicações para cada fato, em níveis mais

específicos. Por exemplo, num nível geral, todas as sinas são atribuídas a deus; num

4 Cf. Wagley & Galvão.

5 Expressão que significa destino.

14

nível mais específico, quando se reconhece que uma criança tem sina de pajé, diz-se: “É

negócio de encantado”, sendo esta uma categoria bem distinta de deus, como veremos

adiante.

Comparada com o conjunto das demais categorias, a categoria deus se

assemelha à categoria do herói cultural indígena. São heróis criadores e civilizadores

que, depois de ensinar ao homem, sua criação, os traços mais fundamentais da cultura,

se retiram para o paraíso e de lá reinam sobre sua obra, sem atuar mais diretamente

sobre ela. Daí por diante sua ação se manifestará muito mais através de seus delegados.

É sabido, inclusive, que os jesuítas buscaram identificar a sua categoria deus com esse

tipo de entidade (o herói cultural Tupã), o que indica uma intuição da semelhança

estrutural entre as duas categorias, nos dois sistemas.

No material que recolhemos há afirmações como “O mundo é

contaminado de tudo. Do bem e do ruim. Do mal e do que é bom. Tudo Deus botou”.

Há uma estrofe de toada de Bumba-meu-boi que diz “... que pensa de Deus/não ficou

pra nóis adivinhá...” E o informante interpreta: “Os pensa de Deus nóis não adivinha.

Próprio nem os papa. O mundo não ficou pra adivinhá o que Deus tem pra fazer”. E,

noutro contexto, falando de sua atividade econômica: “A gente não sabe o que Deus tem

pra fazer. A gente faz um cálculo, Deus desmancha. O da gente é sempre errado, e o

dele é verdadeiro”.

2.3.2 – Diabo

É a categoria que expressa o conceito de mal num nível mais global,

funcionando como explicação de toda a situação de desordem. O conceito de desordem

vem explicitado no termo “atrasos”, indicando a consequência de toda ação que tem

como causa uma tensão do Malvado. Os “atrasos” ou “malfeitos” indicam transgressões

de leis sociais, como, por exemplo, no contexto em que a cachaça é considerada “coisa

do Malvado” porque leva a pessoa abrigar ou matar, “atrasos” para sua vida. Há ainda, o

caso mais típico do compadrio, onde a relação do mal com a desordem aparece

claramente: se os compadres não usarem o termo de tratamento adequado este será

usado pelo Malvado, e a pessoa que não foi chamada de compadre, ou comadre, passa a

figurar nessa relação com o diabo. O caso mostra de que modo uma relação social não

nominada cai fatalmente no nível de desordem, e mostra também de que modo a

ideologia utiliza esta categoria para expressar o fato.

2.3.3 – Santos

Elaborados a partir do quadro de catolicismo popular, os santos são,

sem exceção, definidos como entidades bondosas, ex-seres humanos com qualidades

excepcionais as quais conduziram a santificação. A indicação de que “são bons” é

importante porque surge como oposição à qualidade de outros seres: “Os santos não

atentam”. Por isso não se tem medo deles: sabe-se que castigam, mas só quando

15

reconhecidamente o indivíduo merece (quando, por exemplo, deixa de cumprir uma

promessa, ou em alguns milagres onde os santos castigam pessoas que estão

transgredindo impunemente leis sociais).

Muito já se disse sobre as relações contratuais estabelecidas com os

santos (promessas). Mas dentro desse modelo geral há aspectos importantes que

merecem atenção, como, por exemplo, o contexto das promessas, quando visto em

relação ao conteúdo da categoria “milagre”. Este é um dos temas sugeridos pelo

material de que dispomos, mas que não cabe no âmbito do presente trabalho.

Relacionamos a seguir os principais traços que aparecem nos relatos sobre a categoria

santos6:

a) Identificação do tempo dos santos com o tempo de Jesus, o que pode

aparecer também sob a forma de participação do santo no sofrimento de

Jesus (santos que foram sacrificados junto com ele ou passaram

concomitantemente por outros tipos de sofrimento). O elemento

importante aí é “sofrer uma injustiça, passar por um sofrimento”. Ainda

em relação à identificação no tempo, surge o modelo apocalíptico, com os

polos: tempo de santo (antes, tempo do bem, começo do mundo, tempo de

Jesus, em que todos rezavam) x tempo de dilúvio (hoje, tempo do mal, não

há mais santos, ninguém reza, não há lei, só há confusão);

b) identificação no espaço socialmente conhecido: diz-se que todos os

santos são “do Brasil”, sendo que alguns têm sua história localizada em

municípios próximos, onde se erguem suas igrejas;

c) predestinação com origem em deus. É importante notar que da mesma

forma que o pajé tem sua “sina”, explicada por regras que o colocam em

contato antecipado com o mundo dos encantados, também os santos,

durante sua vida (ou período que antecede a introdução no mundo

sobrenatural) apresentam sinais que explicam seu “dote” por uma ligação

especial com elementos ou situações de culto católico. Por exemplo,

“adorar a deus desde o berço”, ser assíduo à missa, ingressar numa ordem

religiosa;

d) ressureição: os santos são seres humanos que morreram e, voltando a

viver, se transformam em seres sobrenaturais. Daí serem chamados “santos

vivos”;

e) legitimação: o elemento legitimador da santificação é “Roma” que

aparece como símbolo de hierarquia máxima da Igreja, mesmo que não se

saiba explicar onde fica, ou o que existe lá, como ocorre sempre. O corpo

do santo é sempre levado para Roma, onde se transforma em imagem, da

qual é tirada uma cópia para ficar na igreja local;

6 A principal informante foi uma rezadeira-parteira, cujos relatos estão fortemente referidos ao conteúdo

dos “benditos” (orações cantadas provenientes da herança do catolicismo ibérico).

16

f) poderes excepcionais: depois de santificados, estes seres adquirem o

poder de realizar milagres, isto é, fatos sem qualquer probabilidade de

ocorrência dentro das leis sociais vigentes7. A definição-padrão da

categoria é: “Os santos existem para fazer milagres pra gente”.

Os “santos vivos” são ditos ter “alma e tudo”, isto é, parecidos com os

seres humanos. Existem em Roma, estando, portanto, “em cima da terra”, e é através de

sua imagem que se pode conhecê-los. Daí dizer-se que o santo é “visível”, sem oposição

às outras entidades que não se manifestam através de imagens. Daí, também, a relação

com os santos ser vivida com uma intimidade, resultante da certeza e da não-

ambiguidade com que são definidos: “Aqui todos estão acostumados a ter um santo

desses aqui na terra que a gente faz essas festas pra ele”. Há ainda os “santos de casa”,

que não fazem milagres (porque só os santos da Igreja podem fazê-los), mas que “é

como se fosse”. Estes também aparecem nas salas dos pajés, representando os santos de

sua devoção (sem relação com o ritual da pajelança).

Diante das três categorias já apresentadas (deus, diabo e santos), queremos chamar

atenção para um tipo de modelo que aparece no discurso de certos informantes referidos

basicamente ao quadro conceptual do catolicismo popular:

I - Deus (mundo de cima)

II - Santos (mundo da terra)

III - Inimigos (mundo do fundo)

As categorias I e II formam um polo de posição à terceira, e nesta são

incluídos tanto o diabo, símbolo do mal em sentido global, como também todas as

categorias que apresentaremos a seguir. Esse tipo de operação classificatória remete

diretamente à ideologia católica enquanto ideologia dominante, legitimada pela

sociedade nacional que defini como “inimigos”, isto é, elementos desorganizadores,

todos os sistemas que interferem na área ideológica que ela tenta controlar. Mas, se

considerarmos a totalidade dos informantes (sem separá-los segundo a ênfase neste ou

naquele modelo, já que todos integram num único sistema), é interessante notar que

principalmente as categorias I e II são unanimemente partilhadas pela população local.

As grandes contradições ideológicas surgem na conjunção da categoria III com as que

apresentamos a seguir.

2.3.4 – Outros

Incluiremos nesse item quatro entidades que não se agrupam sob uma

denominação comum, embora se aproximem em certos aspectos, diferenciando-se em

outros.

7 Essa é uma hipótese a ser testada posteriormente.

17

2.3.4.1 – Mãe-d’água

É uma entidade ambígua, pode fazer o bem ou o mal, dependendo do

comportamento da pessoa em relação a ela. Há certas regras para se lidar com a mãe-

d’água (pedir licença para passar num riacho, ou para se banhar, pedir boa água no

poço, etc.). A ambiguidade dessa categoria está ligada, também, a sua vigência no

âmbito da pajelança, onde funciona como veículo dos diagnósticos e da cura ritual.

Outro traço característico é que as mães-d’água não têm origem humana: “Mãe-d’água

nunca foi pessoa que morreu. Foi Deus que deixou no mundo”. Aparece frequentemente

no discurso sobre a mãe-d’água o termo “encantado”, que também é sinônimo de

“companheiro do fundo”. Galvão observa que8 para o leigo (não iniciado na pajelança),

o conceito de “companheiro do fundo” é muito vago, às vezes é colocado na categoria

especial de “encantado”, conceito que, por sua vez, se define como um poder mágico de

encantar seres humanos, animais ou objetos. Diríamos que a repetida manipulação do

conceito, já bastante distanciado do sentido que teria no contexto indígena puro,

provocou uma generalização difusa do termo, para designar todos os seres que estamos

incluindo nesse quarto item de categorias. A teoria local não apresenta uma explicação

esclarecedora da questão, razão pela qual preferimos não utilizar o termo “encantado”

como uma categoria específica.

2.3.4.2 – Curupira

Enquanto as mães-d’água são responsáveis pelo domínio das águas, os

curupiras controlam o domínio da mata. A descrição da entidade se aproxima do Saci-

Pererê: é um pretinho que assovia de noite para assombrar as pessoas: tem o pé pequeno

e o calcanhar para a frente, deixando as pegadas ao contrário, de modo a enganar as

pessoas quanto a sua direção e fazê-las perder-se no mato. É também um ser ambíguo,

no sentido de que pode ou não fazer o mal, dependendo do comportamento que se tem.

Se alguém fica assombrado de curupira, só um pajé pode curar. Ele pode levar crianças

para o tucunzeiro (árvore que é sua morada) para fazer o mal: “ficar burro da cabeça,

assombrado”. As duas regras que se deve observar quanto ao curupira são: não xingar e

não construir casa no caminho por onde ele passa. Como a mãe-d’água, também não

tem origem humana.

2.3.4.3 – Curacanga e Lobisomem

Distinguem-se das duas categorias anteriores por serem seres humanos

que sofrem uma transformação momentânea em decorrência de certas circunstâncias.

Assim, a curacanga, espécie de fogo que pode ser visto à noite, é uma mulher que tem a

sina de sofrer essa mutação toda a sexta-feira, devido ao fato de ser a sétima filha de

uma sequencia de sete irmãs. A cabeça se desprende do corpo e se transforma em fogo

que fica a vagar pelo campo, assombrando e queimando quem a vê. O único modo de

8 Cf. “Galvão, Santos e Visagens”, pp. 91 a 93.

18

quebrar esta sina é fazer com que a pessoa tenha por madrinha a irmã mais velha.

Quanto ao lobisomem a explicação é a mesma, com a diferença que se aplica a uma

seria de sete irmãos e a sina é transforma-se em porco. Dizem que ambos “são do

maligno”, e não se confundem com a categoria dos encantados a que nos referimos

acima.

Enquanto, de um lado, essas quatro categorias são “acusadas” pela

ideologia do catolicismo tradicional de serem “coisas do Satanás”, de fato, nelas a ideia

de mal aparece com uma qualidade alternativa. O mal não se personifica num único ser,

mas surge como um tipo de poder que pode manifestar-se ou não numa entidade,

dependendo das circunstancias. Poderíamos talvez ver aí a presença de uma concepção

de mundo que diverge do maniqueísmo típico do catolicismo, o que, aliás, permite a

assimilação de certos conceitos desde (noção de mal(, com reintegração noutro quadro

de referência. Esse não-maniqueísmo seria mais representativo da cosmovisão indígena

que marca fortemente a cultura local9.

2.3.5 – VAGANTES

São os espíritos de seres humanos que, após a morte, voltam para

“atentar” as pessoas vivas. Aparecem à noite, sendo também chamados de

“assombrações” ou “visagens”, termos que designam todos os seres sobrenaturais que

se manifestam visivelmente aos vivos. Essa é a categoria que melhor especifica, ao

nível do cotidiano, as características que no nível mais global são atribuídas à categoria

diabo. Assim, os vagantes são espíritos “mal-encaminhados” que fazem o mal. É gente

que morre e “não vai pra bom lugar porque não presta”, deixou alguma falta ou pecado

por pagar.

“Quando a gente é malvado aqui em cima da terra, ele não tem bom

sossego na onde ele vai. Nós tamo aqui nesse mundo é pra nós fazer

benefícios uns pros outros”.

“...eram elementos que só faziam mal, se tinham dinheiro, só tinham

eles, se tinham o comê, comiam sozinhos, os pobres morriam à

mígua... Chegou lá, não teve lugar pra eles, ficaram purgando...”

Assim, a ideia, do mal num nível mais específico volta a surgir num

contexto de uma desorganização social, onde as regras sociais foram transgredidas. Os

vagantes “atentam”, isso é, provocam “atrasos”, como matar, roubar, etc. Na pajelança,

eles são o polo oposto às mães-d’água que fazem o bem (curam) e, como tal, os

vagantes são combatidos e exorcizados com “bálsamo santo em cruz”, quando, por

acaso, baixam nas sessões.

9 Enquanto no catolicismo se verifica um modelo de passagens irreversíveis bem-mal, isto é, uma

descontinuidade, nos outros sistemas ideológicos em questão essas passagens se dão dentro de uma

continuidade que vem, inclusive, explicar a ambiguidade teórica das categorias. Elas só se definem como

boas ou más contextualmente, há uma reversibilidade entre o bem e o mal.

19

2.4 CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DIAGRAMA

Como não existe uma categoria para referir o domínio, tentamos

inferir que critérios estariam por trás da classificação de entidades sobrenaturais. Em

primeiro lugar, essas entidades estariam no domínio dos seres que pensam, já que se

distinguem de animais, vegetais, ou coisas sem essa característica. Este, então, seria um

domínio mais geral que separa as categorias que nos interessam de outras possíveis,

definindo os limites do campo semântico com que lidamos.

Dentro deste domínio, encontramos não só os homens de um modo

geral, mas todos os seres que, participando de sua lógica racional, se fazem presentes na

vida social. No entanto, essa presença assume uma conotação diferente da presença dos

homens, em que sua própria vida social rotineira, na medida em que se efetua por

intermédio da ação de poderes extra-humano, próprios do reino do sobrenatural. Temos,

assim, uma primeira dimensão de contrastes dentro do domínio:

a1: vida social rotineira – seres com poderes humanos;

a2: vida sobrenatural – seres com poderes não humanos.

Cada um desses componentes poderia, na verade, ser tratado como um

domínio à parte, ou um sub-domínio dentro do domínio maior. Nosso interesse aqui será

desenvolver o componente a2, deixando claro que a1 não indica uma categoria terminal,

mas será deixado de lado porque, em última análise, remete a um domínio distinto.

Os seres que possuem poderes anormais, não cotidianos, distinguem-

se primeiramente quanto à sua origem humana ou não humana. A segunda dimensão de

contraste fica sendo, então:

b1: seres com origem humana;

b2: seres com origem não humana.

Quanto aos de origem humana, há os que já morreram, insto é, santos

e vagantes, os quais se diferenciam pela prática do bem ou do mal.

Por outro lado, há os que são atualmente humanos, vivos, ou seja, a

caracanga e lobisomem, cuja distinção se faz pelo critério do sexo.

Temos, assim, mais três dimensões de contraste:

c1: ex-humanos; e1: bem f1: homem

c2: atualmente humanos. e2: mal f2: mulher

Voltando, agora, ao segundo componente da segunda dimensão (b2),

verificamos que, entre os seres de origem não-humana, temos mãe-d’água, curupira,

deus e diabo. Desses, os dois primeiros se distinguem pelo fato de lhes atribuído o

controle de um determinado domínio da natureza, enquanto os dois últimos atuam sem

essa especificação, apontando, ao contrário, a tendência a um controle difuso sobre o

mundo de um modo geral.

20

Por fim, teríamos que diferenciar ainda deus-diabo, o que se faz pelo

critério da prática do mel e do mal. As dimensões restantes são:

d1: controle específico de um domínio da natureza

d2: controle difuso sobre o mundo

g1: água h1: bem

g2: mato h2: mal

Indicamos, dessa forma, oito dimensões de contraste atuantes no

esquema de classificação das entidades sobrenaturais entre a população local. Essas oito

entidades distribuem em cinco níveis taxonômicos, como veremos nos diagrama a

seguir. Daremos, antes, as definições componenciais de cada categoria:

Santos a2 b1 c1 e1

Vagantes a2 b1 c1 e2

Lobisomem a2 b1 c2 f1

Curacanga a2 b1 c2 f2

Mãe-d’água a2 b2 d1 g1

Curupira a2 b2 d1 g2

Deus a2 b2 d2 h1

Diabo a2 b2 d2 h2

21

D I A G R A M A

Seres que pensam

Seres com poderes humanos

A1

Seres com poderes não-humanos

A2

Atualmente humanos

c2

Bem e1

Mal e2

Homem

f1

Mulher

f1

Ex-humanos

c1

Controle difuso sobre o mundo

d2

Controle especif. de 1 domínio nat.

d1

Água g1

Mato g1

Bem h1

Mal h1

Seres humanos

b1

Seres não-humanos

b2

I

II

SANTOSVAGAN-

TES

LOBISO-

MEN

CURACAN-

GA

MÃE-

D’ÁGUA

CURUPI-

RA

DEUS DIABO

III

22

3 – SOBRE A CLASSIFICAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS RELIGIOSOS DA ZONA

DA BAIXADA MARANHENSE

Regina de Paula Santos Prado

- Antropóloga –

1973

3.1 – INTRODUÇÃO

3.2 – EM BUSCA DO DOMÍNIO

3.3 – O CONJUNTO DE CATEGORIA DO DOMÍNIO E O PRÓPRIO DOMÍNIO

COMO SISTEMA

3.3.1 – Padre

3.3.2 – Rezador

3.3.2.1 – O rezador como categoria referencial do padre

3.3.2.2 - O rezador como celebrante das festas dos Santos

3.3.2.3 – Algumas observações a respeito do padre e do rezador

3.3.3 – Benzedor e Parteira

3.3.3.1 – Benzedor

3.3.3.2 – Benzer

3.3.3.3 – Dimensão sexo

3.3.3.4 – Repertório dos males do benzedor

3.3.3.5 – A reza do benzedor

3.3.3.6 – Benzedor: uma categoria mediadora entre o código do catolicismo e o código

da pajelança

3.3.4 – Pajé

3.3.4.1 – Curador e Feiticeiro

3.3.4.2 – Pajé e Mineiro

3.3.4.3 – Doutor do Mato

3.4 – CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO COMPONENCIAL DAS

CATEGORIAS

3.5 – BIBLIOGRAFIA

Os funcionários religiosos da Baixada Maranhense são aqui estudadas

através de um método Sincrônico. A escolha de tal método e não do método

Histórico se prende à necessidade de enfocar a questão no seu conjunto,

apresentando os funcionários religiosos da Baixada Maranhense como um

sistema e não como uma colcha de retalhos em que se evidenciariam apenas

as origens culturais que contribuíram à formação do sistema. Após

descrever e analisar todos os funcionários religiosos, estudando as relações

existentes entre eles, observa-se que parece existir um continuum no qual o

padre e o pajé ocupariam os extremos, enquanto o rezador e o benzedor, os

meios. Isto significa que o padre articula a comunidade com o mundo

externo e existe uma gradação até o pajé, ou seja, à medida que passamos

pelo rezador e benzedor, penetramos cada vez mis no código local. O pajé,

no outro extremo, atuaria nas áreas mais escondidas, reprimidas e íntimas do

código local.

23

3.1 – INTRODUÇÃO

Toda fonte de informação deste artigo provém de um trabalho de

campo realizado, durante o período total de 5 meses (janeiro-fevereiro; junho a outubro

de 1972), no município de Bequimão, na zona da Baixada Maranhense. A maioria dos

dados foram colhidos junto a moradores de um pequeno povoado, Barroso, de mais ou

menos 350 pessoas. Mais tarde percorremos outras localidades em busca de

confirmações ou possíveis variantes.

Constituirá um dos capítulos de uma pesquisa mais ampla cujo

objetivo principal é o de dar conta do sistema religioso do caboclo daquela região.

Informações complementares sobre a organização social e as relações econômicas que

permitirão uma melhor apreciação da sociedade como um todo estão sendo ou já foram

amplamente descritas em capítulos especiais10

.

Contudo, algumas observações preliminares que tangem diretamente o

presente tema devem ser colocadas para que possamos navegar com maior segurança.

Ao penetrarmos mais de perto no universo religioso do caboclo

maranhense percebemos três grandes influencias: elementos provenientes do

catolicismo do branco (do senhor patrão ou do agente missionário), heranças indígenas

e componentes africanos.

Poderíamos tomar, assim como muitos já fizeram tanto no campo

sociológico quanto antropológico, o caminho de uma análise histórica e procurar as

raízes verdadeiras, as mediações, as “deturpações”, os amálgamas.

No entanto, se esse caminho, apesar dos inúmeros esclarecimentos

que possa trazer, for eleito de modo exclusivo e prioritário, poderemos deixar de lado

aspectos importantes. Ao maximizarmos as fontes e minimizarmos a lógica do

processor, termos como “verdadeiro” e “impuro”, “origens” e “reminiscências” ou

“corruptelas” viriam forçosamente à baila. Tal posição não raro tem conduzido a uma

ânsia enganadora de purismo e traído, sub-repticiamente, julgamentos de valor. De

outro lado, tem indiretamente fornecido explicações e argumentos aos que, se situando

na “ortodoxia”, desejam melhor conhecer as interferências estranhas e seu poder de

simbiose para poderem distinguir o original do espúrio e estabeleceram uma ação

normativa imune de qualquer perigo de deturpação. É muitas vezes o que acontece com

a Igreja.

A franqueza dessa posição advém do fato de tratar do universo

religioso daquela sociedade como se fosse uma colcha de retalhos, confusa e ilógica,

buscando as explicações coerentes, não no presente, mas no passado ou alhures. Em

suma: não se chega a analisa-lo enquanto sistema, a descobrir-lhe as regras e

consistências próprias, apesar da complexidade. Ao descrevê-lo, por causa da

necessidade constante de referir-se aos sistemas “verdadeiros” e “completos”,

descartam-se facilmente muitos informantes e privilegiam-se, ao contrário, os

exemplares raros, testemunhas fidedignas de um passado quase perdido. Assiste-se mais

à descrição das dignas de um passado quase perdido. Assiste-se mais a descrição

10 O meu trabalho Parentesco e Compadrio, apresentado mais adiante.

24

daquilo que foi ou poderia ter sido do que realmente como o povo vive e manipula

atualmente as suas tradições. De certo modo, a sociedade estudada torna-se apenas um

pretexto, um ponto de partida que se dilui no desenrolar da análise, como se tivesse sido

convenientemente amordaçada.

Insistimos, portanto, na riqueza da abordagem sincrônica. Isso não

quer dizer que deixemos de lado as informações de caráter histórico. Devem ser

consultadas e utilizadas. Só que não poderão constituir o ponto de chegada. Se não

puderem elucidar ou serem integradas na analise do universo religioso em questão,

enquanto sistema, não passarão de digressões eruditas de valor exógeno ao objeto

proposto.

Além disso, a abordagem sincrônica favorece o estudo do “religioso”

não desassociado da estrutura social. Se faz parte de um todo mais amplo e a ele está

intrinsecamente ligado poderemos, ao tratarmos de estrutura social, estar falando do

universo religioso ou vice-versa. Tudo se sustenta ou se explica reciprocamente. Melhor

ainda: a estrutura social e representação religiosa são duas maneiras diferentes de contar

aquela sociedade.

A outra vantagem, corolário da primeira, consiste na evitação de um

ponto de vista etnocêntrico. De fato, quando na analise do religioso não se procura

descobrir o caráter de sistema, destacam-se os componentes da cadeia semântica onde

se relacionam, e se faz uma comparação avulsa ou uma avaliação a partir de um centro-

crivo que se situa fora da cultura estudada. Numa linguagem, corriqueira: enxerga-se o

bonito ou o feio com lentes próprias. Mas não seria este o esquema que ainda perdura

em muitos dos documentos eclesiásticos oficiais que sob a aparência, não mais da

intransigência ou tolerância, mas do diálogo e do respeito, aconselhariam os fieis a

descobrirem “valores” presentes (= elementos destacáveis) em outras religiões que

deverão ser conservados ou assumidos? Em outras palavras: na impossibilidade de uma

total relativização, de um “não-centro universal”, passa-se a estabelecer um continuum

valorativo que vai do bom ao mais ou menos até o ruim.

Estas colocações foram necessárias porque, ao tratarmos dos

“funcionários religiosos”, esbarraremos inevitavelmente nas diferentes heranças, já que

alguns estariam ligados mais diretamente a esta ou aquela tradição. No entanto, este

agrupamento, segundo as fontes, não corresponde à classificação dos moradores locais,

objeto de nosso estudo.

Assim, aquilo que poderia parecer-nos incompatível de ser

aproximado, por razões históricas diferentes ou códigos doutrinários conflitante, será

relacionado e utilizado por um mesmo indivíduo, segundo critérios próprios.

Partiremos, pois, para a descoberta da lógica desses critérios e para

isso recorreremos, na medida em que puderem nos auxiliar, aos instrumentos analíticos

que nos fornece a antropologia cognitiva.

25

3.2 – EM BUSCA DO DOMÍNIO11

Ao entrarmos em contato com a comunidade de Barrosos veremos que

seus moradores recorrem, ao longo da vida para fins próprios, a especialistas

determinados ou, tecnicamente falando, a certas categorias de indivíduos investidos de

poderes específicos.

O que permitiria agrupar o conjunto destas categorias num mesmo

domínio seria a peculiaridade de poder ao qual todas participam. Não se trata aqui de

poder politico (o prefeito), judicial (o delegado ou o juiz), o econômico (o comerciante

ou o fazendeiro), mas de poder “religioso”.

Segundo mais de perto os conceitos locais e procurando apesar dos

traços divergentes que aparecerão mais tarde – o denominador comum dos funcionários

religiosos diria que são indivíduos “sabedores de muitas rezas”, maneira pela qual

caracterizam a especificidade do poder que possuem. É esta sabedoria adquirida,

conforme as categorias, por formação (= estudo), tradição, ou possessão que os tornará

capazes de ordenar, isto é, de dar sentido ou de arrancar do caos, para usar um conceito

de Peter Berger, a vida do “cliente” ou “fiel” (dependendo do contexto). Portanto, ainda

que não apareça no discurso um termo (= “label”) explícito que nomeie o domínio, ele

existe conceitualmente.

O que determinou a escolha deste domínio como objeto de análise não

está condicionado a motivos formais: a seleção de uma área que apresentasse melhores

condições para a aplicação dos recursos técnicos oferecidos pela “ethnoscience”. A

direção tomada foi inversa: tentamos penetrar naquilo que permeava o cotidiano dos

moradores para perceber a logica de suas decisões.

De fato, o quadro que nos desafiava, configura-se, de imediato,

complexo, quando não, contraditório. Festas de caráter católico onde o padre não

comparecia. Enterros e batismos oficiados por rezadores. Catequistas e fieis da igreja

que se dessolidarizam dos pajés, mas que a eles recorriam clandestinamente.

Frequentadores simultâneos da missa e dos serviços de pajelança. Indivíduos que

recorriam, sem nenhuma contradição, a médicos e curadores. Pajés que se

consideravam católicos (e não crentes) mas que se viam impedidos pelos padres de se

tornarem “padrinhos de alma” de uma criança. Benzedores se contrapondo a pajés e

pajés originados pelo próprios benzedor. Pontos de interseção e separação gradualmente

se delineando. Deveria haver atrás de tudo isso regras que norteassem os indivíduos na

escolha de seus especialistas religiosos.

Para descobri-las, talvez um estudo aprofundado das “categorias”

constituídas pelos próprios especialistas nos fosse de grande valia. Quais seus traços

comuns, quais os distintivos? “Até que ponto a antropologia cognitiva não poderia nos

11 Por domínio entendemos uma classe ou categoria conceitual que contém um grupo de categorias

membros com pelo menos uma característica comum a qual estabelece que estas pertencem à classe

inclusiva. Um domínio pode, ou não, ter nome (“label”).

26

auxiliar nesta tarefa”, como nos sugere Marcel Fournier (1971)12

. Desde modo

construímos o domínio dos funcionários religiosos e com ele as fronteiras de nosso

trabalho. Estas fronteiras, porém, não são inflexíveis, nem o domínio, um recorte

possível de ser tratado sem que se estabeleça pontos de contato com outros domínios.

Como tudo dentro de uma cultura se acha interligado, vimo-nos obrigados, na medida

em que isto era necessário para melhor explicar uma categoria, a nos referir a outros

domínios como o da oração, da doença, e das entidades sobrenaturais.

Em certos momentos, porém, nem mesmo a relação com outros

domínios nos pareceu suficiente. Questões cruciais só poderiam ser elucidadas se

levássemos em conta o complexo estrutural imbricado numa relação de sociedade

brasileira mais abrangente com sociedade camponesa, utilizamos os conceitos “código

dominante” e “código local”13

.

3.3 – O CONJUNTO DE CATEGORIAS DO DOMÍNIO E O PRÓPRIO DOMÍNIO

COMO SISTEMA

Para elencar o conjunto de especialistas religiosos de modo que

revelem o caráter de sistema que compõem será necessário falar, primeiramente, em

trajetória de existência.

Eis como a representam os moradores de Barroso. O indivíduo quando

nasce não é ainda um ser social. Há um ritual específico que coloca no domínio do

humano, marcando uma descontinuidade com o mundo natural: o batismo. Doravante

ele é “gente” como os outros e merece como qualquer “cristão” (por oposição a

“bicho”) o seu passaporte garantido para ingressar na sociedade dos mortos. Eis os dois

momentos previsíveis, as duas entradas que definem, pelos extremos, o caráter social da

pessoa, livrando-a do caos, de ser um “avulso qualquer”. No entanto, entre os dois

polos, a vida é, por assim dizer, salpicada de ameaças imprevisíveis, introduzindo

desordens como doenças, feitiços e assombramentos e que precisam ser afastadas.

Passando do ciclo de vida para o ciclo anual, ao mesmo tempo que do

plano individual para o comunitário, descobriremos, igualmente, momentos previsíveis

de nutrição social. De fato, o ano não transcorre no anonimato. Vem socialmente

marcado por festas comemorativas aos santos principais da região que dão, muitas

vezes, feitio a este ou aquele povoado.

12 “Pour la sociologia de la connaissance (et de l aculture) qui n’a connu depuis quelques annees que peu

de progres sensibles, l’emprunt à L’ethnoscience a chance d’être decond puisque celleci peut lui fournir à

la fois um objet mieux circonscrit et destechniques plus raffinéas” (p.479).

13 A respeito dessas limitações, nos diz ainda M. Fournier (op.cit.): “La contruction même de l’objet

d’analyse, qui pour l’ethnoscience est la simple dèlimitatio de “domaines” suppose em fait une analyse

cosiologique prélable des fonctions sociales qu sont au príncipe de as structure et de son fonctionnement.

Et l’oublier c’est peut-être pour l’ethnoscience se condammer à um formalisme arbitraire”.

27

Assim, o indivíduo ou a sociedade como um todo, nesses momentos

previsíveis ou imprevisíveis, recorre a especialistas certos.

Se descrever uma cultura é, segundo Frake (1969), not to recount the

events of a society but to specify what one must know to make those events maximaly

probable, ou em outras palavras, estar em condições de antecipá-los, creio que pela

análise das categorias poderemos chegar a dizer de antemão, com grande margem de

segurança, qual o funcionário religioso que será chamado para atuar nesta ou naquela

circunstância.

