espiritismo orientação para católicos

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Espiritismo orientao para catlicosFrei Boaventura Kloppenburg

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SUMRIOINTRODUO ......................................................................................................... I - O ESPIRITISMO ............................................................................................... 1. A11an Kardec e sua codificao do espiritismo............................................ 2. A doutrina esprita ......................................................................................... 3. Doutrina esprita e mensagem crist .............................................................. 4. O espiritismo de umbanda ............................................................................. II - A EVOCAO................................................................................................. 1. Ser possvel comunicar-se com os falecidos? ............................................... 2. Rejeio crist da revelao mediante falecidos............................................ 3. Os efeitos negativos da evocao ................................................................... III - O FUNDAMENTO ESPIRITA DA DOUTRINA.......................................... 1. Os quatro fatores formativos da doutrina esprita.......................................... 2. A credibilidade dos mdiuns .......................................................................... 3. A credibilidade dos espritos que se comunicam............................................4 4. A credibilidade da codificao ....................................................................... 5. As fontes humanas da doutrina esprita .......................................................... IV - A REENCARNAO ......................................................................................... 1. Ensinou Jesus a pluralidade das vidas terrestres?.................................. 2. Ensinou Jesus a lei do progresso irreprimvel e universal para a perfeio?..... 3. Ensinou Jesus a necessidade de conquistar a perfeio final por esforos e mritos pessoais?... 4. Ensinou Jesus uma vida definitivamente independente do corpo?... 5. Joo Batista seria a reencarnao do profeta Elias?.... 6. Nascer de novo (Jo 3,3) V - O FLUIDO ...................................................................................................... 1. O mesmerismo ............................................................................................ 2. O fluidismo esprita ..................................................................................... 3. Fluidismo curandeirista ............................................................................... VI - A PSICOGRAFIA ......................................................................................... 1. Kardec encontra as mesas falantes.............................................................. 2. A insuficincia da crtica kardecista ............................................................ 3. A psicografia apresentada por Allan Kardec ............................................... 4. Anlise psicolgica de uma mensagem psicografada................................. 5 . A psicografia de Chico Xavier .................................................................... 6. Nosso Lar: um exemplo concreto............................................................. 7. O sobrinho tambm psicografava.. .............................................................. VII - A IGREJA CATLICA E O ESPIRITISMO .............................................. 1. O esprita perante a Igreja ............................................................................ 2. A Igreja perante a fenomenologia medinica ............................................... 3 . Caridade e f ............................. .................................................................. VIII - O ALM CRISTO ................................................................................... 1. Jesus, o revelador do alm.......................................................................... 2. A doutrina crist sobre a morte .................................................................. 3. A morte no o fim de nossa existncia .................................................... 4. Somos destinados vida eterna .................................................................. 5. A morte o fim do estado de provao ...................................................... 6. Os falecidos que esto no cu..................................................................... 7. A comunho dos santos .............................................................................. 8 . As almas do purgatrio .............................................................................. 9 . O limbo das crianas que morrem sem batismo......................................... 10. Os condenados ao inferno.......................................................................... 11. A ressurreio dos falecidos....................................................................... 12. Os anjos...................................................................................................... 13. O anjo da guarda......................................................................................... 14. O diabo e seus demnios............................................................................ 15. Deus conosco..............................................................................................

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INTRODUAO

No sou novato em matria de espiritismo. Na dcada de 50 publiquei sobre a matria livros, cadernos, folhetos e artigos sem conta. Era antes do Conclio Vaticano II (1962-1965), quando defendamos nossa f crist e nossa Santa Igreja contra os ataques de seus adversrios. E entre eles estava evidentemente o espiritismo. Era a apologtica. Meus escritos, ento, estavam sem dvida marcados pelo nimo de defesa da f, para a orientao dos catlicos. De um dos meus folhetos (Por que o catlico no pode ser esprita) chegamos atirar, em sucessivas edies de cem ou duzentos mil exemplares, mais de um milho de cpias. Veio ento o Conclio com seu apelo ecumnico para o dilogo e a unio. Dizia-se que o Vaticano II acabara de vez com a apologtica. Em consequncia e obediente, afastei-me da lia. Meus livros sobre a matria no foram mais publicados. Os espritas respiraram ento vontade. Mas, de fato, depois no houve nem dilogo nem muito menos unio. E como poderia haver unio entre afirmar e negar a reencarnao? No ensinara o prprio Conclio Vaticano II a unicidade da vida humana na terra? E como conciliar a evocao dos mortos com a proibio divina da necromancia? No nos recordara o mesmo Conclio a interdio de quaisquer prticas de evocao dos espritos? O espiritismo prosseguiu, pois, sua sistemtica ofensiva de propaganda e penetrao nos ambientes catlicos do Brasil, j sem encontrar da parte da Igreja uma atitude de defesa e de orientao. As obras de seu codificador, Allan Kardec, continuaram a ser editadas e difundidas entre nossos fiis. O evangelho segundo o espiritismo, que at 1958 tivera um total de 555 mil exemplares postos no mercado, recebeu agora, em 1986, sua 92 edio, alcanando a cifra de 1.920.000 exemplares. Distribudos por cinco editoras, j se venderam cerca de onze milhes de livros das obras do codificador do espiritismo. Allan Kardec s superado por Chico Xavier, com quinze milhes de exemplares vendidos. Se na dcada de 50 em So Paulo houve um total de 1.869 novas associaes medinicas (de espiritismo, umbanda e candombl) registradas nos cartrios, na dcada de 70, j depois do Conclio, houve um registro de 8.685 novas entidades deste tipo, s na cidade de So Paulo. Estas cifras, por si ss, evidenciam que o espiritismo, em suas vrias modalidades, continua sendo um grave problema tambm depois do Conclio. E o retraimento da Igreja psconciliar foi certamente uma das causas de sua difuso. Nem verdade que o Vaticano II no mais quis de ns uma atitude de defesa da f. Na Constituio Lumen Gentium os bispos so exortados para que com vigilncia afastem os erros que ameaam seu rebanho (n. 25a). No Decreto Optatam Totius determina o Conclio que nos seminrios as disciplinas teolgicas sejam ensinadas de tal forma que os alunos possam anunci-las, exp-las e defend-las no ministrio sacerdotal (n. 16a). Segundo a Lumen Gentium os leigos devem difundir e defender a f (n. 11a). E no Decreto Apostolicam Actuositatem lemos: Grassando na nossa poca gravssimos erros que ameaam inverter profundamente a religio, este Conclio exorta de corao todos os leigos que assumam mais conscientemente suas responsabilidades na defesa dos princpios cristos (n. 6d). A prpria Declarao Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, recorda: O discpulo tem o grave dever de anunciar a verdade recebida de Cristo com fidelidade e de defend-la com coragem(n. 14d). Tambm defesa da f depois do Conclio. Dilogo ecumnico com o espiritismo? O Vaticano II nos explica que por movimento ecumnico se entendem iniciativas e atividades que visam unio dos cristos (Unitatis Redintegratio, n. 4b). Um verdadeiro movimento ou dilogo ecumnico s possvel com aquelas Igrejas ou comunidades crists separadas da comunho catlica que efetivamente do esperanas positivas de chegar outra vez comunho plena. Mas o espiritismo no uma Igreja separada, nem mesmo pretende ser Igreja. No somente no h nenhuma esperana de conseguir algum dia comunho plena com os reencarnacionistas, mas semelhante comunho no nem sequer pensvel. Leia-se na presente obra o captulo sobre a reencarnao e ver-se- que o reencarnacionismo no cristo e que seus postulados fundamentais se opem total e absolutamente soteriologia crist. E mesmo que se proclamassem cristos, seria necessrio dizer-lhes que em verdade no o so. Em sua declarao oficial de 2 de janeiro de 1978, a Federao Esprita Brasileira, que kardecista, fez saber que imprpria, ilegtima e abusiva a designao de espritas adotada por

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pessoas, tendas, ncleos, terreiros, centros, grupos, associaes e outras entidades que, mesmo quando legalmente autorizados a usar o ttulo, no praticam a doutrina esprita, isto , o conjunto de princpios bsicos codificados por Allan Kardec. Pela mesma lgica se pode afirmar tambm que imprpria, ilegtima e abusiva a designao de cristos adotada por pessoas, centros, terreiros ou outras entidades que, mesmo quando legalmente autorizados a usar o ttulo, no praticam a doutrina crist. Colocados pastoralmente diante dos movimentos espritas (ou outros, que no faltam entre ns), necessrio que nos perguntemos honradamente qual nosso objetivo. Temos dois campos bem diferentes: de um lado esto os sectrios com seus mtodos proselitistas, procurando penetrar no ambiente catlico; de outro lado temos os prprios catlicos mais ou menos facilmente vtimas desta propaganda sectria. A quem queremos dirigir-nos pastoralmente: aos propagadores da evocao e da reencarnao ou aos fiis catlicos vtimas deste assalto? Do objetivo depender nosso mtodo. Se no definimos previamente e com clareza a meta, ou se pretendemos alcanar uns e outros, animados com a benvola atitude de compreenso, de abertura e de dilogo com relao aos agressores, teremos uma ao pastoral hbrida, que produzir nos fautores do erro grande alegria (pois lhes deixamos abertas todas as portas e ainda abrimos outras) e nos catlicos um estado de confuso, desorientao e perplexidade ainda maior. Desde o Conclio se insistiu muito no dilogo com os no-catlicos. Esta disposio de dilogo com os responsveis do movimento esprita no deve jamais olvidar que sua ativa presena entre nossos fiis tem um objetivo claro e definido, que certamente no o de ajudarnos a conseguir que sejam melhores cristos catlicos. O Documento de Puebla constata que muitas seitas se tm mostrado clara e pertinazmente no s anti-catlicas, mas at injustas contra a Igreja, e tm procurado minar seus membros menos esclarecidos. Devemos confessar com humildade que, em grande parte, at em determinados setores da Igreja, uma falsa interpretao do pluralismo religioso permitiu a propagao de doutrinas errneas e discutveis (n. 80). Por estes motivos nossa atitude pastoral h de dirigir-se em primeiro lugar diretamente s vtimas da propaganda esprita. No podemos esquecer o grave fato da presena ativa, com claros propsitos proselitistas, daquilo que o Senhor chamou falsos profetas. Tem-se a impresso de que entre os mesmos pastores catlicos j no h ambiente para recordar palavras como estas de Jesus: Guardai-vos dos falsos profetas, que vm a vs disfarados de ovelhas, mas por dentro so lobos ferozes. Pelos seus frutos os conhecereis (Mt 7,15-16). Ou estas: Ento, se algum vos disser: Olha o Messias aqui, ou ali, no creiais. Pois ho de surgir falsos messias e falsos profetas, que apresentaro grandes sinais e prodgios, de modo a enganar at mesmo os eleitos, se possvel. Eis que vo-lo predisse (Mt 24,23-25). Da a posterior advertncia do Apstolo: Sede solcitos por vs mesmos e por todo o rebanho... Eu sei que, depois de minha partida, introduzir-se-o entre vs lobos cruis que no pouparo o rebanho, e que no meio de vs surgiro homens que faro discursos perversos com a finalidade de arrastar discpulos atrs de si (At 20,28-30; ci. 2Ts 2,3-4; 2Pd 2,1-3 e todo o capo 13 do Ap). Quem no entra pela porta do redil das ovelhas, mas sobe por outro lugar, ladro e assaltante (10 10,1). No nego o alcance e o valor positivo do dilogo. Haver situaes concretas e objetivos pastorais que pedem dar absoluta preferncia ao mtodo e atitude do dilogo: no verdadeiro ecumenismo, quando h esperanas positivas de chegar a uma plena comunho, o dilogo ser a via indispensvel. Mas pode haver tambm situaes concretas de defesa e de apologtica: precisamente o estado dos catlicos indefesos, no suficientemente instrudos e preparados, constantemente molestados por importunos e falsos profetas disfarados como cristos. O binmio apologtica-dilogo no deve ser proposto em forma disjuntiva, ou apologtica ou dilogo, mas na forma conjuntiva, e apologtica e dilogo. Apologtica ser a atitude pastoral com os crentes vtimas da invaso das seitas; dilogo ser a atitude pastoral com os no-catlicos desejosos de encontrar a unidade perdida mandada pelo Senhor. Quando a situao do agressivo proselitismo sectrio nos obriga a recorrer ao mtodo apologtico ou defensivo, ser tambm inevitvel a polmica: diante da necessria atitude de defesa, o sectrio reaciona; e esta reao pede muitas vezes resposta esclarecedora ou retificadora. Temos ento a polmica. Encontramo-la em Cristo, nos Apstolos e nos melhores Santos Padres e Doutores da Igreja. Este servio dos pastores inclui o direito e o dever de corrigir e decidir, com a clareza e a firmeza que sejam necessrios (Puebla n. 249). Em algumas ocasies, falta a oportuna

