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ARGILA Maria da Glória Cracco Bozza Espelho da Auto-Expressão Um método para manifestação do inconsciente

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ARGILA

Maria da Glória Cracco Bozza

Espelho da Auto-ExpressãoUm método para manifestação do inconsciente

Bozza, Maria da Glória CraccoB793 Argila : espelho da auto-expressão : um método para

manifestação do inconsciente / Maria da Glória CraccoBozza. – Curitiba : Ed. do Autor, 2001.

127 p.

ISBN 85-902334-1-3

1. Psicanálise. 2. Psicoterapia. 3. Inconsciente.I. Título.

CDD (20.ed.) 150.195CDU (2.ed.) 159.964.2CDU (ed. 1997) 159.964.2

Depósito legal junto à Biblioteca Nacional, conforme decreto n.º1823, de 20 de dezembro de 1907.

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)Index Consultoria em Informação e Serviços S/C Ltda.

Curitiba - PR

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

COORDENAÇÃO EDITORIALAntônia Schwinden

CAPAJonathan Haste

EDITORAÇÃO ELETRÔNICAIvonete Chula dos Santos

A meu marido e meus filhos,

pela compreensão, força, incentivo e

paciência no desenvolvimento

deste trabalho.

vii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................. 1

A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO ..................................................... 71 A ARGILA E SUA UTILIZAÇÃO TERAPÊUTICA .............................. 72 SOBRE MÉTODO OU TÉCNICA ........................................................ 143 HISTÓRICO .......................................................................................... 164 MATERIAL E O MÉTODO ................................................................... 214.1 MATERIAL .......................................................................................................... 21

4.2 MÉTODO ............................................................................................................ 22

5 FORMAS DE APLICAÇÃO DO MÉTODO ......................................... 245.1 SUJEITO E TERAPEUTA MODELAM SEGUNDO TEMA LIVRE OU

TEMA DIRIGIDO .............................................................................................. 24

5.2 TEMA ESCOLHIDO PELO SUJEITO A PARTIR DAS ESCULTURAS

PREVIAMENTE CONFECCIONADAS ............................................................ 45

5.3 ESCULTURA ESCOLHIDA PELO TERAPEUTA COMO TEMA .................... 47

O MÉTODO NA PRÁTICA CLÍNICA ............................................... 49

REFLEXÕES SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DO INCONSCIENTEE A MODELAGEM EM ARGILA ....................................................... 731 O INCONSCIENTE .............................................................................. 732 CARACTERÍSTICAS DO INCONSCIENTE........................................ 843 AS TÉCNICAS ANALÍTICAS ............................................................... 111

ARGILA: ESPELHO DA AUTO-EXPRESSÃO ................................... 121

REFERÊNCIAS .................................................................................. 125

1

ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

INTRODUÇÃO

“Então o Senhor Deus

formou o homem do pó da terra,

soprou-lhe nas narinas o sopro da vida

e o homem se tornou ser vivo”.

(Gênesis 2,7)

O desenvolvimento da humanidade se faz pelo conhecimento

adquirido do homem sobre o mundo e a natureza, através de diferentes

meios. Isto se tornou possível por estar ele em constante questionamento

e buscando respostas para suas inquietações, uma vez que é dotado de

capacidade de observação, com seus sentidos, recebendo e interpretando

as informações do meio externo. À medida que necessitou de

conhecimentos mais seguros, mais racionais, objetivos e verificáveis, surgiu

a ciência, a qual tem por objetivo chegar à veracidade dos fatos. É, então,

pelo conhecimento científico que o homem pode obter tais respostas, ou

seja, chegar a conclusões a respeito de questões levantadas, sejam elas

comprovadas ou refutadas. O processo formal e sistemático de

desenvolvimento do método científico é definido como pesquisa, que

apresenta as teorias como norteadores metodológicos.

Inúmeros são os sujeitos que se dedicaram e se dedicam a investigar

os fenômenos da natureza, na busca da relação e da compreensão do

homem e do mundo que lhes é circundante.

Entre os vários pesquisadores pode-se citar o próprio Sigmund

Freud, que manteve sempre uma atitude investigatória incansável, dirigida

para os misteriosos fenômenos do psiquismo humano, pela integração

harmoniosa entre teoria e prática. Freud, no desenvolvimento de sua

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MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

teoria, formulava hipóteses e, incansavelmente, buscava comprovação;

caso ocorresse refutação, formulava novas questões num processo

interminável de busca pelo saber e compreensão dos fatos, inclusive

tentando novos métodos para atingir seus objetivos.

