espelho trincado - aliás - estadão

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11 Abril 2015 | 16h 00 Foi-se a imagem do Estado onipotente, mas isso não trouxe ganhos suficientes de Não se pode prever se as manifestações de hoje levarão tantas pessoas às ruas como no último dia 15 que sua presença se fará sentir nas redes sociais. Na manifestação de março, chamou atenção a quan circularam pela rede, sobretudo os “selfies”. Todos queriam compartilhar um registro de sua presen se sentiam partícipes de um evento histórico. Não à toa, pois as manifestações foram amplamente n mídia, como se se tratasse já de um acontecimento histórico. E isso antes mesmo que elas tivessem a âmbito da temporalidade coletiva que, embora incomum no âmbito da política, é um fenômeno típic Debord já notara que na sociedade do espetáculo é o próprio tempo que é transformado em mercado venda “blocos de tempo” com “tudo incluso”. Nos pacotes de viagens ou nos festivais culturais, vend temporal fechada. Daí que se opera uma inversão temporal. A experiência que se projeta para o futu de ser vivida. Ela já é, nesse sentido, uma experiência passada. Se a prática do autorretrato não costuma ser habitual nas manifestações de rua, isso se deve ao inten com o presente, um campo de possibilidades aberto tanto à criatividade quanto ao perigo. O que os “ revelam é, pelo contrário, o empobrecimento da experiência presente. A consequência da reificação extrema do campo de possibilidades do sujeito, uma vez que tudo já está dado. Na experiência reific desprovido de sua capacidade de ação no presente. Destituído de potência, torna-se presa fácil do re Giorgio Agamben escrevera justamente que a mídia produz o homem do ressentimento, veiculando os quais o sujeito não pode mais agir. Apresentadas como acontecimentos antes de acontecerem, as ressentimento, e podem incorrer no esvaziamento de toda força propriamente política - isto é, de um simples representação, mas como ação de indivíduos autônomos na construção da vida coletiva. Espelho Trincado - Aliás - Estadão http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,espelho-trincado,1667704 1 sur 3 08/09/2015 22:52

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Texto publicado no caderno Alias, do jornal O Estado de São Paulo, em 12 de Abril de 2015. Trata das recentes manifestações antigoverno no Brasil, e de suas diversas implicações.

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Page 1: Espelho Trincado - Aliás - Estadão

11 Abril 2015 | 16h 00

Foi-se a imagem do Estado onipotente, mas isso não trouxe ganhos suficientes de participação política

Não se pode prever se as manifestações de hoje levarão tantas pessoas às ruas como no último dia 15 de março. Mas pode-s

que sua presença se fará sentir nas redes sociais. Na manifestação de março, chamou atenção a quantidade de fotografias p

circularam pela rede, sobretudo os “selfies”. Todos queriam compartilhar um registro de sua presença no ato. Os manifesta

se sentiam partícipes de um evento histórico. Não à toa, pois as manifestações foram amplamente noticiadas, sobretudo pe

mídia, como se se tratasse já de um acontecimento histórico. E isso antes mesmo que elas tivessem acontecido. Uma curios

âmbito da temporalidade coletiva que, embora incomum no âmbito da política, é um fenômeno típico da sociedade do espe

Debord já notara que na sociedade do espetáculo é o próprio tempo que é transformado em mercadoria. A indústria do laze

venda “blocos de tempo” com “tudo incluso”. Nos pacotes de viagens ou nos festivais culturais, vende-se uma experiência e

temporal fechada. Daí que se opera uma inversão temporal. A experiência que se projeta para o futuro aparece como pront

de ser vivida. Ela já é, nesse sentido, uma experiência passada.

Se a prática do autorretrato não costuma ser habitual nas manifestações de rua, isso se deve ao intenso envolvimento dos p

com o presente, um campo de possibilidades aberto tanto à criatividade quanto ao perigo. O que os “selfies” das manifestaç

revelam é, pelo contrário, o empobrecimento da experiência presente. A consequência da reificação espetacular do tempo é

extrema do campo de possibilidades do sujeito, uma vez que tudo já está dado. Na experiência reificada como passado, o su

desprovido de sua capacidade de ação no presente. Destituído de potência, torna-se presa fácil do ressentimento.

Giorgio Agamben escrevera justamente que a mídia produz o homem do ressentimento, veiculando sempre acontecimento

os quais o sujeito não pode mais agir. Apresentadas como acontecimentos antes de acontecerem, as manifestações atuais p

ressentimento, e podem incorrer no esvaziamento de toda força propriamente política - isto é, de uma política não compree

simples representação, mas como ação de indivíduos autônomos na construção da vida coletiva.

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Com efeito, para o já citado Guy Debord, o espetáculo não estava apenas nas mídias. A moderna democracia representativa

uma forma de espetáculo por não dar lugar a uma vida política em comum, reduzindo a participação política à escolha indi

representantes. Nesse sentido, a política representativa comporta já o germe do ressentimento, pois, ao delegarem toda açã

representantes, os indivíduos se veem mais uma vez destituídos de potência. Esse ressentimento pode se voltar contra os re

ou ainda contra um bode expiatório. Nasce daí a construção paranoica de um inimigo intolerável, o ódio contra um outro q

como aquele que pode fazer o que eu não posso fazer; como se a sua potência fosse a razão da minha impotência. No Brasil

retomada atual da paranoia anticomunista, mais de meio século após o fim do comunismo.

Mas a frustração que resulta de uma participação política limitada ao voto pode também dar lugar à demanda por uma am

democrática, para além dos limites da política representativa, como ocorreu em junho de 2013. O Movimento do Passe Livr

impulsionou aquelas manifestações, era avesso à política representativa e se construíra através de uma experiência de dem

com horizontalidade e sem lideranças. Já os movimentos que coordenam as manifestações atuais são distintos. O Movimen

(MBL), por exemplo, é um movimento recém-formado e que se esforça por projetar lideranças. Tendo como alvo o governo

fazer o papel da oposição, seu objetivo resume-se a interferir no jogo de poder existente. Mas fica patente o ressentimento d

membros para com aqueles que seriam seus representantes. Em um dos vídeos veiculados na internet, o grupo ataca o PSD

de incapaz de “ganhar uma mísera eleição”. O impeachment, posto pelo grupo como principal reivindicação do ato de hoje,

assim uma bandeira do ressentimento, trazendo o amargor mal resolvido da derrota nas eleições.

O ressentimento que nasce da frustração com a política representativa tem como grande risco a adoção de uma via autoritá

manifestações de hoje devemos ver mais uma vez a presença, minoritária mas inquietante, daqueles que, sob a sombra do m

passados brasileiros, clamam por intervenção militar. O autoritarismo busca justamente recompensar a impotência real do

através da identificação imaginária com um Estado onipotente. Acostumada por muito tempo ao autoritarismo, uma parte

brasileira parece ressentir-se hoje dos trinta anos de experiência democrática. Mas isso pode se dever também ao fato de qu

ordem democrática, que quebrou a identificação imaginária com o Estado onipotente, não trouxe suficientes ganhos reais d

política para a população.

GABRIEL ZACARIAS É DOUTOR EM ESTUDOS CULTURAIS PELO PROGRAMA ERASMUS MUNDUS, DA UNIÃO EUR

HISTORIADOR HABILITADO PELO CONSEIL NATIONAL DES UNIVERSITÉS, DA FRANCA

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