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interveno magisterial e proftica do bispo, bem como maior coerncia colegial (ib. n. 678). O silncio e a atitude de tolerncia, por vezes, pode ser um pecado de omisso e ter como consequncia uma grei desatendida e dispersa. Devemos ser pastores. Pastores vigilantes. O bom pastor d a sua vida por suas ovelhas. O mercenrio que no pastor, a quem no pertencem as ovelhas, v o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa (10 10,11-12). No Apocalipse 2,13-16 diz o Senhor ao responsvel da comunidade de Prgamo: Sei onde moras: onde est o trono de Satans. Tu, porm, seguras firmemente o meu nome, pois no renegaste a minha f, nem mesmo nos dias de Antipas, minha testemunha fiel, que foi morto junto a vs, onde Satans habita. Tenho, contudo, algumas reprovaes a fazer: tens a pessoas que seguem a doutrina de Balao, o qual ensinava Balaq a lanar uma pedra de tropeo aos filhos de Israel, para que comessem das carnes sacrificadas aos dolos e se prostitussem. Do mesmo modo tens, tambm tu, pessoas que seguem a doutrina dos nicolatas. Converte-te, pois! Do contrrio, virei logo contra ti para combat-los com a espada de minha boca. certo que no Brasil o espiritismo no nosso nico problema religioso. Infelizmente. Mas continua vlida a constatao feita pelos bispos em 1953: que, no momento, o espiritismo ainda o desvio doutrinrio mais perigoso, j que nega no apenas uma ou outra verdade de nossa santa f, mas todas elas, tendo, no entanto, a cautela de dizer-se cristo, de modo a deixar, a catlicos menos avisados, a impresso erradssima de ser possvel conciliar catolicismo com espiritismo. No Documento de Puebla os bispos latino-americanos sabem da existncia, entre ns, de movimentos pararreligiosos que aceitam uma realidade superior (espritos) com a qual pretendem comunicar-se para obter ajuda e normas de vida (n. 1105), procurando entrar em contato pessoal com aquele mundo da transcendncia e do espiritual a fim de receber respostas para as necessidades concretas do homem (n. 1112). Pedem ento os bispos que as comunidades catlicas recebam informao e orientao sobre estes movimentos, particularmente acerca das distores que eles contm para a vivncia da f crist (n. 1124). Como ontem, tambm hoje necessrio oferecer aos fiis os subsdios de que precisam para que possam cumprir aquele dever que o Conclio lhes recordava de defender com coragem a f contra os erros que ameaam inverter profundamente a vida crist. Numerosos bispos, padres e leigos em apostolado me pediram esta ajuda. No seria to difcil: j escrevera tanto sobre o assunto. E como tudo est esgotado, sinto-me desimpedido para escolher e retomar o que me parece mais conveniente para a situao atual. Com total desembarao retomo antigos textos meus sem coloc-los entre aspas nem indicar sua origem. No Brasil de 1986, o espiritismo exatamente igual que em 1960, quando publiquei a primeira edio de O espiritismo no Brasil. Refiro-me ao espiritismo de Kardec, porque no de umbanda houve complicaes. A Federao Esprita Brasileira, tutora do kardecismo, lana hoje as mesmas obras de ontem, tendo-se tomado apenas mais intransigente com relao umbanda. , como diria Roger Bastide, um exemplo tpico de religio em conserva. Entrementes, na Frana, donde nos veio o kardecismo no sculo passado, houve mudanas essenciais, com um desfeche inesperado: em 1976 a Revue Spirite, fundada por Allan Kardec em 1858, mudou o ttulo para Renaitre 2000. E a Union Spirite Franaise passou a ser Union des Socits francophones pour linvestigation psychique et Itude de Ia survivance (USFIPES). Como se v, a pr6pria palavra esprita foi banida. A inconcussa convico de Allan Kardec acerca da sobrevivncia se transformou em problema a ser ainda investigado. Eles l, hoje, no concordam com a orientao que o espiritismo tomou no Brasil: Inteiramente estagnado, preocupado com o aspecto extraordinrio dos fenmenos espritas e com a moral evanglica e a caridade. Eles l pretendem continuar a obra como queria Allan Kardec, isto : desvinculada de Cristo e da religio, para fazer apenas pesquisas psquicas e estudar se de fato h sobrevivncia. Comeam agora por onde Allan Kardec deveria ter iniciado em 1855. Para facilitar as citaes e evitar a fastidiosa repetio dos ttulos das obras de Allan Kardec, usarei este sistema de siglas: AK significa sempre Allan Kardec, o nmero romano indica a obra e o nmero arbico a pgina. Estes so os ttulos das obras de AK: I. O livro dos espritos (1857), 22 ed. da Federao Esprita Brasileira (FEB). II. O que o espiritismo (1859), 19 ed. da FEB. III. O livro dos mdiuns (1861), 20 ed. da FEB. IV. O evangelho segundo o espiritismo (1864), 39 ed. da FEB.

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V. O cu e o inferno (1865), 16 ed. da FEB. VI. A gnese (1868), ed. da FEB de 1949. VII. Obras pstumas, 10 ed. da FEB.

Assim, por exemplo, a citao III, 347 significa: O livro dos mdiuns, 20 edio da Federao Esprita Brasileira, pgina 347.

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I O ESPIRITISMO

O Congresso Internacional de Espiritismo de 1925, reunido em Paris, aprovou unanimemente a proposta de erigir um monumento comemorativo em Hydesville, nos Estados Unidos, para comemorar as primeiras manifestaes espritas, que tiveram lugar a 31 de maro de 1848, nas pessoas das meninas irms Margarida e Catarina Fox. O monumento recebeu depois a seguinte inscrio: - Erigido a 4 de dezembro de 1927 pelos espiritistas de todo o mundo, em comemorao da revelao do espiritismo moderno em Hydesville, N. Y., a 31 de maro de 1848, em homenagem mediunidade, base de todas as demonstraes sobre que se apia o espiritismo. A morte no existe. No h mortos. Para recordar as irms Fox, gravaram numa lpide de mrmore estas palavras: Aqui nasceu o movimento espiritista moderno. Neste lugar estava, em Hydesville, a casa de habitao das irms Fox, cuja comunicao medinica com o mundo dos espritos foi estabelecida a 31 de maro de 1848. A morte no existe. No h mortos. Esta lpide foi aqui colocada por Mme. Cadwallader. No Congresso Internacional de Espiritismo de 1928, celebrado em Londres, os que a ele assistiram tiveram a satisfao de ouvir a narrao das cerimnias que consagraram a inaugurao daquele monumento oficial. De tudo isso somos informados por La Revue Spirite de novo de 1928, pp. 511-512, sob o ttulo de Um grande acontecimento na histria do espiritismo. Assim esta autorizada revista, fundada em 1858 por AlIan Kardec, e dois Congressos Internacionais de Espiritismo proclamaram solene e oficialmente que a origem das prticas espritas est nos fatos de Hydesville; que l teve lugar a revelao do atual espiritismo; e que, portanto, o espiritismo se funda numa revelao positiva; que as irms Fox foram as primeiras a entrar em comunicao medinica com o mundo dos espritos; e que dessas comunicaes parte o movimento esprita moderno; que o monumento uma homenagem oficial do espiritismo mundial mediunidade; e que esta o fundamento de todas as demonstraes em que se apia o espiritismo. Mas aqui no Brasil o espiritismo se diz kardecista e proclama que seu codificador oficial foi Allan Kardec; e que o dia 18 de abril de 1857, quando foi lanada a primeira edio de O livro dos espritos, deve ser considerado como o dia da fundao do espiritismo. Estudarei, por isso, neste primeiro captulo: 1) como Allan Kardec se iniciou no espiritismo; 2) em que consiste a doutrina esprita difundida aqui no Brasil; 3) como esta doutrina se relaciona com a mensagem crist; e 4) a forma dissidente do espiritismo de umbanda. 1. ALLAN KARDEC E SUA CODIFICAO DO ESPIRITISMO 1. Hippolyte Lon Denizard Rivail, mais conhecido por seu pseudnimo AlIan Kardec, nasceu em Lio, Frana, no dia 3 de outubro de 1804, de famlia catlica. Com a idade de 10 anos enviado a Yverdun, Sua, ao Instituto de Educao dirigido por Joo Henrique Pestalozzi. L ficou at 1822. O ambiente religioso daquele Instituto era protestante e liberal, que identificava religio com moralidade. Vai ento a Paris. J em 1824 publica um Curso prtico e terico de aritmtica segundo princpios de Pestalozzi, com modificaes. Em 1825 funda e dirige uma escola primria. No ano seguinte estabelece sua Instituio Rivail, segundo o modelo que conhecera em Yverdun. Publicou vrios livros pedaggicos e didticos. De boa formao geral e cultural, era metdico, didtico, lgico e claro na exposio. Trabalhou ainda como contabilista. Sabia bem o alemo e o ingls, alm do francs, o que o levou a ocupar-se tambm como tradutor. Em 1826 casou-se com a professora Amlie Gabrielle Boudet, nove anos mais velha que ele e de boa situao financeira. No tiveram filhos. A partir de 1855 dedicou-se inteiramente ao espiritismo. Morreu no dia 31 de maro de 1869, em Paris, com a idade de 65 anos incompletos. 2. Ainda jovem, em 1823, Rivail comeou a interessar-se pelo magnetismo animal, um

