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GT 8. Marx e marxismos latino-americanos 58 Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina ISSN: 2177-9503 Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Século XXI 14 a 17 de setembro de 2010, Londrina, UEL GT 8. Marx e marxismos latino-americanos Estado, democracia e lutas Estado, democracia e lutas Estado, democracia e lutas Estado, democracia e lutas sociais sociais sociais sociais * Juliana Faria Caetano ** Pretendemos neste artigo fazer uma breve reflexão teórica sobre o papel do Estado burguês em sua complexa relação com o regime político, no caso o democrático. Entendemos que o Estado comporta diferentes regimes políticos (democracia ou ditadura) e, em conseqüência, os mesmos sujeitos (classes e frações dominantes) podem ser ora “democráticos” ora “ditadores”. As “opções” entre um regime e outro, para os dominantes, não passam pelas preferências filosóficas, mas pela correlação de forças, pelos interesses políticos e econômicos que estão em jogo em determinada conjuntura. Quando se trata da “escolha”, se foi possível esvaziar o conteúdo popular da democracia, não faltaram teóricos liberais para dar forma institucional ao seu esvaziamento, como fez Schumpeter (entre outros), para quem, a democracia não passa de um procedimento, de um método para a escolha dos governantes. Dessa forma, é importante repropor o debate em torno do tema, mesmo que brevemente e limitado ao campo teórico. Portanto, não se analisará nenhuma formação social específica e só se recorrerá a alguma tão- somente como forma de ilustração. Para tal, recuperamos algumas análises sobre a função do Estado (burguês), como ele organiza os interesses gerais das classes dominantes e como o regime democrático é um instrumento * Este artigo é parte das pesquisas iniciais que desenvolvemos no mestrado, cujo tema principal é a relação entre “responsabilidade social empresarial”, Estado burguês e democracia no Brasil. ** Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e pesquisadora do Grupo de Estudos de Política da América Latina. End. eletrônico: [email protected]

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GT 8. Marx e marxismos latino-americanos 58

Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina ISSN: 2177-9503

Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Século XXI

14 a 17 de setembro de 2010, Londrina, UEL

GT 8. Marx e marxismos latino-americanos

Estado, democracia e lutas Estado, democracia e lutas Estado, democracia e lutas Estado, democracia e lutas

sociaissociaissociaissociais****

Juliana Faria Caetano

**

Pretendemos neste artigo fazer uma breve reflexão teórica sobre o papel do Estado burguês em sua complexa relação com o regime político, no caso o democrático. Entendemos que o Estado comporta diferentes regimes políticos (democracia ou ditadura) e, em conseqüência, os mesmos sujeitos (classes e frações dominantes) podem ser ora “democráticos” ora “ditadores”. As “opções” entre um regime e outro, para os dominantes, não passam pelas preferências filosóficas, mas pela correlação de forças, pelos interesses políticos e econômicos que estão em jogo em determinada conjuntura. Quando se trata da “escolha”, se foi possível esvaziar o conteúdo popular da democracia, não faltaram teóricos liberais para dar forma institucional ao seu esvaziamento, como fez Schumpeter (entre outros), para quem, a democracia não passa de um procedimento, de um método para a escolha dos governantes.

Dessa forma, é importante repropor o debate em torno do tema, mesmo que brevemente e limitado ao campo teórico. Portanto, não se analisará nenhuma formação social específica e só se recorrerá a alguma tão-somente como forma de ilustração. Para tal, recuperamos algumas análises sobre a função do Estado (burguês), como ele organiza os interesses gerais das classes dominantes e como o regime democrático é um instrumento

* Este artigo é parte das pesquisas iniciais que desenvolvemos no mestrado, cujo tema principal é a relação entre “responsabilidade social empresarial”, Estado burguês e democracia no Brasil. ** Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e pesquisadora do Grupo de Estudos de Política da América Latina. End. eletrônico: [email protected]

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político e ideológico importante neste sentido. E, para finalizá-lo, como os setores populares podem se posicionar política e ideologicamente em relação àquelas “opções”.