Assim, com sua genialidade e esforço criou e organizou um arsenal

de idéias, formando um conjunto teórico que é a Psicanálise, uma forma de

entendimento dos processos psíquicos. Este modelo de entendimento dos

processos psíquicos depende de uma técnica própria de investigação, a

Associação Livre. É por meio dessa técnica que se consegue o advir do

inconsciente, embora ele também se manifeste por meio das formações de

compromisso, como sonhos, chistes, lapsos, atos falhos e sintomas.

Pensando-se que é pelas refutações, pelas verdades não serem únicas

e finais, e pela constatação de falsidade de uma teoria que se engendram

novas buscas de verdade, que surgem alguns questionamentos: O método

da interpretação dos sonhos ou a técnica da associação livre seriam as únicas

formas de se ter acesso aos conteúdos inconscientes? É possível pensar em

outras formas de conseguir atingir os mesmos objetivos, que sejam tão

facilitadores como os já existentes? Seriam os métodos e as técnicas

desenvolvidas por Freud as únicas formas para se chegar a tal objetivo?

O método “Argila: Espelho da Auto-Expressão” (BOZZA, 1994),

desenvolvido desde 1984, vem complementar as formas do advir do

inconsciente e sua compreensão. Visa auxiliar os indivíduos em suas

problemáticas, facilitando a expressão simbólica nas modelagens em argila

dos sentimentos, das percepções e angústias. Possibilita, assim, ao paciente

construir imagens, esculturas, representativas de seu íntimo e que, dentro

do setting terapêutico, terão um sentido à medida que ele puder falar a

respeito de sua produção com este material. Para a Psicanálise, é fundamental

a verdade do sujeito. A cada modelagem em argila um novo conteúdo surge

no contexto terapêutico, ocorrendo uma construção que desvela uma

verdade, mas não a última.

Enfim, o método auxilia o profissional para um melhor entendimento

do psiquismo de seu paciente e, conseqüentemente, obtém melhores

3

ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

resultados dentro do processo psicoterápico. Apesar das divergências

quanto ao perceber e o conceber da dinâmica do ser humano, existe uma

preocupação comum: aliviar o mal-estar daquele que está sofrendo.

O método foi concebido como uma tentativa de auxiliar a expressão

verbal dos sujeitos, possibilitar melhor diagnóstico e intervenção

terapêutica, e favorecer um maior autoconhecimento. A argila foi escolhida

entre os recursos terapêuticos por revelar-se como primitiva, energética,

natural, e possibilitar na construção das modelagens o tridimensional, o

concreto e a individualidade aproximando mais dos aspectos de realidade.

Ao trabalhar com a argila, o sujeito coordena os órgãos dos sentido, mãos

e olhos, transformando a matéria prima argila numa escultura, que conterá

os conteúdos internos de seu autor. DONDIS (1997) diz que é no trabalho

das mãos e dos olhos, em que o que é olhado é confirmado pela objetividade

do tato, que o sujeito projeta forte conteúdo associativo.

Inicialmente o trabalho foi realizado com crianças, por ser um

material lúdico e facilitador do processo terapêutico, pois OAKLANDER

(1980, p.85) afirma que “... a criança agressiva pode usar a argila para

bater e socar. Crianças zangadas podem descarregar sua raiva na argila

de numerosas maneiras...”, fazendo animais ou formas agressivas e cheias

de adornos pontiagudos, que poderão ser pintadas ou desmanchadas, ou

pintadas e/ou quebradas. “Aqueles que estão inseguros e temerosos podem

ter uma sensação de controle, domínio, através da argila...”, já que não há

regras para a sua confecção, e pela liberdade que ela imprime não poderá

ocorrer erro, trazendo como uma vantagem a mais a livre exploração e

busca de soluções. Posteriormente adolescentes e adultos também foram

submetidos a esse trabalho, mostrando a possibilidade de a argila ser

aplicada em todas as faixas etárias.

Atualmente o método é aplicado em sujeitos a partir de três anos,

em sessões individuais, de casal ou familiar, independente de sexo,

escolaridade ou estado civil, que realizam tratamento psicoterápico e que

aceitaram, em alguns momentos do processo, submeter-se a tal instrumento.

4

MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

Sua aplicação é fácil e prática, podendo ser realizada de três

maneiras: a) sujeito e terapeuta modelam segundo tema livre ou tema

dirigido – apresentando os seguintes procedimentos: secagem das peças,

quebraduras, colagem, pintura, exposição das peças, destino das esculturas

e novas elaborações; b) tema escolhido pelo sujeito a partir das esculturas

previamente confeccionadas; c) escultura escolhida pelo terapeuta como

tema. Assim se torna um modelo de trabalho novo com um material muito

primitivo. Respeita a individualidade, pode ser aplicado conforme a

necessidade e o momento, levando à transformação da dinâmica enraizada

e petrificada daquele que busca auxílio.