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movimento ento em voga, chamado tambm mesmerismo, porque criado pelo mdico austraco Francisco Antnio Mesmer (1733-1815), instalado em Paris desde 1778. Quando, em 1853, as mesas girantes e danantes, vindas dos Estados Unidos, invadiram a Europa, os mesmeristas ou magnetistas de Paris tomaram a si o estudo deste curioso fenmeno, tratando de explic-lo com suas teorias magnticas e sonamblicas. Em fins de 1854, o magnetista Fortier comunicou a Rivail o fenmeno das mesas danantes que falavam, isto , respondiam mediante pancadas s perguntas feitas. Este fato mudaria completamente sua vida. Num manuscrito sobre A minha primeira iniciao no espiritismo, publicado nas Obras pstumas, Rivail descreve os passos iniciais que o conduziram codificao do espiritismo. Depois de presenciar pela primeira vez a dana da mesa na casa da Sra. Plainemaison, em maio de 1855, Rivail teve uma intuio fundamental (cito a 20. edio da FEB): - Eu entrevia naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam daquele fenmeno, qualquer coisa de srio, como que a revelao de uma nova lei, que tomei a mim estudar a fundo (p. 267). Naqueles dias, o Sr. Baudin, magnetista, organizara sesses semanais em sua casa, com as duas filhas sonmbulas (mais tarde cunhou-se a palavra mdium) e Rivail comeou a participar nestas sesses. Sua intuio se fez mais clara: - Compreendi, antes de tudo, a gravidade da explorao que ia empreender; percebi, naqueles fenmenos, a chave do problema to obscuro e to controvertido do passado e do futuro da humanidade, a soluo que eu procurara em toda a minha vida. Era, em suma, toda uma revoluo nas ideias e nas crenas; fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspeo e no levianamente; ser positivista e no idealista, para no me deixar iludir (p. 268). 3. A esta altura Rivail j aceitara a teoria da presena e atuao de espritos ou falecidos nos movimentos das mesas, cestas e outros objetos usados pelos sonmbulos dos magnetizadores. A ideia lhe fora sugerida diretamente por Carlotti, seu amigo h 25 anos. No foi ele, por conseguinte, o descobridor. Eram ideias j amplamente ventiladas por aqueles anos nos Estados Unidos, sobretudo depois das famosas irms Fox, em 1848. Mas j em 1847 aparecia nos Estados Unidos um livro medinico: The principles of nature, her divine revelations and a voice to mankind, atravs da mediunidade de Andrew Jackson Davis. Na prpria Frana, tambm em 1847, Louis Alphonse Cahagnet, do grupo dos magnetizadores de Paris, publicava seu primeiro tomo de Arcanes de Ia vie future dvoils, com a descrio de experincias realizadas com mdiuns (sonmbulos se dizia ento). Em 1856, ainda antes da primeira obra de Allan Kardec, Cahagnet publicava as Rvelations doutre tombe, ditadas, segundo supunha, pelos falecidos Galileu, Hipcrates, Franklin e outros. Foi por causa do grupo de Cahagnet que, em 1856, quando ainda no se conhecia a palavra espiritismo, a Santa S lembrava em documento especial a proibio divina de evocar as almas dos mortos e pretender receber suas respostas. O catlico Rivail recebia uma clara e explcita exortao da Santa S. O grupo de Carlotti, com Vitorien Sardou, Saint-Ren Taillandier, Pierre-Paul Didier e Tiedeman-Marthese, j havia constitudo um verdadeiro centro esprita, que trabalhava na casa de Roustan, com a sonmbula (mdium) Srta. Japhet e j tinha reunido cerca de 50 cadernos de comunicaes diversas. Em 1856 Rivail passou a frequentar tambm este centro. Levava para cada sesso uma srie de questes preparadas e metodicamente dispostas, para as quais pedia e supunha receber respostas dos espritos. No dia 25 de maro de 1856, na casa de Baudin, sendo mdium uma das filhas, Rivail aceita a revelao de ter como guia um esprito chamado A Verdade. Depois ficar sabendo que se trataria do prprio Esprito Santo, o Esprito da Verdade, que Jesus Cristo prometera enviar, como lemos no Evangelho segundo Joo: Tenho ainda muito a vos dizer, mas no podeis agora compreender. Quando vier o Esprito da Verdade, ele vos conduzir verdade plena (Jo 16,12-13). Mais tarde Rivail escreve esta nota acerca da importante revelao: A proteo desse esprito, cuja superioridade eu ento estava longe de imaginar, jamais, de fato, me faltou. A sua solicitude, e a dos bons espritos que agiam sob suas ordens, se manifestou em todas as circunstncias da minha vida, quer a me remover dificuldades materiais, quer a me facilitar a execuo dos meus trabalhos, quer, enfim, a me preservar dos efeitos da malignidade dos meus antagonistas, que foram sempre reduzidos impotncia. Se as tribulaes inerentes misso que me cumpria desempenhar no me puderam ser evitadas, foram sempre

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suavizadas e largamente compensadas por muitas satisfaes morais gratssimas (p. 276). No dia 12 de junho de 1856, o Esprito da Verdade lhe teria comunicado sua misso de reformador: - Previno-te de que rude a tua misso, porquanto se trata de abalar e transformar o mundo inteiro (p. 282). 4. Rivail comea a trabalhar intensamente sobre o material acumulado pelo grupo de Carlotti, e as respostas que ele mesmo recebera no centro de Roustan. Em seu depoimento pessoal publicado nas Obras p6stumas, informa acerca dos trabalhos preparatrios de sua primeira grande obra esprita: Foi assim que mais de dez mdiuns prestaram concurso a esse trabalho. Da comparao e da fuso de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes remodeladas no silncio da meditao, foi que elaborei a primeira edio de O livro dos espritos, entregue publicidade em 18 de abril de 1857 (pp. 270-271). Este dia 18 de abril de 1857 considerado pelos espritas como dia da fundao do espiritismo. a obra fundamental da codificao da doutrina espiritista, com o seguinte subttulo: Princpios da doutrina esprita sobre a imortalidade da alma, a natureza dos espritos e suas relaes com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da humanidade, segundo os ensinos dados por espritos superiores com o concurso de diversos mdiuns, recebidos e coordenados por Allan Kardec. 5. Allan Kardec o pseudnimo usado por Rivail. A partir daquele dia 18 de abril de 1857 desaparece o Sr. Hippolyte Lon Denizard Rivail, para dar lugar a Allan Kardec. Este teria sido seu nome ao tempo dos druidas, em encarnao anterior. Numa carta a Tiedeman, de 27-10-1857, Rivail explica assim seu pseudnimo: Duas palavras ainda a propsito do pseudnimo. Direi primeiramente que neste assunto lancei mo de um artifcio, uma vez que dentre 100 escritores h sempre 3/4 que no so conhecidos por seus nomes verdadeiros, com a s diferena de que a maior parte toma apelidos de pura fantasia, enquanto que o pseudnimo Allan Kardec guarda uma certa significao, podendo eu reivindic-lo como prprio em nome da doutrina. Digo mais: ele engloba todo um ensinamento cujo conhecimento por parte do pblico reservo-me o direito de protelar... Existe, alis, um motivo que a tudo orienta: no tomei esta atitude sem consultar os espritos, uma vez que nada faa sem lhes ouvir a opinio. E isto o fiz por diversas vezes e atravs de diferentes mdiuns, e no somente eles autorizaram esta medida, como tambm a aprovaram. Notemos uma vez mais a data da publicao da obra fundante do espiritismo: 18-4-1857. Recordemos tambm que Rivail comeou a ocupar-se com as novas revelaes em maio de 1855. Portanto o tempo de coleo, estudo, coordenao e remodelao no silncio da meditao de todo o material acumulado no durou nem dois anos. certo que aquela primeira edio de 1857 foi depois inteiramente refundida e consideravelmente aumentada para a segunda edio, publicada em maro de 1860, que at hoje o texto definitivo da codificao esprita. 6. preciso assinalar tambm que Rivail no era nenhum especialista em matria de religio e muito menos em teologia. Embora fosse catlico (foi batizado numa igreja catlica no dia 15-6-1805), recebeu uma formao religiosa do tipo protestante-liberal no Instituto do calvinista Pestalozzi, inteiramente avesso aos princpios (dogmas) da f crist, contentando-se com uma religio natural, com um desmo1 filosfico Rousseau, com um cristianismo racionalista, no dizer de seu bigrafo Gabriel Compayr, citado por Zeus Wantuil em Allan Kardec (vol. I, p. 70). Nas crticas constantes que Rivail depois far, j agora como Allan Kardec, doutrina da Igreja, fcil perceber que ele desconhecia a reflexo teolgica sistemtica sria sobre a f crist. Ele aceitar sem maiores escrpulos mensagens do alm, como esta recebida no dia 30-9-1863 e reproduzida em suas Obras pstumas: - chegada a hora em que a Igreja tem de prestar contas do depsito que lhe foi1

Desmo: doutrina de uma religio natural ou racional no fundada na revelao histrica, mas na manifestao natural da divindade razo do homem [] a religio natural de Rousseau uma forma de desmo que atribui a Deus tambm a tarefa de garantir a ordem moral do mundo. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 238 no vocbulo Desmo.) (Hdson Canuto)

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confiado, da maneira por que pratica os ensinos de Cristo, do uso que fez da sua autoridade, enfim, do estado de incredulidade a que levou os espritos. A hora vinda em que ela tem que dar a Csar o que de Csar e de assumir a responsabilidade de todos os seus atos. Deus a julgou e a reconheceu inapta, daqui por diante, para a misso de progresso que incumbe a toda autoridade espiritual. Somente por meio de uma transformao absoluta lhe seria possvel viver; mas, resignar-se- ela a essa transformao? No, pois que j no seria a Igreja; para assimilar as verdades e as descobertas da cincia, teria de renunciar aos dogmas que lhe servem de fundamentos; para volver prtica rigorosa dos preceitos do Evangelho, teria de renunciar ao poder, dominao, de trocar o fausto e a prpura pela simplicidade e a humildade apostlicas. Ela se acha nesta alternativa: ou se suicida, transformando-se, ou sucumbe nas garras do progresso, se permanecer estacionria (p. 310). 7. O espiritismo, tal como foi codificado por Allan Kardec, surgiu claramente como movimento oposto Igreja. No dia 15 de abril de 1860 um esprito comunica a Allan Kardec: - O espiritismo chamado a desempenhar imenso papel na terra. Ele reformar a legislao ainda to frequentemente contrria s leis divinas; retificar os erros da histria; restaurar a religio de Cristo que se tomou, nas mos dos padres, objeto de comrcio e de trfico vil; instituir a verdadeira religio, a religio natural, a que parte do corao e vai diretamente a Deus, sem se deter nas franjas de uma sotaina, ou nos degraus de um altar... (p. 299). E no dia 9 de agosto de 1863 recebe Kardec este aviso do alm: - Aproxima-se a hora em que te ser necessrio apresentar o espiritismo qual ele , mostrando a todos onde se encontra a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo. Aproxima-se a hora em que, face do cu e da terra, ters de proclamar que o espiritismo a nica tradio verdadeiramente crist e a nica instituio verdadeiramente divina e humana (p. 308). 8. O espiritismo se apresenta como terceira revelao. A primeira, dizem os espritas, veio por Moiss; a segunda por Jesus Cristo; e a terceira atravs dos espritos, principalmente do Esprito da Verdade, o Consolador prometido por Jesus (cf. Jo 16,12-13 ), que teria sido o esprito guia de Allan Kardec, segundo a mensagem que ele teria recebido a 25-3-1856, ou, como lhe foi revelado no dia 14-9-1863: Nossa ao, principalmente a do Esprito da Verdade, constante ao teu derredor e tal que no a podes negar (p. 309). De fato, Allan Kardec, em A gnese, cap. I, sobre o carter da revelao esprita, sustenta ser o espiritismo a terceira das grandes revelaes (n. 20). Segundo ele, a primeira, de Moiss, revelou aos homens a existncia de um Deus nico e os dez mandamentos (n. 21); a segunda, de Cristo, mostrou que Deus no o Deus terrvel, ciumento e vingativo de Moiss; e revelou a imortalidade da alma e a vida futura (n. 22-25). Continua ento Allan Kardec, no n. 26: - Entretanto, o Cristo acrescenta: Muitas das coisas que vos digo agora ainda no as compreendeis e muitas outras teria a dizer, que no compreendereis; por isso que vos falo por parbolas; mais tarde, porm, enviar-vos-ei o Consolador, o Esprito de Verdade, que restabelecer todas as coisas e vo-las explicar todas (S. Joo, caps. XIV, XVI; S. Mat., capo XVII). Observe-se que esta citao inexata e, como tal, no se encontra em parte nenhuma dos Evangelhos. Nem consta que Jesus teria dito que o Esprito da Verdade restabelecer todas as coisas. Esta afirmao foi feita por Jesus com relao a Elias (cf. Mt 17,11). Da arbitrria citao feita, conclui Allan Kardec: - Se o Cristo no disse tudo quanto poderia dizer, que julgou conveniente deixar certas verdades na sombra, at que os homens chegassem ao estado de compreend-las. Como ele prprio o confessou, seu ensino era incompleto, pois anunciava a vinda daquele que o completaria; previra, pois, que suas palavras no seriam bem interpretadas, e que os homens se desviariam do seu ensino; em suma, que desfariam o que ele fez, uma vez que todas as coisas ho de ser restabelecidas: ora, s se restabelece aquilo que foi desfeito. Mais adiante, no n. 42, Allan Kardec garante aos seus leitores: - O espiritismo realiza todas as promessas do Cristo a respeito do Consolador anunciado. Ora, como o Esprito da Verdade que preside ao grande movimento da regenerao, a promessa da sua vinda se acha por essa forma cumprida, porque, de fato, ele o verdadeiro Consolador. O espiritismo seria, por conseguinte, o Consolador.