Acreditamos na importância e na atualidade de retomarmos esse debate e buscarmos um desenvolvimento teórico dessa discussão. Mesmo com o fim do regime militar e a “abertura” democrática, as discussões que se desenvolviam, em diferentes correntes de pensamento, passavam a discutir temas como movimento de transição de democrática, discutia-se democracia como procedimento, como programa político, ou ainda, governabilidade, administração pública, burocracia, etc.

Com o início da transição para democracia (ou início da crise do regime militar) no governo de Geisel, em 1974, inicia-se um processo de “mudanças”, como, por exemplo, a reforma do sistema partidário e a revogação do AI-5. Contudo, vale ressaltar que do início da transição para democracia até a sua efetivação com as eleições diretas, em 1989, com a eleição de Fernando Collor, houve um longo período. Existem diferentes debates sobre as “transições democráticas” e as motivações para essa abertura. Mas, de acordo com Machado:

Entendemos que um dos principais fatores que minou as bases de sustentação políticas e ideológicas das ditaduras militares foi a incapacidade desses regimes em seguir controlando os protestos populares, os quais foram aumentando à medida que o “milagre” brasileiro (1967-1974) e argentino (1963-1974) se esvaíam. (Machado, 2004, p.38)

Assim, o período final do regime militar foi marcado por crises econômicas e aumento de protestos populares. Como sabemos, é no início dos anos de 1980 que o processo de (re) democratização se aclara, por exemplo, com o movimento pelas diretas já, a elaboração da Constituição de 1988, etc.

Diversos grupos e movimentos sociais voltam a lutar por mudanças na organização do regime político, por estabilidade econômica e alargamento de políticas sociais. Mais que isso, os movimentos sociais clamavam por uma democracia que além de englobar mudanças no sentido de uma maior igualdade política também englobassem igualdade social e econômica.

Mas qual o real espaço que a democracia formal que floresce no Brasil teria para esse tal movimento de mudanças, de uma democracia política e também econômica? Para entender a democracia como regime político é preciso também entendê-la como forma de Estado, conseqüentemente, é preciso retomar a discussão sobre o papel do Estado.

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Vale ressaltar que nesse momento tanto as classes populares como a burguesia defendiam a ‘instauração’ da democracia no país; porém, essas classes tinham, de certo modo, interesses e expectativas distintas quanto à democracia. Por um lado, as classes populares lutavam por uma abertura política, mas também por mudanças na distribuição econômica, por um aumento de políticas sociais, pelo igualitarismo e justiça social. Por outro lado, as classes econômica e politicamente dominantes reivindicavam a democracia como um procedimento para a escolha dos governantes e que garantisse estabilidade política para a efetivação de seus interesses de classe.

Entendemos a democracia formal no Brasil como democracia burguesa, assim como entendemos o Estado como Estado capitalista burguês. De acordo com Saes, o Estado não é apenas uma dimensão da atividade social total, mas sim, “é sempre uma organização especial, um corpo de funcionários cuja função é praticar uma série de atos destinados a amortecer o conflito entre as classes sociais” (1987, p.19).

Não é possível pensar o processo de democratização sem problematizar, ainda que brevemente, a formação do Estado e quais classes ele representa, quer dizer, pensá-lo como parte de uma formação social capitalista. Essa questão talvez seja o elemento central sobre o movimento de (não) transformações conjunturais, ou seja, mesmo mudando regimes políticos ou a forma de planejamento econômico, os problemas de desigualdades e de pobreza social permanecem ao longo dos séculos, pois os elementos centrais dessa conjugação são retirados do debate e se mantêm sob a bandeira de transformação e de democratização.

Para que essa forma de organização social dos modos de produção se mantenha é preciso esse comitê, que representa as forças dominantes, para a manutenção dessa ordem, ou seja, amortecer o conflito entre essas classes antagônicas. É esse comitê e suas atividades que chamamos de Estado. Nas palavras de Saes:

Para Marx e Engels, nas coletividades divididas em classes sociais antagônicas (exploradora e explorada) o Estado se identifica com o subgrupo de homem, destacado total ou parcialmente das tarefas inerentes ao processo de produção, que desempenha a função de preservar essa cisão, de impedir que a divisão da coletividade em classe social exploradora e classe social explorada desapareça. (Saes, 1987, p.12)

Certamente não queremos resumir a estrutura e o papel do Estado nessas breves definições, o que buscamos é definir o conceito do qual partimos para pensar a relação do Estado moderno e o regime político democrático formal. O Estado moderno se desenvolve e guarda características especificas que precisam ser considerados. O que

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pretendemos com essa breve exposição é resumir a tese de Estado em geral para Marx e Engels.