Com as duas distinções acima de momentos previsíveis e

imprevisíveis já estávamos dando, analiticamente, elementos para uma grande

subdivisão de especialistas.

Seguindo, porém, mais de perto a classificação dos informantes elas

cobririam respectivamente o grupo “dos que não curam” e “dos que curam”. Entre os

primeiros estariam o padre e o rezador; entre os segundos, o benzedor (a parteira) e o

pajé.

Passemos à análise de cada uma das categorias. Inicialmente

tomaremos as incluídas no primeiro grupo “dos que não curam”. Mas a negativa, se

bem que permita dizer o que o padre e o rezador não são, não dá conta do que são.

3.3.1 - Padre14

Entre todas as categorias o padre merecerá um tratamento à parte

porque, enquanto indivíduo, ocupa um lugar diferente dos demais especialistas dentro

da estrutura social.

De fato ele é um “outsider”: não vive da roça ou do pequeno

comércio. O dinheiro que recebe vem de fora. Não compartilha do mesmo sistema de

representações. Seu código é outro e é com esta bagagem que age junto ao povo. No

entanto, apesar de ser uma pessoa do “lado de lá”, é uma peça indispensável, de

“dentro” do universo cognitivo do caboclo. Não se consegue pensar o mundo sem ele.

No sistema classificatório local é uma categoria eterna que sempre existiu já que o

mundo possível é uma categoria eterna que sempre existiu já que o mundo possível é

identificado ao mundo cognoscível.

“O padre vem desde o início. Quando Deus fez o mundo já deixou ele,

porque não ficamos é pra ser tudo batizado”.

14 Antes de iniciarmos a análise da categoria padre convém dizer que a própria representação que dele

fazem os caboclos está de certo modo condicionada ao tipo do missionário que vem atuando na região. É

possível, portanto, que se mudando de área haja também mudanças na representação. Em Juazeiro, por

exemplo, possivelmente o padre, a partir do Padre Cícero, seria uma categoria que também tem o poder

de curar.

28

Os motivos apontados acima justificam porque na elaboração ele

próprio não será ouvido. Do contrário estaríamos embaralhando os polos da

classificação que, no nosso trabalho, parte do código local. Restringir-nos-emos a

examinar como o povo enxerga e não como é representado na ideologia missionária.

Para isto não basta enumerarmos, de maneira sucessiva, mas

justaposta, os traços distintivos que compõem a categoria Padres. Faz-se mister tomar

um caminho logico, descobrir entre os traços aquele que atua como elemento operativo

de todos. A nosso ver tudo parte de um centro responsável: a própria posição estrutural

do especialista que o constitui canal mediador entre a cultura local e a dominante, isto

se explica historicamente.

Junto com o “padrão” – ou outras categorias estruturalmente

correspondentes – o padre formava a dobradiça que articuláveis dessa articulação

fossem diferentes – aquele representando a dependência econômica, este a cultural –

ambos expressam uma ordem dominante distribuidora das cartas do jogo. De um lado

os valores que o missionário levava consigo, os padrões que inculcava tornavam-no um

digno emissário da cultura de origem.

De outro lado, através de sua pessoa, o caboclo começava a aprender,

a interiorizar, a almejar os valores do código que era portador. E assim se formou a

imagem do padre, o homem que estuda, sempre vinculado à escola, o indivíduo que

manipula a leitura, símbolo, enfim, do saber legitimado pelo código dominante. Disto

provém o seu poder: “ele se formou, sabe mais do que nós”. Nisto também se distingue

dos outros funcionários religiosos da região. O seu saber (=poder) não procede como no

caso do rezador ou do benzedor, da tradição ou como acontece como o pajé, da

possessão, mas da formação. Diferentemente como representaria a ideologia

missionária, um sujeito não se torna padre porque tem vocação (em termos locais

“sina”; é o caso do pajé) mas porque pôde estudar.

O mundo da igreja é o mundo dos alfabetizados. É entre eles que são

recrutados os auxiliares do padre, “os catequistas”, introduzem a Legião, onde se lê e se

comenta o manual, e organizam cultos dominicais onde roteiro, cantos e repertórios bem

impressos em folhas mimeografadas. Tudo na vida da igreja parte de uma leitura,

reflexão e comentário de um texto escrito. A própria revelação, a bíblia, está consignada

por escrito e quem tem o direito de explica-la é o próprio padre.

Em outras palavras: o saber do padre, cristalização do saber da cultura

dominante, já poderoso por si mesmo, vem, além disso, axiomaticamente penetrado de

um poder que se situa num outro nível. As coisas são, por ele, ditas e feitas em nome de

“Deus”, a entidade do código dominante colocada no ponto mais alto da hierarquia dos

seres sobrenaturais, identificada como o bem supremo, o legitimador sagrado e deste

modo mesmo apropriada pelo código local15

.

Mas vejamos como essa legitimação axiomática do saber do padre se

constrói. Ela se opera mediante a existência de uma instituição: a missa, a oração

15 O fato de um grupo menor adotar como deus supremo a entidade máxima da ordem que o engloba

parece ser uma tendência geral ao mesmo tempo que uma manifestação lógica da relação estrutural que

subordina uma à outra. No nosso caso o nome desta entidade, desde deus, é simplesmente Deus.

29

exclusiva e específica do missionário católico, do mesmo modo, como veremos mais

tarde, que o bendito e a ladainha caracterizarão o rezador, a reza eficaz o benzedor, e a

doutrina o pajé.

Como a “missa consiste nas palavras que Deus deixou para ao

apóstolos, mas escrito pra nós” e “no sermão o padre explica as palavras de Deus”,

porque “só ele tem esse direito”, vemos até onde, como pregador, vai o seu poder de

interprete fiel do Legitimador Sagrado. Conteúdo e valores poderão variar de sermão

para sermão, de pregador para pregador, mas serão sempre apresentados como a

vontade de Deus. E para a identificação de vontade de Deus como padrões culturais o

passo é pequeno. Eis como a missa do padre pode se constituir numa daquelas

mediações institucionalizadas – de que fala Bourdieu (1970) – para a transmissão do

“arbitrário cultural”.

O padre, sendo ao mesmo tempo símbolo do saber legitimado e

intérprete fiel de Deus, é visto, portanto, pelos caboclos como o conselheiro aquela

figura “que bota no bom caminho”, que está sempre opinando sobre o certo ou errado.

É certo que haverá, neste ponto, defasagem entre ideologia e práxis.

Há áreas (que possuem regras sociais e éticas próprias) impermeáveis ao arbítrio do

padre mas que não chegam a infirmar a representação generalizada que dele se faz: o

conselheiro e, consequentemente, o funcionário do perdão, aquele que tem o poder de

reatar as boas relações do indivíduo com Deus. Aliás, é de posse deste título que o padre

poderá apregoar mudanças de normas e padrões culturais. Por isso é tido como o

inventor e defensor do casamento monogâmico realizado na sua forma religiosa, do

batismo com palestras, da roça comunitária. Está associado ao mundo da técnica, da

burocracia, da escolaridade, da higiene e da medicina legitimada.

Estar ligado ao padre é estar ligado ao “desenvolvimento” e à

“modernização”. Muitos informantes locais, geralmente comerciantes ou professores do

povoado, se gloriavam de terem sido os primeiros a ter “levado o padre pra lá”.

Consideravam-se os beneméritos do lugar, porque trazer um padre equivaleria o mesmo

ou mais que suprir um bairro da periferia com redes de luz e esgoto.

Por isso se de um lado o padre interfere na cultura local, de outro lado

será manipulado através daqueles mesmos valores que estima importantes. Neste

contexto veremos sua função de conselheiro ser plenamente instrumentalizada quando

os moradores, que com ela estabelecem uma relação d classe, esperam que seja o

mediador das questões burocráticas e políticas ou o doador direto ou indireto de livros,

máquinas para a lavoura, animais reprodutores, remédios e dinheiro emprestado.

A posição de “canal mediador” entre grupo local e sociedade

abrangente determina ainda outro traço distintivo do padre. De fato, da mesma maneira

que o código local adotou como deus supremo o “Deus” do código dominante, dele

adotará igualmente os rituais que estão diretamente ligados à representação do indivíduo

como ser social, “gente” ou “cristão”.

Mesmo que outras pessoas possam ser os oficiantes eventuais, em

casa, desses dois momentos, desde que saibam as orações próprias (é o caso do rezador

como veremos adiante) elas só os celebram enquanto referencial legitimador.

30

“E agora o padre batizando primeiro não precisa o de casa. Quer

dizer que o batismo principal é o do padre. É porque ele batiza

melhor. Água benta, então, sim senhora. Os santos óleos. Com o

padre a gente tem aquela fiança, aquela certeza que o padre batiza

melhor. Nós não sabemos, né? Mas quando nós nascemos já ficou

assim criando no padre.

“O batismo do padre é pra confirmá. Garra o salzinho e o óleo

santo”.

A faceta legitimadora do verdadeiro funcionário do batismo vem,

assim, materializada nos elementos “sal e óleo santo” que só podem ser administrados

pelo padre.

Mas para demonstrar como este traço distintivo do padre é apenas

uma manifestação a mais, um corolário de sua posição mediadora entre dois códigos, a

qual vem melhor expressar na sua função de conselheiro, introduziremos a citação de

uma rezadeira.

P: E qual o batismo melhor, o de casa ou o do padre?

I: Todos dois.

P Todos os dois?

I: Todos os dois é bom. Eu já vi Padre Fulano de Tal, quando vinha

sempre dizia que a criança que fosse batizada e que pai e mãe subesse

que padrinho rezasse e madrinha subesse razá, que não negasse pra

ele. Dissera que ele só dava o santo óleo porque batizado dava. Por

isso é que eu digo, assim como voga tanto o do padre é esse, porque a

mesma coisa que se diz no do padre, gente diz assim.

P: Quer dizer que se o pai quiser levar no padre não faz mal, porque

batizou em casa?

I: Então! Tá batizado.

P: Quer dizer que se o padre faltar não faz falta, então? Se não tiver

padre então não faz falta?

I: Faz, porque o padre aconselha, bota no bom caminho, não?

P: E é isso que é o principal do padre, é?

I: É. Dar os bons conselhos, diz as missa dia de domingos dia de sábado,

dias santos grande, né?

Os traços distintivos do padre, dependendo do informante, podem pois

aparecer em sua totalidade (quando se trata de um simples morador) ou serem

restringidos. se quem fala é um rezador (como no caso da citação acima) ou um

catequista, que de certo modo partilham com ele algumas funções, observaremos uma

simplificação. O elemento compartilhado é eliminado (por ex., o batismo) mas sem

prejuízo algum para a categoria, porque se tratava de uma característica estruturalmente

redundante já encapsulada por aquelas outras que lhe são, estas sim, irrefutavelmente

específicas.

31

Ilustração perfeita desta triagem é a declaração de um catequista que

guardamos para o final por conter de modo sucinto os traços distintivos da categoria

padre.

“O padre é um homem como nós qualquer. A única diferença é que

ele tem outros poderes. Esses poderes é rezar a missa, fazer perguntas

ao povo, aconselhar o povo. Também se formou e tem mais do que

nós”.

Vantagens e limites do método utilizado: primeiras observações

O tratamento desta primeira categoria nos revelou a utilidade do

método empregado pelo “ehtnoscience”. Procuramos perceber quais os critérios

utilizados para a classificação e, através das dimensões de contraste, apontar os traços

distintivos que transcendê-lo pelo menos em dois momentos:

a) Quando tentamos mostrar que não bastava enumerar os componentes

de uma categoria para compreendê-la integralmente porque eles se

apresentam logicamente ligados a partir de um centro operativo. E,

para detectar o elemento operacional, tivemos que penetrar na análise

da estrutura das relações sociais (cf. nota 4, pág. 30).

b) Quando percebemos que dentro de uma cultura as respostas a respeito

de uma categoria nem sempre são unívocas. Há uma seleção possível

dos traços, dependendo do informante. Se de um lado esta variação nos

leva a perceber características redundantes que poder ser eliminadas,

conduzindo-nos a uma definição mais básica, de outro lado nos adverte

sobre o caráter de manipulação de que as categorias podem sofrer.

3.3.2 – Rezador

A origem de rezador como categoria local talvez se explique

historicamente pelo fato da presença do padre entre a população ter sido muito

esporádica. De posse de orações específicas, ele atuaria, em sua ausência, em momentos

originalmente prescritos pelo sacerdote.

No entanto, se a distância prolongada do missionário justifica, de um

lado, porque o rezador sempre atuará, mesmo na atualidade, tendo como quadro

referencial legitimador o padre, de outro lado, nos fornece razoes para o entendimento

do processo da criação de uma área autônoma que lhe é própria.

Esses dois ângulos através dos quais o rezador pode ser tratado

formarão as duas partes principais da análise desta categoria.

32

3.3.2.1 – O rezador como categoria referencial ao padre

O rezador, no dizer de uma informante, é “quase que um sacerdote”.

“As rezas que aprendi foi com meu pai que era quase que um padre. Tinha a biba. Pai

tinha a Biba Sagrada. Contava tudo! E rezava, tinha toda a reza. Meu pai não tinha o

que não soubesse”.

O fato de ambos utilizarem as mesmas fontes de tradição e as mesmas

orações é que permite a aproximação rezador-padre. Todos os dois se rementem ao

código católico e por isso rejeitarão como pecaminoso o intercurso com entidades

“periféricas” (cf. “os encantados”) ao cânon que os orienta.

No entanto o rezador se distanciará do padre na manipulação do

código que lhes é comum. Isto se prense ao tio diferente de aprendizado que sofreram.

Enquanto que o padre recebe uma educação sistemática, acadêmica, sempre controlada

e confrontada por uma ortodoxia normativa, o rezador é encaminhado de dois modos:

a) Se possui uma leitura rudimentar, apropria-se, de modo muito

pessoal, basicamente de dois textos: da Bíblia, ou da Cartilha cristã (é

a Cartilha da Doutrina Cristã, edição de 1871, da Diocese do Porto,

Portugal).

b) Se aquela lhe falta, a memória funcionará como máxima substituta.

“Eu aprendi rezar foi assim, com um, com outro, não tive mestre. Eu

chegava numa bancada de rezador, me sentava desde garoto,

escutando, viu? Agora eu fui gravando no sentido de pegar, sem saber

ler, sem saber nada, gravei tudinho. É, e depois os que sabe rezar

foram me chamando atenção e eu fui rezando junto com ele, depois

eles morreram, eu tomei conta da pasta.16

As duas formas de aprendizado do rezador remetem, pois, à tradição

oral, veiculada pelo saber dos mais velhos, no seio da família (o mais comum) ou fora

dela. Esta tradição oral guarda, de um lado, sem quase transformações, os mesmos

clichês aprendidos (podendo, por isto, ser mais “conservadora” que a formação

acadêmica). De outro, porém, introduz interpretações próprias nos vazios não

explicados que impregnarão o todo de uma dinâmica diferente daquela que se

processará na educação sistemática do padre.

As causas dessa diversidade se entendem facilmente porque tudo se

desenrola no seio de códigos culturais diferentes, onde todas as coisas precisam ser

integradas e receber respostas coerentes.

16 Na explicação da origem do saber (= poder) o rezador estabelecerá sempre um parâmetro com a cultura

letrada. O próprio fato de valorizar sua capacidade, a memória, prestigiando assim a transmissão pela

tradição oral, é uma maneira de responder no peso de legitimação conferido à formação escolar. Neste

contexto o catequista funcionará como uma ameaça de desvalorização do rezador.

33

É por isto que o rezador, embora tenha se originado de uma

necessidade histórica – a presenta esporádica do padre17

-, continua atuando, mesmo

após o cessamento daquela, como peça fundamental da cultura cabocla. Os rituais que

poderia celebrar por delegação oficial já ganharam caminho próprio, foram

reinterpretados. Penetraram no âmbito do doméstico. Ainda que o padre batize

oficialmente uma vez por ano, os novos candidatos, numa cerimônia pública, o batismo

de casa continua vigorando. Cumpre todas funções, sendo o afastamento de um perigo

(doença ou ataque de entidades) a principal dentre elas. O mesmo se dá com o ritual dos

defuntos. Embora a frequência do padre entre a população tenha se tornado muito mais

intensa, ele continua sendo um funcionário da sede (do município), onde reside, de onde

parte para chegar. E os mortos “dos interiores do interior” não podem esperar. Orações

especiais para aos defuntos já se padronizaram e têm os seus momentos certos. Tudo se

passa em casa, pra os parentes e amigos:

- antes da sepultura: orações para encomendar o corpo

nos nove dias que se seguem:

novena do rosário

- depois da sepultura

com um mês: a via-sacra

Por isso recorre ao rezador, figura imprescindível:

“Comecei a rezar por engano dos rezadores de lá engando uma alma

falecida. Os rezadores de lá tratavam de vir, marcavam o dia, mas

não vinham e fizeram assim três vezes. Eu fiquei penalizado. Então

pedi a M.P., um rezador, que me ensinasse a rezar”.

Se acontecer do morto ser enterrado em Bequimão (a sede), então o

padre “poderá benzer o corpo no cemitério” antes que seja sepultado. Mas todo mundo

“já sai de casa rezado” e “não tem esse que morra que não tenha via-sacra”.

“Porque o rezador não aprendeu. Aprendeu assim como encurtar a ladainha, ou um batismo,

uma reza para um enfermo. E os catequistas que vão, vão aprender, ouviu? Vem logo aprender com o

padre e sabe tudo, tudo mesmo porque isso é como um operário. Tem operários (= catequistas) e tem os

curiosos (= rezador), tá vendo? Os operários, às vezes, os mestres não fazem uma obra que os curiosos

faz, mas bota embaixo. Não é? É, bota em baixo. Ele faz bem feito aquela obra, mas o operário chega e

mete defeito. Assim é o caso dele”.

Este mesmo motivo explica porque o catequista que foi outrora rezador não continua a exercer

as antigas funções. Uma vez introduzido na cultura legitimada, evita tarefas que poderiam representar um

rebaixamento de sua promoção.

17 Neste sentido o rezador é uma vida de acesso para quem quiser perceber, numa visão

diacrônica, o estilo missionário de outrora: gestos, língua, orações de então, são por ele espelhados.

34

Assim parece terem sido demarcadas as fronteiras do rezador e do

padre dentro dos dois rituais polares da vida do indivíduo: o primeiro atuando

referencialmente na faixa doméstica e o segundo legitimando na faixa oficial. As

respectivas partes estão culturalmente fixadas no há redundância de funções, nem o

rezador poderia ser suprimido por causa da presença contínua do padre. O código local

já lhe reservou um lugar definitivo. Ele não desempenha seu oficio a partir de um

mandato do sacerdote. Esses laços já se dissolveram. Não é como o catequista, um

ajudante direto do missionário de quem recebe ordens e a quem deve presras contas. Ao

contrário: em relação ao padre goza de independência jurídica. As ligações existentes se

situam num outro nível: o das orações. De fato o rezador sempre estará de olho nas

modificações introduzidas pelo padre. Assim o cordão umbilical que subordina,

indiretamente, o primeiro ao segundo é sempre mantido, como ilustra a citação:

I: “as vezes, de primeiro se rezava nove noite (referindo-se às rezas para

os defuntos). Hoje em dia se reza três vezes.

P: Mas quem decide que passa para três?

I: É o padre que vão dizendo, que vão cortando. Aquilo às vezes é muito

longo.

P: Mas os padres mandam nisso também?

I: Mandam. Eles rezo. É assim: quando vai um morto pro cemitério eles

vão rezar com o teço.

P: Sim, mas na reza de você ele também que dirige?

I: Não senhora, na minha ele dirige porque é a mesma reza deles. Hoje é

assim, vai gravando, vai pegando, dum e doutro, vai sabendo. Sabe comé,

tá tudo mudado hoje em dia, né?

Com isto cremos ter dado conta do rezador, enquanto uma categoria

referencial ao padre. Existe, porém, uma área de desempenho exclusivo do rezador,

onde seus traços distintivos aparecem de maneira mais contrastante. Dela trataremos a

seguir analisando.

3.3.2.2 – O rezador como o celebrante das festas aos santos

Não caberia, no âmbito deste trabalho, discorrer longamente sobre

o papel que as festas aos santos desempenham na cultura local. Delas só daremos os

traços principais que nos ajudem a melhor situar a função do rezador.

Muito mais que Deus e o Cristo, entidades cultuadas e reverenciadas,

mas consideradas demasiadamente remotas, os Santos ocupam um lugar proeminente na

vida da comunidade18

. As relações que os caboclos com eles estabelecem vêm

conotadas de um misto respeito e familiaridade. São mediadores, mas conceptualmente

18 Cf. trabalho de Laís Mourão sobre a Classificação das Entidades Sobrenaturais, apresentado

anteriormente.

35

diversos de como os representa o catolicismo oficial que os encantonou numa esfera

extra-terrana. Ao contrário, os Santos dos caboclos são santos da terra, metidos nas

relações sociais, na produção econômica, nas angústias do cotidiano. Alguns até

passeiam, aparecem, são proprietários de terras. Enfim, estão sempre próximos e por

isso com eles se pode estabelecer uma relação do tipo contrato-mútuo: a promessa, na

qual o santo terá a sua parte, a de fazer um benefício, e o “promesseiro” de retribuí-lo

pagando ao santo com uma festa onde entram como elementos integrantes, a bebida, a

comida, o baile e a reza.

É aí que o rezador entra, como o oficiante de direito da contra-

prestação, não dividindo com ninguém sua tarefa. Para executá-la não tem, como no

batismo e no culto aos mortos, o padre como quadro referencial. Aliás, o sacerdote evita

e mesmo condena o caráter destas festas como uma espécie de heresia. A aproximação

da bebida, da comida, do baile e da reza lhe soa uma profanação. Os gastos despendidos

pelos franqueadores, uma irracionalidade econômica. De religiosos não tem nada. A

própria manipulação que se faz do santo é totalmente heterodoxa:

“É são promessas, eles dizem, mas pra quem, ninguém sabe. As

promessas não são feitas aos santos mesmo (isto é, a entidades com o

conteúdo que o catolicismo oficial lhe dá) mas sim a outras entidades

que possuem outra substância”.

É por isso quando chega o momento de se realizar a festa a um santo

já se sabe quem chamar. Parte-se em busca do cantador de benditos e ladainhas. São

estas as rezas específicas do rezador que o distinguem enquanto uma categoria à parte,

entre os funcionários religiosos. Será igualmente através destes traços que se poderá

detectar, no caso de um indivíduo acumular funções, quando está funcionando como

rezador e quando está atuando como benzedor. Deste modo as duas categorias se

contrastam:

O rezador utiliza o bendito que é

cantado num contexto público (“dá ao

povo em quantidade”) em dias certos do

ano como retribuição a um benefício

ocorrido.

O benzedor, a reza eficaz que é recitada

num contexto privado (familiaridades

do doente), dependendo das

contingências para que o benefício se

efetue.

3.3.2.3 – Algumas observações a respeito do padre e do rezador

Eis apresentadas as duas categorias de funcionários religiosos que se

distinguem das demais pelo fato de não curarem. Tomadas isoladamente, de fato, elas

não cumpre esta função. Se, porém, as situarmos num contexto maior veremos que não

estarão totalmente desassociadas do fenômeno da cura. Na maneira como os caboclos o

presentam o padre forma um par com a irmã enfermeira, estando por isto sempre ligado

ao ambulatório e à medicina legitimada: “o remédio do padre é remédio de farmácia”.

36

Do mesmo modo o rezador: é um elemento essencial para o

cumprimento da promessa muitas vezes feita com o intuito de afastar uma doença. Por

isso o rezador está associado ao Santo, que tem o poder, este sim, de curar, realizando

um milagre.

Feitas estas ressalvas, passaremos a analisar o segundo grupo de

funcionários que apresentam como traço comum o poder de controlar a doença.

3.3.3 – Benzedor e Parteira

3.3.3.1 – Benzedor

Nem sempre o lexema “benzedor” vem explícito no discurso. A

verdadeira pergunta, pois, que conduz à categoria seria muito mais “Quem benze aqui?”

do que “Qual o benzedor daqui?”.

3.3.3.2 – Benzer

Para se compreender a dimensão do termo benzer há que liga-lo à

semântica do conceito abençoar, igualmente disponível na cultura, mas estruturalmente

mais abrangente.

De fato o mundo criado por Deus não se apresenta como uma obra

definitivamente boa ou má, não vem definido a priori, já que as coisas estão sempre

envolvidas por uma atmosfera de ambiguidade.

No contexto deste embaralhamento de bem e mal que paira sobre toda

a criação é que a “benção” surgem como uma espécie de bússola, instrumento de

caráter teológico para o bem, como também seria a maldição, para o mal. Face ao

possível norteamento definitivo para o mal que exerceria a maldição, a bênção lhe seria

o antídoto preventivo o qual não deixa de incluir, segundo uma lógica interna, a outra

face da questão: o seu caráter de resgate corretivo. A vida de cada homem, e dos

homens entre si, tem que ser cumulada de bênçãos, como proteção prévia e eficaz das

boas relações sociais, e da relação homem-mundo.

De outro lado, a ação de “benzer”, como é concebida pela cultura

local, vem explicitar aquele outro lado da moeda contido no ato de abençoar, isto é, a

dimensão “redenção-resgate”. O benzimento é eminentemente curativo e exorcizante.

Quando se fala que tal pessoa “é benzedor” ou “que benze”, o que se

tem em mente? Está-se referindo a determinados indivíduos que manipulam rezas

especificas para males específicos e que no ato de proferir a reza eficaz agregam-lhe o

gesto também eficaz do sinal da cruz. Basicamente é isto. Outros gestos rituais

simbólicos e algumas técnicas terapêuticas suplementares podem acompanhar ou não,

dependendo do mal, o benzimento.

37

3.3.3.3 – Dimensão sexo

Os benzedores poder ser homens ou mulheres. Entre as últimas, no

entanto, quando se soma uma especialidade a mais, o seja, o fato de “partejar” mulheres,

temos as parteiras. Não são todas as “benzedoras” que são “parteiras”, mas não há

parteira que não seja também “benzedora”. Aliás, a difícil tarefa de secundar o parto de

uma mulher, onde vida e morte se roçam de perto, situa a parteira dentro do domínio

semântico de triunfo da primeira sobre a segunda. Todas as vezes que, de novo, a morte

rondar a vida, a parteira será chamada a atuar (agora, como benzedora). Eiras porque a

“parteira” não será tratada como uma categoria que extrapolasse os quadros do

benzedor. Ao contrário, ela é uma espécie de. Do mesmo modo que ele, recorre, em seu

serviço, a rezas eficazes. O que a distingue como parteira será apenas a conjunção de

dois traços: o tipo de sofrimento a ser tratado (= o parto) e a dimensão sexo: “mulher”.

3.3.3.4 – Repertório dos males do benzedor

Como “para tudo tem reza” e “não há doença que não tenha uma reza

para curá-la” porque “pra tudo Deus dá o conhecimento”, será suficiente tratarmos do

“universo da reza” para podermos atingir o repertório de males que recaem sob o

domínio do benzedor. Alias, quando o “benzedor” é procurado para curar ele jamais

diagnosticará uma doença que não esteja contida dentro de seu repertório de rezas. Dp

mesmo modo, quando um doente já levantou hipótese sobre o tipo de doença que o

molesta procurará não qualquer “benzedor” (= porque não são todos que sabem de todas

as rezas, ou melhor, que benzem qualquer tipo de mal) mas aquele que “benze” seu

sofrimento específico. Mas se quisermos, através de uma comparação entre vários

benzedores, inventariar os tipos de males ocorrentes, poderemos elencar:

I II III

Cobreiro Afogamento Entalamento

Fogo selvagem Quebranto Mal de terreiro

Isipra (e suas espécies) Mau-olhado Praga de roça

Dor de cabeça

Casco pegado

Dor de barriga

Pontada

Espinha na goela

Arca

Fastio

Caroço no peito

Mae do corpo

Dor de madre

Guante (= útero)

Afastar o mal

Mofina

38

Benze-se, pois, todo “vivente” quer seja “bicho” (= animal) quer seja

“cristão” (=homem). Os males da coluna da esquerda são os que atacam exclusivamente

os “cristãos”. Os da coluna do meio atingem tanto o “cristão” quanto o “bicho”. E os da

direita são comuns a “bichos” e reino vegetal (hortaliças e “fruteiras”), como “mal de

terreiro”, ou dizem respeito exclusivamente ao reino vegetal, como “praga de roça”.

Mas se atentarmos para o que é incluído dentro de todo “vivente”

veremos que de fato as fronteiras não recobrem indiscriminadamente todo o reino

vegetal ou animal (social ou não), como é de se supor à primeira vista. Os destinatários

do “benzimento” são antes o homem e tudo aquilo que é fruto de seu trabalho e

produção, ou seja, a natureza socializada. Mais explicitamente: sua família, seu terreiro,

sua roça.

3.3.3.5 – A reza do benzedor

A reza do benzedor difere tanto da reza do padre, quanto da reza do

rezador. Embora todas elas remetam ao código católico já que nomeiam as entidades

sobrenaturais por ele contidas como Deus, Nossa Senhora, Santo e Anjo da guarda

divergem, porém, por causa da função que desempenham.

A reza do padre é sobretudo uma intercessão, uma mensagem. É

dirigida a Deus, à Virgem, ao Santo mediador que atuarão com seu poder.

A reza do rezador (o “bendito”) é um pagamento, uma contra-

prestação, um agrado reciprocado (o Santo me fez este benefício, agora eu cudo dele

também(. Faz parte de um contrato levado a termo em dois tempos.

A reza do benzedor, ao contrário, possui um poder mágico. É eficaz,

realiza o que diz. É o sentido da expressão: “a reza tira (o mal)”. Participa de certa

forma da qualidade do “spell” (pronunciamento de uma fórmula mágica), um dos quatro

elementos que, segundo Evans-Pritchard, fazem parte de todo ato importante de magia:

“knowledge of the magic is knowledge of the spell... it is always the core of the magical

performance”.

Enquanto “spell”, portanto, difere essencialmente da intercessão em

que o resultado será somente obtido a posteriori, ou da oração pagamento onde a

solução já foi dada anteriormente. A reza do benzedor não é nem uma mediação para,

nem um recolhimento da cura, porque traz, dentro de seus próprios limites, a solução.

Para podermos melhor entender o caráter eficaz da reza do benzedor

vejamos o que se passa em outras culturas com o “spell” para depois fazermos as

devidas transposições.

Num estudo sobre o simbolismo do “spell” entre os mbowamb

(Strathern:1968) o autor relata: it is said that the spell will “make” the desired effect

come about. This is done through calling on objects which possess the appropriate

qualities. When calling on describing a spell the mbowamb say “We call on the names”

(e. g. of buds) and say! It is not a direct invocation of things and this activity of citing

the names of things in spell seems best referred to as “calling upon”… The purpose of

this calling-upon is explained in terms of similies: e. g. “as the whit marsupial gleams

39

so the man’s skin will shine”. This can refer also to actions whre one thing is done

which is symbolic of another.

De outro lado Evans-Pritchard escrevendo sobre os Azande diz

(Pritchard:1937): The homoeopathic element is so evident in many magical rites and in

much of the materia medica that there is no need to give many examples. It is

recognized by the Azande themselves. They say, “We use such-and-such a plant because

it is like such-and-such a thing”, naming the object towards which rite is directed.

Likewise they say, “we do so-and-so in order that so-and-so may happen”, naming the

action which they wish it to follow. Often the similarity between medicine and object,

and between rite and desired happening, is indicated in the spell.

As afirmações acima nos dão a chave para o entendimento da eficácia

do “speel”. Ela parte de um principio de similitude, como diz Strathern, ou se

fundamenta no elemento homeopático, como prefere Evans-Pritchard. A base é, pois, a

comparação (operacionalizada pelo próprio “spell”) de uma qualidade ou de uma ação,

em que o primeiro termo é um animal ou planta apropriados, selecionados do mundo da

natureza e o segundo o próprio objeto ou ser em questão. Como os “desiderata” (aquilo

que é almejo) já vêm contidos na seleção do primeiro elemento, e a similitude

estabelecida entre os dois termos, pela comparação, a eficácia se opera.