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A verdade, porm, que a promessa de Jesus acerca do Esprito da Verdade no foi to vaga para um futuro to incerto e distante. Jesus se dirigia diretamente aos Apstolos que estavam ento com ele na ltima ceia: Rogarei ao Pai e ele vos dar outro Parclito, para que convosco permanea para sempre, o Esprito da Verdade... O Parclito, o Esprito, que o Pai enviar em meu nome, que vos ensinar tudo e vos recordar tudo o que eu vos disse (10 14,16-17.26). E pouco antes de sua ascenso mandou aos Apstolos: Eis que eu vos enviarei o que meu Pai prometeu do Alto (Lc 24,49). E lhes disse ainda: O Esprito Santo descer sobre vs e dele recebereis fora (At 1,8). Alguns dias depois, na festa de Pentecostes, quando estavam reunidos na sala de Jerusalm, de repente veio do cu um rudo semelhante ao soprar de impetuoso vendaval, e encheu toda a casa onde se achavam. E apareceram umas como lnguas de fogo, que se distriburam e foram pousar sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Esprito Santo (At 2,1-4). Era a vinda do Esprito da Verdade. 9. O espiritismo tem a pretenso de ser religio. J vimos a comunicao (do alm) do dia 9-8-1863, proclamando que o espiritismo a nica tradio verdadeiramente crist e a nica instituio divina e humana. Vimos tambm a comunicao, sempre do alm, de 15-41860, segundo a qual o espiritismo instituir a verdadeira religio, a religio natural, a que parte do corao e vai diretamente a Deus, sem se deter nas franjas de uma sotaina, ou nos degraus de um altar. No dia 1 de novembro de 1863, Allan Kardec fez na Sociedade Parisiense de Estudos Espritas um discurso sobre o tema: teu. Por isso permanecei nesta cidade. at serdes revestidos da fora o Espiritismo uma Religio? (reproduzido em Reformador, maro de 1976, pp. 78-82). Apresentou ento um resumo da Doutrina Esprita, terminando com estas palavras: - Eis o Credo, a religio do espiritismo, religio que pode conciliar-se com todos os cultos, isto , com todas as maneiras de adorar a Deus. Esse o lao que deve unir todos os espritas numa santa comunho de pensamentos, enquanto se espera que ele ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal. Aqui no Brasil, a Federao Esprita, por seu Conselho Nacional, em sua reunio de 5-71952, declarou oficialmente e por unanimidade que o espiritismo religio. Em outra oportunidade a mesma Federao fez esta declarao: - Os espritas do Brasil, reunidos no II Congresso Esprita Internacional Panamericano, com expresses de maior respeito liberdade de pensamento e de conscincia, afirmam que, no Brasil, a Doutrina Esprita, sem prejuzo de seus aspectos cientficos e filosficos, fundamentada no Evangelho de Cristo, certo de ser o Consolador Prometido de que nos falam aqueles mesmos Evangelhos. Por isso que ns outros, que vivemos no Brasil ligados doutrina esprita, consideramo-la a religio. No prefcio ao livro Religio, de Carlos Imbassahy (de 1944; cito a edio de 1982, da FEB), escrevia o Sr. Guillon Ribeiro, ento presidente da Federao Esprita Brasileira: - Surgindo, como dissemos, em cumprimento de uma das promessas do Cristo, que personifica a nica Igreja verdadeiramente universal, o espiritismo , sem dvida, a revivescncia do vero cristianismo, agora desempecido de todos os vus da letra, de todas as obscuridades do mistrio, do manto maravilhoso do milagre, as trs principais geratrizes dos dogmas. Nenhuma outra doutrina, consequentemente, lhe pode disputar a qualidade de religio. To predominante nele essa qualidade, que no h t-lo por uma religio, mas como a religio, no mais lato sentido do vocbulo. O atual presidente da Federao, o Sr. Francisco Thiesen, insiste, na obra Allan Kardec, vol. III, 1982, p. 53: - Os que se atm ao fato de que o espiritismo a religio - no apenas mais uma religio - sabem, como sabia o insigne Allan Kardec, que de todo intolervel, alm de contraproducente, pretender competir com qualquer das religies - manifestaes fragmentrias da revelao -, pois o espiritismo em verdade as abrange. Assim leio no rgo oficial da Federao Esprita Brasileira, Reformador, junho de 1979, p. 19: No h fugir: se o espiritismo, na conceituao de seu Codificador, realiza todas as promessas do Cristo a respeito do Consolador, vindo at a completar o ensino do Cristo, e se o grande intrprete do sentir das entidades espirituais nos assevera que o espiritismo evanglico o Consolador, ilgico seria, portanto, que no aceitssemos o espiritismo como religio.

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2. A DOUTRINA ESPRITA Pouco antes de sua morte, em maro de 1869, vivamente preocupado por um formulrio de profisso de f, circunstanciado e claramente expresso, Allan Kardec iniciou a elaborao de um texto com o ttulo: Credo esprita. Chegou a escrever o prembulo, que termina assim: So inmeras as questes que ele (o espiritismo) envolve, as quais, no entanto, podem resumir-se nos pontos seguintes que, considerados verdades inconcussas, formam o programa das crenas espritas. Deixou redigido ainda este ttulo: Princpios fundamentais da doutrina esprita, reconhecidos como verdades inconcussas. E ento morreu. Mas a doutrina esprita existe: est nas obras de Allan Kardec. Segundo as determinaes do Conselho Federativo Nacional da Federao Esprita Brasileira (1985), cada estatuto de uma instituio esprita deve consignar esta finalidade: O estudo, prtica e divulgao da doutrina esprita como religio, filosofia e cincia, nos moldes da codificao de Allan Kardec. E prope um modelo de estatuto, no qual se determina assim a primeira finalidade: Estudar o espiritismo e propagar ilimitadamente seus ensinamentos doutrinrios, por todos os meios que oferece a palavra escrita, falada e exemplificada de conformidade dos mtodos estabelecidos na codificao de Allan Kardec e nas obras subsidirias. Na introduo a O livro dos espritos, o mesmo Allan Kardec ensaiou um resumo dos pontos principais da doutrina esprita. Eis as unidades mais expressivas deste resumo: 1. Deus eterno, imutvel, imaterial, nico, onipotente, soberanamente justo e bom. Criou o universo, que abrange todos os seres animados e inanimados, materiais e imateriais. Os seres materiais constituem o mundo visvel ou corpreo, e os seres imateriais, o mundo invisvel ou esprita, isto , dos espritos. O mundo esprita o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo. O mundo corporal secundrio; poderia deixar de existir, ou no ter jamais existido, sem que por isso alterasse a essncia do mundo esprita. 2. Os espritos revestem temporariamente um invlucro material perecvel, cuja destruio pela morte lhes restitui a liberdade. Entre as diferentes espcies de seres corpreos, Deus escolheu a espcie humana para a encarnao dos espritos que chegaram a certo grau de desenvolvimento, dando-lhes superioridade moral e intelectual sobre as outras. A alma um esprito encarnado, sendo o corpo apenas o seu envoltrio. 3. H no homem trs coisas: 1) o corpo ou ser material anlogo aos animais e animado pelo mesmo princpio vital; 2) a alma ou ser imaterial, esprito encarnado no corpo; 3) o lao que prende a alma ao corpo, princpio intermedirio entre a matria e o esprito. Tem assim o homem duas naturezas: pelo corpo, participa da natureza dos animais, cujos instintos lhe so comuns; pela alma, participa da natureza dos espritos. O lao ou perisprito, que prende ao corpo o esprito, uma espcie de envoltrio semi-material. A morte a destruio do invlucro mais grosseiro. O esprito conserva o segundo, que lhe constitui um corpo etreo, invisvel para ns no estado normal, porm que pode tornar-se acidentalmente visvel e mesmo tangvel, como sucede no fenmeno das aparies. O esprito no , pois, um ser abstrato, indefinido, s possvel de conceber-se pelo pensamento. um ser real, circunscrito, que, em certos casos, se torna aprecivel pela vista, pelo ouvido e pelo tato. 4. Os espritos pertencem a diferentes classes e no so iguais nem em poder, nem em inteligncia, nem em saber, nem em moralidade. Os da primeira ordem so os espritos superiores, que se distinguem dos outros pela sua perfeio, seus conhecimentos, sua proximidade de Deus, pela pureza de seus sentimentos e por seu amor do bem: so os anjos ou puros espritos. Os das outras classes se acham cada vez mais distanciados dessa perfeio, mostrando-se os das categorias inferiores, na sua maioria, eivados das nossas paixes: o dio, a inveja, o cime, o orgulho etc. Comprazem-se no mal. H tambm, entre os inferiores, os que no so nem muito bons nem muito maus, antes perturbadores e enredadores, do que perversos. A malcia e as inconsequncias parecem ser o que neles predomina. So espritos estrdios ou levianos. 5. Os espritos no ocupam perpetuamente a mesma categoria. Todos se melhoram passando pelos diferentes graus da hierarquia esprita. Esta melhora se efetua por meio da encarnao, que imposta a uns como expiao, a outros como misso. A vida material uma prova que lhes cumpre sofrer repetidamente, at que hajam atingido a absoluta perfeio moral. Deixando o corpo, a alma volve ao mundo dos espritos, donde sara, para passar por nova existncia material, aps um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual permanece