Dessa forma, também não é possível discutir o Estado sem discutir sua estrutura de classe, assim como não é possível discutir democracia sem discutir a relação de desigualdades políticas, econômica e social. Sobre o Estado, Saes (1998) expressa de forma clara a peculiaridade do Estado burguês moderno1.

A correspondência entre o Estado burguês e as relações de produção capitalista não consiste numa relação simples e unívoca entre ambos. Qual é, então, a natureza dessa correspondência? Um tipo particular de Estado – o burguês- corresponde a um tipo particular de relações de produção – capitalistas-, na medida em que só uma estrutura jurídico- política específica torna possível a reprodução das relações de produção capitalista. Essa é a verdadeira relação entre o Estado burguês e as relações de produção capitalistas: só um Estado burguês torna possível a reprodução das relações de produção capitalistas. (Saes, 1998, p.22)

A partir dessa compreensão, Saes desenvolve o conceito de Estado burguês; para ele o Estado é burguês quando transforma todos os homens em sujeitos iguais (seja da classe exploradora, seja da classe explorada), como homens capazes de praticar atos de vontade, e no qual todos os membros dessa sociedade podem fazer parte do corpo de funcionários do Estado. Esse Estado atribui a todos capacidade jurídica geral, tornam todos os sujeitos em indivíduos de direito e de deveres, em homens livres. (1987, p.50)

O que especifica esse Estado burguês é sua capacidade de se organizar internamente através de critérios ‘universalistas’, “pode se apresentar à classe explorada como uma comunidade humana voltada à realização dos interesses comuns a todos os ‘indivíduos’, independentemente de sua posição no processo social de produção” (1987, p.51). É sua capacidade em tornar a propriedade privada um direito inalienável, de tornar a relação de exploração do processo social de produção em contrato de trabalho, realizado entre homens iguais e livres.

Outro autor importante para pensarmos o Estado na sociedade capitalista é Poulantzas (1977), que elabora sua tese de teoria regional do político com o objetivo de compreender o papel do político e do Estado na reprodução do modo de produção capitalista, ou seja, busca compreender a superestrutura do Estado no modo de produção capitalista, a instância regional do político. Poulantzas coloca o Político (Estado) como objeto 1 Vale explicar que Saes, nesse texto, está discutindo o Estado Burguês apoiando-se nas teses de Poulantzas sobre o Estado, que para ele seria o Estado Capitalista, porém, essa citação de Saes vai ao encontro com nossas inquietações e idéias.

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próprio do materialismo histórico, atribui ao político certa autonomia relativa, sendo assim, entende que o modo de produção capitalista é especificado por uma autonomia relativa entre suas instâncias.

Poulantzas caracteriza o Político como o lugar da estrutura político- jurídico no capitalismo. O autor entende o Estado como reprodutor das estruturas capitalistas, da divisão de classes, a atribuição do papel desse Estado se dá pela suas estruturas repressivas, pelo direito burguês (valores jurídicos) e o burocratismo. O que o autor busca explicitar em Poder Político e classes Sociais é a relação do Estado capitalista com as classes e frações de classes, com o bloco no poder.

Se as estruturas que se articulam na totalidade social capitalista consistem num conjunto de valores que regulam e enquadram de modo duráveis de um certo tipo (econômicas, políticas), a estrutura jurídico-política consiste particularmente num conjunto de valores que, não obstante o fato de se concretizarem de modo articulado, devem ser classificados em espécie diferentes conforme a dimensão da prática política que é por eles regulada e enquadrada. Pertencem a uma primeira espécie aqueles valores que regulam e enquadram as práticas econômicas e as relações sociais por elas condicionadas (por exemplo, as relações familiares): são os valores jurídicos capitalistas, ou o direito capitalista. Pertencem a uma segunda espécie aqueles valores que regulam e enquadram as relações entre os agentes funcionalmente encarregados de regular e enquadrar as prática econômicas e as relações sociais por elas condicionadas: são os valores burocráticos capitalistas, ou o burocratismo. (Saes, 1998, p.49)