À medida que o método foi sendo construído, por avanços e recuos,

acertos e erros, questões foram sendo suscitadas, tais como: o relaxamento

propiciado pelo manuseio da argila facilitaria ao sujeito falar de seus

conteúdos? Quais os mecanismos que levam o sujeito a eleger determinada

imagem ou pintá-la com certas cores neste momento? O que leva o sujeito

a realizar sua escultura de determinada forma, quando a imaginou de

outra? Por que elabora parte da peça esculpida mais frágil, vindo a quebrar-

se nestes locais e em outros não? O método seria uma forma de facilitar a

manifestação dos conteúdos internos dos sujeitos?

Uma vez que a Psicanálise é constituída por um conjunto de

hipóteses a respeito do funcionamento e desenvolvimento da vida psíquica

do sujeito, tendo por objeto de estudo e de trabalho o inconsciente, pode

auxiliar nas respostas para tais indagações. Já que o inconsciente é definido

por LAPLANCHE como o “... conjunto dos conteúdos não presentes no

campo atual da consciência...” (1985, p. 306), representantes das pulsões

que, ao reinvestirem o conteúdo desta energia pulsional, somente

conseguem ter acesso ao sistema pré-consciente/consciente após terem se

submetido às deformações da censura e se transformado em formação de

compromisso. Tais representantes são regidos pelos mecanismos do

processo primário (condensação, deslocamento e figurabilidade), em que

as fixações do sistema são realizadas pelos desejos infantis. Poderíamos

5

ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

citar as seguintes formações de compromisso: sintoma, sonhos, chistes,

lapsus linguae, ato falho. É por estas formações que os conteúdos

inconscientes ultrapassam a barreira da censura. À medida que o sujeito

na terapia submete-se à técnica da associação livre – que consiste em

convidar o paciente a falar sobre os pensamentos que lhe vierem à mente,

de maneira espontânea, sem crítica, sem censura, sem pudor, a partir de

uma palavra ou tema – aos poucos irá dando sentido a tais manifestações

e com este recurso técnico o inconsciente pode advir.

Muitas das descobertas de Freud deram-se com seus estudos sobre

os sonhos e resultaram no livro “A interpretação de sonhos” (1900), no qual

qualifica “a interpretação dos sonhos análoga ao deciframento de uma

antiga escrita pictórica”, podendo ser um “método pelo qual a atividade

mental inconsciente se expressa” (FREUD, 1979, p.172). Os sonhos são

a realização de desejos ou uma forma de comunicar os conteúdos mais

íntimos, e sempre terão um significado; são a expressão de um conflito

inconsciente que busca sua resolução através da satisfação desse desejo, o

que, em parte, é obtido pelo trabalho onírico.

Da mesma forma, em seu livro “Totem e Tabu” (1913), Freud

relaciona os atos falhos às ações casuais e os sonhos como sendo processos

de pensamentos, através dos quais o inconsciente se manifesta.

Esta dissertação pretende verificar se a realização durante o

processo psicoterápico das diferentes formas de aplicação do método

“Argila: Espelho da Auto-Expressão”, entre elas o da modelagem em argila

e o da escolha de esculturas pré-confeccionadas, bem como de seus

diferentes procedimentos e das questões anteriormente suscitadas, pode

servir como um dos recursos que facilitam a manifestação do inconsciente.

Diante desta perspectiva, pelo método “Argila: Espelho da Auto-

Expressão” ter como matéria prima a argila descreveu-se no capítulo

inicial seus aspectos gerais, sua utilização terapêutica e os diferenciadores

positivos em relação às outras técnicas. O que gerou a necessidade de

definir a proposta terapêutica aqui descrita como uma técnica ou um

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MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

método. Definido como um método, descreveu-se seu histórico, sua

constituição, particularidades, diferentes procedimentos e formas de

aplicação. Para melhor exemplificar a aplicação do método na prática

clínica, opta-se pela particularização dos casos submetidos ao mesmo,

descrevendo um caso nomeado por A.

A sustentação teórica ``se dá nos pressupostos freudianos. Para

que o método possa ser considerado como uma possível manifestação do

inconsciente, inicialmente definiu-se e caracterizou-se o inconsciente

seindo didaticamente Laplanche e Pontalis. Este recorte teórico privilegia

a primeira tópica de Freud. As modelagens em argila ou a escolha são

comparadas à expressão de uma pulsão, cujas imagens que a elas se ligam

formariam os desejos inconscientes, afastados da consciência pelo trabalho

da censura, pelos processos de distorções, que seriam a condensação,

deslocamento e figurabilidade.