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em estado de esprito errante. 6. Tendo o esprito que passar por muitas encarnaes, segue-se que todos ns temos tido muitas existncias e que teremos ainda outras, mais ou menos aperfeioadas, quer na Terra, quer em outros mundos. A encarnao dos espritos se d sempre na espcie humana; seria erro acreditar-se que a. alma ou esprito possa encarnar no corpo de um animal. As diferentes existncias corpreas do esprito so sempre progressivas e nunca regressivas; mas a rapidez do seu progresso depende dos esforos que faa para chegar perfeio. 7. Os espritos encarnados habitam os diferentes globos do universo. Os no-encarnados ou errantes no ocupam uma regio determinada e circunscrita; esto por toda parte no espao e ao nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos de contnuo. toda uma populao invisvel, a mover-se em tomo de ns. Os espritos exercem incessante ao sobre o mundo moral e mesmo sobre o mundo fsico. Atuam sobre a matria e sobre o pensamento e constituem uma das potncias da natureza, causa eficiente de uma multido de fenmenos at ento inexplicveis ou mal explicados e que no encontram explicao racional seno no espiritismo. 8. As relaes dos espritos com os homens so constantes. Os bons espritos nos atraem para o bem, nos sustentam nas provas da vida e nos ajudam a suport-las com coragem e resignao. Os maus nos impelem para o mal: -lhes um gozo ver-nos sucumbir e assemelharnos a eles. As comunicaes dos espritos so ocultas ou ostensivas. As ocultas se verificam pela influncia boa ou m que exercem sobre ns, nossa revelia. Cabe ao nosso juzo discernir as boas das ms inspiraes. As comunicaes ostensivas se do por meio da escrita, da palavra ou de outras manifestaes materiais, quase sempre pelos mdiuns que lhes servem de instrumentos. 9. Os espritos se manifestam espontaneamente ou mediante evocao. Podem evocar-se todos os espritos: os que animaram homens obscuros, como os das personagens mais ilustres, seja qual for a poca em que tenham vivido; os de nossos parentes, amigos ou inimigos, e obterse deles, por comunicaes escritas ou verbais, conselhos, informaes sobre a situao em que se encontram no alm, sobre o que pensam a nosso respeito, assim como as revelaes que lhes sejam permitidas fazer-nos. 10. Os espritos so atrados na razo da simpatia que lhes inspire a natureza moral do meio que os evoca. Os espritos superiores se comprazem nas reunies srias, onde predominam o amor do bem e o desejo sincero, por parte dos que as compem, de se instrurem e melhorarem. A presena deles afasta os espritos inferiores que, inversamente, encontram livre acesso e podem obrar com toda a liberdade entre pessoas frvolas ou impelidas unicamente pela curiosidade e onde quer que existam maus instintos. Longe de se obterem bons conselhos, ou informaes teis, deles s se devem esperar futilidades, mentiras, gracejos de mau gosto, ou mistificaes, pois que muitas vezes tomam nomes venerados, a fim de melhor induzirem ao erro. 11. A moral dos espritos superiores se resume, como a do Cristo, nesta mxima do Evangelho: fazer aos outros o que quereramos que os outros nos fizessem, isto , fazer o bem e no o mal. Neste princpio encontra o homem uma regra universal de proceder, mesmo para as suas menores aes. Ensinam-nos (...) no haver faltas irremissveis, que a expiao no possa apagar. Meio de consegui-lo encontra o homem nas diferentes existncias que lhe permitem avanar, conformemente aos seus desejos e esforos, na senda do progresso, para a perfeio, que o seu destino final. Este resumo, compendiado pelo prprio AK, de fato nos apresenta uma concepo centrada em Deus e, sobretudo nos espritos. Tanta a importncia conferida aos espritos que, com razo, se pode qualificar o conjunto desta doutrina como espiritismo. Assim, com efeito, o entendia seu codificador, j na primeira alnea da introduo a O livro dos espritos: - Para se designarem coisas novas so precisos termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem para evitar a confuso inerente variedade de sentidos das mesmas palavras. Os vocbulos espiritual, espiritualista, espiritualismo tm acepo bem definida. Dar-lhes outra, para aplic-los doutrina dos espritas, fora multiplicar as causas j numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritualismo o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matria espiritualista. No se segue da, porm, que creia na existncia dos espritos ou em suas comunicaes com o mundo visvel. Em vez da palavra espiritual, espiritualismo, empregamos, para indicar a crena a que vimos de referir-nos, os termos esprita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso

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mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligveis, deixando ao vocbulo espiritualismo a acepo que lhe prpria. Diremos, pois, que a doutrina esprita ou o espiritismo tem por princpio as relaes do mundo material com os espritos ou seres do mundo invisvel. Os adeptos do espiritismo sero os espritas, ou, se quiserem, os espiritistas. importante esta preciso no uso das palavras e a fundamental diferena entre espiritualismo e espiritismo. No vocabulrio esprita, elaborado por AK e publicado no final de O livro dos mdiuns, o codificador repete os mesmos conceitos: - Esprita: o que tem relao com o espiritismo; adepto do espiritismo; aquele que cr nas manifestaes dos espritos. - Espiritismo: doutrina fundada sobre a crena na existncia dos espritos e em suas manifestaes. - Espiritualista: o que se refere ao espiritualismo; adepto do espiritualismo. O espiritualista aquele que acredita que em ns nem tudo matria, o que de modo algum implica a crena nas manifestaes dos espritos. Todo esprita necessariamente espiritualista, mas pode-se ser espiritualista sem se ser esprita. Em que consiste, pois, a diferena? O esprita admite no s a existncia de espritos (nisso coincide com o espiritualista), mas acredita tambm na sua manifestao. Entretanto, aqui se faz necessrio ulterior esclarecimento: tambm os cristos, que evidentemente so espiritualistas, aceitam a manifestao dos espritos, mas nem por isso gastariam de ser qualificados coma espritas. H, pois, ambiguidade na expresso manifestao dos espritos. O prprio AK costuma insistir na distino entre manifestaes espontneas e manifestaes provocadas mediante a evocao (veja-se, por exemplo, no n. 9 do elenco de doutrinas acima reproduzido). Os cristos admitem sem dificuldade as manifestaes espontneas, mas se negam a aceitar as provocadas mediante a evocao, como veremos nas pginas 26ss2. Por conseguinte, o espiritismo se especifica, caracteriza e define por sua aceitao das manifestaes provocadas (evocao) dos espritos. Esprita todo espiritualista que admite a prtica da evocao dos falecidos. 3. DOUTRINA ESPRITA E MENSAGEM CRIST No Brasil, o movimento criado por AK mantido e divulgado pela Federao Esprita Brasileira, fundada em 1884, que a prope sistematicamente no apenas como a religio, mas tambm como espiritismo cristo (sua revista oficial, Reformador, que comeou em 1883, ento como rgo evolucionista, se apresenta agora no subttulo como Revista do Espiritismo Cristo). Embora o prprio AK jamais tenha usado esta expresso, tomada de J. B. Roustaing (1865), ofereceu-lhe, no entanto, um bom fundamento para isso quando proclamou que a espiritismo a realizao das promessas de Jesus Crista acerca do Consolador e a apresentou como a Terceira Revelao; e quando endossou este aviso do alm, recebido no dia 9-81863: Aproxima-se a hora em que te ser necessrio apresentar o espiritismo qual ele , mostrando a todos onde se encontra a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo. Aproxima-se a hora em que, face do cu e da terra, ters de proclamar que o espiritismo a nica tradio verdadeiramente crist e a nica instituio verdadeiramente divina e humana (cf. sua Obras pstumas, 20 ed., p. 308); ou quando aceitou esta profecia recebida no dia 15-4-1860: O espiritismo... restaurar a religio de Cristo (ib., p. 299). Em O Evangelho segundo o espiritismo (cito agora a 90 ed., p. 59) escreve AK: Assim como o Cristo disse: No vim destruir a lei, porm cumpri-la, tambm o espiritismo diz: no venho destruir a lei crist, mas dar-lhe execuo. Nada ensina em contrrio ao que ensinou o Cristo. Semelhantes afirmaes so comuns entre os espritas e pode ser que sejam sinceras, mas mostram um desconhecimento profundo da doutrina do Evangelho segundo Mateus, Marcos, Lucas e Joo e segundo o ensinamento apostlico contida em suas cartas. O Reformador, rgo oficial do nosso kardecismo, de maro de 1981, num artigo sobre a misso do Consolador (que seria o Esprito Santo segundo o Evangelho de so Joo), conclui: misso, pois, do espiritismo devolver ao cristianismo a sua pureza original, libertando-o dos dogmas e das ideias humanas nele introduzidas (p. 85).2

Essas pginas referem-se a esta verso eletrnica, no livro diz-se nas pginas 50ss. (Hdson Canuto)

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Veremos agora como se fez esta fundamental operao libertadora: 1. A revelao divina Para a generalidade dos cristos de todos os tempos, sejam eles catlicos, ortodoxos ou protestantes, os livros da Sagrada Escritura so divinamente inspirados. um princpio inconcusso (dogma) dos cristos. No credo esprita de AK no entra este ponto fundamental. Jamais a afirma em nenhuma de suas obras. Mas com frequncia se compraz em mostrar o que ele considera absurdos e contradies da Bblia. No rgo oficial da Federao Esprita Brasileira, Reformador, janeiro de 1953, p. 23, encontramos a posio bem definida dos nossos espritas perante a Bblia: Do Velho Testamento j nos recomendado somente o Declogo e do Novo Testamento apenas a moral de Jesus; j consideramos de valor secundrio, ou revogado e sem valor algum, mais de 90% do texto da Bblia. S vemos na Bblia toda um livro respeitvel pelo seu valor cultural, pela fora que teve na formao cultural dos povos de Ocidente. Vem de AK dizer que do Antigo Testamento s se aceita como de origem divina o Declogo (IV, 42). Falando de escritos apostlicos do Novo Testamento, escreve AK: Todos os escritos posteriores (aos Evangelhos), sem excluso dos de S. Paulo, so apenas, e no podem deixar de ser, simples comentrios ou apreciaes, reflexos de opinies pessoais, muitas vezes contraditrias que, em caso algum, podem ter a autoridade da narrativa dos que receberam diretamente do Mestre as instrues (VII, 110). Esta posio negativa reaparece com frequncia na literatura esprita brasileira. Assim, por exemplo, Carlos Imbassahy, em margem do espiritismo (2 ed.), esclarece que em matria de escritura, os espritas, no a que se referem, to unicamente aos Evangelhos. No os apresentam, porm, como prova, seno como fonte de luz subsidiria, elemento de reforo (p. 126). Pois nem a Bblia prova coisa nenhuma, nem temos a Bblia como probante. O espiritismo no um ramo do cristianismo como as demais seitas crists. No assenta os seus princpios nas escrituras. No rodopia junto Bblia. A nossa base o ensino dos espritos, da o nome - espiritismo (p. 219). 2. A doutrina sobre Deus Os conceitos de AK sobre a existncia de Deus e seus atributos coincidem de fato com a doutrina crist. Duas vezes, em seus escritos, AK se refere expressamente ao pantesmo, para rejeit-lo (I, 53; VII, 179). E contra os pantestas chega a afirmar positivamente uma ntida distino entre Deus e o Universo, acusando o pantesmo de confundir o Criador com a criatura; e, por isso, declara inequivocamente: As obras de Deus no so o prprio Deus (I, 54). No obstante, por vezes tem expresses com sabor pantesta. Assim quando diz que ignoramos se a inteligncia uma emanao da Divindade (I, 56); ou quando o fluido universal toma qualidades pantestas; ou quando esclarece que os espritos se acham mergulhados no fluido divino (VI, 63). J Leo Denis, outro patriarca do espiritismo, ento membro da equipe de codificao da doutrina esprita, resvalou para um evidente monismo 3 pantesta. Segundo seu modo de falar, Deus a grande alma universal, de que toda alma humana uma centelha, uma irradiao. Cada um de ns possui, em estado latente, foras emanadas do divino foco (assim em Cristianismo e espiritismo, 5 ed., p. 246). Fala com frequncia de Deus como divino foco, supremo foco do bem e do belo, o grande foco divino etc. Tambm em outra obra sua, Depois da morte, 6 ed., voltam expresses pantesticas: Deus infinito e no pode ser individualizado; isto , separado do mundo, nem subsistir parte (p. 114); ou: o Ser supremo no existe fora do mundo, porque este a sua parte integrante e essencial (p. 124). Em vez do Deus fantstico da Bblia, ele quer o Deus imanente, sempre presente no seio das coisas (p. 213): O universo no mais essa criao, essa obra tirada do nada de que falam as religies. um organismo imenso animado de vida eterna (p. 123); e em seguida explica que Deus est para o universo como a alma para o corpo: O eu do universo Deus (p. 349).