Outro ponto que Poulantzas nos coloca sobre a estrutura jurídico-politica do Estado, é que essa está relacionada com a estrutura das relações de produção, o que fica claro quando se fala em direito capitalista. Para Poulantzas, a separação entre os meios de produção e o produtor direto se dá através da “fixação institucionalizada” dos agentes da produção como sujeitos jurídicos; ou seja, os agentes da produção só aparecem como indivíduos nas relações jurídicas, do qual decorrem o contrato de trabalho e a propriedade formal dos meios de produção. Dessa forma, essa separação “que engendra no econômico a concentração do capital e a socialização do processo de trabalho, instaura, conjuntamente, ao nível jurídico-político, os agentes da produção na qualidade de ‘indivíduos- sujeitos’, políticos e jurídicos, despojados da sua determinação econômica e, portanto, da sua inserção em uma classe.” (Poulantzas, 1977, p.124)

Explicada brevemente essa questão, podemos pensar como essa estrutura jurídico- política, o Estado, consegue se organizar como se não houvesse luta de classes. Poulantzas desenvolve a tese do bloco no poder como conceito aplicado ao Estado capitalista, já que esse Estado tem uma relação específica entre as classes ou frações de classe, cujos interesses políticos este

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Estado responde. Isto permite situar as relações entre as diferentes formas de Estado e a “configuração” típica que essa relação apresenta entre as classes e frações de classe. Esse quadro não pode ser visto numa simples visão “dualista” da luta de classes, ou seja, entender o Estado capitalista através da luta entre classe dominante e classe dominada.

Convivem num mesmo terreno diversas classes e frações de classes dominantes, assim como classes dominadas, dessa forma, desenvolvem-se um mecanismo de organização desses interesses. O bloco no poder representa a unidade política específica que está delineado na própria estrutura do Estado capitalista. Esse conceito nos mostra que a unificação política das classes proprietárias contra as classes trabalhadoras não exclui a submissão política de certas frações de classe dominante à fração de classe dominante mais poderosa. (Saes, 1998, p.05)

Com efeito, se essa coexistência de várias classes constitui um caráter geral de toda a formação social, ela assume, contudo, formas específicas nas formações capitalistas. Podemos estabelecer, nestas formações, a relação entre, por um lado, um jogo institucional particular inscrito na estrutura do Estado capitalista, jogo que funciona no sentido de uma unidade especificamente política do poder de Estado, e, por outro lado uma configuração particular das relações entre as classes dominantes: essas relações, na sua relação com o Estado, funcionam no seio de uma unidade política especifica recoberta pelo conceito do bloco no poder. (1998, p. 224)

Como dito, o Estado capitalista tem a particularidade da coexistência e de variação entre as várias classes e frações de classe. Através do conceito do bloco no poder, é possível constatar o favorecimento dos interesses econômicos de uma fração da classe dominante, através da sua ação político-administrativa, em detrimento das demais frações. Esse Estado passa a ser um organizador da hegemonia de uma fração da classe dominante no seio do bloco no poder. (Lazagna, 2007, p. 05)

Apesar de toda essa relação complexa, através dessas estruturas racionais legais, do direito e do burocratismo, o Estado aparece como neutro; como representante dos interesses da maioria, por exemplo, através do sufrágio universal. Para Poulantzas, o sufrágio nada mais é que um jogo institucional que permite o exercício das classes dominantes no exercício da dominação. O sufrágio alarga a relação do Estado capitalista com a existência particular de várias classes e frações dominantes.

Dessa forma, o sufrágio é um momento importante de disputa do poder entre as frações de classe. A burguesia no modo de produção capitalista apresenta-se dividida em frações de classe; nem sempre as frações correspondem às formações concretas de produção, ou do bloco ou do

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Estado. Essa é uma característica importante do Estado moderno, que se caracteriza pela autonomia relativa do Estado. Diversos outros pontos são importantes para, ao menos, uma compreensão básica dos pressupostos da teoria desenvolvida por Poulantzas, entretanto, nos cabe aqui, fazer apenas alguns apontamentos sobre essa obra.