A escultura modelada expressa simbolicamente muito de seu autor,

porém ela só adquire um teor terapêutico significativo e de maior

profundidade à medida que o sujeito puder dela falar. Se então é pela fala

do sujeito que a modelagem adquire significado, pode-se articular a

associação livre e a interpretação, que são técnicas utilizadas pela

Psicanálise, para dar sentido e tornar conhecida a verdade do sujeito. Os

aspectos teóricos são ilustrados continuamente com casos clínicos e

preferencialmente ao caso A.

Faz-se mister lembrar que tais conceitos e técnicas são do âmbito

da Psicanálise, não são utilizados segundo um rigor analítico pela autora

no processo terapêutico. Utiliza-se o método “Argila: Espelho da Auto-

Expressão” como um processo de análise, apenas servem de articulação

teórica para a comprovação de ser a figura modelada ou escolhida entre

as pré-confeccionadas uma manifestação do inconsciente.

7

ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO

1 A ARGILA E SUA UTILIZAÇÃO TERAPÊUTICA

A terra é formada das partículas de diversos tamanhos, dos restos

de animais e plantas e da matéria orgânica que seria o resultado da

decomposição dos mesmos pela ação de microrganismos.

Logo, as argilas são minerais que formam o solo, que dão suporte e

facilitam o crescimento das plantas, pois possuem nutrientes necessários

a elas, que, por sua vez, servem de alimentos para os seres vivos.

Acumulam-se em baixadas ou fundos de vales, formando jazidas de

depósitos naturais.

Por tais atributos recebe, segundo Chagas, a denominação de “...

essência da terra”. E é ele mesmo quem nos diz que “a utilização da

argila pelo homem para construção de objetos é uma de suas mais antigas

manifestações, seja como ‘barro moldado seco ao sol’, seja como ‘barro

cozido ao fogo’” (1996, p.28). No caso de a sua utilização ser feita em

estado bruto, ou seja, logo após a sua extração, pode ser usada de maneira

artesanal na confecção de objetos cerâmicos ou na fabricação de tijolos.

Outras vezes passa por um processo de tratamento para poder ser

utilizada. Seu emprego vai muito além da confecção de objetos de uso

doméstico; é usado na fabricação de produtos como cerâmicas e

porcelanas, além de ter importante uso industrial, estendendo-se à

construção de abrigos, casas e edifícios. É utilizada, portanto, para fazer

desde simples objetos até obras de arte e infindos monumentos.

É um produto de baixo custo, encontrado no comércio como “argila

para modelagem”, e apresenta as seguintes propriedades: grande

plasticidade, ou seja, grande facilidade de ser moldável, adaptando-se às

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MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

necessidades mais variadas, flexibilidade, maleabilidade, maciez, grande

afinidade com a água, aderindo a certas superfícies, inclusive à nossa

pele, sendo altamente pegajosa e viscosa.

O sujeito ao manusear a argila pode modelar uma peça, ou seja,

contornar e dar forma à argila, e o produto final poderia ser denominado

escultura, palavra que vem de ‘sculpere’, que significa entalhar, construir

algo. As esculturas podem seguir a informação realista, extraída do meio

ambiente, ou, por formas menos naturais, chegar até a abstração absoluta;

no entanto, ela existe segundo um espaço.

O homem é um criador de imagens e nunca deixará de sê-lo; assim,

todo sujeito tem um potencial de criação que se intensifica ao envolver-

se com a argila. É como Gouvêa diz: “No barro o homem cria e é criado.

Vivencia a si mesmo como criatura e criador” (1989, p.59).

No trabalho terapêutico, vivenciar e criar com a argila pode

propiciar experiência dos sentidos táctil e sinestésico, ampliação da

percepção, descarga das emoções e, como técnica lúdica, a expressão

simbólica de conteúdos, entre outros.

Quanto à primeira forma, sabe-se que o ser humano, para contatar

com o ambiente, desenvolve seus sentidos, ou seja, o olfato, a audição,

o paladar, o tato e a visão. Ao tocar na argila, o sentido que estará em

maior evidência é o táctil; o sujeito terá uma sensação advinda da “...

modificação que sobrevém na periferia do corpo, em conseqüência de

excitações nos órgãos sensoriais, e que acarreta uma mudança de estado

de consciência...” (BERNIS, 1987, p.33), que será verificável pela reação

motora, das mãos que tocam o material. Já que o manuseio da argila

lembra as primeiras experiências do processo de aprendizagem pelo qual

passa uma criança, a consciência táctil, mesmo antes de a visão estar

desenvolvida ela já existe em maior atuação; daí a importância do toque

e do criar. Uma forma superior ao modo visual e ao táctil, segundo Dondis

(1997), seria a linguagem verbal.