Todos esses requisitos se encontram igualmente na reza (= spell) do

benzedor. Mas ao invés do primeiro elemento ser selecionado do mundo da natureza, no

nosso caso, serão personagens míticas, ou melhor, pequenos fragmentos de mitos do

código católico, que apropriados e remanipulados figurarão como o primeiro termo da

comparação.

A título ilustrativo damos dois exemplos.

1º. Benzimento de dor de madre, após o parto.

Te incoloco madre

Madre mesmo te incoloco

Com as três palavras santa

Jesus Cristo rezou

Vim colocá esta madre

Vim tirá essa dor.

Comparação:

Assim como nossa Senhora

teve o parto e ficou donzela, 1º termo

Madre tu vai ficar como tu era 2º termo

Em nome do Pai, do Filho e

do Espírito Santo. Amém.

40

2º. Benzimento das “arcas” (situa-se no tórax; “quando rola abre, a gente

enrola, fica “curvadinha”).

Lá vem o sol saindo

Trazendo o nosso Carvadô

Para levantar essas arcas

Como Jesus Cristo aleventô

Jesus e José, nosso Pai Sarvadô

me levantai essas arcas

como o sol alevantou

com o nome de Deus Pau, Deus Filho

e Deus Espírito Santo.

O benzimento das arcas oferece elementos ainda mais ricos porque o

primeiro elemento já é fruto de uma analogia: “sol alevantando com Jesus Cristo

ressuscitando”.

Noutro ponto também a reza do benzedor difere do “spell”, pelo

menos entre os Azade. Enquanto para esses the spells are never formulas porque the

magician chooses his words as he utters the spell, o benzimento segue estritamente uma

formula. É necessário que seja pronunciado ipsis litteris.

Vejamos a declaração de uma parteira para entendermos até que ponto

a reza é uma réplica antecipada do próprio resultado do parto.

“A gente reza quanto tá nesse trabalho e tem muitas orações também

de negócios de parto, que eu trabalho assim muito com parto, umas

reza, umas orações. Se eu rezá elas e eu não errá um pé, eu sei que a

pessoa não tem perigo. E quando a pessoa tem que ter perigo, a gente

tem que se esquecê de um pé”.

A pré-avaliação da operação supõe um critério de confrontação: a

preexistência de uma fórmula. Neste sentido a reza do benzedor amplica as

consequências do simples “spell” como ele é tradicionalmente concebido. Funciona não

somente como uma fórmula eficaz mas até como oráculo, adivinhação ou presságio tal o

grau de isomorfismo existente entre recitação e operação.

A penetração pois do benzedor nas áreas da magia e da adivinhação é

o que o aproximará, de certa forma, do “pajé”. No entanto eles não se confundirão.

Apesar de haver elementos de contágio, há igualmente elementos de separação. É isto

que nos permitirá tratar do benzedor como uma categoria mediadora entre o código do

catolicismo e o código da pajelança.

41

3.3.3.6 – Benzedor: uma categoria mediadora entre o código do catolicismo e o código

da pajelança.

Se acompanharmos a evolução de um especialista até se tornar

pajé veremos que não raro ele foi um simples benzedor. E enquanto pajé uma das

atividades que mais exerce é a de benzer. Mas benzer o quê? Mau-olhado, quebranto e

mofina. São estes três males que criam uma área mediana, um “overlap” no domínio da

doença, sobre os quais tanto o pajé quanto o benzedor atuarão. Eis o primeiro ponto de

contágio.

Se bem que os dois utilizem praticamente as mesmas rezas, no

controle do mal; o simples benzedor a proferirá conscientemente e o pajé, sob efeito da

possessão. No primeiro caso é o próprio especialista que a pronuncia; no segundo, será

o “encantado” que a dirá através do especialista.

É por isso que a reza do primeiro poderá ser ensinada (o que nos

permite inferir, na ausência de dados mais explícitos, que o benzedor prendeu o seu

ofício de outros) enquanto que a do segundo não tem condições de ser divulgada. Uma

vez passado o efeito da possessão, o pajé declara não se lembrar das palavras.

Esta simples distinção está correlacionada a diferenças ainda mais

englobantes. Os dois se situam em esferas diferentes. O benzedor se coloca dentro do

código do catolicismo e não admite o fato de um “encantado” poder se invocar num

“cristão”. Quando muito pode aceitar a existência de entidades como a mãe d’água, mas

não o seu poder de “entrar numa pessoa”. Ele trabalha é com a fé em Deus e não sob

possessão.

O pajé, ao contrário, se situa no código da pajelança. Com isto não

queremos dizer que as entidades católicas não fiquem também neste código. Deus,

Nossa Senhora e Santos têm aí o seu lugar. Mas formam com as demais entidades

específicas um arranjo novo.

Eis como a parteira se contrapõe ao pajé:

“Mas eu não sou curandeira porque não trabalho com gente do

fundo. Eu só trabalho com Deus e Nossa Senhora. Porque eu sou

guiada de Deus, eu sou qual uma serva de Deus. Certas coisas, antes

de acontecer eu sei. Quando chega acontecer eu já tou sabendo.

Agora, eu sou dominada é pelo anjo da minha guarda e também sou

devota de Santo Antônio. Desde pequena trago sempre a devoção com

Santo Antônio. Agora, eu vou fazer um trabalho desse eu vou com fé.

Abaixo de Deus Nosso Senhor estão estes Santos que me protege”.

Separados, assim, pelos códigos que os norteiam, benzedor e pajé irão

novamente se aproximar se levantarmos elementos que lhes são estruturalmente

semelhantes. Mais uma citação e estaremos em melhores condições para aponta-los.

(Parteira falando sobre uma parturiente desenganada pela pajoa) –

(Chega o procurador): “Olha, Fulana, pajoa de tal botô visto. A Menina está muito

arriscada, talvez não salve a vida”. Eu disse: -“Por isso é que eu tô indo. Porque ela

não é Deus e eu vou com a fé em Deus e Nossa Senhora. Abaixo de Deus e Nossa

42

Senhora as minhas orações”. E eu disse: - “Eu já rezei em casa antes de eu saí. A

mulher não tem perigo de morte”.

Portanto, pajé e benzedor se aproximam estruturalmente:

1º - Pelo modo de se relacionar com as entidades de seus respectivos códigos

PARTEIRA PAJÉ

A tua sob a égide de a tua sob a égide dos

Deus, Na. Sra., Santos encantamentos

Mas ambos

a) Se concebem como servos, guiados pelas

entidades

b) Mantêm uma relação especial com uma dentre

as entidades. São dominados por elas:

Esta, pelo Anjo da Guarda, ou Santo da devoção Este, pelo patrão (encantado que o encruzou)

2º- Por utilizarem espécies de oráculo para a predeterminação

Esta, a reza dita em casa, antes de sair Este, mirando na pedra de botar visto

Os pontos de contágio e as semelhanças estruturais, de um lado, e as

diferenças de códigos de outro, explicam porque o benzedor poder ser ou não uma etapa

do pajé, ao mesmo tempo que uma categoria mediadora entre o catolicismo e a

pajelança. Mais do que isso: permitem o entendimento das diferentes combinações

possíveis de papéis acumulados por um mesmo indivíduo:

- pajoa e parteira (se se remente ao código de pajelança)

- parteira e rezadeira (se se remete ao código católico)

A confluência impossível seria portanto: rezador e pajé.

43

3.3.4 – Pajé

A categoria “pajé” apresentará dificuldades diferentes das até agora

encontradas. De fato a cultura local utiliza vários termos para indicar o funcionário da

pajelança: pajé, curador, experiente, mineiro, doutor do mato, cavalo da mãe d’água.

Seriam apenas lexemas – que se recobriram perfeitamente? Um caso sinonímia19

. Uma

análise mais apurada nos mostrará que nem sempre; há distinções, ênfases, traços

selecionados por detrás dos diversos lexemas. Eles não são empregados

indiscriminadamente. Cada um deles expressa um conteúdo e uma mensagem. Contexto

e qualidade do interlocutor explicariam também a manipulação – manifesta inclusive na

escolha do termo – que sofre a categoria “pajé”.

Assim o termo “pajé” é empregado para designar:

1º - Num nível mais global (mais alto)20

aquelas pessoas, homens ou

mulheres, que ao mesmo tempo são possuídos por determinadas entidades – que aqui

enfeixamos sob o termo genérico de encantados – e são capazes de manipulá-las para

controlar certos tipos de doenças ou males específicos:

assombro - (doença provocada pela encantaria)

vagante - (perturbação proveniente de uma alma de um morto que não

encontra sossego)

feitiço - (malefício, trapaça, coisa feita, mondogaria)

panema - (indivíduo “brumado” que não progride nos negócios, no trabalho,

na fortuna)

mau-olhado -

Que igualmente recai sob o domínio do benzedor, como já vimos.

quebranto -

Nesse nível o termo “pajé” não carrega nenhuma nota pejorativa e

como tal pode ser permutado por “experiente” (aquele que tem experiência das doenças

e dos remédios) e por “curador” (aquele que cura). Trata-se de lexemas sinônimos.

2º - Em outro contexto, porém, o mesmo termo vem estigmatizado

diferindo do primeiro emprego que dele se faz21

. Quando o que se quer alcançar é sua

falsidade, é tomado num sentido depreciativo. Para isso a cultura local possui critérios

próprios, através dos quais discerne o verdadeiro do falso “pajé”.

19 Sinonímia: when, within the context of a particular taxonomy a single taxon may be labeled

by phonemically distinct forms, we may speak of referential synonyms (or synonymous lexemes). 20 Por isso adotamos também o termo “pajé” para denominar, de maneira qual, a categoria.

Cada vez que assim aplicarmos o vocabulário usaremos aspas simples para evitar uma confusão com o

emprego contextual que se faz do termo. 21 Neste caso talvez estejamos diante de um fenômeno de “homonímia”, isto é, “quando um

termo, numa análise de um paradigma semântica, apresenta dois significados distintos”.

44

VERDADEIRO

- É aquele que reluta em querer ser.

Sabe que é uma “sina pesada”, pois

geralmente a carrega desde a infância;

- possui “encantado”, “linha”, por isso

canta;

- não se importa em ganhar dinheiro;

está preocupado em fazer o serviço;

- dá remédio.

FALSO

- É aquele que resolve ser “só porque

acha bonito”;

- Não tem encantado, não recebe linha;

se mete a cantar, por imitação;

- “come dinheiro vadio” dos pobres;

- não sabe que remédio dar. Por isso

- levanta “aleve” (falso testemunho)

para desmanchar os verdadeiros.

Esse quadro merece algumas observações complementares para que

não leiamos nele o que não quer dizer.

a) Na verdade, todos os ‘pajés’ cobram, seja para “botar o visto”, seja

para o serviço completo de “encruzamento”. Mas não vivem só da pajelança. Como

qualquer outro indivíduo da comunidade, trabalham na roça. O que é censurado não é de

fato de a consulta a ser paga. Aliás, o ‘pajé’ encara seu trabalho como uma prestação de

serviço qualquer, no qual despende tempo e esforço. Aliás, o médico e o ambulatório

também cobram para curar. Se a recriminação existe é porque se paga a uma pessoa

indevida, charlatã, que não cumpre os requisitos de ser pajé, isto é, de possuir

encantados. Sem eles não é possível ensinar o remédio. Só há duas fontes de saber que

legitimam a ação de medicar: ou ter encantado e ser doutor do mato, ou ter estudado e

ser doutor da cidade.

Há ainda outro fator que legitima o fato da cobrança: é que a virtude

do remédio só é acionada quando se paga.

“Pessoal diz que não presta alguns experientes. Mas a coisa é essa.

Vão para botar visto mas não querem pagar. O remédio só faz bem

pagando, senão desmoraliza, relaxa”.

Se relacionarmos isso com outros eventos ocorridos na cultura local,

poderemos perceber melhor o valor que está associado ao pagamento. Em conversa com

os padres da região soubemos do fato de que muitos caboclos voltar para rebatizar o

filho, alegando que o primeiro batismo não tinha sido válido porque não fora pago. “Por

isso passamos, explicam eles, a cobrar uma pequena taxa simbólica”.

b) A segunda observação deseja explicitar o fato imitação. A cantiga

que o pajé entoa, isto é, a doutrina, é um sinal de possessão, pelo encantado. Para cada

um há uma doutrina diferente. É o modo de anunciar a chegada e a partida das

entidades. Constitui também a reza específica do pajé. Quando ele está normal, “puro”,

não “espritado”, nem consegue entoá-la. Do mesmo modo que ele na conhece suas

cantigas, também não poderá reconhecer, durante o serviço de pajelança, os

frequentadores enquanto os indivíduos do cotidiano. Cumprimenta-los pelo nome seria

45

trair sua falsidade. É por isso que o indivíduo que deseja se passar por “pajé” se

apropria do sinal de identificação e se põe a cantar.

“Curador é aquele que cura de nascença. Mas esse que é curador

porque aprendeu cantiga é só pajé”.

Comprovação disso nos foi fornecida através de nossa própria

experiência como pesquisadora. Em conversa com os ‘pajés’ ou com seus

frequentadores habituais procurava criar um clima de intimidade, mostrando meus

conhecimentos sobre a questão. Punha-me a cantar doutrinas dos encantados ao que os

presentes exclamavam com um ar maroto: - “Vai ver que tu é pajé!”. O importante disto

está na seleção do termo “pajé”. Para identificar as aparências jamais empregavam o

termo experiente ou curador.

c) Mas há de se explicar por que a escolha do termo “pajé” e não

experiente ou curador para designar falsidade? A nosso ver isto expressa uma

consciência de censura social que envolve o fenômeno pajelança. De fato o código

dominante (padre, polícia, médico, professor e pessoas de nível mais abastado) não se

faz distinções, como o fariam os caboclos, entre falsos e verdadeiros.

E ao se referirem ao fenômeno, sempre num sentido pejorativo,

utilizam o termo “pajé”. É normal, portanto, que o morador em seu discurso continue a

adotar o mesmo vocábulo “pajé”, previamente deteriorado, para designar um falso pajé.

De outro lado a consciência de censura pelo código dominante do

fenômeno pajelança no seu todo leva o informante a policiar sua linguagem, num

contato inter-classe, preferindo utilizar antes o termo “experiente” (mais frequente) ou

“curador” (menos frequente). Eis a explicitação do motivo que nos foi fornecida.

“Experiente do mato é melhor falar. Pajé é para rebaixar. Pra dentro

se trata pajé e pajelança. Pros de fora é experiente e serviço”.

Mas voltemos à definição básica que formulamos sobre a categoria

‘pajé’. Ela nos guiará na análise dos outros termos. Dissemos que fundamentalmente o

‘pajé’ seria o indivíduo que a um só tempo é possuído e mantém o controle dos

encantados. É esse traço que nos permite entender o conteúdo da expressão “cavalo de

mãe d’água” utilizada em dois contextos.

a) Para especificar uma característica comum a todos.

P: “Cavalo de mãe d’água é diferente de pajé?”

I: “Não, é a mesma coisa porque tudo nós somos cavalo de mãe

d’água. Porque a mãe d’água debruça é na costa. Mãe d’água não

entra dentro de corpo de pessoa nenhuma. Encosta, fica na costa, a

gente sente o peso na costa e o arrepio no corpo, esfria a mão,

esfria o pé, dá um batimento de coração, dá uma aflição, aí o

camarada não sabe mais dele.”

46

b) Para diferenciar daquele que sabe curar, dar remédio. Designa o

indivíduo que só “esbazuga” e canta porque a mãe d’água se

encostou nele. Em outras palavras: o “cavalo da mãe d’água”,

neste contexto, significa o sujeito que é possuído pelos

encantados, mas que não tem poder de controla-los. É um pajé

pela metade, que ficou a meio caminho. Esta incompletude é que o

torna alvo de comiseração, de caçoada, de desvalorização.

“Fulano de tal não sabe de nada. É só “cavalo de mãe d’água”.

A ciência do ‘pajé’ se resume, pois, na síntese destes dois fatores:

possessão e controle, ou melhor, numa possessão controlada. De que valeria para seu

oficio de curador se os encantados somente se encostassem quando bem entendesse? É

necessário que possam ser cooptados quando a ocasião se apresenta. O saber do ‘pajé’

não é, pois, fruto de uma formação escolar, ou uma herança da tradição oral, mas

provém de um intercurso com os encantados. Ciência e poder são transmitidos põe eles

e não por meio de uma qualquer pessoa, ainda que especialista. Assim declara uma

pajoa:

I: “A moça que me fez trabalho nunca me ensinou nada.”

P: “Como é que a senhora aprendeu?”

I: “Aí... quando chegar na vez eles (os encantados) me mostram.”

P: “Mas de ver assim, de observar, de ir tantas vezes lá a senhora

não aprendeu?”

I: “Eu não. Não aprendi. Porque pra mim aprender então eu não

sou nada. Eu penso que isso seja uma coisa que a gente pra

aprender só sendo por livro. Agora eu não sei ler.”

É uma constante da ideologia a afirmação: o saber do pajé vem dos

encantados. Mas como explicar os padrões, as mesmas regras, na pajelança? Deve haver

uma espécie de “escola”, de iniciação. Esta indagação foi recebendo resposta à medida

que penetrávamos no universo da pajelança. De fato existe até mesmo uma hierarquia

abreviada nos dois tipos de ‘pajé’: o mestre ou o pai (mãe) de terreiro e o discípulo (a).

Há mesmo etiquetas que devem ser observadas na relação.

O mestre é:

Aquele que diagnostica;

Que encruza, fecha o corpo, colocando as contas;

Que guia o terreiro, onde baila o discípulo;

Que o controla, exigindo uma forma de obediência.

O discípulo não pode se consultar nem ser benzido noutro

terreiro. A infração nesta obediência acarreta no quebramento de

contas põe ela colocadas. “Desfirmado” poderá ser atingido pelo

mal.

47

Assim o mestre garante dependência e frequência necessária, se

não por outros motivos, pelo menos como certeza de

recrutamento para um serviço mais apurado. Donde aquisição de

prestígio através do cerimonial.

O ‘pajé’ tem tanto mais prestígio quanto mais discípulos possui. Este

fato confirma sua fama. Se é tão procurado é porque seu poder de diagnosticar e curar é

grande.

O discípulo é aquele

Que diante de qualquer perturbação estranha recorre ao mestre;

Que brinca em seu terreiro quando deseja ou se sente obrigado.

São vários os motivos que o levam a não fazer o serviço por conta

própria: insegurança, temor de não manipular bem as entidades,

censura dos moradores do local onde mora;

O que faz são as “obrigações” prescritas pelo mestre e, dentre elas,

a “chamada de caboclo” que não é a mesma coisa que um serviço

completo;

Tem muito respeito para com o mestre. Chama-o de padrinho,

madrinha e lhe toma a benção.

A relação mestre-discípulo chega a formar uma rede generativa:

Discípulo

Mestre II

Discípulo Discípulo

Mestre I

Discípulo Discípulo

Mestre II

Discípulo

Na fala de associação de ‘pajés’ que inexistem no interior, esta rede

constituiria uma forma semi-institucionalizada de solidariedade. No dia de grandes

festas, por exemplo, a de Santa Bárbara, os mestres II se dirigem com seus discípulos

para a casa do mestre I. Além disso, há serviços que só são do poder do mestre I,

quando, por exemplo, se quebra ou se afasta uma conta de Mestre II. Muitas vezes

também mestre II não se acha com poder suficiente para resolver o caso de um discípulo

novo. Ambos se dirigem à casa de Mestre I. Esses poderes estão quase sempre ligados à

ainda não manipulação dos complementos terapêuticos: como fazer a composição de

um banho, etc.

48

3.3.4.1 – Curador e Feiticeiro

Na definição básica de ‘pajé’ apontamos seu poder de controlar certos

males, inclusive o feitiço. De fato o especialista sempre se apresenta com os traços

conhecidos do “shaman”. É ao sempre tempo o “medicine-man” e o “witch-doctor”. No

dizer de uma pajoa: “o livrador da vida”. Por isso nunca “bota” mas “tira o mal”,

porque deseja a salvação de sua alma. Suas ações têm em vista bons propósitos (a

“adivinhação” ou como ocorre aparecer no discurso: ele “descobre”).

Vemos assim que a confissão do exercício da feitiçaria na cultura local

é extremamente velada, censurada. Nenhum ‘pajé’, na cultura local é extremamente

velada, censurada. Nenhum ‘pajé’, falando de si mesmo, dirá que é feiticeiro, mas se

refere, de maneira vaga, evitando identificação, aos que praticam o mal.

P: “O que é mondongo?”

I: “É feiticeiro. Esse que é a linha negra que faz mal pros outros”

P: “Mas a senhora consegue tirar?”

I: “Sim, mas botar não. Que eu sou o espírito de luz.”

P: “E os da linha negra que espírito são?”

I: “De Lucifer, do Cão, né? É negro. Essa é que é a linha negra. Só

trabalha pra fazer má. Feio não é? Quem é fulano? Fulano é

curador. Curador nada, é feiticeiro. Daí não dá certo.”

Mas se mudarmos de tipo de informante e não pegarmos o

especialista, mas um morador qualquer veremos que estas distinções entre só “tirar” e

“não por” não poderão ser utilizadas para diferenciar entidades. Ao contrário, as duas

ações são vistas como complementares e provém da mesma fonte. Se um ‘pajé’

consegue trabalhar na área perigosa e marginal de tirar o feitiço é porque sabe

manipular com as mesmas forças. Mesmo quando ele luta contra um feiticeiro, ele só

pode esperar ser bem sucedido se tornar emprestado as armas do mesmo arsenal.

“Porque o pajé compartilha nesses encantados. É difícil ter um pajé

que não faça mal, né? Não saiba fazer o mal e desmanchar, tá vendo?

Porque se eu faço um cofo (espécie de cesto) eu sei desmanchar, né?

Assim é que é. Agora outro boba (tenta), boba e não acerta, né?”

O importante disso tudo, porém, é voltar ao emprego do lexema.

Todas as vezes que se suspeita de um consórcio com a zona da feitiçaria o termo

escolhido é “pajé”. “Curador”, por contraste, seria a expressão que tenta negar tal

aliança.

3.3.4.2 – Pajé e Mineiro

Noutro contexto ainda o lexema pajé é utilizado em contraposição a

mineiro, não revelando nenhuma conotação pejorativa. O que se tem em mente é

49

contrastar tipos de rituais diferentes e as respectivas especificidades de “linhas” e

“entidades” que atuam.

É preciso dizer que, na verdade, as diferenças entre ambos são muito

tênues. Ainda que a denominação esteja ligada a tradições históricas diversas (africana

para o mineiro e indígena para o pajé) e a zonas de desenvolvimento próprias (urbana

para o mineiro e rural para o pajé), o que observamos é uma apropriação mútua de

modelos. As oposições nítidas que os discerniam funcionam, na atualidade, mais como

uma questão de grau, ou de ênfase. A estas se somam novos traços distintivos.

Para a caracterização utilizaremos basicamente duas dimensões

semânticas.

1. Entidades que atuam

1.1 Designação do conjunto: 1 (Mina); 2 (Encantaria)

1.2 Habitat: 1 (água salgada); 2 (água doce)

1.3 Força: 1 (mais forte); 2 (mais fraca)

Assim, temos parcialmente:

Mineiro: 1.1.1 e Pajé: 1.1.2

1.2.1 1.2.2

1.3.1 1.3.2

2. Parafernália

Neste ponto é que as coisas parecem mais misturadas. Antes de

estabelecer as oposições teremos que ressaltar o seguinte. Embora alguns instrumentos

rituais como tambor e maracá caracterizem mais um do que o outro, eles aparecem

utilizados por ambos.

É uma questão de ênfase que na codificação será assinalada pelos

sinais + e -. Outros instrumentos só diriam respeito a um dentre eles.

2.1 Instrumentos utilizados: 1 (Tambor); 2 (Maracá);

3 (cigarro especial: “Tauari”)

2.2 Vestes: 1 (cabeça amarrada e saias multicoloridas)

2 (cabeça descoberta e vestimentas comuns reservadas

para a ocasião)

Portanto, o mineiro reuniria: 2.1.1 (+)

2.1.2 (-)

2.2.1

De outro lado o pajé corresponderia a: 2.1.1 (-)

2.1.2 (+)

2.1.3

2.2.2

50

Estas são as distinções que, quando perguntadas, aparecem manifestas

no discurso. Existe uma outra, porém, escondida, só apurável pela observação do

pesquisador. De fato nunca encontramos um pajé preto que não fosse mineiro. Ao

contrário o pajé caboclo22

raramente o é.

Se tivermos em vista tudo o que culturalmente vem associando à

categoria preto, poderemos entender que a dimensão cor funcionaria também como

critério de distinção, não aparente. O preto é sempre o indivíduo não totalmente

socializado, objeto de caçoadas do caboclo, marginalizado enfim. Mas é ao mesmo

tempo o ser que trabalha com serviços mais pesados, em tarefas mais perigosas. A

composição de força e marginalização cria uma peculiaridade de poder. Assim o

mineiro é tido como aquele que dá conta de serviços mais difíceis, aquele que vem

ligado à área de feitiçaria.

Um outro componente que explicaria a força do mineiro é o fato de se

conceber sua ligação com a cidade, onde foi encruzado e donde hauriu maiores

conhecimentos. A cidade é sempre vista como o lugar onde se sabe mais, se aprende

mais. Num contexto mais amplo é símbolo de sucesso, pujança e também de

legitimação. O simples fato do ‘pajé’ frequentar esporadicamente a cidade, de nela ter

sido iniciado concorre para seu prestígio. Na cidade nutre-se o vigor.

É esta ligação rural-urbana que nos levou a pesquisar, na própria

cidade, a distinção entre pajé e mineiro. Na tarefa de deslindar as especificidades eis o

que lá colhemos.

“Pajelança” é um nome antigo. Hoje mais se fala curador e cura. As

diferenças entre os dois corresponderiam ao seguinte:

Na pajelança

Se trata: linha

Se manifesta a linha de água doce

As entidades são: encantados de bicho e caboclos

Usa-se: pena e maracá

Dança uma pessoa só: o pajé (eventualmente entre um atuado, por instantes)

Cura-se, retirando o “malofício”.

Nas minas

Se trata: corrente

Quem desce são: os orixás e caboclos

Usa-se: o tambor

Dança um grupo constante: o pai de Santo com suas filhas

Cura-se através de remédio.

22 Para que o leitor não seja confundido convém esclarecer: temos empregado o termo caboclo

em dois sentidos, nisto seguindo a própria classificação local. Primeiramente ele designaria o indivíduo

do interior que vive substancialmente do cultivo. Noutro contexto funciona como uma categoria racial. O

pobre de pele branca.

51

Além das distinções de entidades e rituais é importante notar que os de

dentro das minas, na cidade, reservam à pajelança a área que recai sob o domínio da

feitiçaria. Quando se trata de um malofício é necessário recorrer a um pajé. Só ele tem o

poder de tirar.

Este fato parece corresponder a uma lógica mais englobante: a Igreja

oficial reservaria ao todo que extrapola suas fronteiras, aliança com a feitiçaria.

Descendo, porém, veremos que no interior, onde o fenômeno da pajelança é mais

generalizado, será o mineiro que apresentará maiores poderes nesta área. Na cidade, ao

contrário, onde o mais comum é o “Tambor de Minas”, será a pajelança que tratará com

o “malofício”.

Mas esta classificação a partir do urbano só foi um parêntesis que, no

decorrer da pesquisa, funcionou como uma necessidade de classificação. Voltamos à

representação rural veremos que tanto pajé quanto mineiro são um tipo de pajé. São dois

taxas que contrastam diretamente.

Mas se mudarmos de direção e olharmos verticalmente teremos o

termo pajé num contraste de inclusão. Na verdade se trata de um fenômeno de

polissemia; where the two or more (meanings signified by a) word are related, sharing

some of their distinctive features and suggesting derivation one from the other

(Scheffler and Lounsbury 1971:6).

3.3.4.3 – Doutor do Mato

É o ultimo lexema da lista do princípio que resta a ser analisado.

O termo doutor do mato é, em última análise, uma satisfação ao

código dominante em que o doutro é reconhecido como único individuo que

legitimamente possui controle sobre a doença. Mais do que isso: o código local se

apropria do termo “doutro” para conferir legitimamente ao ‘pajé’ como curador e lhe

agrega a qualificação “do mato” para designar os males sobre o qual tem poder.

Pajé

pajé Mineiro

52

Assim os campos do “doutor do mato” e do “doutor (da cidade)”

ficam bem delineados.

Doutor (da cidade)

Doenças que necessitam de aparelhos

especiais e exames de laboratório.

Obs.: O repertório de doenças

reservadas ao doutor (da cidade) é uma

lista não fica, sempre aberta. Varia, vai

aumentando, conforme a experiência do

informante. As sempre citadas: coração,

operação.

Doutor do mato

Assombro

Espírito mau (vagante)

Malofício

Obs.: quando o doutor do mato se

contrapõe ao doutor (da cidade) o

repertório de doenças que recai sob o

poder do primeiro é restringido levando-

se em conta somente aquelas sobre as

quais o segundo não controlaria.

Neste caso os dois não são competidores (i. é, sempre partindo do

ponto de vista da cultura analisada) porque atuam em áreas competentes. Mas quando se

trata do próprio ‘pajé’ ser o informante, ainda que reconhecendo as competências

específicas de ambos, ele se reserva a clarividência do diagnóstico. O fato de ambos, ele

se reserva a clarividência do diagnóstico. O fato de não deixar a doença à mercê do

acaso e aportar o doutor (da cidade) como indivíduo de poder para o caso, lhe evita o

risco do fracasso ao mesmo tempo que lhe confere prestígio ainda maior. O doutor

passa a ser uma descoberta do ‘pajé’, uma categoria que recebe clientes de suas mães e,

por isto, de certo modo controlada já que prevista dentro da própria área da pajelança.

Existiria ainda um outro jeito de marcar as fronteiras de poder entre

doutor do mato e doutor (da cidade) mas que não estaria ligado ao repertório distinto de

doenças. Há sofrimentos (não prefixados culturalmente mas selecionados a posteriori)

que exigem a concorrência dos dois: o medico curaria a parte física e o pajé a parte

“espiritual”. É assim que se explica a utilização não alternativa do conflitante, mas

concomitante dos dois para o tratamento do mesmo mal. Esta composição, porém,

guarda uma separação Necessária que provém da própria representação da doença.

Em outros contextos, porém, o doutro é visto pelo ‘pajé’ como um

inimigo competidor:

quando o que se considera é a interferência na própria área. Assim

o pajé prognostica o agravamento da doença se o cliente recorrer

ao médico, já que não se trata de uma doença de doutor;

quando o ‘pajé’ ataca por incompetência procura se defender

apelando para a própria vulnerabilidade do médico. Para isso lança

mão de uma espécie de modelo estatístico.

“Dizem que o pajé mata. Mas eu gostaria de saber se morre mais

gente na mão de pajé ou na mão de médico”.

53

Mas se o doutor do mato e o doutor (da cidade) se distinguem por

causa do tipo de doença que controlam é porque igualmente esse controle lhes é

legitimado pela diferença de origem de poder que manipula. O doutor (da cidade)

adquiriu o seu saber através de livros e estudos. O doutor do mato recebe ensinamentos

dos “encantados” e entre eles “aqueles que têm feição de índio são os maiores

doutores”.

“A senhora não já ouviu dizê que sempre tem os índios, né? Então,

são os maió curado. Os maió descubridô de remédio, de ervas e tudo.

Então eles têm prestígio grande que eles dão, né?”

Como já dissemos anteriormente, se no primeiro caso é diploma que é

exigido, no segundo o que conta é o encantado.