Como vemos, o Estado burguês pode ter como forma ou regime tanto uma ditadura burguesa quanto uma democracia burguesa. Se todos os membros da sociedade são considerados cidadãos no plano civil, efetiva-se então uma democracia burguesa; caso essa cidadania política seja negada as classes sociais, há então uma ditadura burguesa. Para que a democracia burguesa exista é preciso considerar essas liberdades políticas, que são formais e concretas; esse é um elemento importante para pensar a participação política das classes exploradas, numa organização partidária, haja vista que em outros regimes essa participação é muito mais limitada. (1987, p.61-62)

Vale ressaltar que mesmo que as classes populares consigam eleger delegados que os representem no Parlamento, ainda assim essa democracia é burguesa, pois existem limitações políticas impostas ao Parlamento. E essas limitações são encontradas quando é colocada em questão a exploração do trabalho. Para que a democracia burguesa exista é preciso que esse Parlamento tenha um papel real dentro desse Estado, porém, o Parlamento está sempre se relacionando com a burocracia do Estado (civil e militar). Caso essa burocracia esteja em risco, por exemplo, com o aumento da organização da classe explorada (situação revolucionária), o Parlamento pode ser suspenso, tornando-se uma ditadura burguesa.

Como ilustração dessa situação de “risco”, podemos pensar o caso da ditadura brasileira, com o golpe de 1964. Dada uma situação de risco (real ou ilusória) causada por crises econômicas, insatisfação popular e a ameaça fantasmagórica da esquerda; as forças militares se juntam em prol dos “interesses gerais” (da burguesia) e instauram a ditadura militar.

Assim, o Parlamento burguês tende a servir – mesmo na hipótese de todos os seus membros defenderem abertamente os interesses gerais do capital- como anteparo contra ataques policiais- militares da burocracia às classes populares. Mas, (...) essa tendência é neutralizada em caso de emergência de uma crise política aguda ou, no limite, de uma situação revolucionária. (Saes, 1987, p.61)

Estamos partindo aqui de uma análise do Estado e da democracia numa perspectiva de classe, dentro da estrutura teórica marxista, todavia, não é essa a perspectiva dominante nem nos debates teóricos nem nas implicações da vida política prática. Dessa forma, os pensadores sociais que buscam desenvolver essas questões precisam debater com essas diferentes

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teses; certamente não nos cabe nesse breve artigo nos aprofundarmos nesse debate, mas não podemos deixar de assinalar essa questão2.

Como nos mostra Wood, a democracia só pode ser compatível ao capitalismo se for esvaziada do seu sentido popular, ou melhor, se for separado ainda mais o político do econômico. De acordo com a autora, a democracia não é compatível com o capitalismo, se for pensado democracia em seu sentido clássico, ou seja, governo do povo; contudo a democracia burguesa não só é compatível com o capitalismo, como pode ser um regime muito favorável ao capital.

De acordo com Machado (2004), o debate sobre democracia pode ser resumido em dois campos teóricos distintos:

No primeiro deles, estão aqueles que procuram justificar e legitimar a 'democracia realmente existente', como os teóricos da democracia procedimental. No segundo, estão aqueles que analisam a democracia burguesa e os seus limites a partir da forma como o Estado se organiza e em decorrência, o regime democrático é encarado como resultado da relação de forças no seio do bloco no poder e deste bloco com as massas populares. (Machado, 2004, p. 59)

Machado (2004) está em sintonia com Wood (2006) no sentido de entender a democracia institucional como democracia burguesa, e principalmente na contradição entre democracia popular e capitalismo. Seguindo o pensamento de Wood, a autora busca compreender as transmutações do conceito de democracia problematizando a suposta separação entre o político e o econômico na sociedade capitalista, todavia, essa separação não se dá de forma completa:

A esfera política no capitalismo tem um caráter especial porque o poder de coação que apóia a exploração capitalista não é acionado diretamente pelo apropriador nem se baseia na subordinação política ou jurídica do produtor a um senhor apropriador. Mas são essenciais um poder e uma estrutura de dominação, mesmo que a liberdade ostensiva e a igualdade de intercâmbios entre capital e trabalho signifiquem a separação entre o “momento” da coação e o “momento” da apropriação. A propriedade privada absoluta, a relação contratual que prende o produtor ao apropriador, o processo de troca de mercadorias exigem formas legais, aparato de coação e as funções policiais do Estado. Historicamente o Estado tem sido essencial para o processo de expropriação que está na

2 Referimo-nos, principalmente, ao debate proposto por Ralph Miliband (1969), cujo intuito principal era refutar as teses pluralistas, ao demonstrar como elas serviram para limitar o debate sobre o Estado. Dessas teses democráticas pluralistas fica excluída a idéia de que o Estado poderia ser uma instituição especial, “cujo objetivo é defender o predomínio na sociedade de uma determinada classe”; também se excluem as classes e as lutas de classes. Em seu lugar, propõem “blocos de interesse”, com condições iguais de competição política, garantido pelo Estado (Miliband, 1972:14).

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base do capitalismo. Em todos esses sentidos, apesar de sua diferenciação, a esfera econômica se apóia firmemente na política. (Wood, 2006, p.35)

Um exemplo dessa implicação se dá na própria organização da classe trabalhadora, haja vista que essa passa a perceber seu trabalho apenas no campo econômico, travando lutas no interior de seu pólo industrial, por soluções paliativas, como o aumento do salário, o que resulta por fim num desmembramento da classe, cada grupo lutando separadamente. As lutas de classe ficam concentradas no local da produção, numa disputa aparentemente não política. (Wood, 2006, p. 47)

A questão central, abordada primeiramente por Marx, é desvendar o capitalismo a fim de entender as relações sociais (políticas e econômicas) e a disposição do poder entre exploradores e explorados. Entretanto, correntes de teóricos liberais fazem um trabalho de harmonização da relação de produção, separam o econômico do político, demonstrando que suas relações são casuais e não determinadas.

A empresa privada capitalista coloca-se numa esfera separada da organização do Estado e da sociedade civil, aparentemente são três patamares separados, porém que se relacionam. Por exemplo, num período de crise financeira, como a que ocorre atualmente (2008-2009), o Estado deve intervir para saúde econômica da nação, investindo financeiramente para recuperação do setor econômico privado, haja vista que o desmoronamento desse setor poderá gerar uma crise social.

A ampliação da cidadania passa a incluir os trabalhadores livres e não apenas os proprietários, entretanto ela é esvaziada da esfera política, sendo entendida cidadania como liberdade do indivíduo. O capitalismo concebe uma democracia formal, assim, essa forma democrática permite a igualdade cívica convivendo junto à desigualdade social, assim, a democracia moderna funciona sem discutir a locação do poder econômico.

Ao deslocar o centro do poder do senhorio para a propriedade, o capitalismo tornou menos importante o status cívico, pois os benefícios do privilégio político deram lugar à vantagem puramente “econômica”, o que tornou possível uma nova forma de democracia. (...) a democracia capitalista ou liberal permitiria a extensão da cidadania mediante a restrição de seus poderes. (Wood, 2006, p.180)

As democracias modernas acolhem as desigualdades econômicas e os conflitos de interesse em bem comum, seguindo uma noção abstrata de nação e de cidadania; a democracia formal (burguesa) deixa intocada as relações econômicas, principalmente a relação entre proprietários e produtores.

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Na democracia capitalista, a separação entre a condição cívica e a posição de classe opera nas duas direções: a posição socioeconômica não determina o direito à cidadania- e é isso o democrático na democracia capitalista-, mas, como o poder do capitalista de apropriar-se do trabalho excedente dos trabalhadores não depende de condição jurídica ou civil não afeta diretamente nem modifica significativamente a desigualdade de classe – e é isso que limita a democracia no capitalismo. As relações de classe entre capital e trabalho podem sobreviver até mesmo à igualdade jurídica e ao sufrágio universal. Neste sentido, a igualdade política na democracia capitalista não somente coexiste com a desigualdade socioeconômica, mas a deixa fundamentalmente intacta. (Wood, 2006, p.184)