Outro sentido a ser levado em consideração nesta experiência é o

sinestésico, que “... é a capacidade de perceber um estímulo em várias

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ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

modalidades ou sentidos” (GARDNER, 1997, p.161); esse sentido, muito

vivo na idade infantil, atrofia-se com o passar do tempo, porém, em

certas condições experimentais, pode ser reavivado e mantém-se no sujeito

que se dedica aos recursos artísticos. O manuseio da argila “... senti-la de

forma sinestésica, é uma experiência que nos remete a um tempo muito

antigo, a um contato primordial” (ALLESSANDRINI, 1996, p.90) e que

propicia ao sujeito um encontro com sua verdade.

É pelos dados sensoriais fornecidos por estes três sentidos: a visão, o

tato e as sensações sinestésicas, que a sensação, “... o espaço, a proximidade,

a distância, a relação dos objetos em relação uns aos outros...” estão

estabelecidos (BERNIS, 1987, p. 34).

Para complementar, Gouvêa (1989, p.93), ao relatar sua experiência,

fala que: “... sempre e sempre volto a me impressionar com o excepcional

poder da argila. É como se o sentido do tato e o movimento dos músculos

com e contra o movimento resistente, porém, flexível, da argila, propor-

cionassem um acesso, uma abertura para os lugares mais profundos”.

Ehrenzweig (1977, p.53) acrescenta que nos processos criativos “... as

percepções inconscientes se comunicam com a mão automática do

artista...” sendo o trabalho direcionado segundo seu modelo interno.

O uso da argila no processo psicoterápico como descarga de

emoções pode levar o paciente a ter prazer pelo ato em si, como também

a sensação de possuir o controle de tais sentimentos através de suas mãos,

ampliando a percepção, e conseqüentemente adquire maior integridade

e autoconhecimento. É sua essência profunda que pode ser despertada,

permitindo a comunicação dos conteúdos inconscientes com o consciente

do sujeito, expressando conflitos e sentimentos.

Essa atividade, por promover a liberação de tensões, proporciona prazer

e relaxamento, uma vez que o sujeito constrói algo para sua própria satisfação

expressando a sua verdade. Ele ali se desdobra, se repete e se representa.

A argila, como técnica lúdica, no trabalho terapêutico objetiva a

expressão simbólica de conteúdos. Existem várias técnicas com o mesmo

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MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

objetivo, entre elas: plastilina, desenho, brinquedo, jogo, ícones e Sandplay.

Apesar do objetivo comum, diferenciam-se pelos seguintes aspectos: são

constituídas de materiais industrializados, algumas não são da criação

pessoal do sujeito e fazem uso de apenas uma dimensão.

O uso da argila pelas suas propriedades revela algumas vantagens

em relação às técnicas citadas e quanto aos dados projetivos e associativos

da dinâmica dos autores. É um material primitivo, natural, energético,

concreto, proporcionando imagens individuais, ímpares e tridimensionais

que se aproximam mais facilmente do princípio de realidade. Possibilita

assim ao sujeito fazer, desfazer, bater, socar, retalhar, ou seja, manuseá-la

como desejar e em conjunto com outros materiais, enquanto ainda estiver

em seu estado original. A maior dificuldade é imaginar o bloco de argila

desde a forma geral até uma informação visual mais específica, porém,

ao manuseá-la e ocorrer o relaxamento, a imaginação é ativada e os

conteúdos não passam pela prova de realidade, ou seja, são projetados

no material sem a constatação do real.

No entanto, as imagens esculpidas após algum tempo secam, não

mais podendo ser modificadas ou magicamente transformadas, tendo o

sujeito que se haver com dados de realidade e com a frustração resultante

de sua produção. Assim, a escultura serve de marcador para este momento

do trabalho psicoterápico, podendo ser comparada futuramente com as

próximas modelagens que ele vier a confeccionar e que sofrerão uma

mudança condizente com o próprio processo a que está submetido.

Após a secagem, realiza-se a pintura das modelagens, etapa rica em

dados, pois diz do padrão de funcionamento do paciente, desde a forma

como ele a executa até a escolha das cores e seus significados. Como

exemplo cita-se o caso do paciente que desejava pintar sua escultura com

determinada tonalidade, mas, para consegui-la, teria que misturar as tintas

que estavam à sua disposição. Como não realizou tal procedimento para

conseguir seu objetivo, optando pelo caminho menos trabalhoso, pintou-

a com uma cor preexistente próxima da desejada. No transcorrer das

11

ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

sessões subseqüentes, fazia críticas por sua escultura não apresentar a

cor desejada. Com isso, pode-se entender que o paciente estava repetindo

seu padrão de funcionamento, ou seja, deseja as coisas, porém não

despende a energia necessária para conseguir seus intentos, permanecendo

sempre com a queixa de sentir-se insatisfeito.