Eis a riqueza e a complexidade de informações: que pudemos

depreender da categoria ‘ pajé’. Mutatis mutandis para o presente caso poderíamos

chegar a conclusões semelhantes que levaram Frake a dizer: the greater the number of

distinct social contexts in which information about a particular phenomenon must be

communicated, the grater the number of different levels of contrasts into which that

phenomenon is categorized (1961-121).

Ao formular esta hipótese Frake estaria, no entanto, tentando explicar

a causa de uma maior subdivisão em níveis diferentes numa taxonomia. Nós, ao

contrário, tomaríamos a mesma hipótese para explicar a ocorrência de vários lexemas

para um mesmo taxa e em vez de níveis, falaríamos de dimensões de contraste. Os

fatores situação e interação estariam na base desta soma de informações.

Com esta última categoria terminamos a apresentação dos

funcionários religiosos. Após a análise do todo eles parecem formar um continuum no

qual o padre e o ‘pajé’ ocupariam os extremos, e o rezador e o benzedor sucessivamente

o meio.

Que queremos dizer com isso? Tendo em vista a atuação na

comunidade local o padre é o funcionário religioso que se situa nos limites que se

articulam com o exterior, com o que não é ela. À medida que passamos pelos outros

vamos penetrando cada vez mais o seu seio até chegar no ‘pajé’ que atua nas áreas mais

escondidas, mais reprimidas, mais íntimas da cultura local. O ‘pajé’ é uma categoria que

funciona como via de acesso, revelação do avesso da comunidade.

Rezador Benzedor

Padre Pajé

54

3.4 – CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO COMPONENCIAL DAS

CATEGORIAS

Depois de ter discorrido pormenorizadamente sobre as categorias

poderemos com mais segurança dar a definição componencial de cada uma. Não

tomaremos para isso os traços compartilhados (ainda que numa relação de grau como

acontece com o padre-rezador), mas os verdadeiramente distintivos e que emergem

quando jogadas uma de encontro a outra. Deixaremos de lado igualmente as

manipulações (cf. o ‘pajé’) que a categoria pode sofrer dependendo do contexto23

.

Durante a dissertação, aliás, tivemos o cuidado de aponta-los. Embora

introduzidos intencionalmente no melhor momento da redação eles aparecem

difusamente. Cumpre agora realçá-los.

O domínio dos funcionários religiosos sofreu inicialmente uma

subdivisão em dois grupos. O critério adotado foi a ausência ou presença da cura

(analiticamente os momentos previsíveis e os imprevisíveis). Temos então a primeira

dimensão de contraste com as suas duas manifestações alternativas, ou seja, os

componentes:

a1: não curam

a2: curam

Tomando o grupo dos que não curam mas que se caracterizam por

atuarem em áreas previsíveis há que se distinguir os momentos entre:

b1: entradas rituais no social e

b2: festas aos santos

Passando para o grupo dos que curam o critério primeiro de distinção

vem ligado ao repertório de doenças sobre as quais os funcionários têm controle. Como

há “overlap” também neste ponto (cf. mau-olhado, quebranto) convém formular

provisoriamente a dimensão de contraste segundo a origem do mal24

:

c1: se não causados por seres sobrenaturais

c2: se causados por seres sobrenaturais ou pela ação intencional de

ser humanos “normais”

23 Com isso não queremos dizer que as manipulações são fruto do acaso. Ao contrário, o código também

prevê o uso conforme as circunstâncias como nos demos ao trabalho de mostrar no entanto elas não

fornecem os elementos completos para uma definição componencial.

24 Dizemos provisoriamente, porque a distinção depende de uma classificação prévia das doenças que

ainda não pode ser feita.

55

Além disso outros critérios operaram para classificação de todas as

categorias do domínio. De fato os funcionários religiosos tinham o direito de atuar

legitimamente porque de posse de um saber culturalmente reconhecido. Daí a existência

de uma outra dimensão: a origem do saber triformemente adquirido.

d1: por educação escolar

d2: por transmissão oral, hereditária ou não

d3: através da possessão

De outro lado se todas as categorias puderem ser englobadas num

único domínio é porque partilham de um poder particular: o religioso. O modo da

cultura designar esta especificidade é dizer: “são pessoas sabedoras de muitas rezas”.

Serão os tipos de orações utilizadas que caracterizarão este ou aquele funcionário.

Temos então a ultima dimensão assim concretizada:

e1: a missa

e2: o bendito

e3: a reza eficaz

e4: a doutrina

Com essas cinco dimensões estamos aptos a dar a definição

componencial das categorias:

Padre a1 b1 d1 e1

Rezador a1 b1 d2 e2

Benzedor a2 c2 d2 e3

Pajé a2 c2 d3 c4

56

3.5 – BIBLIOGRAFIA

BERGER, Peter. La Religion dans la conscience moderne. Paris, Ed. Du

Centurion, 1971.

BERREMAN, Social Categories and Social Interaction in Urban India. American

Anthropologist, 74 (3): 567-86, 1972.

BOURDIEU, PIERRE ET PASSERON, J.C La reproduction, Paris, Ed. De

Minuit, 1970.

CONKLIN, Harold. Lexicographical Treatment of Taxonomies. International

Journal of American Linguistics, 28 (2): 119-141, 1969; In Tyler, ed.

Cognitive Anthropology, New York, p.41-57.

EVANS-PRITCHARD, E.E. Witchcraft, oracles and magic. Clarendon Press,

1937.

FRAKE, Ch. O. The Diagnosis of disease among the Subanum of Mindanão.

American anthropologist 63 (1): 113-132, 1961.

______________ A Structural description of Subanum. In: TYLER. Religions

behavior. S.l., s. ed. 1969, p-470-489.

FOURNIER, M. Reflexions théoriques et méthodologiques à propos de

l’ethnoscience. Rer. Franc. Social., XIII 2 (459-489) 1971.

GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão; veredas. 6. Ed. Rio de Janeiro, Liv.

José Olympio, 1968.

GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens. Um estudo da vida religiosa de Itá;

Amazonas. São Paulo, Brasiliana, 1955.

STRATHERN, A. et alii. Marsupials and magic; a study of spell among the

Mbowamb. Dialect is practical religion. Cambridge, 1968.

57

4 – REDE DE SOLIDARIEDADE: UM ESTUDO SOBRE O PARENTESCO E O

COMPADRIO NO INTERIOR MARANHENSE

Regina de Paula Santos Prado

– Antropóloga –

1972

4.1 – INTRODUÇÃO

4.2 – PARENTESCO

4.2.1 – O Povoado: Entidade afetiva

4.2.2 – Parentesco: O Repertório

4.2.3 – Parentela: Uma Relação

4.2.4 – Unidade Doméstica: Casa Minha x Casa Alheia

4.3 – COMPADRIO

4.3.1 – Batismo e Dimensão de Socialização

4.3.1.1 – O “Santo”: Modelo de perfeição social

4.3.1.2 – Substituição dos laços de parentesco pelos laços de compadrio em casos de

reincidência

4.3.2 – Compadrio: Um contrato bilateral

4.4 – INCESTO

4.5 – CONCLUSÃO

Para analisar os novos modelos de organização social

propostos pelos missionários do povoado de Barroso, na

Baixada Maranhense, tornou-se necessário estudar a rede

de solidariedade já existente no código regional, o que é

caracterizado de modo mais marcante pelas relações de

compadrio e parentesco estabelecidas na comunidade. A

análise da rede de solidariedade não se prende ao aspecto

formal, mas sobretudo à ideologia que a informa. Essas

relações são consideradas distintas entre si em virtude de o

estabelecimento de vínculos, isto é, o compadrio é um laço

tão forte que o casamento entre compadre e comadre ou

entre duas pessoas que possuam o mesmo padrinho é

considerado incesto. Os laços de parentesco são

determinados pelas circunstâncias concretas (doença, por

exemplo), não havendo normas rígidas para considerar-se

alguém como parente, daí a parentela ser tratada aqui

como uma relação. Para caracterizar a ideologia que

informa o parentesco foram considerados três níveis: o

povoado, a parentela e a unidade doméstica. O Batismo,

gerando o ser social torna o compadre-padrinho um

elemento importante na colocação ou recolocação do

indivíduo para dentro do domínio social. O compadrio é

também considerado um contrato bilateral na ajuda e

amizade mútuas, o que explica a existência de outras

formas de compadrio (de fogueira e de apelação).

58

4. 1 – INTRODUÇÃO

“Pois é: tem muita coisa no mundo pra gente poder viver”.

(Palavras de um informante)

As conclusões desenvolvidas neste trabalho são o resultado de dois

meses e meio de trabalho de campo (janeiro, fevereiro e março de 1972) no interior do

município de Bequimão, localizado na zona chamada Baixada Maranhense. Os dados

procedem dos moradores de Barroso, povoado de mais ou menos 300 pessoas

distribuídas em 53 casas ou unidades familiares, situado a 7 km da sede do municio. Sua

população predominantemente cabocla, vive substancialmente do cultivo da roça, onde

se planta arroz, mandioca e milho. Tal atividade econômica se exerce, até o momento,

juridicamente falando, de modo descontraído, já que as terras são devolutas e

consideradas de baixo rendimento, portanto minimamente cobiçadas. A “posse”, ou

melhor, o direito socialmente reconhecido, se faz pela simples ocupação de uma faixa

de terra, a qual é cercada para o plantio. É a cerca que delimita o “meu” e “o teu”, sendo

que o negociável se restringe aos benefícios nela implementados.

Estas terras, porém, outrora da Igreja e atualmente do Governo, são

sentidas, percebidas ideologicamente pelos moradores como terras de Santa Teresa, de

modo que o único tributo prestado à “proprietária” consiste na joia tirada anualmente

por seus encarregados, indivíduos destacados de um outro povoado, Itamatatiua, onde

reside, por assim dizer, a “dona”, isto é, a imagem da “santa viva”.

Essas informações sumárias foram fornecidas, a título auxiliar “de

localização”, para o leitor curioso que somente tomará contato com o presente tema, um

dentro os diversos que comporão uma pesquisa, ainda em curso, cujo objetivo principal

será o de caracterizar o sistema religioso da população rural da Baixada Maranhense.

Isto quer dizer: este capítulo, peça de um todo projetado, ganhará maior força numa

leitura integrada, somente possível após o término da pesquisa. É provável que algumas

afirmações tenham de ser formuladas e outras ratificadas com exemplos ainda mais

enriquecedores.

No entanto, as referidas interpendências e previsão de abertura não

nos impedem de tratar do tema de modo consistente e, por isso, de certa maneira,

autônomo. Aliás, ele constituiu a pedra fundamental e inicial de toda a indagação

maleavelmente planejada. Partimos em busca da caracterização do grupo local: de que

forma se organizam socialmente, qual a ordem que o mantém estruturalmente

congregado? Isto nos impunha por dois motivos:

1º. Existe um postulado antropológico que afirma: onde existem pessoas

morando juntas existem sempre regras sociais que as norteiam, mapeando-lhes o

comportamento e prevendo sanções nos casos de infração. Aquilo que parece com

informe ou desprovido de ordem para o “colonizador” desavisado possui uma lógica,

imperceptível para quem não está dentro das regras do jogo, mas poderosos para quem

foi socializado dentro dela, como bem concluiu uma informante após me explicar uma

dessas regras: “Pois é: tem muita coisa no mundo pra gente poder viver”.

59

2º. O outro motivo que nos levou a perseguir o tema está diretamente

ligado ao encontro de duas culturas que se dá na religião: a dos missionários e a dos

moradores locais. De fato, aqueles estariam propondo, por diversos canais institucionais

próprios, novos modelos de organização, veiculados pela comunidade de “culto”, da

“legião de Maria”, “roça comunitária”. Pautados pelas diretrizes pós-conciliares e

embebidos de ideologia cristã de respeito pelo homem, procurariam ser agentes, com

demais auxiliares, de criação de “comunidades eclesiais”, muitas vezes denominadas,

pelo código missionário, de “comunidades de base”.

Mas, para que a análise desse novo modelo proposto pelo missionário

pudesse se processar era necessário, primeiramente, e tomando emprestado o termo,

procurar “a comunidade de base” local, a rede de solidariedade, de fidelidade, já

existente no código regional para poder, depois, avaliar em que medida os antigos

padrões se apresentavam ou não, refratários ou suficientemente poderosos para

canalizar, modificando, através de uma retradução, as novas regras e instituições

introduzidas pela ideologia missionária.

Nosso trabalho, portanto, restringir-se-á, à primeira parte do que foi

dito acima. Constará de duas unidades principais, isto é, tentará analisar os dois códigos

que, a nosso ver, são os responsáveis pela rede de solidariedade:

o código do parentesco

o código do compadrio

4.2 – PARENTESCO

O caminho que adotaríamos para descrever o grupo de moradores que

constituem o povoado de Barroso seria de fora para dentro, do inclusive ao particular,

fazendo a lente de análise aproximar-se gradativamente dos elementos que tecem a

estrutura social. Em outras palavras: estaríamos preocupados em explorar não somente o

aspecto forma, mas sobretudo a ideologia que informa o que convencionamos chamar

de “rede de solidariedade. Assim estaríamos atentos para detectar de que modo, por

exemplo, o parentesco, em outros contextos é alargado até os limites do próprio

povoado, identificando-se com ele, ao passo que em outros contextos ele é restringido

às unidade domesticas. Ou seja: descobrir, norteados pela ideologia, todos os elementos

do repertorio do código de parentesco e apontar em que circunstâncias somente alguns

são tomados para caracterizá-lo, enquanto que, em outras situações haveria necessidade

de todos para defini-lo.

4.2.1 – O Povoado: Entidade Afetiva

Para melhor percebermos as nuances contidas nas expressões

carregadas de afetividade que caracterizam o povoado como uma grande família

lançaremos mão de dois recursos técnicos:

60

a posição do informante (P.I.)

a dimensão de contraste utilizada (D.C.).

A combinatória desses recursos nos revelariam três nuances:

1º. Quando aquele que fala se acha fora do povoado (P.I.) e o assunto

gira em torno daquilo que conhece como habitual. De outra maneira: o indivíduo fala do

que é comum para “os seus”, sente-se seguro e sábio para opinar sobre o mundo que lhe

é socialmente contíguo, familiar. Por isso a dimensão de contraste implícita no discurso

é da origem: “lá x aqui”, do que “sei e que não sei”, do que é “meu mundo do que não

é”.

Assim o informante que se encontra fora do povoado percebe aquela

totalidade caseira. A expressão referencial não é “no meu povoado” mas “lá em casa”.

2º. Quando o sujeito que fala se encontra dentro do próprio povoado (P.I.)

e quer se referir à qualidade das relações (D.C.) que o caracteriza por ocasião a outros

povoados, ou à vila (= sede do município). O que ocorre geralmente é a idealização do

lugar onde se mora, as relações entre os indivíduos caracterizadas como pacíficas, de

respeito e ajuda. Todos são “gente nossa”, “gente da gente”, que não desejam mal um

para o outro, com quem se pode contar, onde impera a “popularidade” (traço

despretensioso e igualitário) e não a “soberba”.

“É. Porque eu faço ali um lugar, ali no S... que eles tratam, que se a

senhora chegar lá, uma qualqué pessoa chegar lá... Fulano vamo

comigo ali nessa casa? Eu não vou. Então vamo naquela outra? Não,

eu não vou, eu não falo com esse camarada, é meu inimigo. Pra lá é

assim. E aqui, não senhora. Aqui na cabeça da ladeira acolá onde

tem aquela estiva, essas casa tudinho não tem essa casa que esse

cristão diga eu não encosto nessa”.

3º. Quando o indivíduo está dentro do povoado mas o caracteriza não mais

a partir da oposição “este povoado” x “outro povoado”, mas de uma lógica metonímica.

a parte pelo todo

o sítio pela periferia

os antigos pelos recém-chegados

o parente pelo não parente.

Para que se entenda melhor: Barroso é formado de um centrinho

dominado “sítio” e de caminhos conduzindo a moradias mais distantes. No sítio é que se

desenrola com mais intensidade, a vida social, lugar das quitandas, do grupo escolar e

das festas. Por isso no discurso, a coluna da direita é ideologicamente suprimida, ou

mais corretamente falando, encoberta extensivamente pelos elementos da esquerda que

logicamente se permutam.

61

“Era estas três famílias que existia no lugar. Depois foi aumentando,

já os filhos casam, faz uma casa pra ali. Gente de fora pra cá inda

nunca veio. Pra dizê uma pessoa de fora desses outro lugar, pra vir

fazer casa aqui., não. Vai aumentando as família”.

Na realidade porém, há casas novas localizadas na periferia e na beira

da estrada, de moradores vindos de outro lugar. Mas isso não é representado

conscientemente, não havendo propriamente patrão ou distinção de classe acentuada

entre os moradores, deveríamos estar atentos para esta diferenciação sutil e descobrir:

quem se identifica com o sítio? Quais os critérios? Quais os moradores que ocupariam

estruturalmente a periferia?

São essas portanto as três nuances básicas que podemos discernir

dentro da categoria mais inclusiva: o povoado enquanto “lá em casa”, “gente da gente”

e “famílias aumentadas”.

São afirmações desta ordem que nos levaram a aproximar a lente da

análise, a fim de averiguar até que ponto, realmente, se estendiam os laços de

parentesco.

4.2.2 – Parentesco: O Repertório

Se a ideologia do parentesco serve, como vimos, para estabelecer

descontinuidades em níveis mais inclusivos da ordem “meu povoado x outro povoado”,

é porque na verdade seu código deve ser muito rico e permitir a atualização de muitos

laços. No entanto não poderíamos nos perder na expressão mais aparente desses laços.

Teríamos que descobrir os nódulos responsáveis da multiplicação das relações de

parentesco.

Um dos pontos fundamentais que explicaria a extensão dos laços que

ligariam um determinado ego a inúmeras pessoas seria o fato de que ele considera

abertamente como irmãos:

1. não somente os filhos de seus próprios pais biológicos

2. mas também todos aqueles gerados com os outros parceiros sexuais

tanto do pai como da mãe, quer isto se dê durante a união atual

(coabitação) dos próprios pais, quer após o rompimento dessa união,

seja pela separação ou pela morte de um deles.

Esta declaração manifesta obriga a correspondência gramatical da

regra: os homens e as mulheres consideram abertamente como seus filhos todos aqueles

gerados com o esposo (a) ou com outros parceiros sexuais.

Não há duvidas que uma distinção é feita conforme os casos, quer se

trate da relação irmãos ou da relação filhos. Quanto aos primeiros, há:

o irmão “de parte a parte” ou legítimo

o irmão por “parte de pai”

o irmão por “parte de mãe”

62

Quanto aos segundos:

filhos “de casal” ou legítimos

filhos “particulares”.

Mas seria enganador pensar que a categoria “legítimo” possui a

mesma conotação que na sociedade brasileira dominante, isto é, filhos de casamento

realizado segundo as normas jurídicas e/ou religiosas. Isto porque o código local possui

também uma forma de casamento própria contendo regras e sanções como veremos

mais adiante. Assim, a categoria “legítimo”, numa instância específica, estaria dando

satisfações a esse código: 1º filhos ou irmãos do mesmo pai e da mesma mãe e 2º que

“combinaram a vida juntos”.

É claro que a primeira colocação não está totalmente ausente da

representação do caboclo, sobretudo no que tange ao casamento “no cartório” ou “no

juiz”. O casamento “no padre”, porém, é um fato bem mais recente e são bem poucos os

que o adotam; não possui a mesma força cultural que o primeiro. Ninguém se sente não

casado por não ter se casado no “padre”. Por isso a categoria “legítimo”, em certos

contextos, procura dar satisfação no código jurídico da sociedade brasileira dominante.

De outro lado o poder julgador desse código estaria por detrás, como origem, da

categoria “amasiados” ou “amantiados”, mas cujo conteúdo é diferente daquele de onde

procedeu: não possui a carga de anormalidade ou de marginalidade.

Esta ligeira incursão nas regras de casamento só veio como suporte

explicativo da possibilidade de aceitação normal de um grande numero de irmãos.

Assim, um dos entrevistados considera como seus irmãos:

os filhos de sua mãe com o pai que fez (o físico)

os filhos de sua mãe com o pai que lhe deu o nome, casando-se

com ela no cartório (o jurídico)

os filhos de sua mãe com o pai que o criou (o sociológico).

Deste modo o código admite, no caso de uniões desfeitas, três tipos de

maternidade, que são exercidos por pessoas diferentes. Caso contrário, estas três

funções estariam concentradas numa mesma pessoa. Diria ainda que o desdobramento

destes três tipos de paternidade está diretamente relacionado ao ciclo da criança, isto é,

depende da idade em que se encontra, no momento das rupturas. Quando isto se dá, um

dentre estes três tipos é privilegiado: o pai de criação, considerado verdadeiro pelo grau

de participação da socialização do ego. Tal vínculo torna-se tão substancial que se o pai

de criação se separa da mãe de ego, este considera também como seus irmãos os filhos

daqueles com a outra mulher com quem atualmente coabita. Veríamos, assim, a terceira

possibilidade dentro do grupo de irmãos.

Seria, portanto, a extensão de irmãos que no caso da sociedade

estudada é maior que o grupo de filhos, o principal responsável pela dilatação da rede de

parentes, criando uma infinidade, por exemplo, de tios, primos e sobrinhos.

63

Porém, dentro do grupo de irmãos existe um laço mais forte entre os

irmãos uterinos, já que nas uniões sempre feitas e desfeitas, é regra quase que geral, os

filhos permanecerem com a mãe que os gerou e regra inevitável se estiverem em tenra

idade.

Por causa dessa ocorrência, isto é, da mãe permanecer com os filhos

que gerou, é que os tipos de maternidade não irão corresponder simetricamente aos três

tipos de paternidade. A mãe biológica é geralmente aquela que cria o filho, isto não se

dando somente em alguns casos excepcionais. Aliás, ao nível ideológico, há como que

uma censura do ato de conceder filhos a outrem: “filho não se dá, não é ramo de frô”;

“filho não se reparte, não é porco”.

Na prática, porém, isto às vezes acontece, não desordenadamente, mas

se conformando a certas regras. Nestes casos apareceria a mãe de criação ao mesmo

tempo que o pai de criação, se aquela possuir um cônjuge (é a normalidade). São eles:

a) quando a criança, ainda pequena, perde os pais. Neste caso são os

padrinhos que a tomam sob seus cuidados, tornando-se primordialmente seu pai e sua

mãe de criação;

b) quando por motivo de esterilidade de um parente próximo,

geralmente, irmã, se concede um dos próprios filhos, ato que não raramente é

considerado bênção, gerando fertilidade àquela até então infecunda;

c) outra possibilidade é a de dar um dos filhos, resultado de uma

união desfeita, à avó materna, viúva ou sem marido. De idade avançada, geralmente os

velhos não se incorporam à unidades domésticas dos filhos. Até quando podem

trabalhar, sobretudo no caso das mulheres, se unem à roça do filho, mas continuam

morando em sua própria casa. Toda uma ideologia de moralidade, de “casa própria x

casa alheia”, determina essa ocorrência, como veremos mais adiante. No momento em

que a anciã não puder mais trabalhar produtivamente para o seu sustento, já que tem o

neto crescido que a provê;

d) o último caso e o menos desejado, é a concessão de um filho a

pessoas não parentes ou ligas por laço de compadrio, por motivos de grandes

dificuldades econômicas. Mas sempre o temor impera de que sejam maltratados como

empregados.

Geralmente todas essas adoções, sobretudo as três primeiras, se fazem

segundo consenso local. Não há formalidades jurídicas, às vezes presentes no último

dos casos, que não é muito almejado: o caso do “filho de papel passado”. No entanto,

isto não diminui o caráter definitivo da doação. No item a) isto decorre por imposição

das circunstâncias; nos itens b) e c) o direito definitivo socialmente reconhecido vem

encapsulado na expressão: “fui eu que me consumi” pela criança.

Estes seriam em suma os contextos que dariam nascimento à mãe de

criação.

Há, porém, no código local um terceiro tipo de maternidade que não

desfruta, como a anterior, de uma logica de decisões. Ele já vem previsto pela estrutura

social desde o nascimento da criança. Tratava-se da mãe de leite¸ daquela que por estar

amamentando um filho seu, pode vir a dar o primeiro leite a um recém-nascido de uma

64

outra unidade doméstica. A explicação axiomática que justificaria a sua existência é que

o primeiro leite da mãe é “choco”, “não presta”.

A escolha da mãe de leite é muito ampla, mas dela não excluídos os

inimigos. De fato, o leite é concebido como sangue, transmissor da substância pessoal

de modo que, através dele pode ser também veiculado o mal. A noção de substância,

isto é, do leite como sangue torna-se mais explícita ainda quando penetramos no novo

tipo de relação no qual é introduzida a mãe de leite. Ela passa a ser considerada como

um parente consanguíneo e classificada dentro da rede de parentesco. Ocupa,

estruturalmente, em relação ao filho de leite a mesma posição que a mãe biológica.

Cumpre notar, porém, que a totalidade dos laços anteriores contraídos pela pessoa não

entra automaticamente como fazendo parte da nova relação. Por exemplo, os irmãos da

mãe de leite não serão tios do filho de leito. Somente algumas posições serão

classificadas: as que forem contraídas daí para frente e que estiverem dentro dos limites

do grupo nuclear. No momento em que se cria a relação três posições são definidas: a

mãe de leite, o filho de leite, e o irmão de leite (= exclusivamente aquele que está sendo

amamentado ao mesmo tempo).

O filho de leite se casando, sua mulher será nora da mãe de leite, e

seus futuros filhos os netos dela.

A análise deste terceiro tipo de maternidade além de nos apontar a

quarta possibilidade de irmão serve como chave de entendimento de descontinuidades

internas no âmbito do parentesco, bem como nos leva a perceber a distinção existente

entre relação (parentela) e grupo corporativo (família nuclear) do que trataremos mais

profundamente adiante.

Por ora basta dizer que o papel da mãe de leite é altamente estimado

na ideologia local. Há quem afirmou ter 128 filhos de leite, contagem que ia

estabelecendo mediante um risquinho no reboco de sua casa. Não acreditando como

verídico o número retido pela entrevistada. A informação estaria querendo, no entanto,

comunicar uma verdade de outra ordem: de ordem ética.

“É porque se eu nego o leite a um inocente, quando morrer, na porta

do inferno vou encontrar aquele leite. Se eu der esse leite, na porta do

céu vou encontrar. Tenho a felicidade comigo. Pois é; tem muita coisa

no mundo pra gente viver”.

De outro lado, o espaço estrutural para a mae de leite é sempre

garantido pela ideologia. Foi isto que obtivemos como resposta ao indagar

maliciosamente: e se não houver quem dê leite? Ao que a informante retrucou: “isto não

acontece, há sempre criança nascendo” no povoado.

Cremos assim ter chagado a demonstrar os principais nódulos do

código de parentesco que, desdobrados, tornam seu repertório riquíssimo. Dependendo

do contexto assistiremos a uma apropriação de todos os elementos desse repertório,

quando se trata de estabelecer descontinuidades mais inclusivas. Em outras ocasiões há

como que uma seleção desses elementos e então estaríamos diante de uma retratação da

própria rede. Num e noutro caso o contorno seria determinado pela ideologia que os

65

informa, isto é, por um conjunto de regras prescrevendo direito e deveres. A percepção

destas regras é que nos permitirá distinguir ainda duas unidades: a parentela e o grupo

doméstico, que serão tratados a seguir, a primeira, como uma relação, a segunda, como

uma corporação.

4.2.3 – Parentela: Uma relação

De fato a parentela é um fenômeno mais difuso, que não possui

contornos físicos nítidos na vivência do cotidiano, mas que pode emergir, “sofrer um

apelo” diante de circunstâncias específicas, quando então distinguiria o parente do não

parente e o próximo do distante.

Estas circunstâncias têm um nome e um conteúdo.

1º – A primeira delas se chamaria “vergonha”. Trata0se de uma

unidade moral percebida sob diferentes nuances que se integram.

a) O bem ou o mal feito atinge a rede, sobretudo em que se acham

mais perto.

“Mas como é possível que esse filho é só pra me trazer com a cara no

chão? Eu disse: eu vou buscar. Quando chego lá digo: T..., vamos

embora pra casa. Desse jeito dá o que falar de mim e de ti. O povo há

de dizer que é eu ou tu que não presta”.

b) Obriga a recorrer primeiro aos seus, sob pena de condenação moral

Pesquisador: “é bom morar perto de parente?”.

Informante: “É. Morar longe não dá certo. É porque se a

pessos se é de ocupar uma pessoa de fora, eu ocupo

primeiro meu parente. Porque agora eu vou ocupar

Regina (pesq.), eu vou lá pedir qualquer coisa pra ela

emprestado, eu largo aqui meu parente. Ele tem aí. Então

um de nós dois não presta. E por esta causa não dá certo.

Se eu ir lá e ocupar e ver que ele não tem aí, eu vou lhe

ocupar. Aí eu ocupo primeiro é meus parentes. Porque:

Mateus, primeiro os teus”.

c) Infração da solidariedade, da unidade moral, pela denúncia para

fora da rede, ratificando o ditado: “roupa suja se lava em casa”.

“Então chegou aí um rapaz que eles merenda e convidou pra ir na

casa de D...(fulana). E foi e teve de chamar a menina pra ela falar

com a merenda. Ela disse que tinha o marido dela. Um amante que

ela tem. Ela casou, ao depois desabandonou o marido e veio embora e

hoje é então um e outro. Quando foi no outro dia, ele veio falar por

66

T..., meu filho. T... escrachou com ela, aí ela chegou aqui e... ela vem

ser minha sobrinha. Então ela veio aqui e disse que não ia dar parte

de T... me considerando. Eu digo: menina, não vai, isso é uma coisa

que não dá certo, não presta, porque tudo é uma parentagem só, e eu

digo: não vai... mas ela por detrás foi e deu parte dele.

2º – A segunda dessas circunstâncias se chamaria “ajuda”. Apareceria

sobretudo em casos de:

1º. doença

“Então eu disse: M..., tu fica lá em casa. Porque M... tava doente,

com doença do mundo. Gente dele não ligava pra ele, a cabeça dele

fedia que não se podia. Antonce eu sendo parente dele, eu carreguei

pra minha casa”.

2º. repartição de comida, prevendo reciprocidade em casos de doença.

“Quando se traz um comer (por ex. uns peixes) em casa, se faz uma

repartição com os vizinhos da gente. Vamos dizer que eu trago cinco

prateada de diaba. Dou uma e meia pra meu pai, uma para meu

cunhado, meia para cada um de meus dois vizinhos, e fico com duas.

Faço assim porque hoje eu tenho então eu dou. Se amanha eu não

tiver dão pra mim. Se por acaso eu adoecer, Deus e Nossa Senhora há

de livrar, sei que vou poder comer ainda e minha família também.

Se um parente mora mais longe e estiver doente eu mando pra ele sem

ele pedir pra mim. Até dou mais que aos outros. Mesmo outros dando

pra ele (outros parentes e vizinhos) eu dou porque é uma obrigação.

Se eu não der e depois cair doente naquela hora ele dirá: ’Mas

quando eu estava doente, ele não me deu nem um tiquinho, nem se

lembrou de mim; será que vou lembrar dele agora?’.

Mas se um sujeito estando bom de saúde passa um dia inteiro (um dia

que não seja dia santo de guarda) deitado na rede sem procurar o que

comer, não se dá pra ele. Se dá pra quem caçou (=procurou) e não

achou”.

Assim o parentesco desta sociedade como sistema funciona de modo

maleável. A posição “parente” não é ficada de uma vez por todas, aprioristicamente.

Existe, por assim dizer, de modo latente, mas se revela em contextos peculiares. Do

mesmo modo a gradação entre parente “próximo” e “arretirado” segundo maior grau de

consanguinidade, na práxis rotineira isso se dilui. Como vimos nos exemplos citados,

serão as circunstâncias concretas que irão determinar. Um vizinho poderá ser incluído

dentro dos deveres que atingem a parentela, no caso da repartição de comida, e um

parente não vizinho esquecido em situações de normalidade, tornar-se-á muito próximo,

em caso de doença.