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Monismo a crena de haver um s gnero de substncias no mundo. Umas vezes, refere-se aos idealistas; outras, aos materialistas. (cf. ABBAGNANO, op. cit. p. 681.) (Hdson Canuto)

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3 . A Santssima Trindade Todos os cristos - catlicos, ortodoxos e protestantes - professam sua f na Santssima Trindade. o mistrio central da f e mensagem crist, desde os primrdios do cristianismo. Mas o credo esprita proposto por AK desconhece totalmente a Santssima Trindade. A posio de AK, no conjunto de suas obras, de absoluto e sistemtico silncio com relao a esta doutrina crist. Seu silncio era apenas oportunista. Na realidade, em seu sistema de pensamento no cabia este mistrio cristo, no s6 porque para ele absolutamente no h mistrios (VII, 201), mas porque no h lugar para uma intensa vida divina intratrinitria, dado que, segundo AK, o Deus que no cria incessantemente, desde toda a eternidade, seria um Deus solitrio e ocioso (cf. I, 56; VI, 107). Mas se AK julgou mais oportuno no negar abertamente o mistrio trinitrio, seus seguidores no compartilham este ponto de vista. J Leo Denis, em Cristianismo e espiritismo, p. 74, abre sua crtica dos nossos principais dogmas com estas palavras: Comea com a estranha concepo do Ser divino, que se resolve no mistrio da Trindade. Depois explica: A noo da Trindade, colhida numa lenda hindu que era a expresso de um smbolo, veio obscurecer e desnaturar essa alta ideia de Deus... Essa concepo trinitria, to incompreensvel, oferecia, entretanto, grande vantagem s pretenses da Igreja. Permitia-lhe fazer de Jesus Cristo um Deus (p. 75). No Brasil, o espiritismo em peso ou desconhece ou nega a Santssima Trindade. 4. A doutrina sobre Jesus Professam os cristos que Jesus verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. A afirmao da divindade de Jesus fundamental para a f crist. Mas este Jesus no entra no credo esprita formulado por AK. Ele nos deixou entre suas Obras pstumas um Estudo sobre a natureza de Cristo, de 41 pginas, todo ele tendenciosamente orientado para provar que Jesus no era Deus. Com este objetivo nega, sucessivamente, o valor dos milagres, das palavras de Jesus, da opinio dos Apstolos e das profecias messinicas. Mas nos dias de AK surgiu um advogado de Bordus chamado Joo Batista Roustaing, que teve seu primeiro contato com o espiritismo em 1861 e em 1865 publicou sua obra: Espiritismo cristo ou Revelao da Revelao, em trs volumes. Sua tese central: o corpo de Jesus no era real, de carne e osso, mas aparente e meramente fludico. Repetia o docetismo do primeiro sculo cristo. Sua tese no foi aceita por AK. Mas no Brasil a Federao Esprita, desde sua fundao, propaga a obra de Roustaing. Bittencourt Sampaio, Sayo, Bezerra de Menezes, Guillon Ribeiro e outros conhecidos dirigentes da Federao Esprita so rusteinistas professos. Guillon Ribeiro, que foi presidente da Federao em 1920-1921 e de 1930 a 1943 e tradutor das obras de AK, compendiou a cristologia esprita no ttulo que deu ao livro: Jesus, nem Deus nem homem, reeditado e divulgado pela Federao Esprita. 5. A doutrina sobre a redeno pelo sangue de Jesus Cristo que temos a redeno, a remisso dos pecados, segundo a riqueza de sua graa que ele derramou profusamente sobre ns, explicava so Paulo aos efsios (1,7). Nossa redeno pela paixo, morte e ressurreio de Jesus outra verdade fundamental da f crist. Nisso consiste propriamente a boa nova ou o evangelho. Mas nem esta verdade to central entra no credo esprita de AK. Segundo ele cada um deve ser seu prprio redentor atravs do sistema das reencarnaes. Por isso no espiritismo a soteriologia (ou doutrina sobre a redeno ou salvao do homem) deslocada da cristologia para a antropologia. Leo Denis o enuncia cruamente quando escreve: No, a misso de Cristo no era resgatar com o seu sangue os crimes da humanidade. O sangue, mesmo de um Deus, no seria capaz de resgatar ningum. Cada qual deve resgatar-se a si mesmo, resgatar-se da ignorncia e do mal. o que os espritos, aos milhares, afirmam em todos os pontos do mundo (Cristianismo e espiritismo, p. 88). E o Reformador, rgo mximo da propaganda reencarnacionista no Brasil, ensina em seu nmero de outubro de 1955 (p. 236): A salvao no se obtm por graa nem pelo sangue derramado por Jesus no madeiro, mas a salvao ponto de esforo individual que cada um emprega, na medida de suas foras. Da esta doutrina de AK: Toda falta cometida, todo mal realizado uma dvida contrada que dever ser paga; se no for em uma existncia, s-lo- na seguinte ou seguintes (V, 88). Ele reconhece a necessidade e o valor do arrependimento; mas este

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arrependimento no basta ao pecador para obter o perdo divino. Segundo ele, a contrio apenas o incio da expiao e tem como consequncia o desejo de uma nova encarnao para se purificar (I, 446). O arrependimento concorre para a melhoria do esprito, mas ele tem que expiar o seu passado (I, 448); o arrependimento lhe apressa a reabilitao, mas no o absolve (I, 450); o arrependimento suaviza os travos da expiao, abrindo pela esperana o caminho da reabilitao; s a reparao, contudo, pode anular o efeito, destruindo-lhe a causa. Do contrrio, o perdo seria uma graa, no uma anulao (V, 90); e a graa coisa que no existe porque seria uma injustia (IV, 76). No livro Roma e o Evangelho (5 ed.), o esprito de Maria dita estas palavras: Jesus Cristo no podia, nem quis assumir todas as responsabilidades individuais, contradas ou por contrair, emanadas dos pecados dos homens, e muito menos podia, pelo sacrifcio da sua vida, remir a humanidade da pena de desterro a que fora condenada... A redeno da humanidade no se firma, pois, nos mritos e sacrifcios de Jesus, e, sim, nas boas obras dos homens... Que cegueira! Quanta aberrao! Supor e afirmar que os sofrimentos e a morte do Justo foram ordenados do alto, em expiao dos pecados de todos, a mais orgulhosa das blasfmias contra a justia do Eterno. 6. A doutrina sobre a Igreja Creio na Igreja, una, santa, catlica e apostlica. a profisso crist. Nem esta profisso entra no credo esprita. Com a negao da doutrina crist sobre a redeno e santificao dos homens, contestam-se consequentemente tambm todos os meios institudos por Jesus Cristo para a salvao e santificao. A comear pelo batismo. Jesus mandou aos apstolos ir pelo mundo inteiro, ensinar a todos tudo quanto ele lhes ordenara, batizando a todos em nome do Pai e do Filho e do Esprito Santo (Mt 28,19-20), esclarecendo: Aquele que crer e for batizado ser salvo; o que no crer ser condenado (Mc 16,16). No Brasil, os espritas, fiis doutrina codificada por AK, j no batizam nem fazem batizar seus filhos. Nem teria sentido. Pois pelas reencarnaes que os homens devem alcanar a perfeio. Na ltima ceia Jesus instituiu a eucaristia e ordenou aos apstolos: Fazei isto em minha memria (Lc 22,19). Mas os espritas no o fazem. Nem teria sentido. Pois, segundo eles, o mistrio pascal no tem valor de sacrifcio pelos pecados dos homens. Jesus disse aos apstolos: Aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-o perdoados (Jo 20,23). Mas os espritas no procuram receber o perdo divino que lhes generosamente oferecido. Nem teria sentido. Pois somente mediante as reencarnaes se alcana o perdo. Jesus disse a Pedro: Tu s Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno no prevalecero contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos cus e o que ligares na terra ser ligado nos cus e o que desligares na terra ser desligado nos cus (Mt 16,18-19). Mas os espritas no do nenhuma importncia nem a Pedro e seus sucessores, nem Igreja que Jesus dizia sua, nem ao poder das chaves que o Senhor Jesus entregou ao chefe do colgio apostlico. Jesus declarou aos apstolos: Quem vos ouve a mim ouve, quem vos despreza a mim despreza, e quem me des preza, despreza aquele que me enviou (Lc 10,16). Para os espritas tudo isso j est superado. Pois eles vo receber as orientaes dos espritos que baixam em seus centros. Proclamando a nulidade dos sacramentos, quer AK que o espiritismo no tenha nem culto, nem rito, nem templos (VII, 235). E o Conselho Federativo Nacional dos espritas, em sua reunio de 5-7-1952, declarou, por unanimidade, que o espiritismo religio sem ritos, sem liturgia e sem sacramentos. Proclama-se assim a total inutilidade da Igreja, que ser substituda pelo espiritismo. No livro Depois da morte (p. 80), profetiza Leo Denis: Chegar a ocasio em que o catolicismo, seus dogmas e prticas no sero mais do que vagas reminiscncias quase apagadas da memria dos homens, como o so para ns os paganismos romanos e escandinavos. No seria difcil continuar a lista de negaes. Assim, para dar apenas mais alguns exemplos, o espiritismo nega a criao da alma humana; recusa a unio substancial entre corpo e alma; afirma que no h anjos e demnios; repudia os privilgios de Maria Santssima; no admite o pecado original; contesta a graa divina; abandona toda a doutrina do sobrenatural; rejeita a unicidade da vida humana terrestre; ignora o juzo particular depois da morte; no concede a existncia do purgatrio; ridiculariza o inferno; reprova a ressurreio da carne; e desdenha o juzo final. Em uma palavra: renuncia a todo o credo cristo. Em que consiste, pois, seu anunciado cristianismo? Tudo simplesmente reduzido aceitao de alguns princpios morais do Evangelho, tal como AK aprendera em sua juventude, no Instituto de Pestalozzi, em Yverdun, na Sua. Seu manual cristo unicamente O