Seguindo esse debate sobre a democracia moderna, observa-se em Machado (2004) como as teses desenvolvidas pelos teóricos burgueses da democracia, tiveram uma grande influência no debate da democracia como regime político. Floresceu uma democracia subordinada ao sistema capitalista, na forma de uma democracia limitada; o excesso de democracia passa a ser entendida como perigosa para estabilidade econômica e política, sendo assim deveria ser restrita. Na retórica de Machado vê-se:

(...) o esvaziamento da participação popular permite que representantes políticos da burguesia assumidamente antidemocráticos a defendam e a adéqüem aos seus interesses minoritários. A fim de evitar novas crises de 'governabilidade', esses teóricos sugerem limites ao seu funcionamento, bem como não se importam que isso gere apatia política dos cidadãos. Ao contrário, sustentam que a apatia é desejável à estabilidade do regime. (Machado, 2004, p. 64)

Machado busca mostrar como o modelo de democracia moderna (procedimental) que se desenvolveu estava concatenado com o desenvolvimento do capitalismo; os defensores desse modelo se inspiravam em Schumpeter (1961), na qual o processo de decisão política deveria se dar por eleições competitivas livres e voto livre, mais do que isso, o recrutamento desses políticos deveria advir naturalmente de uma elite política com experiências em negócios privados, altamente qualificado. A eficiência do governo democrático deve ser constituída por uma burocracia forte, treinada e que instrua os políticos.

Outro elemento importante na teoria da democracia de Schumpeter é que para que essa democracia funcione é preciso que “todos os grupos importantes da nação estejam dispostos a aceitar todas as medidas legislativas e todas as ordens governamentais” (Machado, 2004, p.66). Esse método democrático está desprovido de intervenção popular, ou seja, o eleitor tem direito de se manifestar, silenciosamente, através da escolha de um governante entre um grupo pré-selecionado. Ou seja, o sentido da

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palavra democracia pouco tem do seu sentido original de governo do povo, mas sim:

(...) a democracia não significa nem pode significar que o povo realmente governa em qualquer dos sentidos tradicionais das palavras povo e governo. A democracia significa apenas que o povo tem a oportunidade de aceitar ou recusar aqueles que governarão. Mas, uma vez que decidir isso de maneira inteiramente não-democrática, devemos limitar nossa definição, acrescentando-lhe outro critério para identificação do método democrático, isto é, a concorrência livre entre possíveis lideres pelo voto do eleitorado. Um dos aspectos dessa definição pode ser expresso se dizemos que a democracia é o governo dos políticos. (Schumpeter, 1961, p. 346)

Apesar dos limites dessa democracia liberal (que não nos cabe aqui prolongar ainda mais o debate), não podemos descartar a importância da democracia para as classes populares. Como já discutido por Saes em um de seus trabalhos, compreendemos que na democracia burguesa a participação direta das classes exploradoras é maior, porém, as classes exploradas também conseguem condições mais favoráveis a sua organização. "(...) a classe explorada pode, graças a um esforço material coletivo, chegar a usufruir minimamente desses direitos e a construir, assim, alguma forma de organização da luta contra a classe exploradora." (Saes, 1998, p.147)

Entretanto, existe todo um debate sobre os limites que a democracia burguesa traz para a classe proletária. Saes, a partir de sua releitura de Lênin, compreende que a democracia burguesa traz consigo duas possibilidades para a classe explorada: "(...) de um lado, é possível que instituições políticas democráticas sirvam como instrumento de dominação ideológica burguesa sobre o proletariado; de outro lado, é possível que tais instituições se constituam em fator de desenvolvimento da consciência revolucionária do proletariado. É evidente que, no tempo e lugar em se concretiza uma dessas possibilidades, a outra possibilidade se acha excluída." (Saes, 1998, p.163)

Dessa forma, entende-se que a democracia formal pode ser a melhor forma política para o capitalismo, porém, também é mais favorável para liberdades de organização do proletariado. Mas como contraditória em sua essência é essa colocação, os limites da luta permanece, dessa forma entendemos a importância desse debate.

Bibliografia

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