Por causa desta imprecisão de fronteiras é que preferimos tratar da

parentela como uma relação.

O único grupo que funciona mesmo como corporação seria a unidade

familiar, objeto agora de nosso estudo.

67

4.2.4 – Unidade Doméstica: Casa Minha x Casa Alheia

Em vez de oferecermos abruptamente nossas conclusões teóricas

preferimos tomar um caminho indireto que apresentasse ao leito a vantagem de poder

acompanhar mais de perto as categorias locais.

Partiremos primeiramente de um estudo do casamento, segundo os

padrões locais, para depois detectar regras relativas ao nosso objetivo.

Anteriormente já havíamos nos referindo à existência de uma

modalidade de casamento comum para o código local. Trata-se do “casamento

furtado”. Vejamos as etapas e falamos alguns comentários no momento oportuno.

1º) A moça casadoura é aquela que mora com os pais e se encontra

num estado de virgindade. É classificada segundo a categoria dos moradores de

“suficiente” ou mais comumente de “moça” em contraposição à “solteira” (= prostituta).

2º) A separação entre os sexos é bem rígida, na vida cotidiana. No dia

a dia o que se observa no povoado são grupos de meninos ou meninas, ajuntamentos de

rapazes ou moças. Nunca se misturam. Mas há um momento parêntese em que essas

regras são levantadas, até mesmo violentamente invertidas. É o momento das festas.

Elas congregam pessoas de povoados vizinhos que andam horas a pé a fim de não

perdê-las. As festas seriam portanto o lugar privilegiado de encontro do futuro parceiro

sexual, geralmente de outra localidade que a própria onde se habita.

3º) O conhecimento sumário se faz e a atração se estabelece. Parte-se

então para o contrato que é feito não entre as famílias, mas sigilosamente entre o rapaz e

a moça.

4º) Combina-se então a “fuga” ou o “furto”, geralmente à noite. Nesse

momento é que entra um intermediário importante, amigo, simultaneamente tanto da

família da moça (capaz de dissimular sua saída) quanto do rapaz (incapaz de desviá-la

para si. Daí o tratamento de “compadre” que recebe).

5º) Processa-se a “fuga” para o local onde habita o rapaz. A moça é

levantada à vezes para uma casa independente, preparada a propósito, ou muito mais

frequente e honradamente para a “casa da mãe” do rapaz, a qual é advertida nas

vésperas. Aí dormem e copulam.

6º) Com um intervalo de alguns dias os pais da moça vêm adquirir

sobre as intenções do rapaz e estipular o prazo do casamento do cartório.

7º) Este pode se processar de duas maneiras: ou o juiz vem até o

povoado, dependendo das posses do indivíduo ou, o que é mais comum, se casa na vila,

o que é mais econômico.

8º) Se o enlace é do agrado dos pais da moça e se eles não estão muito

mal de vida, aqueles devem comemorar o acontecimento dando um banquete.

9º) O casal não permanece por longo tempo na casa dos pais do rapaz.

Estabelecem logo uma nova residência porque “quem tem olho fundo chora cedo”. A

regra atualizaria o ditado: “quem casa quer casa”.

Portanto numa sociedade onde a aproximação dos sexos não existe no

cotidiano (namoro prolongado e “casar noiva” são categorias da cidade) compreende0se

que a regra lógica do casamento seja “o furto”. Ainda mais: a aproximação dos sexos

68

implicaria quase que imediatamente na cópula. Por isso se entende, de outro lado, que

no nível do discurso a expressão “tirar de casa” signifique ter tido relação sexual.

“Tirar de casa” ou “bulir” com a moça (ainda na casa dos pais = virgem) é julgado pelo

código local. Há três saídas quando se está “devendo”:

ou se casa

ou se paga a honra da moça

ou é processado

A título de ilustração, introduziremos uma longa citação:

(O pai da moça vindo inquirir a família do rapaz). “Eu tou vindo aqui

pra saber se tu já tá ciente que teu filho buliu com a minha filha? Eu

digo: buliu com tua filha? Diz: buliu. E eu quero saber se ele casa. Eu

digo: rapaz, se ele achou ela suficiente ele casa, mas se ele não achou

ela suficiente ao casamento não casa porque ele não vai pagar a fava

que o boi não come (s[o casa se ela for “moça?”). se ela for moça

casa, se não for, não casa (Se não for moça não casa?). casa se for

por essa conformidade: por acaso, eu vou te buscar pra ti morar

comigo, agora nós não combina a vida, nós não vamos casar. Mas se

nós combinar a vida nós casa e vamos viver como Deus quiser. Então

se ele dever ele casa. Bem, aí o meu filho chegou, e eu disse: eu filho,

o pai da moça veio aqui porque diz que tu buliu com a filha dele e

vamos ver o que faz; quem deve, paga (Pagá como?) de qualquer um

jeito. Por acaso eu tou lhe devendo um dinheiro, eu tenho que lhe

pagar, algum cargo de consciência eu tenho de pagar; eu não pago

nesse mundo, eu pago outro. (Mas não tem que dar nada pra família

da moça?) Nada. Só se por acaso ele diz: ‘Eu não me caso’. Então ele

tem de pagar a honra dela (como é que paga?). agora ela diz: ‘ a

minha honra você tem de me pagar um milhão de cruzeiro’. Agora ele

tem de descascar e aí ele fica livre dela pra sempre. Pode ser outra

coisa. Por exemplo, ela diz: ‘você me paga 20 cabeças de gado’.

Essas vinte cabeças ele tem de pagar”.

Assim o pagamento da honra da moça que não é propriamente o preço

da noiva (the bridewealth) revela o outro lado da questão. É que de fato o “furto” é visto

como um bem. “Tirar de casa” é um benefício para a família da moça. As despesas

domésticas são divididas porque se dá o desdobramento das unidades familiares. Por

isso se o “tirar de casa” não é levado a seu temo, isto é, a uma nova unidade, há que

compensar através do pagamento da “honra da moça”.

Nesta sociedade não se conhece o fenômeno da família extensa. Não

acontece da família se desdobrar e continuar morando junto. Cada casamento é uma

casa nova e cada casa é uma nova unidade econômica, onde os membros podem ser

recrutados, e as divisões de tarefas são distintas. Casa cada possui sua roça e cada

família possui sua cozinha, parte tão central, econômica, simbólica e socialmente

falando, da unidade nuclear.

69

Este é o ponto onde queríamos chegar: se, partindo de um ponto de

vista mais global, o parentesco é dilatado ate a totalidade do povoado, descendo, porém,

veremos a parentela e não parentela. Prosseguindo na aproximação deparamos, dentro

da própria parentela com uma outra descontinuidade: a unidade domestica sempre

manifesta na expressão “casa minha” e “casa alheia”. Assim como para a parentela há

uma ideologia que a norteia e coloca oposicionalmente face ao “não parente”, ao “de

fora”, a unidade doméstica possui um código de comportamento que a opõe a outras

unidades domésticas.

“Meu filho, vida de casa alheia não dá certo; vida de cada alheia

desde de manhã até de tarde não presta. (Por que?) Porque, por

exemplo, eu vou pra lá conversar e fico. Quando é amanhã ou depois

sai uma fuxicada é aí o povo há de dizer: ‘ela só vivia na casa das

moças, é pra isso’. É falando má. E por essa causa não presta. Pra

vocês verem as senhoras chegar, mas a senhora me vê de casa em

casa? Duvido! Quando a senhora me vê na casa de qualquer um dele,

pode dizer: ‘ela tá vindo com a precisão dela’. Se não ser eu não vou.

Eu tenho meu serviço em casa pra fazer, por isso eu não tenho nada

de ir em cada alheia.”

Não raro após uma visita prolongada é comum se ouvir: “Vamos

embora pra nossa casa. A gente já está abusando em casa alheia”.

Assim ao tratarmos do parentesco e procurando ao mesmo tempo

realçar a ideologia que o informa, dependendo dos contextos onde esta solidariedade se

formula, mostramos três níveis:

o do povoado

o da parentela

o da unidade doméstica

Não haveria, porém, um outro código que uniria pessoas entre si,

ocasionando igualmente obrigações mútuas entre indivíduos?

É o que nos dirá o compadrio.

4.3 COMPADRIO

Qual seria o melhor modo de descrever esta instituição, procurando

atingir o mais profundamente possível a ideologia que estava por detrás das

informações?

Isto porque se olharmos superficialmente de fora, e tomarmos como

ponto de partida apenas a terminologia, derraparemos com uma multiplicidade de

compadres e padrinhos, podendo formar, enganosamente, uma opinião fragmentária

dessa instituição. O que estaria ligando, basicamente, as diversas nominações de

compadres e padrinhos:

70

de batismo = “de alma”

de consagração (crisma)

de fogueira

de encruzamento (cerimônia de iniciação do pajé em suas

funções)

de simples tratamento ou apelação?

Padrinhos que podem ser tantos seres humanos, como sobre-humanos

(santos ou caboclos)?

Tratar-se-ia de coisas desconexas ou estariam relacionadas entre si?

Falariam de relações diferentes ou, segundo nosso ver, estariam enfaticamente

atualizando, por um processo seletivo, aspectos diferentes contidos num único

paradigma?

Fazendo-nos todas essas perguntas estaríamos escolhendo um

caminho teórico para análise desta instituição. Tradicionalmente nos estudos

antropológicos o compadrio tem sido analisado a partir de um desdobramento de duas

relações nele contidas: a relação compadre-comadre (= horizontal) e a relação padrinho-

afilhado (= vertical). Não queremos dizer que, adotando um outro caminho, essa

posição deixe de extrair resultados positivos. Porém, segundo nosso ponto de vista,

estaríamos mais preocupados em detectar as dimensões estruturais, que poderiam dizer

respeito tanto a uma como a outra relação. De outro lado, esta opção teórica parece ser

aquela que melhor daria conta do modelo local, permitindo a referia visão integrada das

múltiplas formas a partir de um paradigma.

Qual seria, portanto, este paradigma?

Os próprios informantes ao responderem à pergunta “quais são os seus

compadres?”, estariam nos dando as pistas,

De fato, ao se referirem a eles nomeiam por um processo seletivo

prioritário e eloquente, somente aqueles que lhes estão ligados pelo batismo.

Presenciamos, então, um fenômeno de polissemia, isto é, o termo compadre, “tout

court”, seria empregado para indicar “compadre de alma” (terminologia referencial que

revelaria toda uma classificação de “compadres de ...”). O que quer dizer: os outros

tipos apareceriam sob solicitação, após ter sido esgotada a lista acima.

É importante, assim, analisar pormenorizadamente este modelo,

paradigma de compadrio em suas diferentes dimensões, e fazer, no momento oportuno,

ligações com suas outras formas.

4.3.1 – Batismo e Dimensão de Socialização

O batismo no ponto de vista da população não se coloca como uma

opção, “uma conversão”, mas como uma necessidade cultural:

“Ficamos no mundo para ser batizados.”

71

Expliquemo-nos melhor: cada sociedade representa-se o homem

segundo critérios específicos que a caracterizam. Antropologicamente falando: o

conceito “humanidade” seria uma abstração. Haveria, sim, vários modos humanos de

ser.

Um exemplo simples: um índio de uma determinada tribo poderia

legitimamente, segundo seu próprio código, duvidar do caráter humano de um branco ao

vê-lo dormindo horizontalmente sobre uma superfície plana, a cama. Isto é próprio do

animal. O homem mesmo, segundo suas categorias, dorme na rede, destacado no chão.

Deste modo, o batismo, no caso da sociedade estudada, é um

componente básico uma exigência que decorre da representação do homem enquanto

ser social, carcando uma descontinuidade com o mundo da natureza, o mundo não

humano.

“O não batizado eu não sei bem o que é. É assim dizer como meio

animal, o corpo fica à toa. É uma pessoa avulsa que não pode falar

direitinho”.

O batismo gera, portanto, o ser social ou em outras palavras, o cristão.

No entanto, para o código local a categoria cristão não apresentaria nenhuma conotação

religiosa “confessional”, no sentido de opor cristão a outras religiões não cristãs. Tal

oposição surge num outro contexto e vem expresso no discurso pelo par de oposição

“católico x crente”.

O mesmo raciocínio se aplica ao termo “pagão”, um “animal

qualquer”, um não cristão, em suma, um não “gente”.

É dentro desta ideologia que podemos aprender a primeira dimensão

do compadrio, sua função na estrutura social. O “compadre-padrinho” se apresenta

como elemento importante na colocação ou recolocação do indivíduo para dentro do

domínio do social. Tendo em vista que a totalidade do ser humano nunca é dada de uma

só vez, mas que cada pedaço seu lhe é conferido por pessoas diferentes e determinadas,

poderemos compreender melhor o alcance da citação seguinte, onde os pais, doadores

do ser físico, se referiam ao caso de uma de suas filhas ainda criança:

“Ficou sem padrinho desde pequena, sozinha no mundo. Eu lhe disse:

‘tu és desinfeliz, minha filha, sem padrinho’. O dela morreu. Por isso

ela chama um outro de padrinho”.

O caráter não social da criança ainda pagã, bem como o papel social

ocupado pelo padrinho, se revelam ainda num outro contexto. Até que ela seja batizada

tudo aquilo que se compra para vir a ser de propriedade sua, como é costume, uma

franga, ou um porquinho tem de ser colocado em nome do padrinho ou da madrinha.

Observemos bem: a aquisição do bem não é feita em nome dos pais, mas daqueles que,

estruturalmente simbolizam a sociedade. Esta regra nos falaria de uma única verdade

que poder ser vista a partir de dois ângulos:

72

de um lado aquele que não é “gente” não pode possuir

nominalmente um bem; e

de outro lado só é “gente” o indivíduo plenamente

socializado, aquele que possui qualquer coisa como seu, o que revela

o caráter socializante também do bem privado.

Por isto, a infração desta regra merece uma sanção.

Toda compra realizada diretamente em nome de “um pagão” torna o

indivíduo endereçado “panema”, bem como aquele que comercializou o bem. Eles “não

prosperam”: tudo o que lhes pertence é “desencaminhado”.

Portanto a mediação para o social quer seja tomado no sentido estrito

(isto é, de descontinuidade entre natureza e cultura) ou no sentido mais abrangente (o

“mundo de fora”) não é feita pelos pais mas pelo padrinhos. Eis a chave de

entendimento para podermos compreender a razão da:

1º) escolha de um “Santo” como padrinho

2º) substituição dos laços de parentesco pelos laços de compadrio

quando a escolha recai sobre um indivíduo já parente

3º) dos critérios seletivos que determinam, entre vários possíveis, a

escolha de um para padrinho.

4.3.1.1 – O “Santo”: Modelo de Perfeição Social

O “santo”, outrora homem que viveu aqui na terra é aquele que

preencheu, cumpriu os requisitos éticos estimados historicamente como os mais altos,

pelo código daquela sociedade “temporal”. Nele e por ele, o conjunto das regras sociais,

tomadas ideologicamente, foram por assim dizer “perfeitas”. Por isto se torna o

protótipo, o modelo daquela sociedade, capaz de ser o “doador” por excelência do nome

do recém-nascido.

Para melhor podermos penetrar nesta realidade, observamos com mais

agudeza o que se passa à nossa volta. O ser engendrado pelo homem, não cai à toa no

mundo, numa espécie de vazio caótico. Seu lugar é preparado, ele é, em linguagem

comum, “esperado” e sempre há um conteúdo social nessa espera: projetos do que

poderá ser e escolha de um nome, porque segundo um de nossos informantes nada pode

existir que não tenha um nome, ou melhor, “tudo que tem um nome existe”.

Em geral, portanto, no caso da sociedade estudada a “criança traz o

nome”, isto quer dizer, seu nome é dado pelo santo do dia.

“Para botar o nome na criança a gente manda mirar na folhinha o

nome do santo. Porque não se põe nome em filho como se põe em

cachorro ou gato. Mando mirar na folhinha aquele que for fica. Não

tiro. Faz mal”.

73

É este pano de fundo que permitirá a escolha também de um santo

como padrinho já que este concentra enfaticamente as funções sociais dentro da

estrutura.

Tendo em vista, além do mais, que os limites do universo social não

se restringem ao mundo visível dos viventes sobre a terra, mas incluem a sociedade

post-mortem, construída de maneira metonímica à sociedade humana, o “santo-

padrinho” será concebido tanto como modelo da primeira como mediador para a

segunda.

Daí podermos concluir: o padrinho além de ser o definidor do social

como tal, é aquele que exerce uma função de dilatador das fronteiras sociais, quer se

trate: a) de um alargamento de uma sociedade menor para uma maior (da doméstica

para o global local ou distante – povoado, vila ou cidade – ou de uma classe para outra)

ou b) de uma presente para uma futura.

4.3.1.2 – Substituição dos Laços de Parentesco pelos Laços de Compadrio em casos de

Reincidência

Há certas zonas dentro da estrutura social que não permitem

ambiguidades. Pessoas, portanto, que já tinham sido classificadas anteriormente dentro

de uma área, não poderão acumular papeis no caso de seres redefinidas numa outra área.

O que acontece geralmente nesses casos será a adoção do último papel que substituirá o

primeiro.

Tal regra aparece no código local quando a escolha do compadre-

padrinho recai sobre um indivíduo parente. A infração desta regra vem expressão num

mito:

“Agora se acaso a senhora é minha tia e vai ser madrinha da minha

filha. Agora tem que largar de chamar tia. Tenho que chamar de

comadre, senão o Malvado (= Satanás) é que chamará comadre”.

Indiretamente esta regra estaria nos orientando a distinguir as áreas do

parentesco e a do compadrio como duas coisas distintas, o que temos tentado fazer

desde o princípio, tratando-os como duas instituições e procurando explicitar-lhes o

conteúdo específico.

A função primordial, portanto, do padrinho como colocador ou

recolocador do sujeito no domínio social não se esgota de uma vez por todas mas se

torna atuante em outros momentos da vida dos indivíduos em que a ameaça de confusão

dos planos “natureza-sociedade” ou “sociedade-sobrenatureza” se apresenta.

Como exemplo do primeiro caso (confusão entre natureza e

sociedade) tomamos dois mitos da cultura local a título de ilustração: o da “curacanga”

e o do “lobisomem”.

74

Narraremos primeiramente, segundo a versão e linguagem própria dos

moradores, explicando aqui e ali alguns termos de difícil compreensão, para depois

tirarmos conclusões concernentes ao tema analisado.

Curacanga: (a regra). “Por acaso eu tenho agora sete filhas, a última

vira curacanga (= um fogo que passeia e destrói). Mas se tiver um homem no meio

quebra. Mas tem um jeito: se eu não quiser que ela vire curacanga, agora minha filha

primeirinha vai ser a madrinha da outra, da DERRADEIRA QUE É PARA

QUEBRAR A SINA DELA.

(Um caso concreto) Toda a sexta-feira ela caía doente, muito mofina (= cansada,

desanimada), dor na cabeça e o homem foi prestando reparo, prestando reparo. Foi

um compadre dele e disse: olha, preste reparo pra ver se ela não sai. Aí ele foi

prestar reparo. Aí ela anoiteceu gemendo, dor na cabeça, muito mofina; aí ele com

aquele sentido nele, não dormiu. Aí, sem demora ele fez que estava dormindo,

ressonou. Aí, foi quando ele viu ela se remexendo, remexendo, aí buliu na porta. Aí,

ele deixou sair. Aí, depois de muito ele deu luz dentro de casa e viu: tava só o corpo

dentro da rede. Aí, o que ele fez? Emborcou (=colocou de bruços) o corpo. Quando

foi umas tantas da noite, depois que o galo cantou ela veio e garrou (= se prendeu) já

a frente nas costas (= o copo estava virado). Senhora, diz que todo o povo veio vê

ela doente. Estava doente, doente. Quando foi na outra sexta-feira foi que ela tornou

sair, a cabeça tornou a sair. Aí, ele emborcou o corpo dela outra vez.

Aí o compadre dele disse: agora o senhor já se capacitou. Agora quando sê sexta-

feira de noite outra vez, agora é pro senhor pelejar pra vê se o senhor quebra a sina.

Porque é só se esconder quando vem aquele fogo faiscando a pessoa se esconde que

é pra ver se queima o freguês. Quando foi passando, ele botou lá, ferrou ela, a

cabeça. Mas ainda deu conta de vir em casa. Garrou... mas saiu sangue quebrou a

sina. Feriu, mas só mesmo pra quebrar a sina. Se não ela não dava conta de voltar.

Aí a cabeça ficava e o corpo sem cabeça morria. E ela ficou boa”.

Lobisomem (é a versão masculina do mito anterior, com

algumas variáveis)

“Quando os pais tem sete filhos que sê homem tem que sair um, vai

ser lobisomem. É mesmo que a curacanga. Agora se esse primeiro não for padrinho

desse derradeiro, ele vira lobisomem. Agora, se sexta-feira ele pega a gemer, vai

gemendo e sai pra fora e tira a roupa e pega a rolar. Agora ele vai rolando, vai se

rolando e batendo boca e vira naquele porco. E aí sai aquele marajé e osso velho.

Tudo ele rói e bate boca. Assim é que é. E de madrugada, nas primeiras cantadas do

galo, é quando ele volta, ele chega e pega a rolar de novo. Pra sair ele se rola na

frente. Quando ele vem se rola de novo no terreiro, que é pra ele poder virar cristão.

Pra poder ser gente de novo”.

Não podendo tomar o mito em si mesmo como objeto de análise

devido à limitação já estabelecida pelo próprio tem em pauta, retiremos dele apenas os

elementos que nos interessam.

a) O fato de ter sete filhos (número que fala por si mesmo,

considerado como limite e cujo transbordamento exprimiria

“impossibilidade” ou “mentira”) seguidos, do mesmo sexo, é tido

75

como uma exceção tão estranha que o fato beira à anormalidade, à

desordem. Não cabe mais dentro das fronteiras sociais conhecidas.

b) A anomalia se estabelece no plano fisiológico e expressa uma

ambiguidade entre natureza e sociedade. O último da cadeia de

sete já está numa situação tão limítrofe que tende, “tem a sina”, de

se transformar em fogo ou animal.

c) Mas a estrutura do próprio mito provê um elemento reordenador

em duas instâncias:

“preventivamente”, o primeiro da cadeia de sete torna-se o padrinho ou

a madrinha do derradeiro;

“curativamente”, o compadre, pessoa de fora da estrutura familiar

(aquele que não dorme com a pessoa e que poderá desvendar o mistério)

torna-se o conselheiro, o condutor das estratégias no intuito de “quebrar

a sina”, isto é, de estabelecer a pessoa definitivamente dentro do reino

social, como cristão = gente.

Como exemplo do segundo caso (confusão entre sociedade e

sobrenatureza), tomaremos a cerimônia de iniciação do pajé em suas funções: o

encruzamento. Se bem que no todo da pesquisa, a pajelança esteja projetada como um

capítulo à parte, alguns elementos devem ser adiantados agora para que se compreenda

a colocação.

a) O futuro pajé, o verdadeiro, aquele que possui a sina da nascença, no

período que precede à iniciação que o coloca oficialmente no exercício, passa por

provações contínuas.

b) É um sujeito atacado “de doenças” que o deixam prostrado, que não o

permitem trabalhar, enfim, de ser como os outros.

c) A causa destas provações é diagnosticada como obra de entidades

sobrenaturais, dos encantados (mães d’água, caboclos), que habitam nele, como

seus familiares (em termos locais, “a gente dele”) e que o apavoram até ele se

entregar ao serviço.

d) O que provoca este estado de “doenças” intermitentes é que “a gente

dele” não é ainda conhecida pelo indivíduo. Em outras palavras: os encantados o

manipulam porque seu corpo não está firmado. O perigo é tanto que o indivíduo

pode até “sumir”, ser levado por eles, tornar-se encantado.

e) É preciso que seja encruzado. No encruzamento, as últimas “contas”

serão introduzidas em seu corpo para que se torne resistente, firmado, não mais

exclusivamente manipulado, mas podendo ele mesmo manipular essas entidades

para a cura de outros.

76

f) A cerimônia de encruzamento tem como modelo o batismo, não só no

aspecto formal (os banhos de purificação, “de luz”, e adoção de padrinhos, a vela,

a oração em cima da cabeça) mas no seu significado mais profundo.

A clientela da pajelança a descreve: “é bem, como um batismo; não falta

nada, tem até água benta”.

O encruzamento vai ser como batismo um divisor de águas, um

ordenador permitindo a localização do indivíduo no social (ameaçado de se

encantar, marginalizado das atividades comuns de seu grupo, por causa das

“doenças” constantes). O afastamento da confusão advém sobretudo do

conhecimento das entidades. Agora, ele sabe quem são elas pelo “seu nome”

(lembrar-se do valor ordenador do nome, seu conteúdo social).

Até o instante do encruzamento, o “nome” de seu “familiar principal”, de

seu “companheiro do fundo” é um segredo, desconhecido. Ele se revela no clímax

da cerimônia. A apreensão do nome do “chefe da gente dele”, configura, define,

ordena sua “nova identidade social”. Agora ele é plenamente pajé.

Assim esperamos ter explorado, em seus aspectos principais, a

primeira dimensão estrutural do compadrio e podermos atacar a segunda.

4.3.2 – Compadrio: Um Contrato Bilateral

1º) Os compadres devem ajudar-se mutuamente

2º) Os compadres não podem se atacar ou dissolidarizar-se. Há nesse

sentido uma ideologia, um modelo de comportamento que norteia a relação. Espera-se

que um defenda o outro em casos de litígio. Para tanto a relação é bem ritualizada,

evitando-se familiaridades que com o correr do tempo viriam a minar a noção do

respeito mútuo. Daí o compadre ser sempre um conselheiro (o que diz respeito também

ao santo-padrinho, guia e protetor).

“Compadre é melhor ter fora do povoado porque assim é difícil a

gente bater boca. Chegou perto dele tem que abaixar a bandeira, tem

que ouvir”.

3º) os compadres permanecem compadres mesmo com a morte

prematura do vínculo, isto é, o laço horizontal permanece mesmo com o

desaparecimento do laço vertical mediador.

4º) A permanência do laço horizontal é realçada sobretudo quando há

convergência de fidelidades, de obediência em que o vínculo “teria de selecionar”. A

decisão é orientada por causa da força do laço horizontal entre compadres.

“Os compadres merecem a mesma consideração que os pais. É

respeito porque reza na cabeça do filho na hora do batismo. A

consideração para com os compadres é maior que a para com os

irmãos. Se um afilhado tem que ajudar pai e padrinho na mesma

77

hora, o pai logo dirá à criança de ajudar o compadre. A criança não

terá de escolher entre os dois, pois logo o pai resolve que a criança

deve ajudar o compadre”.

A ênfase, portanto, no contrato bilateral, na relação horizontal,

explicaria a existência de formas de compadrio que prescindem de um vínculo

mediador, desde que se deseje privilegiar uma amizade, de pacto:

a) O compadrio de fogueira: se bem que o termo usado

seja “padrinho”, “madrinha”, as pessoas nele

envolvidas são que se escolhem mutualmente,

podendo se dar inclusive entre crianças.

b) O compadrio de simples apelação: há muitas pessoas

que passam a se tratar de compadres sem que haja um

laço ritual formal que o sustente, com o desejo, porém,

de explicitar uma amizade forte.

Aliás, se estivermos atentos para entender o jogo

malicioso que está por detrás de situações banais em

que os próprios envolvidos não se dão conta,

podermos compreender o caráter aliciante do

tratamento “compadre” (em outros códigos

correspondendo a “chefe”) instrumentalizado em

situações de negócio ou de serviços.

4.3.3 – “Credo” e Compadrio

Aqui entraremos no âmago do ritual do batismo como é vivido pelos

moradores.

O fato específico, o momento crucial que faz de um sujeito padrinho-

compadre é a recitação da oração “Creio em Deus Pai...”. Funciona como um poder

mágico, constitutivo da reação. Por isso os pais que porventura estiverem no recinto do

cerimonial recuam neste momento. O ato de “firmar” (= segurar) a criança e pronunciar

a oração jamais poderia ser realizado por eles, do contrário se tornariam “compadres” o

que lhes vedaria o intercurso sexual sob pena de cometerem incesto.

Mesmo no caso de perigo eminente de morte não poderão ser os

celebrantes do “batismo em casa”. Têm de procurar rapidamente, alguém de fora que

saiba dizer a oração, função que recai muitas vezes no “rezador local”, possuidor de

muitos afilhados.

De outro lado, o código local classifica as “entidades espirituais”, os

“espíritos” a partir de uma conjugação de dois modelos herdados que chegam a formar

78

sistema. O modelo que nos interessa no momento é o adotado através do catolicismo

tradicional onde duas forças antagônicas principais estariam em luta: Deus, sempre bom

x Diabo, sempre maléfico. Haveria em seguida as entidades que fariam parte de um ou

de outro lado: os santos da primeira, os espíritos vagantes da segunda.

Por isso, mesmo no contexto da pajelança, quando se quer afastar um

“vagante” por meio do poder de um “caboclo”, entidade do outro modelo, aquela

entidade terá de lançar mão de recursos exorcizantes do primeiro modelo: água benta e

orações do repertório católico.

Compreende-se pois, (e eis o ponto em que queríamos chegar) que se

um “caboclo”, “atuando” num pajé, rezar para afastar um “vagante” o “creio em Deus

Pai”, ele se torna padrinho do cliente atingido pelo mal, e compadre de sua mãe.

Por isto, uma das informantes, trata o “caboclo Bernardo”, que rezou

sobre seu filho, de compadre.

Cremos ter cumprido, com esta última dimensão, o que havíamos

proposto de início: tratar das diferentes formas de compadrio a partir de um paradigma,

procurando descobrir os aspectos estruturais, responsáveis de sua interligação. Se de um

lado, o modelo paradigmático continua a todos de maneira embrionária, de outro lado os

diversos tipos de compadre que atualizavam enfaticamente este ou aquele aspecto nos

explicitam o próprio modelo.

Antes, porém, de concluir a análise desta instituição temos que

explorar o item 3 da letra A, apenas enunciado naquela ocasião o qual se referia aos

critérios de escolha de compadres.

Tais critérios estão colocados ao que se espera dos compadres, de

modo que revelarão, ao mesmo tempo, suas obrigações.

Dentre os vários possíveis quem poderá vir a ser o compadre?

Para facilitar a descoberta do caminho das decisões apontaremos

primeiramente, aqueles que são excluídos de antemão, por razões incompatíveis:

Os próprios pais, por causa da implicação do incesto;

A mãe de leite, pelo mesmo motivo acima;

O pajé, por interferência da ideologia missionaria cujo efeito

repressivo perdura até hoje. Quer dizer, esta exclusão não parte

como as anteriores e com a mesma força do código local.

Apresenta-se como uma necessidade diante da qual os

indivíduos têm de se curvar. Não é viável porque não é do

“agrado dos padres”.

Fora isso, o compadre pode ser escolhido dentro da área “da

amizade”, “do conhecimento” ou seja: dentro ou fora do parentesco, dentro ou fora do

povoado. Ideologicamente a amplitude desta área vem expressa no nível do discurso:

(por que você o escolheu para padrinho?)

“Ah! Nós se agradamos, se simpatizamos”.

79

Por isso dentro do parentesco se “leva” um irmão, um tio, um primo

para compadre, a fim de ratificar uma solidariedade já existente. No entanto, o parente

que se torna compadre deixa de ser, como já vimos, parente, para ser antes de tudo

compadre.

Fora do parentesco o motivo ideológico apresentado é que o “parente”

já é amigo e “compadre é um meio para a gente poder caçar mais amizade”.

O que estaria determinado por detrás da expressão “caçar amizades?”

porque a seleção não parece ser assim tão indiscriminada na práxis.

Ela possui uma tendência que cobriria os seguintes traços:

pessoas de fora do povoado (alargamento do mundo social)

pessoas de um melhor nível econômico (esperança de ajuda)

pessoas chaves dentro da rede de negócios (sucesso na

profissão). O compadre tente a ser sempre “uma pessoa assim

melhorzinha”.