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evangelho segundo o espiritismo, com a explicao das mximas morais do Cristo em concordncia com o espiritismo e suas aplicaes s diversas circunstncias da vida, que AK publicou em 1864. Na Revue Spirite de junho de 1867, AK critica a obra de J. B. Roustaing (que ensinava que o corpo de Jesus era meramente aparente ou fludico) e revela que em O evangelho segundo o espiritismo ele se circunscrevera simplesmente s mximas morais que so, geralmente, claras e nem poderiam ser interpretadas de maneiras diversas e so, por isso, aceitas por todos. E ento revela: Essa a razo que nos levou a comear por a, a fim de sermos aceitos sem contestao, aguardando, relativamente ao mais, que a opinio geral se encontrasse familiarizada com a ideia esprita. Passa ento a criticar Roustaing, dizendo: O autor desta nova obra julgou dever seguir outra orientao: em lugar de proceder gradativamente, quis de um salto atingir o fim. Assim que tratou de certas questes que ainda no julgramos oportuno abordar. AK era oportunista. Da seu proposital silncio sobre certas questes, por exemplo, a Santssima Trindade. Seu nico estudo de carter teolgico, embora negativo, sobre a natureza de Jesus Cristo, no foi por ele publicado, mas apareceu apenas depois em suas Obras pstumas. Ele recomenda esta norma de agir: Cumpre nos faamos compreensveis. Se algum tem uma convico bem firmada sobre uma doutrina, ainda que falsa, necessrio que lhe tiremos essa convico, mas pouco a pouco. Por isso que muitas vezes nos servimos de seus termos e aparentamos abundar nas suas ideias: para que no fique de sbito ofuscado e no deixe de se instruir conosco (III, 336). Sendo o Brasil um pas tradicionalmente catlico ou cristo, os espritas, de acordo com o citado princpio de AK, se apresentam como cristos e difundem principalmente O evangelho segundo o espiritismo. Comeam por dizer que o espiritismo apenas cincia e filosofia, no cogitando de questes dogmticas; que eles no combatem crena alguma; que o catlico, para ser esprita, no precisa deixar de ser catlico; que todas as religies so boas, contanto que se faa o bem e se pratique a caridade etc. E por isso vo dando nomes de santos nossos aos centros espritas. O Conselho Federativo resolveu prescrever a seguinte norma geral: As sociedades adesas ( Federao Esprita Brasileira), mediante entendimento com a Federao, quando esta julgar oportuno e as convidar para isso, cuidaro de modificar suas denominaes no sentido de suprimir delas o qualificativo de santo e de substituir por outras, tiradas dos princpios e preceitos espritas, dos lugares onde tenham sua sede, das datas de relevo nos anais do espiritismo e dos nomes dos seus grandes pioneiros. Assim, por exemplo, comea algum centro esprita por chamar-se Centro so Francisco de Assis; depois, quando a Federao julgar oportuno, suprimir o qualificativo santo; e afinal, quando seus adeptos j estiverem suficientemente distanciados da Igreja, ser Centro Allan Kardec... Assim era antes. J agora, em 1985, o Conselho Federativo, no Manual de Administrao das Instituies Espritas, determina no tomar por patronos, os nomes de arcanjo, anjo, pai, caboclo, santo e congneres.

4. O ESPIRITISMO DE UMBANDA 1. No fim de sua vida, AK, como lemos em suas Obras pstumas, via com profunda inquietao o problema da unidade do espiritismo. Seu ltimo manuscrito, sobre a Constituio do espiritismo, toca tambm a questo dos cismas. Para garantir a unidade, proclamava como condio fundamental que todas as partes do conjunto da doutrina sejam determinadas com preciso e clareza. Exatamente quando se dispunha a formular os princpios fundamentais da doutrina esprita, reconhecidos como verdades inconcussas, foi chamado pelo Senhor da vida. Na Constituio falava tambm da necessidade de uma direo central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da doutrina; e fazia sentir sua inquietao por no ver, a surgir no horizonte, o seu condutor. Sem isso, escrevia ele, o espiritismo corre o risco de caminhar ao lu. Quis mesmo estabelecer um formulrio de f e adeso, por escrito, para garantir a unidade sob o imprio de uma mesma f, de uma comunho de pensamentos, de modos de ver e de aspiraes. Dir-se-ia que desejava um papa... Mas tudo isso no se concretizou. E o espiritismo iniciou sua marcha ao lu... Todos queriam a unio dos espritas em tomo de um centro diretor. Todos, porm, queriam ser esse centro. No Brasil, a reao mais violenta e extrema dentro do espiritismo kardecista surgiu em

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1910, com o Sr. Luiz de Mattos, fundador do Espiritismo Racional e Cientfico (Cristo). Naquele ano, o padre Antnio Vieira, em corpo astral, o escolheu para iniciar o novo movimento. Contra o aspecto excessivamente religioso dos kardecistas, acentuou o lado cientfico e racional das comunicaes com o mundo astral. Em suas obras investe furiosamente contra o kardecismo, a maior praga que na terra existe, porque, alm dos perversos instintos que os dominam, so dominados pela indolncia mental, no gravam seno aquilo que agrada a sua animalidade; um saco de patifarias enfeitado com as rendas sem caridade no h salvao e outras frioleiras. Com relao Igreja, estes espiritistas racionalistas so igualmente agressivos. Eles se orgulham de ter uma filosofia prpria e de poder explicar com exatido o que o esprito, a matria, o astral, o fluido, o pensamento, o espao, a aura e a evoluo. E todos quantos no aceitam estas explicaes, so cretinos e obsedados. Menos violenta, mas mais profunda e incomparavelmente mais popular, foi outra ciso, da qual surgiu o assim chamado espiritismo de umbanda. Informa o Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda (CONDU) que no dia 15 de novembro de 1907 o Sr. Zlio Fernandino de Moraes, de tradicional fanu1ia fluminense, compareceu a uma sesso da Federao Esprita de Niteri e l recebeu um aviso do alm: seria o responsvel pela organizao de um novo culto no Brasil. No dia seguinte foi fundado o primeiro terreiro de umbanda: a Tenda Esprita Nossa Senhora da Piedade. Dez anos depois Zlio de Moraes criou mais sete tendas espritas, todas de Nossa Senhora. Em 1937 organizou a Federao Esprita de Umbanda do Brasil, posteriormente denominada Unio Espiritista da Umbanda do Brasil (UEUB), que, em 1941, promoveu o I Congresso do Espiritismo de Umbanda, para ensaiar a codificao formal da doutrina e do ritual. Que acontecera? 2. As pesquisas feitas por Diana Brown (Uma histria da umbanda no Rio, em Cadernos de ISER, n. 18, 1985) revelam que Zlio de Moraes e seu grupo eram kardecistas insatisfeitos com o elitismo da prtica esprita, que comearam a visitar terreiros de cultos africanos localizados nos bairros populares dos arredores do Rio de Janeiro e de Niteri. Todos eles eram brancos e da classe mdia: funcionrios pblicos, comerciantes, militares, profissionais liberais. Deu-se ento o encontro do kardecismo francs com a religio africana de origem banta, caracterizada pelo culto aos antepassados ou ancestrais, que tambm eram evocados maneira espiritista e se manifestavam durante o ritual africano. Era evidente a afinidade entre espiritismo e culto banto. Ritual e doutrinariamente pobre, a prtica banta (macumba) j se havia enriquecido com elementos do culto nag (candombl), sobretudo pela adoo de orixs iorubanos (tambm ancestrais, embora de certa categoria e aps um processo de ancestralizao), mas sem deixar de estar sempre centrado na evocao de seus prprios antepassados, que j ento se manifestavam ora como pretos velhos, ora como caboclos ou crianas. Na poca j se realizara tambm o sincretismo do culto africano (sudans e banto) com a religiosidade popular catlica. Os kardecistas insatisfeitos, congregados por Zlio de Moraes, passaram a preferir as entidades que se manifestavam nos cultos bantos como mais competentes nas curas e no tratamento de doenas e na soluo de outros problemas humanos. Os ritos africanos lhes pareciam mais estimulantes e dramticos que o seco e mon6tono cerimonial kardecista (espiritismo de mesa). Mas no aceitavam ritos que envolviam sacrifcios de animais e a presena de espritos trevosos (exus). Nem concordavam com as bebedeiras e a explorao econmica dos clientes. A dispendiosa roupagem sacral feminina (das baianas) foi substituda por um higinico avental branco, incentivando-se tambm o uso do tnis, em vez de danar descalo. Simplificou-se o culto, a defumao e os cumprimentos do altar. Houve, pois, um processo de desafricanizao do rito banto-nag. Fiis ao corpo doutrinrio do kardecismo, Zlio de Moraes e seus adeptos adotaram ritos de sabor africano e comearam a confabular com pretos velhos e caboclos do alm. Surgiu assim o espiritismo de umbanda. 3. Umbanda era o nome dado ao chefe do culto banto. O termo ainda hoje comum em Angola, como me informaram vrios missionrios que l trabalharam. O folclorista angolano Oscar Ribas, na obra Ilundo, publicada pelo Museu de Angola em 1958, confirma que o dirigente do terreiro, palavra que l tambm usada para indicar o lugar de culto, quando homem, chama-se pai-de-umbanda, quando mulher, me-de-umbanda. No dicionrio dos dialetos Quimbunda e Umbunda, de A. da Silva Maia, edio de 1955, a palavra umbanda