Todos esses procedimentos ficam suscetíveis ao princípio de

realidade, em que o sujeito terá que se haver com a frustração e administrar

seus conteúdos, caso as peças não fiquem como foi desejado e/ou sofram

possíveis quebras.

Nas esculturas em argila, estão presentes as três dimensões, revelando

maior riqueza de detalhes, permitindo um contado de maior

dimensionalidade com o mundo real que ali é representado. Isso não ocorre

com o desenho, com a pintura e a fotografia, pois se mostram numa

superfície plana e bidimensional. Por exemplo, um sujeito, ao desenhar

um jogador de futebol fazendo um gol, idealiza a cena e a projeta no papel

conforme o que almejou que acontecesse. No entanto, na modelagem em

argila, por ela ocorrer num plano tridimensional, nem sempre aquilo que

foi idealizado no desenho será concretizado na escultura.

Se o sujeito estiver adequadamente estruturado, é mais fácil que

seu desejo se realize nesse material, caso contrário, projetará no barro

suas dificuldades. Ou seja, o mesmo sujeito que realizou o desenho

anteriormente citado, ao esculpir seu jogador em argila o fez com a bola

grudada no pé e não na posição vertical, que era o que aparecia no desenho.

Na modelagem em argila o sujeito terá que se haver com dados de

realidade, ou seja, se o sujeito está estruturado para realizar um ato de

tamanha grandeza, ou seja, marcar um gol, e se é possível, na realidade,

deseja que sua idealização se concretize. Neste caso, porém, o sujeito

desejava ser campeão sem treinar em nenhum time, apenas refletia no

desenho seu pensamento mágico e onipotente, mas na modelagem, além

de seu jogador não se firmar na posição vertical, a bola estava grudada

em seu pé, impossibilitando que o gol ocorresse, uma vez que a bola,

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MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

dessa forma, jamais seria lançada. É como diz Dondis (1997, p. 189):

“As pontas de nossos dedos colocadas sobre a foto ou pintura não nos

daria nenhuma informação sobre a configuração física do tema representado,

mas a evolução da representação bidimensional de objetos tridimensionais

nos condicionou a aceitar a ilusão de uma forma que, na verdade, é

apenas sugerida. Na escultura, porém, a forma ali está; pode ser tocada,

lida ou compreendida pelos cegos”.

As imagens não traduzem o movimento, quem o fará é o autor da

obra, ele fica subtendido na tridimensionalidade da escultura. Daí a

pergunta: qual é o papel que ocupa a imagem visual na nossa mente?

Pela Psicanálise, a partir da experiência clínica, as imagens visuais possuem

uma representação diferente que as palavras na mente. “A imagem visual

tem raízes mais profundas, ela é mais primitiva. O sonho traduz a palavra

em imagens e, em estados de exaltação emotiva, a imagem impõe-se à

mente na forma de alucinações. Essa a razão porque a crença no poder

da imagem é tão especialmente profunda” (KRIS, 1969, p.153). No trabalho

com a argila, a imagem da palavra é traduzida em escultura. No ritual

mágico a forma mais generalizada é a da imagem mágica, a qual necessita

identificar o modelo com a representação, sendo sua intensidade superior

à fé no poder mágico da palavra.

Portanto, a imagem visual, enquanto modo de expressão artística,

resiste muito mais tempo ao processo primário do que a palavra. O mesmo

autor acrescenta: “enquanto a palavra se presta a deformações e

brincadeiras sem produzir efeitos ulteriores, a imagem visual – sobretudo

o retrato – é considerada como uma réplica perfeita do modelo retratado.

Um deve preservar-se inviolado para que o outro não sofra as conseqüências.

O amante que rasga a fotografia de sua paixão infiel, a multidão furiosa

que queima um boneco de palha representando um chefe inimigo – todos

dão testemunho da crença no poder mágico da imagem. Ela ocorre toda

vez que o ego perde controle de suas funções” (1969, p.154).

Na modelagem tudo isso é possível de ser vivido, o sujeito faz o

que deseja com seu pedaço de barro, significando a questão de o ego

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ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

perder o controle por instantes, mas posteriormente acontece a catarse

do ato executado e o retorno à realidade pela materialização da imagem

em escultura. Pelo prisma tridimensional, existe a possibilidade de se

observar vários ângulos, comunicar diferentes aspectos, emoções ou

percepções, bem como as transições entre elas. Ao apresentar a dimensão

e o volume total e real, o sujeito necessitará pré-visualizar e planejá-la

em tamanho natural, pois, como Dondis (1997) argumenta, a concepção

e o planejamento são fundamentais para a compreensão do problema.