Porque:

“O compadre me vale. Dá pra comprar fiado. É como um guarda-

chuva. Apara tudo quando vou a Bequimão e não tenho dinheiro,

graças a Deus nunca voltei para casa com a sacola vazia. É pra vale

a situação da gente. Se fosse por boniteza a gente escolhia qualquer

um”.

Por isso se evita a escolha de pessoas muito idosas. Aliás, elas

mesmas recusam por não se verem mais em condições de cumprir cm as obrigações que

a ideologia lhes atribui. Vejamos como o mito local retrata o compadre como aquele

que provê:

“Fora de Barroso eu não tenho afilhados porque estou velha. Não

tenho o que dar. Não tenho um agrado. Não posso trabalhar. Só

para dizer que tenho afilhados? (quer dizer que a madrinha tem

sempre que ajudar?) é. Vou lhe contar. Uma madrinha que era má

em quantidade. Nunca deu nada para o afilhado. Quando morreu

chegou no ceu, ela batei palma. São Pedro veio: – O que é que tu

quer? – Quero a salvação. – Vai aonde Deus. Deus perguntou: o

que tu fizeste? Ela disse: Nada. – Tu não fizeste caridade nenhuma?

– Não. – Para afilhado também não? (A informante faz um

parêntese na narrativa e explica) Agora por acaso o afilhado morre

e vai pro céu. Mais tarde eu morro, mas nunca dei nada. Se eu não

der ele não me puxa pro céu. E seu eu der ele me puxa naquele

objeto. (continuação da narrativa) Ela respondeu: eu dei sim, duas

folhas de cebola. Deus chamou o afilhado. – Bota essas duas folhas

de cebola que é pra você chamar sua madrinha. Aí ele botou. Aí a

folha foi arrebentando, até o derradeiro toquinho. Não subiu pro

mode safadeza dela. Proveniente da malinidade dela ela não foi pro

céu”.

80

Ligando o conteúdo deste mito ao que dissemos anteriormente sobre a

dimensão da socialização do compadrio, veremos de um lado como a escolha do

compadre se identifica com o que se espera do compadre; de outro lado, o estudo das

novas escolhas permitiria identificar quais os valores almejados para a socialização do

indivíduo. O compadre seria, pois, um lugar, uma categoria privilegiada para a análise

dos valores de uma dada sociedade, quer sejam eles tradicionais quer esteja em

mudança. No caso da sociedade estudada que vive imprensada entre dois códigos não é

de se espantar que estes valores estejam embaralhados.

4.4 – INCESTO

Vendo incluída a análise do parentesco e do compadrio, podermos

falar agora da noção de incesto. Adiamos propositalmente. Restringi-lo à concepção de

consanguinidade parecia-nos falso. Do contrário como explicar que incluí também

indivíduos ligados pelos laços do compadrio?

Qual é portanto a relação específica que define o incesto chegando a

englobar pessoas determinadas das duas instituições? De fato, o próprio código fornece

um nome para esta relação. Vem encoberta no nível do discurso pela palavra “respeito”.

“Respeitar” uma pessoa equivaleria dizer: não posso namorá-la ou estabelecer qualquer

tipo de relação que tivesse como ancoragem última o intercurso sexual. assim, todas as

relações que recebem este rótulo são aquelas que, se inferidas serão consideradas como

incestuosas. Na busca dessas relações há que se analisar um outro termo do código

local. A palavra incesto não consta no vocabulário dos moradores. Empregam antes a

categoria “pecado” quando a ele estão se referindo. O incesto é o pecado por excelência.

A descoberta desse lexema nos revelaria, igualmente uma gradação do incesto bem

como nos daria as posições que não podem se combinar como afins. Tais regras viriam

melhor explicitadas num mito:

“Contam que um homem casado morreu. Mas todas as noites ele

vinha ‘como vivo’ conversar com a mulher. Esta ficava amedrontada,

pois quem não tem medo de um morto que volta, que não fica

sossegado no lugar dele? Todas as noites era a mesma coisa. Então a

mulher foi se aconselhar com o padre. O que deveria fazer?

Este sugeriu que ela contasse estórias terríveis para ver se o espírito do

defunto se afastava.

Ela foi. Quando o marido apareceu ela lhe disse que durante o dia

tinha ido a um casamento de um irmão com uma irmã. Nada! Na noite

seguinte ele tornou a voltar. Ela saiu com uma pior: naquela dia tinha

assistido a um casamento de um pai com uma filha. O defunto tornou

a voltar. Então ela contou: hoje eu fui a um casamento de um

compadre com uma comadre. O finado se assustou e exclamou: ‘cruz

credo’. Afastou-se dela para sempre dizendo: ‘então até o dia do

juízo’.”.

81

Assim, as posições conflitantes seriam:

– entre irmãos

– entre pais e filhos

– entre compadres

Aliás, o incesto no âmbito do compadrio não se daria somente entre

um compadre e uma comadre. A regra é mais abrangente: duas pessoas que possuem o

mesmo padrinho não podem, igualmente, ter relações sexuais.

Há quem estenda essas proibições aos primos por serem considerados

uma só irmandade:

“Senhor... (fulano) era muito ordinário mas nunca buliu com uma

prima. Tinha pra ele como irmã”.

Mas o casamento entre primos ainda que tidos como irmandade, não

vem conotado do sentimento de “pecado”. Não é uma coisa assim muito boa para o

sangue. Diz que as crianças nascem “fraquinhas”, “doentes”. Não pode, portanto, ser

equiparado aos demais casos citados.

O “pecado” mais terrível no entanto (daí a gradação) seria o cometido

pelos compadres entre si. Uma variante do mito anterior revela sua gravidade: o morto

desta vez não vinha para assustar a mulher, mas para contar sobre o céu e a largueza da

misericórdia de Deus. Sua bondade era tão grande que perdoava mesmo as relações

incestuosas entre pais e filhos, ou irmãos. Mas face ao “pecado” entre compadres não

havia perdão que apagasse a culpa.

Por isto, se o pesquisador insistir junto ao informante no desejo que

ele lhe aponte um caso concreto, tal fato “ideologicamente nunca poderá existir”. Não

consta do repertório de estórias.

De fato, porém, um missionário narrou-me uma ocorrência. Disse-me

ele que eram os amigos do “casal de compadres” que vinham contar e solicitar o perdão.

O casal não podia ele próprio, expor a sua culpa. A vergonha era extrema.

Portanto, em vez de julgar o acontecido como uma incongruência ou

uma “insinceridade” no comportamento do caboclo (como queriam alguns) veria antes o

fato do amarrado por uma lógica surpreendente: para o “pecado” que não tem perdão,

existe o “pecado que não tem confissão”.

4.5 – CONCLUSÃO

Eis em seus traços principais como se organiza socialmente a

comunidade de Barroso.

Todo o nosso cuidado constitui no levantamento de regras que

traduzem o código local: como se recrutam, o grau de fidelidade, de solidariedade, de

ajuda; os direitos e deveres; as sanções.

82

Regras enfim que configuram aquela sociedade no que tem de mais

básico. Por isso não é de se esperar que no caso de introdução de novas instituições, elas

não sejam abandonadas mas, ao contrário ordinariamente utilizadas. Portanto se se

quiser avaliar o grau de penetração ou de conflito que poderia causar a superposição de

um novo código ao já existente, é preciso descobrir: a) em que medida as novas regras

se incompatibilizam com as tradicionais? B) em que medida as novas instituições não

reproduzem, apesar de uma casca aparente de “modernidade”, os mecanismos já

operantes naquela sociedade?

Isto, porém, será objeto de estudo de um capítulo à parte. Por ora

gostaríamos apenas de introduzir uma linga citação que pudesse realçar a relevância do

parentesco e do compadrio como canais institucionais poderosos para o recrutamento de

membros em vista da formação de “novas” comunidades, segundo a ideologia

missionária.

“Quando começou a Legião de Maria lá em F... eu estava com 14

anos. Terminou, não foi assim uma coisa bem organizada. Passado

um ano, chega outro padre. Então ele organizou, queria fundar uma

legião. Compadre Z.P. saiu convidando. Quando o padre falou com

ele ‘Rapaz, vamos fundar uma legião aqui e tal, será que tu não ajeita

um pessoal?’ Ele se alembrou: ó meu Deus, onde eu vou achar? Ele

pensou, pensou, convidou O... O, um compadre dele que atualmente é

meu compadre também. Convidou S e M, irmã dele. Aí ele se

alembrou: eu vou convidar compadre M. M é meu pai. ‘Eu vou pra

ele me ajeitá dois menino dele pra entrá na legião com a gente’. E eu

estava com 15 anos. Isso foi com o prazo de um ano. Ele foi e chegou:

‘compadre M. eu estou vindo aqui não é para lhe visitar. Aliás é uma

visita diferente da que nós somos acostumado. Eu quero pra você me

ajeitá os seus filhos J e J pra entrá na legião comigo’. Então ele

deixou entrar. Quando foi no próximo domingo em diante, nós

começamos a frequentar a legião, assim auxiliar né, provisoriamente,

não era uma coisa efetiva”.

83

5 – COLONIZAÇÃO E RESISTÊNCIA CULTURAL

Laís Mourão Sá

– Antropóloga –

1974

5.1 – INTRODUÇÃO

5.2 – IDEOLOGIA E PRÁTICA MISSIONÁRIA

5.2.1 – As Origens Sociológicas da Missão

5.2.2 – Os Princípios Ideológicos da Missão

5.2.2.1 – A Noção de Universalidade do Cristianismo

5.2.2.2 – A Missão como Implantação da Igreja

5.3 – A CULTURA CAMPONESA E AS NOVAS INSTITUIÇÕES DA MISSÃO

5.3.1 – A Instituição do Catequista

5.3.1.1 – O Catequista na Ideologia Missionária

5.3.1.2 – O Catequista e a Tradução da Mensagem Missionária

5.3.1.3 – O Catequista como Categoria da Cultura Local

5.3.2 – Modelos Genéricos da Apreensão das Novas Instituições

5.3.2.1 – O nível do Povoado como uma Unidade Afetiva

5.3.2.2 – O nível das Separações internas entre dois Grupos Distintos

5.3.2.3 – O nível da Divisão de Áreas Internas do Domínio Religioso

5.3.2.4 – Bumba-Boi: A Formulação da Autonomia Ideológica

5.3.3 – O Batismo e a Missa

5.3.3.1 – Seu Significado na Cultura Camponesa

5.3.3.2 – As Inovações da Missão e suas Consequências na Vida Social Local

5.3.4 – A Legião

5.3.4.1 – Os Objetivos Missionários

5.3.4.2 – A Questão do Aprendizado das Rezas

5.3.4.3 – As Interpretações da Legião na Ideologia Camponesa

5.3.5 – A Roça Comunitária

5.3.5.1 – A Missão e o Desenvolvimento Econômico

5.3.5.2 – A Representação da Prática Econômica Camponesa e a Roça Comunitária

5.3.5.3 – A Racionalidade da Economia Camponesa

5.3.5.4 – A Introdução da Roça Comunitária

5.4 – BIBLIOGRAFIA

5.5 – ANEXO: BRINCADEIRA DE BUMBA-MEU-BOI DO GAMA (Maranhão,

1972).

84

Este trabalho destaca: as mediações institucionais que

operam a reprodução das relações de dominação da

sociedade global sobre os povoados interioranos. Ora é a

Igreja a principal medianeira entre a sociedade local e a

sociedade nacional, com muita continuidade desde os

primeiros dias da Colônia até agora. No presente como no

passado, ela atua como sistema pedagógico dominante,

detendo em grande parte o monopólio da violência

simbólica legítima, inculcando modelos. Este trabalho

discute a natureza dos novos modelos de ação social que a

Igreja tenta impor à população local e as consequências de

seu impacto do ponto de vista desta sociedade. Trata-se,

assim, de analisar o encontro entre dois sistemas distintos,

o da cultura local e o do missionário.

“Je n’ai jamais à réduire L’Autre à um homme abstrait ou

à um frère dans l’au-delà. C’est aujourd’hui dans

l’historique concret que j’ai à l’affronter dans son altérité,

autrement je le manque totalement”.

Laënnec Hurbon

Dieu dans le Vaudou haitien (p.37)

85

5.1 – INTRODUÇÃO

Este artigo se baseia em trabalho de campo realizado por uma equipe

de 5 antropólogos em 1972, na região da Baixada Maranhense, com o objetivo de

recolher dados sobre a vida social do caboclo nos povoados rurais. As informações

resultantes cobrem uma vista amplitude da vida social. Referindo-se tanto à organização

social e à prática econômica, quanto às diversas expressões da ideologia local.

Desta amplitude, selecionamos no momento um objeto específico: as

mediações institucionais que operam a reprodução das relações de dominação da

sociedade global sobre os povoados interioranos. As condições históricas em que estes

se desenvolveram, revelam dados importantes para a colocação inicial em questão.

A região da Baixada Maranhense conheceu um período áureo de

desenvolvimento econômico durante a administração colonial, tendo como grande polo

regional a cidade de Alcântara, sede da nobreza latifundiária colonizadora. A partir de

meados do século XIX, iniciou-se a decadência da região, com a transferência do

comércio, da atividade econômica e social da classe dominante para a sede de São Luís.

Abandonados os engenhos, transferida a aristocracia para a futura capital do Estado,

ficaram os pequenos povoados com população de origem indígena e negra, ex-escravos,

entregues a uma situação de progressivo isolamento, acentuado pela falta de estradas

(que só existem na região a partir de 4 anos) e pelas dificuldade de transporte marítimo

para a capital. Durante quase um século viveram estes núcleos numa aparente

autonomia organizativa, que só veio a ser quebrada a partir da segunda metade do

século XX, com a formação dos atuais municípios. Porém, não chegou a diluir-se o seu

caráter de inserção no sistema mais amplo da sociedade nacional, reafirmando a partir

de então, pela presença do sistema político-administrativo, do controle jurídico e da

repressão policial. São estas, à primeira vista, as instituições que permitem ao caboclo

pensar-se enquanto participante, embora marginalizado, de uma sociedade mais ampla

que pouco conhece.

Por outro lado, há outros tipos de interferências que, atuando mais

diretamente sobre a cultura local, modificam progressivamente sua ideologia a sua

prática social. São estes penetração do rádio, veiculando uma imagem onírica do mundo

da capital, através dos programas de auditório, musicais, etc.; a implantação recente de

grupos escolares nos povoados e do Projeto João de Barro e outros do gênero de

educação formal de adultos; a penetração crescente dos Sindicatos Rurais; e o

reaparecimento da Igreja, através da missão de padres canadenses, que ata na região

desde 195825

.

Do ponto de vista dos habitantes dos povoados, essas modalidades de

presença da cultura dominante impõem certos problemas teóricos (= ideológicos), na

25 A missão ou a Igreja no lugar, a Prelazia de Pinheiro, nos anos 1930, estava muito bem servida pelos

Missionários do Sagrado Coração, advindos da Itália. Chegaram outros da Espanha. Enfim, três dioceses

do Canadá mandaram, também, pessoal para a missão: Nicolet em 1955, St-Hyacinthe em 1956 e

Sherbrooke em 1957 (EPEI-CENPLA).

86

medida em que modificam o modo pelo qual pensavam tradicionalmente as suas

relações com o mundo à sua volta. Interferindo no corpo de representações gerado pela

pratica social semi-isolada dos pequenos povoados, provocam uma série de rearranjos

conceptuais, n na tentativa de explicar as modificações que estão ocorrendo em suas

relações com a sociedade abrangente. Do ponto de vista do pesquisador social, esse

mesmo fenômeno coloca uma ampla questão teórica que remete tanto à imposição de

modelos da parte da cultura dominante, quanto ao desafio de dar conta da dinâmica

própria dos sistemas ideológicos dominados.

Considerando que toda formação social só sobrevive na medida em

que é capaz de reproduzir suas condições de produção social e que, na sociedade de

classes, isto se dá através das repressões normativas e físicas, e da violência simbólica

exercida pelas múltiplas instituições chamadas por Althusser de “aparelhos ideológicos

de Estado” (Althusser, 1970), coloca-se a questão de explicar de que modo essa

premissa teórica se manifesta na realidade imediata de uma sociedade camponesa. Por

outro lado, tendo em vista a pluralidade de mecanismos pelos quais se opera a

reprodução da submissão às regras da ordem dominante, tal tarefa parece exigir uma

delimitação mais rigorosa dentro do próprio objeto em questão.

A definição de tais limites decorreu de uma avalição empírica sobre o

âmbito de penetração das instituições de origem externa no conjunto da vida social dos

povoados, no intuito de determinar as áreas críticas desta intervenção. Nesse sentido, já

no decorrer do trabalho de campo, pudemos constatar que a presença da Igreja,

enquanto instituição sobrevivente às diversas etapas históricas da região e principal

mediadora entre a sociedade local e a nacional, oferecia um bom ponto de partida para a

nossa análise.

Seguindo a tradição colonizadora ocidental, a Igreja Católica chegou à

região no rastro do explorador branco que a constituiu delegada de seus interesses nas

ricas terras e explorar. Alcântara foi a sua sede e núcleo irradiador das cruzadas para

conquista das áreas virgens, onde subjugou índios, implantou fazendas e fundou

povoados, com suas casa paroquiais, capelas e escolas. Para a sede da vida social

aristocrática reservou suas “igrejas suntuosas, procissões pomposas e clérigos

eruditíssimos” (Documentos da Missão, 1971-c), enquanto dividia com a classe

dominante os frutos da terra conquistada. A expulsão das ordens missionárias sob

Pombal, no século XVIII, coincidiu com o início do esvaziamento econômico da região,

e muitas das propriedades eclesiais ficaram com o Estado, algumas revertendo mais

tarde à Igreja. Durante o tempo em que permaneceram na região, foram os missionários

que sustentaram as bases ideológicas das relações sociais necessárias ao bom

desempenho da economia agrícola colonial, tratando de legitimar pela religião as

normas e valores da classe dominante. Através deles, fixou-se o que hoje é chamado de

catolicismo tradicional, com seus rituais da missa, do batismo e as festas aos santos

católicos, até hoje tão profundamente enraizados na cultural local a ponto de terem

sofrido um processo de apropriação e retradução que determinou o seu distanciamento

do sistema de significações da Igreja oficial. Esses rituais passaram a integrar o

conjunto de modelos que regem a organização social dos povoados, operando em

posições chaves do sistema. O longo período d ausência de funcionários religiosos

87

católicos na região, após a expulsão dos missionários, certamente contribuiu para a

cristalização de tais modelos, em detrimento das transformações e adaptações pelas

quais passava a ideologia religiosa oficial.

Em princípios do século XX, chegaram à região os padres italianos,

seguidos, na década de 50, pela missão canadense que hoje controla toda a área da

prelazia de Pinheiro, abrangendo 12 municípios26

. Isto significou uma transformação

importante no que se refere aos vínculos formais da população local com a sociedade

nacional, já que as demais instituições politico-jurídico-administrativas não chegaram a

penetrar profundamente na vida social dos povoados. Norteada pelos princípios

assumidos pela Igreja no Concílio Vaticano II, a missão se instalou na região para levar

a cabo sua tarefa evangelizadora e colaborar na superação do subdesenvolvimento

regional. Com tal objetivo, os missionários espalharam-se pelas sedes municiais e vêm

tentando penetrar na vida dos povoados, tanto através de suas funções já tradicionais

nos rituais da missa e do batismo (embora modificados liturgicamente), como pela

proposição de outros tipos de instituições que pretendem transformar o quadro

socioeconômico da região. Num nível mais global, essas instituições tendem para dois

tipos (documentos da missão 1970, p.26)27

: instituição de educação (Ensino

acadêmico), de formação social (“grupos não acadêmicos que formam a pessoa humana

com a finalidade de promover o desenvolvimento socioeconômico na perspectiva do

bem comum”); embora existam ainda dois tipos, as instituições de pastoral (“toda obra

diretamente eclesial, já apostolado, catequese e liturgia”), e assistência (“atendimento

direto das necessidade de saúde”). Ainda nesse nível, existe um importante centro de

informação, a escola da fé, fundada em 1961 no município de Guimarães, para atender

toda a prelazia, a qual só não se enquadra na categoria “instituição de assistência”,

cobrindo todas as demais.

No outro nível, o das comunidades camponesas propriamente ditas, a

ação da igreja consiste basicamente numa proposição modernizadora, tanto da liturgia,

dos rituais da missa e do batismo, quanto de outros modelos não estritamente religiosos

da cultura local, o que se dá pela introdução da legião de Maria (que além da parte

religiosa, veicula um código moral para as relações sociais) e da roça comunitária.

Existe ainda uma instituição especial, a do catequista, indivíduo da cultura local

recrutado pela igreja para formar-se na escola da fé e representar o missionário na vida

social de cada povoado, através de novas instituições aí introduzidas. O catequista se

torna, assim, o vínculo por excelência entre a comunidade camponesa e a estrutura da

Igreja, veículo de suas mensagens e ponta de lança de suas iniciativas dentro dos

povoados.

26 À missão de Nicolet dirige duas paróquias, a de St-Hyarinthe dirige uma, a de Sherbroole, duas. As seis

outras paróquias assim como a administração da própria Prelazia de Pinheiro estão sob a responsabilidade

de Brasileiros e Italianos (IPEI-CENPLA). Documentos da Missão 1970.

27 Este Documento não é da autoria nem da responsabilidade da Missão e sim, exclusivamente da

CENPLA (IPEI-CENPLA).

88

O objetivo deste trabalho está limitado a partir da atuação exercida

hoje pala Igreja na região. No passado como no presente, ela atua como sistema

pedagógico dominante, detendo em grande parte o monopólio da violência simbólica

legítima. Falamos em sistema pedagógico no sentido amplo de mecanismo de

inculcação de modelos (v. Bourdieu 1970)28

. Encarregando-se dessa tarefa, a Igreja

também acumula funções que na sociedade nacional se encontram especializadas em

outras instituições; mesmo as novas instituições introduzidas mais recentemente na

região, como os sindicatos rurais, as escolas e projetos de educação de adultos sofrem à

inevitável interferência da Igreja, na medida em que se articulam dentro do mesmo

espaço ideológico que ela ocupa.

Pretendemos discutir a natureza dos novos modelos de ação social que

a Igreja tenta impor à população local e as consequências de seu impacto do ponto de

vista desta sociedade. Esse impacto aciona necessariamente os mecanismos integradores

existentes na cultura local que, diante de um confronto entram num processo de

rearticulação. As áreas da vida social em que isso ocorre são, basicamente, as regras de

compadrio, as regras de aliança, as áreas de poder dos funcionários religiosos, as

relações de produção e os modelos de cooperação e solidariedade.

Trata-se, assim, de analisar o encontro entre dois sistemas distintos, o

da cultura local e o do missionário. Quanto ao primeiro, já está separadamente analisado

em dois trabalhos que integram esta pesquisa (v. Prado, R., pp. 25-87) quais nos

referiremos no decorrer do texto. A Parte I que segue tratará da delimitação das origens

sociais da missão e dos princípios básicos de sua ideologia.

5.2 – IDEOLOGIA E PRÁTICA MISSIONÁRIAS

5.2.1 – As origens Sociológicas da Missão

Para se compreender os processos sociais que sustentam a ideologia e

prática missionária é preciso primeiro apontar as diferenças que separam dois momentos

históricos distintos em que ela se desenvolveu. De início, ela cumpriu o papel de

legitimadora da empresa colonial, na primeira fase de expansão capitalista da sociedade

ocidental, formulando uma ideologia religiosa hoje considerada tradicional e

ultrapassada pela própria Igreja. Em seguida, diante da sociedade industrial capitalista e

28 “Toute action pédagogique (AP) est objectivement une violence symbolique en tant qu’imposition, par

um pouvir arbitraire, d’um arbitraire cultural” (p.19)

“L’AP est objectivement une violence symbolique, em um premier sens, em tant que les rapports de force entre les groupes ou les classes constituifs d’une formation sociale sont au fondement du pouvoir

arbitraire qui est la condition de l’instautation d’um rapport de communication pédagogique, i...e., de

l’imposition et de l’inculcation d’um arbitraire cultural selon um mode arbitraire d’imposition et

d’inculcation (éducation)” (p.20.)

“L’AP est objectivement une violence symbolique, en un second sens, en tant que la delimitation

objectivemente impliquée dans le fait d’imposer et d’inculquer cetaines significations, traitées, par la

selection et l’exclusion qui en est correlative, comme dignes d’être reproduites par un AP, re-produit (au

double sens du terme) la sélection arbitraire qu’um groupe ou une classe opere objectivement dans et par

son arbitraire culturel” (p.22).

89

seus novos estilos de vida, as ideologias religiosas dominantes (isto é, aquelas derivadas

de uma mesma tradição, a revelação bíblica) sofreram os efeitos de um processo de

secularização que pós em xeque o seu status de legitimadora em última instancia dos

modelos institucionais vigentes na sociedade como um todo.

Analisando este processo. Peter Berger (1971) mostra como esta

redução da capacidade da ideologia religiosa para fornecer sentido à vida social global

(secularização), conduziu a uma situação pluralista: a secularização eliminou a

possibilidade de um monopólio exclusivo de uma ou outra tradição religiosa e, ao

contrário, colocou em competição grupos religiosos de mesmo status. Competição que

se dá dentro de uma situação de mercado na qual os bens religiosos são oferecidos a um

publico de consumidores que não só pode fazer escolhas individuais, como também

determinar de certa maneira o conteúdo dos mesmos, de acordo com suas necessidades

sociais.

É nesse contexto que se coloca, renovada, a questão da missão, isto é,

a questão dos resultados que cada sistema religioso deve alcançar para fazer face a seus

competidores legítimos. Numa situação pluralista, onde não se exerce o controle

exclusivo dos partidários, cada sistema religioso tem que organizar-se de modo a ganhar

o maior numero possível de consumidores. Essa necessidade de organização conduz às

modificações nacionalizantes por que passam as Igrejas, no intuito de adotar as suas

estruturas sócio-religiosas de condições ótimas para a execução dos objetivos

missionários. A racionalização estrutural, como ocorre nas demais esferas institucionais

da sociedade moderna, se realiza através da burocracia. A maior importância dada ao

laicato é outra tendência originada da situação de competição e, de uma certa forma,

consequência do maior controle do consumidor sobre os bens religiosos.

É dentro desse quadro histórico que se pode entender a especificidade

da ideologia missionária, como ela se apresenta na região da Baixada Maranhense. A

questão que se coloca, no caso, é compreender de que modo a missão, enquanto

concepção gerada nas condições sociais da sociedade industrial moderna, é transposta

para situações sociais marginais a esta sociedade, de subdesenvolvimento ou de

dominação cultural, onde um sistema religioso legitimado pela sociedade nacional se

defronta com outros sistemas religiosos não legitimados por essa sociedade. Para isso, é

preciso apontar de que modo a missiologia se instrumentaliza para realizar a tarefa

evangelizadora, isto é, a arregimentação de grupos sociais não plenamente vinculados a

qualquer dos sistemas religiosos legítimos; e também apontar de que modo a relação de

subordinação que articula esta situação modifica o esquema que orientaria uma

competição entre sistemas religiosos de mesmo status.

Para distinguir os dois tipos de situações sociais, usaremos os termos:

situação de pluralismo, designando o contexto geralmente urbano onde a secularização

é um resultado das novas relações engendradas pela sociedade industrial: a situação de

colonização, designando o contexto geralmente não urbano-industrial onde as relações

sociais capitalistas mais desenvolvidas parecem ainda não ter penetrado, no qual a

ideologia religiosa não está relativizada (pois não houve processo de secularização) e

seus conteúdos se fundamentam na realidade objetiva do mundo social. A situação de

90

colonização se caracteriza, para efeitos da utilização da expressão no presente texto,

sempre que se dá a interferência da ação missionária.

Tentaremos agora apontar os princípios gerais da ideologia

missionária na região da Baixada Maranhense, procurando detectar a sua especificidade

enquanto resposta a uma situação de pluralismo e, ao mesmo tempo, a uma situação de

colonização. Como veremos, esta duplicidade coloca certos impasses que, se de um lado

se resolvem coerentemente do ponto de vista da missão, engendram novas contradições

quando o exercício de sua práxis a defronta como “outro lado” da situação de

colonização, isto é, a realidade social local.

5.2.2 – Os Princípios Ideológicos da Missão

Tentando aprofundar esta análise, fomos encontrar na obra de Laënnec

Hurbon29

um quadro de referência que se encaixou surpreendentemente com os dados

que dispúnhamos sobre a missão canadense. Com efeito, vamos encontrar na própria

definição que a missão faz de si mesma, os traços que Hurbon aponta como

fundamentais para a sustentação da ideologia colonialista veiculada pela Igreja em

certas circunstâncias.

“(os missionários são) solicitados e mandados para orientar os

habitantes até a salvação, para procurar e formar líderes espirituais e

temporais” (grifos nossos) (Documento da Missão, p.18)30

Estão aí os temas da missão como implantação da Igreja e da noção de

universalidade do Cristianismo (ou da salvação pela Revelação cristã), que serão

desdobrados de modo a justificar um determinado tipo de atuação da Igreja na situação

de colonização. No entanto, esses dois temas básicos não se apresentam nitidamente

diferenciados para a consciência missionária, mas ao contrário, aparecem como um só e

mesmo objetivo.

Antes de entrar na descrição específica dos dois temas, gostaríamos de

chamar atenção para uma característica que parece definidora do tipo especial de

ideologia missionaria de que tratamos. Os próprios documentos da missão apontam

explicitamente para uma evolução no conceito que a missão faria do seu tipo de atuação

29 A obra de Hurbon, padra católico no Haiti, filósofo, teólogo e antropólogo, impressiona antes de tudo

pelo esforço antropológico de superação do etnocentrismo. Sua tentativa, em grande parte bem sucedida,

a nosso ver, é a de formular uma análise crítica de sua própria ideologia religiosa, questionando-a de fora

dela mesma, posição teórica que só se torna possível na medida em que o autor busca explicitar o vodu

como uma expressão coerente da logica da sociedade local. É a preocupação com a exploração

colonialista que lhe permite formular teoricamente a alteridade e as relações de poder entre as duas

culturas.

30 Cf. acima, a nota 3.

91

(Documentos da Missão, 1970, pp.30 e 46)31

. Teria havido uma primeira etapa

caracterizada por uma orientação religiosa “tradicional”, voltada para o ensino

doutrinal, a formação de padres e obras assistenciais; e uma segunda etapa

“revolucionária”, voltada para a “conscientização”, “promoção humana”, a criação de

“verdadeiras comunidades”, chegando-se a “um nível técnico que, embora introduzindo

certa sofisticação numa sociedade pouco diversificada, começa a tomar em

consideração as ocupações básicas e vitais da maioria da população”. Ora, o que os

documentos da missão chamam de “orientação tradicional”, não passa de um traço

característico do primeiro momento histórico de atuação da Igreja de que falávamos no

início deste capítulo, no momento pré-secularização, pré-sociedade industrial moderna,

no qual a Igreja tem garantido seu papel de legitimadora ideológica em última instância

Das relações sociais. Por outro lado, o que é chamado de “orientação

revolucionária”, corresponde a uma adequação aos princípios do Vaticano II. O

importante nestes dados é notar que a adoção da nova orientação se apresenta como uma

das interpretações possíveis de tais princípios, se compara a outras interpretações

formuladas por grupos eclesiásticos noutras regiões e países da América Latina. Dir-se-

ia haver uma defasagem histórica que determina o pensamento da missão canadense de

modo a persistir em impasses teóricos já bastante mais refletidos pela Igreja noutras

regiões. Desses impasses, o crucial nos parece ser o que coloca a noção de

“desenvolvimento” e a preocupação com os problemas seculares, socioeconômicos das

populações onde ela atua. Nos termos em que coloca a sua interpretação particular dos

próprios teóricos que revolucionaram o pensamento da Igreja, a missão cria para si

mesma uma permanente dualidade conceitual, a dualidade entre Estado-Igreja,

formação doutrinária-formação comunitária, religião-desenvolvimento, sendo que, em

última análise, se vê obrigada a formular (por força de uma exigência de coerência

logica) a prioridade do objetivo de importa a religião católica, deixando o objetivo

“desenvolvimento” em plano secundário.