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significa simplesmente: feitiaria, feitio, feiticeiro. De um missionrio angolano recebi acerca desta palavra os seguintes dados: Umbanda um vocbulo da lngua umbunda, falada pela tribo do mesmo nome, da raa banta, na regio central de Angola (Bailundo, Huambo, Bi, Andulo, Caconda etc.). O mesmo termo, mais ou menos alterado, encontra-se tambm em outras tribos afins, como Nhaneca, ao sul de Angola. A palavra pode ter trs significados: a) um talism com a prolao das devidas palavras rituais, a que se atribuem efeitos maravilhosos, causados por espritos ou almas dos falecidos; b) o prprio talism, que pode ser um manipano, razes de plantas especiais, partes do corpo animal, como o fgado da hiena, unhas, cornos, ossos humanos sobretudo o crnio, moedas etc. As palavras rituais variam segundo o efeito a obter e que podem ter ou finalidade defensiva, contra o feitio de outros, evitar uma calamidade etc., ou finalidade ofensiva para provocar doena ou morte de um inimigo, ou com fins benficos para conseguir riquezas, sorte nos negcios, nas relaes, na caa, na agricultura; podem tambm relacionar-se com os ancestrais falecidos, para apazigu-los, merecer sua proteo etc.; c) o poder de exercer os atos supramencionados. Arthur Ramos, em O negro brasileiro (3 ed., p. 102, nota 150), cita esta informao de Heli Chatelain, Folks-tales of Angola, de 1894: U-mbanda derivada de Ki-mbanda, pelo prefixo U., como u-ngana o de ngana. Umbanda : 1) a faculdade, cincia, arte, ofcio, negcio: a) de cura por meios de medicina natural (remdios) ou medicinas supematurais (encantos); b) de adivinhao do desconhecido pela consulta aos espritos dos mortos, aos gnios, demnios, que no so espritos humanos nem divinos; c) de induo destes espritos humanos e no-humanos a influir sobre os homens e a natureza para o bem-estar ou a desgraa humana; 2) as foras atuantes na sade, na adivinhao e na influncia dos espritos; 3) os objetos (encantos) que so supostos a estabelecer e determinar a conexo entre os espritos e o mundo fsico. No j citado livro Ilundo, o folclorista angolano Oscar Ribas ensina: Na religio negra nada se opera sem a influncia dos espritos. Atravs dos seus instrumentos de mediunidade, eles agem para todas as circunstncias, quer para o bem, quer para o mal. So os espritos que revelam as causas das enfermidades, azares, tudo, enfim, o que se pretende saber. So os espritos que receitam por intermdio de seus sacerdotes, quer no momento da atuao, quer em sonho tambm. E so os espritos, ainda, que tomam sua guarda quem a eles recorre, ou, inversamente, tambm so eles que matam, quando a isso os induzem. 4. Mas no eram os umbandas de Angola que entusiasmaram o grupo fundador da umbanda no Brasil. Por ocasio do I Congresso do Espiritismo de Umbanda, em 1941, o grupo, ento ainda numericamente insignificante, tinha a preocupao de mostrar que a umbanda de origem antiqussima, vem dos hindus, contempornea dos Vedas, que depois passou frica, donde veio para o Brasil. Era este o teor das duas primeiras concluses unanimemente aceitas por aquele congresso: I. O espiritismo de umbanda uma das maiores correntes do pensamento humano existente na terra h mais de cem sculos, cuja raiz provm das antigas religies e filosofias da ndia, fonte de inspirao de todas as demais doutrinas filosficas do Ocidente. 2. Umbanda palavra snscrita, cuja significao em nosso Idioma pode ser dada por qualquer dos seguintes conceitos: Princpio Divino, Luz Irradiante, Fonte Permanente de Vida, Evoluo Constante. Era a desafricanizao. Os primeiros anos da incipiente umbanda no foram fceis. Uma lei de 1934 (Getlio Vargas) colocou os grupos religiosos de inspirao africana sob a jurisdio do Departamento de Txicos e Mistificaes da polcia. Para poderem funcionar, tinham que solicitar registro especial neste Departamento. Naqueles anos houve represso e perseguio policial. Numerosos grupos ficavam na clandestinidade ou, quando se registravam, procuravam esconder suas ligaes ou inspiraes africanas e se registravam como espiritistas. 5. A alta direo da Federao Esprita Brasileira, ortodoxamente kardecista, embora hostil ao novo tipo de espiritismo, em nota publicada no Reformador, seu rgo oficial, de julho de 1953, fez esta declarao: Todo aquele que cr nas manifestaes dos espritos esprita; ora, o umbandista nelas cr, logo o umbandista esprita. E esclarecia: Os que aceitam o fenmeno esprita como manifestao de Satans, ou como ocasionado somente por foras desconhecidas, esses no so espritas; mas aqueles que o tm como produzido por espritos, esses devem ser considerados como adeptos do espiritismo, isto , espiritistas, admitam ou no a

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reencarnao e pratiquem ou no rituais que ns no adotamos. Era o endosso oficial. Mas to generosa e tolerante atitude da mais alta autoridade esprita no Brasil, que permitia s tendas umbandistas registrar-se oficialmente como espritas para escaparem da perseguio policial, foi drasticamente modificada pela declarao oficial de 2 de janeiro de 1978, publicada no Reformador de fevereiro de 1978: 1. imprpria, ilegtima e abusiva a designao de espritas adotada por pessoas, tendas, ncleos, terreiros, centros, grupos, associaes e outras entidades que, mesmo quando legalmente autorizados a usar o ttulo, no praticam a doutrina esprita, tal como foi clara e formalmente definida no editorial de Reformador de setembro de 1977, ano 95, n. 1.782. Este editorial definia: Doutrina esprita o conjunto de princpios bsicos, codificados por Allan Kardec, que constituem o espiritismo. Estes princpios esto contidos nas obras fundamentais, que so: O livro dos espritos, O livro dos mdiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O cu e o inferno, A gnese. Todas as demais obras, por mais preciosas que sejam ou venham a ser, so e sero obras complementares, sem que isso diminua o extraordinrio valor de muitas delas. 2. O espiritismo uma doutrina de princpios estabelecidos com clareza e exatido (...) e no se confunde com quaisquer outras cincias, filosofias, religies, movimentos, sincretismos, folclore, crenas ou crendices. 3. No so espritas, mesmo que assim se digam, nem mdiuns espritas, mesmo que sejam mdiuns, os que no se enquadram nas definies doutrinrias contidas no Editorial de Reformador de novembro de 1977, ano 95, n. 1.784. Era a excomunho. Alis, j em 1926 o Conselho Federativo da mesma Federao kardecista publicara um parecer oficial sobre caboclos e africanos. J ento se manifestavam caboclos e pretos velhos que no se pautavam pela doutrina AK (cf. Reformador, maio de 1978, p. 165), embora tambm viessem do alm. O alm imaginado pelos espiritistas to pluralista como este aqum dos mortais. 6. Depois da guerra mundial e dos 15 anos da ditadura de Getlio Vargas (1945), h o retomo a um governo constitucional. Diminui a perseguio policial. A umbanda pode ser praticada livremente. Criam-se novos centros. Formam-se novas federaes. E a umbanda comea a aparecer nos meios de comunicao social, em programas de rdio, em colunas semanais dos principais jornais do Rio e em numerosas publicaes de sua prpria iniciativa. Em 1949 inicia a circulao do Jornal de umbanda, ainda por iniciativa do grupo Zlio de Moraes. O movimento passa a outros Estados. O pequeno grupo local se transforma em movimento nacional. Comea a ser proclamado como a religio do Brasil. Sobretudo a partir de 1950 muitos terreiros afro-brasileiros, completamente independentes da umbanda pura idealizada por Zlio de Moraes, identificam-se publicamente tambm com a umbanda. Aparecem e pululam terreiros de umbanda de todo tipo. Cada qual dirige seu terreiro ou escreve seu livro inteiramente por conta prpria, persuadido de ter assistncia especial de alguns guias do alm. Eis alguns desabafos da poca: - Os autores de umbanda se contradizem a si prprios e no apenas a seus colegas (Samuel Ponze, Lies de umbanda, Rio, 1954, p. 35). E mais: Reina a anarquia, a incompreenso, a vaidade, a mistificao, a pouca cultura entre a maioria dos umbandistas (p. 26); cada qual quer ser o maior. Cada chefete de terreiro acha que acima de seu guia ou de seus guias, s Deus (p. 27). - Cada um procura fazer uma umbanda a seu modo, e dentro do conceito que ele prprio imagina, de acordo com a sua instruo, com a sua capacidade de imaginao, com os seus conhecimentos, e, quase nunca, com a orientao dada pelos seus prprios guias (A. Fontenelle, Exu, Rio, 1952, p. 60). - At hoje, nada de claro ao pblico, em matria literria sobre umbanda (Emanuel Zespo, pseudnimo de Paulo Menezes, Codificao da lei de umbanda, Parte Cientfica, Rio, 1951, p. 16). - A umbanda, no Brasil, difere de Estado para Estado, de cidade para cidade, de municpio para municpio, de vila para vila e de tenda para tenda (Loureno Braga, Um banda e quimbanda, 2 parte, Rio, 1956, p. 7). Depois explica: Essa divergncia tem sua origem na ignorncia, na pretenso, na vaidade e, muitas vezes, na falta de escrpulos e nas segundas intenes, de alguns de seus praticantes e dirigentes, que para serem adorados pelos que os cercam ou para tirarem quaisquer espcies de vantagens, mesclam e maculam a umbanda, com

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rituais desnecessrios, usados para impressionar os crentes e frequentadores. - Hoje uma vasta onda de mistificao invadiu a umbanda. Criaram, os intrusos, uma umbanda branca, uma umbanda mista, modificaram o ritual sagrado, e pior sob o ponto de vista espiritual, introduziram o comercialismo na seita. Escritores improvisados publicaram livros cheios de erros e fantasias, servindo a umbanda de capa a atividades inteiramente comerciais. Para completar a mistificao, pessoas que nada conhecem dos mistrios de umbanda, que nunca foram sacerdotes, que nunca fizeram cabea, abriram centros e tendas, montaram consultrios luxuosos, onde os clientes so atendidos mediante fichas numeradas (Byron Torres de Freitas e Tancredo da Silva Pinto, Fundamentos de umbanda, Rio, 1956, p. 19). 7. Para remediar situao to confusa, multiplicaram-se as federaes e confederaes. Em meados de 1950 surgiram seis novas federaes no Rio, alm da j existente UEUB: trs foram organizadas por umbandistas do setor mdio, seguindo as diretrizes gerais da orientao ritual e doutrinria da umbanda pura (idealizada pelo grupo de Zlio de Moraes). As outras trs defendiam uma forma de umbanda de orientao africana, com elementos provenientes do setor pobre, negros e mulatos. Entre estes estava a Confederao Esprita Umbandista, fundada em 1952 por Tancredo da Silva Pinto, declaradamente africanista, com a finalidade de restabelecer a tradio antiga, em toda a sua fora e pureza primitiva. Bem diferente queria ser a Associao Umbandista Brasileira, comandada por Loureno Braga, que tambm pretendia reunir, sob uma nica direo, todos os centros, grmios, tendas, cabanas, terreiros, agremiaes, sociedades e associaes, que praticam o espiritismo nos moldes de umbanda. Nesta associao os terreiros deviam chamar-se tendas; e nelas no se permitiria bater tambores, nem usar pembas pretas ou vermelhas, punhais, bebidas, roupas de cores diferentes da branca; nem se toleraria cantar no ritmo de jje, nag, banto, keto, angola ou omoloc, mas apenas em ritmo de umbanda e sem alterar a voz em demasia; nelas os mdiuns s trabalhariam vestidos de branco, calados com sapatos de corda ou descalos, os homens de cala branca e camisa branca, as mulheres de blusa e saia brancas; no seria permitida a matana de quaisquer animais, nem comida de santo, nem despachos em nenhum lugar; mas seria facultado o uso de defumadores, velas, pembas brancas ou de cor (menos as pretas e vermelhas, que so do exu), banhos de descarga, breves, patus, seixos, conchas, fitas, figas de guin e arruda... Comentava Tancredo da Silva Pinto, o grande chefe angolano que iniciou 3.576 filhos-de-santo: Terreiro de umbanda que no usar tambores e outros instrumentos rituais, que no cantar pontos em linguagem africana, que no oferecer o sacrifcio de preceito e nem preparar comida de santo, pode ser tudo, menos terreiro de umbanda. Era o cisma. Em 1955 formou-se ento o Colegiado Esprita do Cruzeiro do Sul, tentando reunir e unificar as faces. A nova coalizo agrupou as cinco federaes mais ativas do Rio e teve na UEUB sua principal promotora, incluindo tambm a confederao liderada pelo angolanista Tancredo da Silva Pinto, que foi nomeado um de seus presidentes. Este colegiado organizou e realizou o II Congresso de Umbanda, em 1961, com a presena de milhares de umbandistas (no Maracanzinho) e representantes de dez Estados. Membros dos setores profissionais e polticos declararam abertamente sua crena na umbanda e defendiam sua nova religio nas as