Na modelagem em argila o sujeito cria seus próprios modelos

lúdicos, com maior dinamismo, refletindo o seu desejo e sua criação, os

quais com certeza refletem com maior fidedignidade os conteúdos internos

do autor, sendo o objeto de sua projeção, do qual posteriormente irá

falar. No caso do sujeito que desenhou e após modelou o jogador em

argila, esculpindo-o de forma que não parasse em pé, tal fato revela com

fidedignidade sua dinâmica. Porém, se tivesse que escolher entre os

brinquedos industrializados, certamente optaria por um boneco jogador

que parasse em pé, o que revelaria e concretizaria sua idealização. No

entanto, aquele de sua autoria, esculpido em argila, revelou sua dificuldade

em manter-se em pé para realizar o que idealiza mágica e onipotentemente.

Na modelagem em argila o sujeito fantasia muito e projeta seus conteúdos

internos, contudo é permeado pelo princípio de realidade.

Deve-se ressaltar que na utilização da argila até o produto final, a

escultura, não importa a beleza ou a estética e sim a sua criação, a

percepção que o paciente tem de poder realizar algo, nem que seja apenas

arriscar-se a mexer na argila, o que o faz sair de seu quadro de estagnação,

pois “o homem pode ignorar os verdadeiros motivos de suas ações”, porém

não poderá negar tal vivência e experiência. (FILLOUX, 1988, p. 9).

O prazer experimentado ao realizar a modelagem é provocado pelo

fato de permitir ser suscetível às suas qualidades, e principalmente por

não ter finalidade estética, mas sim fazer brotar a arte do interior daquele

que sofre. Pelas obras, como já referido, serem ímpares, únicas, e mesmo

14

MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

que o sujeito tente copiá-las ou refazê-las não o conseguirá, pois ao falar

delas terá que falar de sua particularidade e, quando isso acontece, algo

se processa internamente e ele deixa de ser o mesmo que era.

Enfim, no processo terapêutico o sujeito necessita avançar diversas

etapas de autoconhecimento e amadurecimento auxiliada pelas diferentes

modelagens que vier a confeccionar. E a passagem de uma para a outra

possibilita a reflexão e o encontro de soluções possíveis.

2 SOBRE MÉTODO OU TÉCNICA

Existem vários métodos e técnicas psicoterápicos, com pressupostos

teóricos diferentes, sobre o funcionamento psíquico. Como o ser humano

é dinâmico e sempre estará em busca de formas para melhorar seu bem-

estar, não se pode pensar que os métodos e as técnicas existentes encerram

esta procura, como se não pudessem existir outros ou a criatividade

humana houvesse finalizado sua capacidade e sua busca. À medida que

as pessoas executam o exercício de suas profissões imbuídas de o fazerem

da melhor forma possível – considerando igualmente as exigências por

parte da sociedade, para cuja resposta o ser humano tem que se especializar

cada vez mais e corresponder de forma rápida às demandas – é que nascem

novas formas de resolver velhas questões.

Foi com essa motivação que surgiu “Argila: Espelho da Auto-

Expressão”, um trabalho apoiado na modelagem em argila e na escolha de

esculturas pré-confeccionadas, capaz de ser compreendido como uma

possível forma de manifestação do inconsciente. A primeira questão que

se impôs, foi se a prática da autora poderia ser designada técnica ou método.

Método pode ser definido como: “... o conjunto de procedimentos

racionais baseados em regras que visam atingir um objetivo determinado”

(JAPIASSU E MARCONDE, 1990, p.166). Seguindo esse conceito, a

utilização de diferentes recursos, sejam eles artísticos ou não, dentro do

processo psicoterápico, que apresentem passos e procedimentos, que se

destinem à investigação da verdade, seria um método. No entanto, tais

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ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

recursos utilizados no desempenho desta atividade prática, e segundo os

mesmos autores, seria a técnica, ou seja, o lado prático, material da arte

ou ciência.

Segundo a definição proposta, a argila enquanto recurso material é

uma técnica, e é pela sua primitividade e facilidade em ser modelada que

desencadeia com maior rapidez uma resposta emocional. É pelo toque e

pressão da mão que o indivíduo imprime sua digitalidade particular nesse

material, o qual responde automaticamente e de forma reversível a tal

gesto e, após seco, registra tal marca que não terá sido alterada ou perdida

no esquecimento e no desfalecimento da memória, sendo isto mais

suscetível de ocorrer quando o fato é demarcado apenas pela fala.