“Todos os agentes de pastoral, de todos os tempos e em todos os

lugares, encontram sua razão de ser na promoção dessa Igreja de Jesus

Cristo, criação particular do Espírito Santo. É verdade que, devido a

situações de urgências sociais e de calamidades públicas,

frequentemente são levados a agir de acordo com suas aptidões, em

auxílio das populações necessitadas: eles têm o direito e o dever de

fazê-lo, uma vez eu são homens, vivendo em solidariedade e

fraternidade com todos os outros homens; mais ainda, são cristãos.

Entretanto o seu papel específico consiste em promover, em todas as

partes, o nascimento e o desenvolvimento da vida das Igrejas locais”.

(Documentos da Missão 1971-A, p.118)32.

31 Cf. acima, a nota 3.

32 Documentos da Missão 1971-a. Este Documento não é da autoria nem da responsabilidade da Missão e

sim, exclusivamente de CENPLA (IPEI-CENPLA).

92

Buscando mais a fundo as origens desse dualismo conceitual, vejamos

de que forma ele aparece através dos dois temas centrais da ideologia missionária.

5.2.2.1 – Noção da universalidade do Cristianismo

A ideologia missionária é sustentada, antes de tudo, pela noção de que

a mensagem de Cristo, enquanto convocação à salvação dirigida a todas os homens sem

distinção, é a verdade religiosa por excelência, por ser a única originada da Revelação

divina tal como interpretada e transmitida por seus legítimos veiculadores, isto é, a

Igreja. Ora, no quadro de uma crítica teórica ao ideológico, é fácil verificar aí a lei geral

de todas as ideologias (religiosas, ou não) que corresponde a pensar-se enquanto

ilimitadas, verdades absolutas. A ideologia é incapaz de relativizar seus próprios

conceitos; sua função social é a de manter a coesão entre as diversas relações sociais

onde opera. Não se atribuindo limites, aos sistemas ideológicos necessitam

fundamentalmente coloca-se enquanto universais, já que o reconhecimento de seus

limites ocasionaria a perda de sua função de organizadores dos universo simbólicos

através dos quais os homens explicam o mundo em que vivem e sua relação com ele.

Assim, ao pretender-se resposta absoluta para todas as questões colocadas pelas

religiões nas diversas culturas humanas, o cristianismo não faz mais do que repetir os

mecanismos presentes em quaisquer dessas outras religiões.

Da noção de universalidade, decorrem, no entanto, suas outras

posições ideológicas que, como mostra muito bem Hurbon, explicitam claramente o

colonialismo que impregna o pensamento missionário. Primeiro, uma visão

evolucionista das religiões e culturas divergentes da tradição ocidental cristã. Nesse

sentido, pe importante notar o modo pelo qual a ideologia carrega em suas proposições

o conjunto do quadro cultural de onde se origina, de tal forma que, ao transporta-se para

outros contextos culturais, terá sempre como ponto de referência para emitir seus

julgamentos os outros modelos culturais não religiosos que, com ela, fazem corpo

unitário. Assim, a sociedade ocidental que legitima a ideologia cristã será o ponto de

referência a partir do qual serão hierarquizadas as outras tradições culturais, vistas como

etapas de um processo necessário que culminará na realização do modelo social

ocidental tomado globalmente. Do ponto de vista religioso, dirá um padre e seus

catequistas referindo-se à resistência da população local a aderir às novas modalidades

de culto e ação comunitária propostas pela missão: “Nosso povo é criança, mas ele tem

riqueza. São lentos de compreender, refletir, produzir”. (Reunião de catequista,

documentos da pesquisa). O modelo da sociedade ocidental aparece primeiro numa

avaliação global negativa do outro, o qual seria fatalista, passivo e inconsciente, inibido,

atrasado e sem iniciativa (Documentos da Missão 1970, pp. 30 e 38)33

., para surgir,

finalmente de modo positivo, quando se propõe uma estratégia que alia a imposição

religiosa outros critérios igualmente ideológicos, como por exemplo as noções de

progresso e prosperidade da sociedade capitalista industrial. Vejamos, a esse respeito, o

33 Cf. acima, a nota 3.

93

que diz a missão sobre as finalidades de “um estudo mais científico da realidade do

povo de Guimarães” (Documentos da Missão, 1970, p.89)34

.

a) “conhecer todos os aspectos da realidade do povo;

b) aproveitar todos os valores válidos do povo, inserindo-os na vida

de hoje;

c) criar condições e possibilitar meios que deem chance ao povo de

se libertar dos aspectos alienantes de sua religiosidade” (grifos

nossos).

Assim, a cultura local é vista de modo fragmentário, composta de

certos “aspectos aproveitáveis” e outros “alienantes”, podendo, portanto, ser

desmontada e remontada pelo missionário para a obtenção de um novo produto cultural,

que repetisse finalmente o modelo perfeito de sua própria cultura. É interessante ver

também que a missão não só absolutiza o seu sistema religioso, mas também formula a

sua legitimidade nos termos de uma sociedade globalmente mais racional, mais eficaz,

de modo que “alienante” é tudo aquilo que não corresponde a tais modelos, como, aliás,

o texto prossegue mostrando:

d) “valorizar, entre o povo, as pessoas, mesmo rústicas, que são

dotadas de percepção extra-sensorial e metapsíquica, e

recomendar a ciência experimental dos ‘doutores do mato’ que

sabem usar as virtudes de muitas ervas, cascas, etc.” (grifos

nossos).

Ou seja, ao se traduzir para o nível do profano da cultura ocidental,

tudo aquilo que compõe o mundo sagrado da cultura local, abre-se um espaço para a

verdadeira religião e inculca-se, ao mesmo tempo, uma interpretação mais “racional” de

fatos que, desprovidos de seu caráter social, passam à categoria de fenômenos da

natureza; estes poderiam receber um tratamento científico, enquanto a verdadeira

religião transcende a capacidade explicativa do conhecimento humano. Por fim, o ponto

de vista evolucionista culmina numa formulação mais globalizante que alia

explicitamente a ideologia desenvolvimentista da sociedade capitalista à mentalidade

inovadora incorporada à ideologia cristã.

“É preciso lembrar que em outras nações e povos, que tiveram um

passado marcado pela passividade e pela inconsciência – nutridos pela

religiosidade popular – libertaram-se desta mentalidade,

desenvolveram-se e se transformaram, com o impacto do progresso e

das novas condições de vida” (grifos nossos).

Portanto, a eliminação dos sistemas religiosos originais e a sua

substituição pelo cristianismo podem ser uma via segura a expansão da sociedade

ocidental capitalista. Aliás, não é outra coisa o que pretende mostrar um documento

mais recente da missão, quando afirma:

34 Id.

94

“Com efeito, a equipe teológica, utilizando os seus instrumentos

específicos (a fé cristã), pretende identificar os núcleos humanos,

focos do futuro desenvolvimento, por serem esses núcleos lugares de

uma presença especial do Espírito Santo. Pois, no grupo humano no

qual o Espírito de Deus opera abundante e intensamente, qualquer

movimento desenvolvimentista encontrará ressonância favorável ao

apelo em favor dos bens humanos, como: trabalho, progresso,

verdade, bondade, liberdade, unidade, etc.” (Documentos da Missão

1972-A, p.15)35.

Nesse nível, a ideologia missionária procura equacionar o seu próprio

conceito de salvação religiosa com o conceito da “salvação” pelo desenvolvimento

capitalista, o qual só poderia ser alcançado dentro de verdadeiras “comunidades cristãs”,

isto é, com a condição de eliminar as comunidades originais.

Uma segunda consequência da noção de universalidade do

cristianismo é a descontextualização histórica que fundamenta o discurso missionário.

A Igreja tem por tarefa implantar um Reino espiritual onde todos os homens sejam

irmãos, unidos em comunhão mística, abstração feita de suas diversidades culturais,

grupais e de classe. O modelo mediador para a realização dessa união é a “comunidade

cristã apostólica da Igreja primitiva” (a experiência social dos primeiros cristãos), que

deve ser implantado entre a população local como alternativa, não apenas para a vida

religiosa, mas para o conjunto das relações sociais. Desse modo, a missão introduz na

cultura local um conceito de comunidade que vai operar como polo de oposição ao

modo pelo qual o caboclo pensa a sua própria comunidade e a vive realmente na prática.

Nos documentos da missão, esse conceito vem nomeado pelos termos “comunidade de

fé”, “comunidade de culto”, “comunidade de base”, “comunidade eclesial”,

significando:

“...um conjunto de homens que se reivindicam o Evangelho, que têm

em comum algumas relações de vida e tentam expressar este

Evangelho”. (Documentos da Missão 1971-B, p.6).

Tais “relações de vida” devem repetir o modelo das “virtudes dos

primeiros cristãos”, que se resumem em “amor e união”. De um lado, a comunidade é

a própria Igreja, “povo de Deus”; em seguida, ela deve realizar-se no âmbito mais

amplo das relações sociais, como explica um missionário a seus catequistas.

“Deus está no grupo, no amor mútuo, porque Ele está primeiro no

grupo. Ele está em cada um de nós. Andando unidos, amamos a Deus.

Explicamos para todos que nos perguntam que é essa união que Deus

quer, e que a gente está fazendo isso pelo amor do Senhor. Sempre

35 Documento da Missão 1972-A. Este Documento não é da autoria nem da responsabilidade da Missão e

sim, da equipe de Teologia (CENPLA) pesquisando na região da Prelazia de Pinheiro (IPEI-CENPLA).

95

nosso grupo está aberto. Abraçamos todos”. (Documentos da Missão

1971-B, p.7)36.

O estilo comunitário marca um novo tipo de atuação missionária,

ligado à etapa da “orientação revolucionária” a que já nos referimos e tem sua expressão

mais elaborada na ideologia que a missa inculca na população local através da Escola

da Fé. Aí os catequistas têm a oportunidade de viver, durante algumas semanas,

isolados das suas condições reais de existência social, aprendendo o “amor” e a “união”

como verdadeiros princípios morais das relações comunitárias. Assim, diz um

documento sobre a Escola da Fé:

“...a comunidade cristã se forma no amor, vive pelo amor e dá

testemunho como o amor. O centro da vida da comunidade, da vida

cristã, é o amor”.

“...O que estimula o cristão no amor é o exemplo de Cristo, que deu

sua vida pelos que amava, em nos convidando para fazer o mesmo,

para expressarmos em nossos atos o nosso amor para com todos, sem

exceção de ninguém” (Documentos da Missão 1971-B, p.15).

A ideologia igualitária que aí se veicula, ignora, antes de tudo, as

próprias distinções sociais presentes na representação que o caboclo faz de sua própria

comunidade e os critérios de que ela se utiliza conceptualmente para atualizá-las37

.

Além de ver a cultura local como alguma coisa desprovida de sentido e de organicidade,

a ideologia missionária encobre, em seu discurso, as verdadeiras tensões e contradições

inerentes à realidade social que a cerca, as diferenças culturais e de classe. No plano de

uma humanidade ideal, ela elabora para a população local, por exemplo, a seguinte

mensagem sobre o trabalho:

“Sou vosso servo, Senhor/Sei que servir é amar/Por isso com muito

amor/o fruto do meu labor/Deponho no vosso altar/.

Quem serve ao irmão, melhor vos serve/

Pois serve mais quem serve ao seu igual/

Seja operário, sacerdote, lavrador,/

Artista, estudante, industrial”.

(Paróquia de Bequimão, folheto Missa “Servir” pp.1 e 2, fev. 1972.)

A comunhão mística proposta pela missão, a realizar-se pela formação

de “comunidade cristãs” nos povoados, passa pois em silêncio sobre as condições

históricas concretas em que vive a população rural maranhense. Mas como explicar que

isso ocorra justamente quando a missão está formulando um projeto que visa influir na

transformação das condições sociais desta população, reconhecendo, assim, a sua

36 Documentos da Missão 1972-B. Este Documento não é da autoria nem da responsabilidade da Missão e

sim um elemento dos trabalhos, no campo, pela equipe de teologia. (IPEI-CENPLA).

37 Vida Prado, R. pp. 25-87 onde a autora procura demonstrar a organicidade da sociedade

local, seus critérios próprios de diferenciação das relações sociais segundo os sistemas do parentesco, do

compadrio, e ao nível do sistema religioso como um todo.

96

especificidade histórica? Esta contradição (que só aparece quando se questiona a

ideologia missionária de fora dela mesma) resulta da dualidade conceitual à qual nos

referimos antes, pois se de um lado, a inculcação religiosa se justiça por uma concepção

a-histórica da fé cristã se equaciona com um maior contato com a cultural ocidental,

letrada, racional; como repete, textualmente, um catequista já formado pela dita Escola:

“...até esse ano mesmo... foi que eu pude entender aquela comparação

que a irmã X fez ano passado, dos copos. Ela fez assim três vasos, um

maior, outro menor, outro menorzinho... Aquilo quer nos dizer que... é

a mesma coisa nossos corações, a nossa fé. Tem um que tem a fé mais

forte, outro menos, outro menos. Mas tudo, se tem a fé, todo coração

tá cheio. É como os copos, se tem um grande, outro pequeninho, outro

menorzinho, mas tudo cheio, num tá igual, mas tá cheio. Ele tá cheio,

o menorzinho tem menos, é a mesma coisa com nós. Nós tem menos

porque estudemo menos, o maiorzinho já tem mais, já é aqueles que

estudaram mais, e o grande é aquelas pessoa que estudaram bastante

mesmo”.

Assim, podemos deduzir que propondo um aprendizado do seu

sistema de valores segundo os mecanismos “civilizados” – escola, leitura, documentos

escritos – a missão afirma o seu vínculo cultural, explicita-o na sua prática. Mas são é

só. Como dizíamos, o reconhecimento de uma especificidade histórica própria à cultura

local, é um modo de contornar o tema da a-historicidade, mas sem romper, no entanto,

com a lógica que fundamenta o pensamento missionário, pois tal especificidade será

definida a partir de evolucionismo intrínseco a tal pensamento. Temos, então o tema do

desenvolvimento como um divisor de águas que permite à missão legitimar sua

implantação e expansão e revelar (talvez mais do que isso, enfatizar e reivindicar) a

adequação de seus princípios e de sua prática aos princípios e a prática da expansão do

capitalismo ocidental .

“Sem sombra de duvidas, Na Baixada Maranhense, Brasil, há uma

população que se pode qualificar de subdesenvolvida. A libertação

desta população e sua entrada no circuito das riquezas das nações

seria uma gloriosa vitória da humanidade” (Documento da Missão,

1970,p.7)(14)

Para justificar sua própria atuação, a igreja identifica–se formalmente

ao estado, assumindo, na prática , o seu modelo de atuação e o contexto histórico que

ele representa na região :

“Existem... dentro da igreja, elementos semelhantes aos encontros no estado:

uma organização pública e funcionários. Frequentemente essa duas

organizações públicas se sobrepõem mais ou menos bem , como a paróquia e

o município”.

“O Estado opera como a igreja, ou a igreja como estado. Frequentemente a

influencia é mútua, sem que se possa dizer, quanto a cada modo de ser e de

agir ,qual dos dois o tenha adotado em primeiro lugar”(Documentos da Missão

, 1971-A,p.116)(15).

97

“A sede da Missão é muito procurada e muitas pessoas dependem não só da

orientação, mas dos trabalhos que a missão pode oferecer: construção da

escola, transporte de material, trabalho na olaria (a Missão é dona de uma

),recursos para viagem a são Luís ou para atendimento de doenças”(DOC. da

Missão ,1970 ,p.41)(16).

Resumindo, temos que , enquanto , de uma lado, a ideologia

missionária elabora o tema de um igualitarismo a-histórico, expresso nos conceitos de

“comunidade” “amor” e “união”, encobrindo as verdadeiras tensões sociais , de outro ,o

seu discurso assume uma historicidade explicita , formulada pelo tema do

evolucionismo , cindindo a população local entre verdadeiros-falsos cristãos,

cooptando indivíduos que são levados a renegar sua própria cultura(pelo menos ao nível

da relação padre-catequista) e vinculando o modelo ideológico desenvolvido da

sociedade nacional ao seu próprio modelo da salvação pela fé cristã.

5.2.2 - A MISSÃO COMO IMPLANTAÇÃO DA IGREJA

A preocupação com a expansão e implantação burocrática da igreja é

o traço que melhor explicita a situação de competição criada pelo contexto da

secularização, como apontávamos no instrumento para produzir resultados satisfatórios

ao nível de uma maior arregimentação de adeptos em todas as partes em isto for

possível. É preciso assinalar, no entanto, que a missão é um fenômeno típico de

situações de colonização (tal como definimos), de modo que se encontra é marcada por

uma delegação de poder que lhe atribui o Estado nacional e que determina a relação

subordinativa que a igreja terá em relação a cultura “a cristianizar”.

Falando das situações de pluralismo, Peter Berger assinala que “o

mercado competitivo se dá quando é impossível a maquinaria politica da sociedade para

eliminar os rivais religiosos” (Berger,1971p.203). Ora, é precisamente o oposto que se

verifica na região da Baixada Maranhense ,onde o catolicismo é historicamente a

ideologia religiosa que fundamentou o poder politico do colonizador; mesmo que novo

catolicismo da missão queira descartar-se desse passado , ao conceber-se a si mesmo

como fonte propulsora do progresso material e espiritual dos oprimidos , ele continua ,

embora num novo estilo , a ser uma das instituições que operacionalidades marginais.

Uma das provas mais evidentes é a repressão ao sistema religioso local. Esta não

alcança , para a missão, o status de uma posição de monopólio religioso dentro da

cultura cabocla. Por outro lado como as manifestações religiosas locais(pajelança,

curandeirismo ,catolicismo popular)tomam por referencia um conjunto de tradições

articuladas num sistema divergente da tradição ocidental, elas se tornam

desorganizadoras dos valores que a missão quer inculcar. A repressão missionária a

realidade local visará, assim , impor a ilegitimidade da tradição cabocla como um

todo, e afirmar o seu próprio poder legitimo. A questão do competidor legitimo fica

bem ilustrada por um fato que documentamos durante a pesquisa de campo :numa

reunião de catequistas , um padre missionário instruía seus ouvintes sobre a

98

necessidade de combater as crenças “primitivas” do povo e , mais adiante , louvava a

vantagem de existirem protestantes na região , porque isto aguçava o sentimento de

lealdade dos católicos a sua religião.

Para se entender claramente a verdadeira relação de poder que

fundamenta a relação da igreja com a cultura local, é necessário aborda-la a partir da

representação que esta cultura faz da igreja e de seus funcionários religiosos locais , a

origem do poder sagrado do padre esta no saber letrado , na educação escolar ; ele é

visto como pregador capaz de interpretar a palavra de Deus, b)o padre é também visto

como conselheiro para as situações ligadas a sociedade mais ampla, isto é , em todas as

situações que envolvem a técnica, a burocracia, a escola , a medicina oficial ;c)por fim ,

ele recebe o papel do funcionário das entradas no social: pelo batismo ,a entrada na

sociedade dos vivos , pelo ritual dos defuntos a entrada na sociedade dos mortos que a

sociedade local mantem com a sociedade mais ampla. O que permanece constante em

todas as situações de colonização, apesar das mudanças de estilo que possa sofrer a

atuação missionária . Como aponta muito bem Hurbon:

“Mais nous n`avons pas simplement à voir dans les dégáts

produits par l´oeuvre missionaire derreurs qui viennent

aniguement de ce que colonisation et mission ont éte

entreprises à rla même époque , comme si les

administrateurs coloniaux.

Dans la mesure oú la religion faisait corpe ele créaait par

ele-même une ligne de démarcation entre les colons et los

colonisés”(grifos nossos) (Hurbon, 1972)

Numa época de secularização, a tarefa de implantação da igreja se

apresenta modificada em alguns aspectos de seu estilo tradicional, já que se faz

necessário justificar , ao nível de sociedade nacional , a presença da instituição religiosa

nas áreas problemáticas desta sociedade (porque marginais) , ao lado de outras

instituições (religiosas e leigas) com funções semelhantes. Assim, o tema

desenvolvimentista volta ao debate , conduzindo mais uma vez ao dualismo conceitual

em que se encontra a missão .Ou se já , a s missão não pode mais , como outrora ,

preocupar-se apenas com suas tarefas estritamente religiosas , sacramentais , mais deve

fazer um esforço para adequar-se ás proposições mais relevantes da ideologia

dominante na sociedade nacional , sob pena de ver ameaçada a legitimidade

institucional que lhe confere o Estado. É dentro desse esforço de adequação que se

pode interpretar o tema da modernização na ideologia missionária .Em primeiro

lugar , a preocupação modernizadora dos métodos de atuação está ligada a um tipo de

interpretação dos princípios do Vaticano II e Medellin , no sentido de engajamento da

igreja nos problemas sócio-econômicos das populações marginais .Referimo-nos a

uma das possíveis interpretações de tais princípios porque , no caso presente , a

modernização significa adequação a ideologia dominante , ao passo que noutros

contextos de atuação da igreja essa filiação tem sido explicitamente criticada e

99

ultrapassada .No caso da missão católica na Baixada Maranhense e , o reconhecimento

da necessidade de transformações sociais se coloca no quadro da lógica da expansão

capitalista e implica o desmantelamento das relações sociais internas a comunidade

cabocla , na medida em que se tenta impor a cultura local novos princípios de relações

em todos os níveis da vida social. Assim, as instituições implantadas pela missão darão

maior ênfase e a educação , não apenas no seu sentido religioso , mas principalmente

no seu aspecto técnico e burocrático aliando aos atributos próprios a uma instituição

”moderna”(tecnicidade) , um tipo de organização que lhe permita expandir-se e fixar-se

na região (burocracia). Estes aspectos se esclarecem quando analisamos a ideologia que

orienta a escola da fé , cujos objetivos são:

“preparar pessoas que possam representar a igreja em todas

as suas funções, sobre tudo de anunciar o cristo , de formar

comunidade cristãs , de fazer a catequese e de dirigir o

culto”(DOC. da Missão, 1970,p.45)(18)

Modernização-tecnicidade (componentes de conceito de “comunidade

cristã”) e implantação burocrática (“representar a igreja“) surgem aí como um só

objetivo , apontando o mecanismo ideológico pelo qual a missão deixa implícito o

seu compromisso cultural. No contexto da relação missão-cultura local , a Escola da

Fé é lugar por excelência da violência simbólica em termos de repressão aos valores

sociais caboclos e de imposição dos valores da ideologia dominante .Sua dupla tarefa é

a de criar grupos locais vinculados subordinativamente a burocracia eclesial , as

comunidades cristãs” , orientando lífrres (catequistas) que sejam também os mediadores

para “modernização” da vida social dos povoados. Assim , a evolução que um

documento da escola aponta , do conceito de “catequistas” para o de “animadores”ou

“evangelizadores” a serem formados , explicita uma necessidade de ultrapassar uma

inculcação meramente doutrinal , para formar indivíduos teoricamente capazes de negar

os valores da sua própria cultura e capazes não apenas de aderir ideologicamente , mas

de tornar-se instrumentos adequados a repressão cultural sobre povoados .Este mesmo

documento formula as condições ideais em que isto pode ocorrer:

“O problema no fundo é bem maior:trata-se de termos a

coragem de acreditar num novo tipo de padre que esta em

gestação nas atuais comunidades de base.Padre que não

venha de nenhum seminário,que não saiba latim ou

filosofia, que não seja orador ou fino apalogeta de sua

fé.Um padre que “seja um deles” (sic) em todos os sentidos

da expressão , um homem que trabalhe há tempo naquela

comunidade , que seja bem entrosado nos problemas vivos

e diários do seu povo, um homem que , embora com uma fe

simples e deserudivada pelos ventos e aguas da vida”(DOC.

da Missão,1971-B , p.22)

100

Para atingir tal objetivo, a escola moderniza-se também tecnicamente

,tanto ao nível de uma especialização de seus funcionários mais graduados (professores

religiosos e leigos),quanto ao nível de novas técnicas didáticas ,substituindo a

doutrinação tradicional pela dinâmica de grupo. Vinculado o aprendizado a formação

de grupos locais liderados pelo catequista e orientados pelo pároco que visita

periodicamente os povoados, a Escola da Fé funciona como sistema alimentador dos

princípios ideológicos que asseguram as ralações hierárquicas dos princípios

ideológicos que asseguram as relações hierárquicas comunidades-Igreja. Tais princípios,

“união”, “amor”, “comunidade cristã”, são, como já vimos, os polos de oposição às

formas de organização sociais locais e fornecem, para a ideologia missionária, as

condições necessárias ao aliciamento de grupos básicos que garantem a presença e

continuidade de sua ação “modernizadora” na região.

Mais do que a modernização, no entanto, é a implantação burocrática

que vai permitir verdadeiramente a continuidade que a Igreja persegue. Max Weber,

analisando as condições de implantação da autoridade racional legal através da

burocracia, apontou a sua vinculação com o desenvolvimento do capitalismo na

sociedade ocidental.

“O desenvolvimento da moderna forma de organização coincide em

todos os setores com o desenvolvimento e contínua expansão da

administração burocrática. Isso é válido para a Igreja, Estado,

exércitos, partidos políticos, empresas econômicas... Seu

desenvolvimento é,... o mais crucial fenômeno do moderno Estado

ocidental” (Weber, 1966, p.24).

Quanto aos fatores que conduzem à burocratização, ele aponta dois

elementos cruciais: a inserção de uma estrutura de poder no nível local, com sentido de

organizar coletiva e interlocalmente o controle, e a superioridade técnica sobre outras

formas de organização (Weber, 1971, p.247). O caso da Igreja se insere claramente

nestas condições, esclarecendo-se também a prática pela qual ela realiza aas suas

relações de dominação sobre as comunidades locais. Opondo-se às formas de autoridade

temporárias e difusas, a burocracia instala autoridade permanente e pública, com

jurisdição fiza, sistematizando racionalmente as relações de poder. Não cabe nos limites

deste ensaio aprofundar os inúmeros aspectos que Weber aponta para o entendimento do

poder burocrático; apontaremos apenas algumas características gerais que definem o

modelo de implantação burocrática da Igreja como um das preocupações centrais da

missão. Deixando de lado sua hierarquia extra-regional, interessa-nos ver de que modo a

proposta de formação de “comunidade cristas”, e a adesão à ideologia

desenvolvimentista da sociedade nacional se sustentam na prática em procedimentos de

tipos burocrático que visam garantir a expansão e fixação da dominação institucional da

Igreja sobre a população cabocla. Para tanto, o catequista é uma categoria básica, pois

nela se concentra a estratégia missionária de implantação, principalmente através da

Escola da Fé.

101

As qualidades ideias de um catequista são:

“um homem que vive o Evangelho em todas as suas

dimensões;

um homem que já encontrou o Cristo;

um homem que, delegado na ordem da Fé, apresenta e

partilha a Fé com a sua Comunidade;

um homem cujo trabalho, e vida dele, constituem um

serviço de Fé, serviço de Evangelho, através da sua

atuação humana”.

Por outro lado, o catequista tem como etapas de sua formação:

1. “trabalho e compromisso na Comunidade;

2. estágio na Escola da Fé;

3. retorno à comunidade e renovação com assistência do

orientador da Paróquia e renovação anual com a equipe

da Escola”.

(Documentos da Missão, 1971, p.3).

O curriculum da Escola se divide em: ensino religioso (catequese,

pastoral, liturgia), ensino escolar (portuguesa, matemática, etc.) e ensino técnico

(higiene, agricultura, psicologia, etc.).

Segundo Weber, a ocupação do cargo burocrático é antes de tudo uma

profissão: entre outras características, exige treinamento rígido como pré-requisito, e

tem a natureza de um dever, insto é, de uma obrigação específica de administração fiel.

Pelas situações acima, percebe-se, inicialmente, de que modo a Escola procura dar

continuidade ao vínculo institucional que o catequista matém com a estrutura da missão,

em termos de sua inserção num sistema de autoridade hierárquica e de sua capacitação

para desempenhar a profissão de inculcador dos valores (religiosos, escolares e

técnicos) da ideologia dominante. O aspecto da dominação pelo saber, por outro lado,

nos parece crucial, principalmente se nos lembrarmos da posição estrutural que o padre

(e consequentemente a Igreja) ocupa enquanto funcionário religioso da cultura local.

Com efeito, segundo Weber:

“A administração burocrática significa, fundamentalmente, o exercício

da dominação baseado no saber. Esse é o traço que a torna

especificamente racional. Consiste... em conhecimento técnico que,

por si só, é o suficiente para garantir uma posição de extraordinário

poder para a burocracia”. (Weber, 1966, p.26).

Seria interessante ver, também, que, enquanto por seu lado, a missão

procura legitimar sua autoridade em termos racionais (categoria weberiana), já que este

é o código vigente na sociedade nacional, a cultura cabocla, por outro lado, se utiliza de

um tipo de legitimidade tradicional (segundo Weber, crença no caráter sagrado das

102

tradições para legitimar a autoridade) para reservar certas áreas de seu âmbito social à

autoridade da Igreja e do padre, áreas que estariam ligadas ao domínio de um certo tipo

de saber religioso38

.

Para finalizar, se tornarmos o discurso geral sobre a importância do

laicato, no quadro da ideologia missionária, veremos surgir ainda outra característica

importante da arregimentação burocrática: a posição do funcionário não deve

estabelecer lealdades pessoais, mas sim a lealdade a finalidades impessoais e funcionais,

uma adesão a princípios, embora, por detrás destes, sempre ressurgia o conceito

tradiocinal de “senhor” ou “patrão”, através das ideias de “Estado”, “igreja”, “partido”,

etc.39

.

Abrindo um parênteses, é bom notar que o tema da conversão conduz

ao problema da individualização da opção religiosa, posição que as ideologias

religiosas de um modo geral assumem a partir da secularização do mundo urbano. A

incongruência se revela quando notamos que, se esta formulação é consequência do

contexto pluralista da sociedade complexa, onde os valores religiosos se relativizaram,

no caso da missão, a mesma formulação é imposta numa situação social não

secularizada, onde a religião permanece sendo o sistema legitimador em ultima

instancia da ordem social. Portanto, quando a missão propõe à população local a

“religião como estilo de vida”, isto é, uma descoberta do “verdadeiro” catolicismo por

uma escola subjetiva que implicaria numa transformação radical da vida individual

(conversão), ela ignora o real caráter intersubjetivo, e, portanto, objetivado socialmente

que a religião local assume para os agentes sociais daquela cultura. Decorre daí,

também, a ênfase que se dá às funções morais e terapêuticas da nova religião em relação

aos valores tradicionais locais, em termos de soluções individuais (Ver na Parte II deste

trabalho, p. ( ) como o tema aparece nas inovações do Batismo). Diz-se, então, que o

“Cristianismo não é uma religião, mas um estilo de vida”, o que só teria sentido num

discurso dirigido á “consciência secularizada” da sociedade urbana. Esse “estilo de

vida” será um veículo da implantação da moral e dos modelos ideais da sociedade

industrial capitalista (racionalização e eficácia no trabalho, progresso e

desenvolvimento).

Voltando ao problema do laicato, além do seu enquadramento

burocrático pela adesão aos princípios que levam à conversão, vemos também que ele

assume na ideologia missionária um papel central de mediador para a tarefa de

38 Prado, R. 1973. Ver especialmente a conclusão, no fim de 3.3.4.3, p. ( ): a posição estrutural

do funcionário padre em relação aos demais funcionários (rezador, benzedor e pajé) e suas áreas de poder

religioso,

39 Weber, 1971, p.232. O autor aponta, nesta passagem, o modo pelo qual certas categorias

ideológicas mais amplas, como, por exemplo, a de patrão e a do senhor tradicional, permanecem

sustentando as relações burocráticas, embora muitas vezes encobertas pela ideologia da racionalidade.

Seria interessante pesquisar as modalidades de passagem da categoria local de patrão para a relação

catequista-missão e padre-comunidade, e a forma como ela é assumida de ambos os lados.

103

implantação da Igreja, através da formação e manutenção das “comunidades cristãs”,

que são de sua responsabilidade, e através da assimilação da função missionária:

“O leigo é o cristão engajado que se responsabiliza por tudo na

família, na vizinhança, no trabalho, onde ele passa, para tornar a Igreja

presente e operosa naqueles lugares e circunstâncias onde apenas

através dele ela pode chegar como sal da terra”.

“O leigo é cristão na medida em que expressa sua comunidade para

fora. Como um espelho fiel, ele ilumina o mundo com a luz do ideal e

do pensamento da Igreja que é presente na sua comunidade”.

(Documentos da Missão, 1971-B, pp. 13 e 14)

5.3 – A CULTURA CAMPONESA E AS NOVAS INSTITUIÇÕES DA MISSAO

Abordaremos agora a questão da ação missionária a partir do ponto de

vista da cultura camponesa, confrontando o quadro ideológico delineado na Parte I com

seus resultados concretos ao nível da realidade social onde ele atua. Verificamos que, ao

penetrar no âmbito da produção simbólica camponesa, as instituições criadas pela

missão ganham uma dinâmica própria que foge muitas vezes ao controle direto da ação

missionária. Como veremos, essas instituições não chegam a provocar mudanças

estruturais na comunidade local, sofrendo um processo retradução pelo qual a cultura

camponesa se instrumentaliza para manter sua integridade e identidade social.

5.3.1 – A Instituição do Catequista

5.3.1.1 – O Catequista na Ideologia Missionária

Ao concluir a Parte I, mostramos o papel do laicato na ideologia

missionária e sua função mediadora entre a Igreja e a população local. No caso dos

catequistas, que são camponeses recrutados a assumir funções na burocracia eclesial,

vemo-nos diante de um tipo especial de leigos. Na verdade, existem dois tipos distintos

de leigos, de acordo com sua origem de classe e sua capacidade de preencher as

necessidades burocráticas de implantação da missão. De um lado, temos os leigos com

funções de direção semelhantes às dos funcionários religiosos legítimos, pessoas com

capacitação profissional suficiente para dividir com eles as tarefas de inculcação do

saber dominante, enfim, pessoas tão missionárias quanto os próprios missionários,

enquadrando-se perfeitamente nas definições ideais sobre o papel do laicato. De outro

lado, porém, quando se trata de arregimentar leigos provenientes da cultura “a

cristianizar”, os princípios ideias não resistem ao confronto entre as duas tradições

distintas, e a oposição religioso-leigo reaparece não só através de uma subordinação de

hierárquica em termos de autoridade burocrática, como também ao nível de uma

104

pretensa superioridade cultural. Este era o problema que enfrentava um padre,

orientando seus catequistas:

“Muitos catequistas misturam padre missionário e catequista. O

missionário é aquele que vai passar que não vai ficar. Daqui a

cinco anos nos vamos nos limpar daqui, cair fora,. Deixamos

vocês ai. Nossa ajuda será terminada. Então o padre vai chegar

no lugar, cruza os braços e depois começa a dar a manobra:

olha, se não fizer assim, não volto mais. Como sempre, o povo

pega a amizade nele, se encasqueta um pouco com ele, né,

então ele vai querer cabresto, né? Eu posso, eu me dou esse

direito de fazer chantagem. Até se endireitar. Porque qualquer

forma eu não tenho nada, o povo é quem vai se virar depois

que eu sair. Mas se o catequistazinho chega depois e diz: - óia,

faz assim também, senão eu não vou mais, será que isso é

serviço da catequista? Já tá imitando demais o padre, viu? Esse

catequista tem que ficar, e não sozinho, ele tem que ter um

grupinho com ele, uma responsabilidade junto com o padre.”.

De certa forma, esse discurso apreende um aspecto real da visão local

sobre o padre (Isto é, sua relação de poder sobre a comunidade); por outro lado, ele

revela a contradição em que são colocados os catequistas: depois de formados

especialmente para preencher quadros burocráticos da missão, passa a existir um nível

de seu comportamento social em que eles assumem integralmente o seu papel

missionário e sua relação hierárquica, realizando perfeitamente esse papel. Mas, quando

o catequista repete o padre, a ideologia missionária vê nisso um “exagero” ou uma

“caricatura” quando na verdade, ele está fazendo uma leitura adequada do papel do

padre, tal como esse se define na sua própria cultura. Nesse momento, então, será

preciso dizer que o catequista é um tipo de leigo especial, que se mantem numa relação

subordinativa, justificada na ênfase as diferenças culturais. Como assinala um

documento da Escola de Fé:

“Sentimos, desde agora, o perigo que potenciando

incondicionalmente vários ministérios sem uma sólida

preparação comunitária, ajudemos a criar na Igreja nova,

pequenos déspotas “convencidos”, defensores de sua soberania

em seu ministério, à custa do verdadeiro espírito de serviço.

Houve há pouco tempo no nordeste diáconos casados que só

quiseram pregar com batina e barrete. O que se lamenta ter

acontecido com o clero, pode acontecer muito pior com

pessoas incultas e sem a devida experiência da tradição”

(Documentos da Missão, 1971-B, p. 24).

A “devida experiência da tradição” é o que o catequista adquire ao

cursar a Escola da Fé. Antes de tudo, ele entra em contato mais íntimo coma cultura

letrada dominante na sociedade nacional, pela alfabetização, os cursos religiosos,

105

acadêmicos e técnicos; aprende a dominar o saber religioso dominante ( as Escrituras) e

as novas fontes de poder ( a celebração do culto e a direção das novas atividades

comunitárias), conhece novas “verdades” sociais ( os valores do amor e da união com

todos) e entra para a categoria dos iniciados no conhecimento que sua cultura atribui ao

domínio do padre. Em segundo lugar, ele se socializa numa relação hierárquica

específica, sustentada na legitimidade que confere o saber religioso aliado ao saber

profano da cultura dominante ( o padre é o religioso e o professor, que domina uma área

do sagrado e uma área do poder temporal, a do progresso, da técnica, do

desenvolvimento); esse poder lhe será em parte na medida em que ele for um

funcionário fiel. Por último, ele s socializa numa relação igualitária horizontal, entre

catequistas, numa situação artificial de isolamento das relações sociais cotidianas ( os 3

ou 4 meses vividos na Escola), onde aprende um modelo ideal de sociedade ( a

comunidade dos primeiros cristãos). Apesar de que, dependendo do ano em que

cursaram, outros catequistas tenham sofrido outro tipo de inculcação, de acordo como

estilo do curso40

, em nenhum momento a Escola perde seu caráter essencial de

impositora da violência simbólica dominante.

5.3.1.2 O catequista e a Tradução da Mensagem Missionária

Tomando o discurso dos próprios catequistas, em várias situações41

,

encontraremos três planos distintos em que se dá a sua versão da mensagem

missionária: a repetição da linguagem missionária, a ambiguidade e a retradução.

Em primeiro lugar, quando o catequista se define a sí próprio, ele

procura repetir os conceitos que percebe como mais importantes pra missão:

“Catequese é... dizem que vem da palavra catequizar, catar,

quer dizer, se esforçar, fazer pesquisas, pescar, vamos dizer

que tem um pescador, ele vai pro mar pescar pra apanhar peixe,

né, então assim é o catequista, ele vai fazer curso de catequese

pra ele poder ter mais instrução, ter uma maneira de chamar

uma atenção ao pessoal, pra ele se introsar mais nas aulas, na

40 A Escola da Fé se encontrava em fase de reestruturação no período de 71-72, com a adoção de novas

técnicas (dinâmica de grupo, atividades extra-curriculares, etc.). Em anos anteriores, era dada maior

Ênfase à obediência, a uma rígida disciplina e a um acúmulo e informações novas.

41 As situações de pesquisa quanto ao catequista foram as mais diversas: em diálogo com os padres (os

pesquisadores assistiram algumas reuniões de catequistas na sede municipal) em diálogos com grupos

comunitários locais, falando ao pesquisador, de seu trabalho como catequista, falando sobre a população

do ponto de vista das novas instituições e falando sobre a sua própria cultura noutros contextos não

diretamente ligados à Igreja. Essa variação das situações nos permitiu compreender de que modo o

catequista, separando do contexto, resolva as contradições inerentes ao seu papel.

106

religião. Porque a religião nossa aqui é só católica. Mas é que

esses católicos não entendem o papel do católico. Então por

isso, é pra conscientizar as pessoas, a finalidade de ele ser um

católico, qual é o papel de um católico”.

Assim, as aulas, o estudo e a tarefa conscientizadora surgem como os

componentes básicos do seu papel.

“Ser catequista é evangelizar o povo. É ser católico, é uma

missão. O católico tem como missão, viver na Igreja e pregar

os Evangelhos. Praticar a religião é trabalhar, pois a pratica

não é só dentro da Igreja. O povo daqui pode praticar a religião

vindo rezar na capela e cindo receber as aulas, adelugar

(dialogar) com os outros. Aqueles que não vem não estão

praticando a religião.”

Este novo conceito de trabalho, que a maioria interpretará como um

verdadeiro contrato de patronagem padre-catequista (como veremos adiante), vem

aliado às formas de saber da cultura letrada, cujo domínio é privilégio de alguns

iniciados e engendra um novo critério de diferenciação social nas comunidades: o “povo

de dentro” e o “povo mais forte”, os que se aliam aos padres e os que não aderem às

novas instituições.

“Críticas não faltam, principalmente do povo de fora. Muitos

acusam o catequista de querer projetar-se, bancar importante e

ganhar muito dinheiro. Enquanto, isso o povo de dentro, tem

confiança no catequista, dá valor a ele e acredita que ele sabe

mais.”

Se a ação missionária consegue, através do catequista, introduzir na

cultura local um novo critério de distinções sociais, esse critério só se mantem, no

entanto, na medida em que o catequista é capaz de manipular a sua subordinação

hierárquica na burocracia missionária para legitimar junto à população local a sua área

de autoridade.

“O meu trabalho, só da parte do catequista, primeiramente é

dirigir as reuniões ou culto, dar algumas explicação da leitura,

aquilo que eu entender também. E também eu tô pronto a

ajudar aquelas pessoas que precisam, (precisam de que?) que

precisam da ajuda daquilo que eu posso dar pra eles, que eu

posso explicar, das aulas da preparação do batismo. E até pros

legionários, algumas explicações de algumas coisas que eles

não , então, como se diz, por dentro do assunto, eles me

perguntam, o que tá no meu alcance, eu explico. E muitas

vezes que cai a pergunta eu não resolvo, mas eu levo pro padre,

107

a gente tem que discutir e resolver o problema e tem que dar

resultados pra eles. E sempre...o catequista o padres deram

uma responsabilidade que eles ficasse mandando no povoado,

não que ele ficasse, como se diz, o manda-chuva, mas que ele

ficasse dominando aquele povoado, de acordo também, em

contato, com ele. Pedindo as opiniões dele, e dando as da

gente, pra ir concordando tudo,, pra não viver assim se

chocando. Porque se a gente dizer só pela conta da gente, e o

padre sem tá sabendo, quando vai no conhecimento do padre,

talvez num tá fazendo certo.”

Assim o catequista mantem sua autoridade dentro dos limites

marcados pelo poder do padre e pelo tipo de saber que ele domina (responsabilidade de

direção, dar aulas, explicações com base no saber letrado). Por outro lado, é preciso que

o catequista, assumindo e radicalizando a ideologia de elite que lhe transmite a missão,

consiga cooptar alguns membros de seu povoado para integrar as novas instituições,

inserindo-os no mesmo tipo de relação que ele mantem com o missionário. A categoria

“serviço” é a que melhor define essa relação, designando tanto as tarefas que são

obrigação do catequista e das quais ele presta conta ao padre quanto as tarefas que, por

delegação, ele cobra do seu grupo.

“(o presidente da legião) ele encarrega os legionários de fazer o

serviço pra semana, como agora, amanhã a gente dá os serviço

pra semana que entra. Quando chegar no domingo eles vão

prestar conta daquele serviço. (É você que resolve o que eles

vão fazer, ou eles que discutem?) . Não, sempre eu dou o

serviço, porque eu vou na Cúria em Bequimão, lá a gente vai

discutir como é que tá, então a gente traz o serviço de lá.”

É interessante notar que a categoria serviço é usada geralmente no

discurso sobre a prática econômica, indicando um dos componentes da relação de

patronagem, ou do conceito de patrão de um modo geral, em oposição ao modelo de

autonomia do trabalho da unidade doméstica42

. É através do modelo de patronagem que

o catequista e seu grupo será classificado pela cultura local, como veremos adiante.

42 Uma análise que estamos realizando sobre a vida econômica local, mostrou que o conceito mais global

de patrão tem dois componentes: aquele que é dono do serviço, isto é, da oportunidade de trabalho

remunerado monetariamente e, como consequência, por poder pagar empregados, aquele que não entra no

sistema de troca-de-dia baseado em relações de reciprocidade entre pessoas do mesmo status (ver nesse

trabalho, o item “Racionalidade da Economia Camponesa” ). Os tipos de patrão que ocorrem são: o

patrão da pajelança ( o encantado), o patrão do alugado (Trabalho remunerado eventual, complementar a

renda da unidade doméstica), o patrão do empregado (trabalho fixo), o patrão dono da terra (a quem se

paga o foro), o patrão do comerciante (“o patrão da cidade”) e o patrão instituições-oficiais (Igreja e

Estado).

108

Definindo-se enquanto funcionário e tentando repetir as categorias que

percebe como básicas na ideologia missionária, o catequista atribuirá a legitimidade de

sua subordinação aos princípios últimos da ideologia católica:

“ gente é mais ou menos representante do padre no povoado...E

mesmo sendo pesado, vem do padre. Receber ordens do padre

é receber ordens de Deus” (Documentos da Missão, 1972-B, p.

3)43

Ou seja, a relação catequista-padre mantém as mesmas relações de

sentido que a relação padre-Deus. É o que permite também, a sustentação da visão

elitista que o catequista assume em relação a sua cultura, alimentada pelo poder que a

aliança com o missionário lhe confere:

“Nós somos criticados como povo do padre, mas não devemos

se importar com isso. Nós temos responsabilidades, mas eles

falam mal da gente. Nós que acompanhamos parte do padre

não devemos se incomodar pra não ficar no mesmo caminho

que eles tão.”

Por fim, tomando ainda o nível em que o catequista repete a

linguagem e os valores missionários, o seu discurso comporta as mesmas categorias

pelas quais o padre classifica a cultura local. Falando das causas do pouco engajamento

nos povoados, os catequistas afirmam:

“Falta de conscientização: o povo quer receber sempre, mas

não quer dar para os outros”. “No campo religioso, porque não

é lucrativo, nada pega”. “Quando eles se defrontam com as

responsabilidades, eles saem” (Documentos da Missão, 1971-

B, p. 19)

Mas se no contexto direto da relação padre-catequista, a tendência é a

de repetir radicalizando o modelo missionário, fora dele o catequista surge como um

agente social ambíguo em sua ideologia e em sua prática, incapaz de romper com o

conhecimento religioso engendrado por sua cultura, já que é dentro dela que ele

permanece desenvolvendo sua prática social, e incapaz de aderir integralmente aos

novos valores missionários que, na verdade, cobrem apenas uma parte das relações

sociais locais. Esta ambiguidade se mostra principalmente em relação ao sistema

religioso local, em particular à pajelança. Os ataques violentos da repressão missionária

não chegam a desestruturar o modo pela qual a cultura cabocla organiza a sua vida

religiosa e seus funcionários para tais fins, de modo que os rezadores, benzedores e

pajés atuam em áreas específicas com legitimação garantida pela população local. 43 Cf. acima, nota 13.

109

Enquanto membro desta cultura, o catequista, continua a se utilizar de código para

nortear sua ação social, mas enquanto elemento que tem sua lealdade dividida com

outro sistema que o fez seu funcionário e representante, terá que empreender um esforço

de adequação mútua entre dois códigos, o que nem sempre é logicamente possível.

“P- Você falou de pajelança, queria que me explicasse melhor o que é..

R – Eu pouco entendo, conheço a pajelança porque fui em duas. Diz que, parece que

uns espírito, diz que mãe d’agua invoca, penetra, no corpo e quer dizer que aquele

corpo não fica sabendo dela, fica como quem tá dormindo (riso) e só quem tá

falando é aquela mãe d’agua.

P - E a mãe d’agua é o que?

R – Eu não sei o que é. Mãe d’agua diz que é espírito que tem no fundo da água. Eu

não entendo quase isso. Eles fazem uma festa a noite toda, um baile... Aqueles

tamborzinhos, eles batem, ela dança, aquela pajoa, né, dança, pula, brinca, e ensina

remédio, benze, diz que encruza. Encruza, eu não sei como é isso, agora diz que...

(Segue uma descrição minuciosa da cerimônia de encruzamento de um pajé.)

P – E esses remédio curam?

R- Já curou alguns. Agora dizem que cura por causa que eles tem a fé naquele pajé.

Diz que ficam tão creditado, né,o pajé é tão creditado pra aquela pessoa, porque diz

que só do crédito faz curar.

P – E os da Legião não podem assistir à pajelança?

R – Dizem que não...Desde o bispo, parece que o bispo exigiu isso. Os padre é que

eu sei que exigiro, que não presta.

P – Mas eles dizem que não presta?

R – Que não presta. Dizem que a pajelança é mentira.

P – Também a mãe-d’agua o padre falou que é mentira?

R – Sim, mas mãe-d’agua eu digo que existe, porque eu já achei um livro já velho, e

contava que existia. Dizia assim, que tudo que existe, que tem um nome, tudo que

tem nome, diz que é realidade, realmente existe aquele objeto, aquela coisa. Por

exemplo, Deus a gente não olha, mas existe. Então tudo quanto é tipo de espírito

existe. E outra coisa, como amor, saudade, amizade, várias dessas coisas estão numa

parte invisível mas que existe. Porque tem um nome. Sim, e diz assim no livro que a

gente deve então acreditar que realmente existe a mãe-d’agua.

P – E lá em X a maioria acredita, não é?

R – A maioria das pessoas acredita, agora eles faze o seguinte. Só de tanta pajoa que

tem... então eles dizem que dentro dessas todas, de dez pajoas pra ter uma que tem

mãe-d’agua, que é realmente verdadeira...E tem pajoa boa aqui no X, tem uma por

nome...Ela já curou muita gente.

P – O pessoal da Legião não frequenta essas pajoas que são melhores?

R – Não, quer dizer, lá em X ninguém visita pajelança, não.

110

P – Porque tem medo do padre ver?

R – A gente, quer dizer, nós queremos cumprir aquela exigência, né, queremos

obedecer àquela ordem que ele dá. Mas até eu vou dizer que é bom a gente se

examinar deles novamente, conversar sobre isso.”

Esta longa citação permite desvendar os mecanismo ideológicos pelos quais o catequista

soluciona a ambiguidade em que se encontra. Primeiro é preciso notar que a situação da

entrevista colocava o informante na exigência de definir-se enquanto catequista, mas, ao

mesmo tempo, lhe exigia uma defesa de sua própria cultura. Daí aparecem, de inicio, as

expressões “não sei”, “não entendo”, “diz que”, como tentativa de prova do seu não

envolvimento com práticas condenadas .Aos poucos , porém , se revela no discurso o

mesmo tipo de conhecimento comum a todos os membros de sua cultura, e sua adesão

conceptual a ela(a crença a cura e a mãe d`água), embora venha discriminados alguns

dos traços que a ideologia missionária acusa como ilegítimo(a festa , divertimento

profano , num contexto que se pretende religioso).Tentando adequar o julgamento

missionário a defesa da tradição local, o informante lança mão tanto dos critérios

locais(a distinção entre pajés falsos e verdadeiros), quanto de critérios próprios a

tradição dominante(para provar a existência da mãe d`água , baseia-se no saber letrado ,

em oposição aos livros sagrados católicos ).

Nesse nível do discurso do catequista começa fazer-se menor a distância que o separa

dos outros membros de sua comunidade. Nossa própria observação revelou que, ao

nível da prática, o catequista recorre normalmente aos funcionários religiosos

específicos de sua cultura (rezadores, benzedores, pajés),segundo os tipos de

necessidades que são comuns a todos(promessas , feitiços, assombramentos, mau-

olhado, as diversas classificações de doenças).

Por ultimo, existe um nível de discurso em que o catequista assume integralmente o

quadro de referencia da sua cultura, combinando a mensagem religiosa missionária com

o sistema religioso local, de acordo com as funções especificas que a ideologia local

lhes atribui, sem achar nisso contradições que só apareceriam no contexto de uma

visão estritamente missinária.É assim que um catequista afirma crer em dois tipos de

batismo: o de casa , para livrar de mãe d`água , que dá febre ;e o da igreja ,para “abrir o

caminho de Cristo” , “da salvação”; ou uma definição do mesmo informante ,

explicando o que é ser católico :”é crer em Deus e nas imagens , nos santos de pau”. Um

outro catequista ,referindo-se a nova exigência de que os pais e não os padrinhos

segurem a criança durante o batismo( e que representa para a igreja a responsabilidade

dos pais na educação cristã da criança) , adota a explicação mais corrente entre os

moradores e que , naturalmente , lhe parece a mais lógica para esclarecer este aparente

absurdo:

“Porque os padres exige que se a criança tá chorando , se ele deixar nas

mão dos é padrinhos que é uma pessoa estranha , que tem vez que é uma

pessoa lá de longe que a criança nunca viu , então enquanto tem aquela

111

preparação, antes da hora do batismo deve as mães garrar , porque são

costumada com as crianças”.

5.3.1.3 – O CATEQUISTA COMO CATEGORIA DA CULTURA LOCAL

Para completar o quadro de análise da instituição catequista é preciso vê-la a

partir da ótica da comunidade camponesa local. Apesar de existir aqui dois tipos de

informantes , segundo sejam participantes ou não das novas instituições ,suas opiniões

nesse nível são de tal modo semelhante que a distinção se torna desnecessária ;ou

melhor , ela serve apenas para constatar a existência de um nível de discurso em que a

adesão formal a tais instituições não significam na verdade uma plena adesão

ideológica. Citaremos as definições de alguns dos informantes.

“Catequista são aquelas pessoas que o padre quer bem. São as pessoas do

peito deles. Então eu penso assim que os padres deu a mão pra eles

,porque de certa parte eles ajudam eles, eles ajudam os padres ,que de

certa parte dão dinheiro ,gratificam eles...Quem sempre tem mais fiança

nele é o padre ,porque sempre ajuda o padre nessas missa. Lê o

mandamento da lei de Deus , né ?certa religião ,tal , bota no caminho.

Então o padre enxerga mais ele. Ás vezes ele Lê a bíblia no começo da

missa que é uma pessoa que ajuda o padre naquela parte”.

“... foi fortuna pra ele .Ele já foi parece dois ano ou três pra

Guimarães.(foi fazer o que em Guimarães?)Estudar .(o que ?)a

ler.(aprender a ler? ) é , que ele tinha pouco estudo.(ele não sabia ler ainda

?)sabia , mas pouquinho, acho que ele estudou 10 ano,29 ano, coisa

assim. Ele foi , o padre pagava o estudo dele lá , e ficava pagando

mantimento pra mulher , ainda de lá pra cá ,tem sido uma vantagem o

padre é muito bom pra ele”.

“O catequista, ele estuda pra ajudar o padre, pra na vez de fazer as

palestras pras pessoas manda batizar os filhos, as vez quando o padre não

vim, ele dá. E também pra ajudar nos legionários , se ele precisar de

alguma coisa , ele vem e o conta o que foi que eles estudaram por lá.(No

povoado ele faz o que ?) ele aí , ele ajudou a dar as palestras de

dezembro pro batismo das crianças , na hora do batizado também ele já

ajuda o padre, o padre dá uma coisa pra criança , ele dá outra, e sempre

eles vão lá nas reuniões ,sempre eles tão chamando. Eles tão dizendo que

eles tão formando esses catequistas porque daqui a uns ano eles vão

embora e na certa quem vai ficar fazendo batizado são os catequistas.

Não se trata , aqui de indagar sobre a veracidade factual de tais afirmações ,

mas tentar compreender a sua veracidade sociológica ,isso é , que princípios sçao

usados pela ideologia camponesa para definir a nova relação encarnada pelo catequista

.O principio principal parece ser o da patronagem ,que surge como modelo de relação

em diversas áreas da cultura local e a qual já nos referimos ao abordar o conceito

global de “patrão” e a categoria “serviço”(v.nota 23).Embora este principio se aplique a

áreas internas a sociedade local ,noutros níveis ela as ultrapassa, passando a definir as

relações externas que vinculam essa sociedade ao mundo social mais amplo que a cerca.

São esses vínculos externos que permitem a certos indivíduos , engajados em relações

112

de patronagem , o acesso a mecanismos de Ascenção social e prestígio , posições

diferenciadas que a comunidade camponesa só integra na medida que originem de

fontes externas a ela própria. Se no caso da relação catequista-padre, é este o principio

definidor, é porque o padre mantem dessa sociedade uma posição estrutural , como já

vimos , mediador com as fontes de poder(domínio de instituições e de um tipo de saber

) da sociedade nacional. É importante notar nesse sentido, que , enquanto a missão vê a

sua ação como penetração e fixação de sua presença institucional nas comunidades

locais ,estas , ao contrário, selecionam do mesmo fenômeno apenas os aspectos de uma

relação pessoal especifica ,de patronagem , que, no conjunto de sua vida social, serve

para definir relações em grande parte externa a ela própria , concebidas como

extraordinárias (“vantagem” “fortuna”) em relação a regra geral .Assim, o que o

camponês percebe não é a presença renovadora da igreja na região .mas a reiteração do

modelo tradicional de relação com o padre , patrão entre outros.

Como categoria referida ao padre , o catequista recebe dois tipos complementares

de definições .Primeiro , é percebido ao nível de uma relação pessoas de amizade25

que

pode estender-se a todos que tem contatos mais constantes com o padre. A escolha de

um individuo será sempre explicada nos termos de um “agradar-se” reciproco e

aparentemente gratuito .Em seguida ,vem o nível de uma relação contratual que

desdobra e explica o primeiro.

Se o catequista desempenha a função de representar o padre, ele está prestando um

serviço ,isto é, está desempenhando um tipo de trabalho que , com tal, deve ser

remunerado .A reciprocidade padre-catequista pode abranger tanto a remuneração

monetária ,como a troca de serviço por outros bens valiosos dos quais só o padre é

detentor (educação ,favores, viagens, facilidades em relação instituições da sociedade

dominante).Quanto aos serviços prestados pelo catequista , sua área fica definida de

antemão :ele é um subordinado do padre , podendo substitui-lo em algumas funções

:será o que domina o saber letrado , o que traduz a palavra escrita de Deus , o

conselheiro que “bota no caminho da religião” e o eventual assessor do padre nos rituais

de entrada no social(batismo e missa).

Mas a definição dessa área de competência, por referencia a área de

competência do padre, não faz do catequista um perfeito substituto daquele.

Principalmente pela razão logica de que ele não é um elemento de fora da comunidade,

como o padre, capaz de cumprir integralmente o papel de mediador com a sociedade

nacional, e de ser , enfim ,um protótipo do patrão .Por outro lado, como funcionário

religiosos , o padre tem que ser, necessariamente , um “outsider” , com poderes distintos

dos demais funcionários religiosos locais. É nesse sentido que surge , muitas vezes , um

tipo de contestação a legitimidade do catequista , como relata um missionário :

“Eles acham que eu deveria vir celebrar missa aqui todo mês .Se eu

esperar que o x(catequista)explique bem o que é, vai custar muito. Ele diz

113

uma poção de coisas, mas eles não dão conta de gravar tudo. Também o x

(catequista) não é padre e quer fazer mais do que o mandado .Aula de 3

hhoras é demais.Se eu viesse celebrar missa de vez em quando ,poderia

dar mas explicações e o povo poderia aprender melhor”.

5.3.2 Modelos Genéricos De Apreensão Das Novas Instituições

A análise do catequista como categoria da cultura local nos introduz a um nível

mais global no qual a ideologia camponesa coloca as suas definições sobre a presença

missionaria na região ,

Tais modelos genéricos de apreensão se colocam em três níveis de discurso ; estes se

hierarquizam pelo principio de uma progressiva delimitação das áreas de relações

sociais dominadas pelo código da cultura missionária e pelo código da sociedade local.

5.3.2.1 O Nível Do Povoado Como Uma Unidade Afetiva

O povoado como unidade afetiva é uma categoria que se constrói a partir da

ideologia do parentesco em seu aspecto mais globalizante(ver Prado ,R.,p.27).Nesse

nível a comunidade local é percebida como um todo uniforme e, enquanto tal

relacionada aos outros mundos sociais conhecidos , também estes vistos a partir de uma

perspectiva globalizante. No caso que nos interessa, essa comparação se mediatiza pela

categoria padre e sua posição estrutural em relação a sociedade local ,isto é , a

posição de veículo da cultura dominante .Por outro lado , se a categoria padre está

historicamente construída a partir do processo de colonização decorrente das inovações

que a igreja introduziu em seu estilo de atuação na área .Percebendo tais inovações e

tentando explica-las , a ideologia camponesa acrescenta uma dimensão temporal que

servirá para marcar dois momentos históricos que percebe como distintos , referindo a

imagem global de seu mundo social na medida em que percebe uma redefinição no

estilo de atuação missionária. Assim , num discurso genérico , toda presença atual da

cultura dominante (isto é , da igreja )será definida como “progresso” , em oposição a um

passado de “atraso”.

“Sim , senhora ,desenvolveu mais o povo , porque os outros era mesmo

que bicho do mato. Porque les(os padres) vieram com essa legião , com

essas palestra, estas missa todo sábado e domingo do primeiro mês

.Entoce melhorou mais ,muito. O pessoal ficou todo mundo mais aberto ,

era um pessoal tudo tolo , então ficou mais encaminhado .Não sabiam um

reza nenhuma , não sabiam uma reza nenhuma, não sabiam o que era uma

legião , nem uma missa , nem nada. Missa tinha só lá uma vez no ano.

Agora é todo mês”.

A categoria progresso, portando, se refere , em principio, a uma presença permanente

da religião oficial , com a consequência de democratizar uma parte do saber

114

dominante(possibilidades de conhecer e acompanhar as rezas do padre),em oposição a

um passado em que todos eram “tolos” , isto é , não dominavam tais conhecimentos. O

progresso também aparece para caracterizar a oposição e competição entre povoados ,

mediada pelo prestígio da presença do padre:

“Aqui é um dos povoados que o padre tinha melhor aceitação. Ele

dizia mesmo, viu, que nunca houve dia de missa pra ter poucas

pessoa. Sempre a igreja era superlotada e eles ficava muito

satisfeito. Tinha lugares aqui que eles chegava, não tinha

ninguém”.

Por fim, a noção de progresso pela presença da cultura dominante se expressa pela

ênfase na necessidade de mudar costumes locais para adequá-los a nova “lei dos

padres”. Nesta adequação aos valores atribuídos a cultura dominantes , aperece

simultaneamente a noção da ilegitimidade da cultura local. A “lei dos padres” significa

a proposição de princípios de conduta “certos”; valores morais(não brigar, não beber ,

não xingar, não frequentar muitas festas) e filiação ritual(casar-se no religioso , assistir

ás missas , batizar no padre , não frequentar pajelança); em oposição aos princípios de

conduta locais , “errados”.

“P. Por que o padre vai contra os costumes do povo?

R.Ele quer endireitar , que esse povo se endireite.

P. Ele acha que tá errado ?

R. Ele acha.

P. E o povo acha errado ?

R. O povo acha que teje certo , mas não tá , senhora.No omeço o

povo era muito chamado de nome , muito inguinorante.Hoje já é

mais difícil de encontar...embora que eles não vão assim na

legião.Mas sempre quando o padre faz reunião ,, enche aquela

tribuna , dá cheinho, homens e mulherer. Então já escutam muito

conselho.Já bem poucos tão com essa besteira”.

5.3.2.2- O