O uso da argila como técnica não é exclusividade do trabalho do

psicólogo. Várias outras disciplinas trabalham com esse material, entre elas

a Terapia Ocupacional, a Fisioterapia, a Fonoaudiologia e a Psicopedagogia,

variando somente na forma e nos objetivos a que se destinam.

No momento que se faz uso dessa técnica, segundo diferentes

procedimentos para atingir uma determinada meta, ela vai além dessa

mera designação, podendo participar do contexto metodológico pertinente

e se tornar um método.

A forma de utilizá-la, conforme neste momento transcrita de

maneira resumida, é a seguinte: após algumas sessões de terapia, pode-se

solicitar ao paciente que participe de uma atividade com esse material,

manuseando-o como desejar. A proposição é que até o final da sessão

confeccione alguma escultura, destituída de qualquer fim artístico, uma

elaboração, com ou sem forma definida, que tenha conseguido até aquele

momento. Desde o convite para a tarefa com esse material, o terapeuta

ficará atento a tudo o que o paciente falar ou fizer, suas explicações para

não querer aceitar manusear o material, a forma como o manuseará, os

comentários feitos enquanto trabalha, a menos valia, a crítica, as

insatisfações, as expectativas, as cobranças, o desmanchar várias formas

e no final não produzir nada e, principalmente, tudo o que ele puder

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MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

posteriormente associar, falar a respeito de seus significados e suas

lembranças quanto à atividade no seu todo. Após a modelagem em argila,

a escultura irá para o setor de secagem para, após, poder ou não ser

pintada. A forma de pintá-la, as cores utilizadas, as possíveis quebras, a

colagem do material, enfim, tudo o que ocorrer e tudo o que dela se falar

no decorrer das próximas sessões poderá ser trabalhado.

Essa forma de aplicar a modelagem em argila pode ser considerada

um método, pois, de acordo com citação anterior, ela vai ao encontro da

definição elaborada por Japiassu e Marconde. Enquanto método apresenta

um conjunto de passos e regras que são propostos e utilizados para

alcançar um objetivo, a verdade do sujeito, pelo fato de o sujeito, entre

outros procedimentos, poder expressar e registrar algo de si nesse material,

buscando os significados de seus conflitos e facilitando acesso aos

conteúdos inconscientes. É, principalmente, a possibilidade de o sujeito

poder falar dela e associar que torna a modelagem em argila uma especial

forma de trabalhar e a configura como um método, o da “Argila: Espelho

da Auto-Expressão”.

3 HISTÓRICO

O método “Argila: Espelho da Auto-Expressão” surgiu na prática clínica,

visando à busca constante de melhor auxiliar os sujeitos que apresentam

dificuldades e conflitos de ordem emocional e que procuram ajuda.

Por meio desse método, o paciente projeta seus conteúdos e

posteriormente lhe dá uma forma pessoal ao poder falar dela e expressar

o que lhe parece e significa. Com a aplicação constante desta técnica na

prática clínica, advieram inquietantes questionamentos na tentativa de

entender o que ali se passava no momento, entre a elaboração com a

argila e o discurso daquele que deu forma a tal material bruto.

Com essa consciência moral e ética, inicialmente a técnica de argila

foi utilizada nas sessões psicoterápicas com crianças, primando pelo

aspecto lúdico e trabalhando a percepção sensorial, as sensações que o

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ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

barro proporciona ao ser tocado, enquanto frio, mole, liso etc., comparando-

o a outros materiais semelhantes, e também compreendendo-o como

veículo para extravasar certos sentimentos, como a raiva, por exemplo,

quando a massa seria socada ou retalhada.

Passou a ser aplicado com maior freqüência em famílias e,

posteriormente, em adolescentes e adultos. Muitos pacientes aceitaram

a aplicação desse recurso, e assim se sucedeu um longo período de criação,

desafios, frustrações e conquistas. Nos momentos mais difíceis o que

validava sua continuidade eram os avanços obtidos no processo

terapêutico com os sujeitos envolvidos.

Houve duas situações que marcaram o uso deste material de forma

diferenciada daquela até então proposta dando o início e os contornos

ao método.

A primeira situação refere-se a uma paciente adolescente de dezesseis

anos, residindo em Curitiba há pouco tempo. Viera de uma cidade onde,

segundo ela, as pessoas “... eram muito mais comunicativas e calorosas”.

Lá deixara um grupo de amigos, dos quais sentia muita saudade. Não

conseguira ainda se refazer de tais perdas e nem obtivera um novo grupo

com quem se relacionar nesta nova cidade. Durante as sessões

demonstrava enorme ansiedade, que aliviava mascando chicletes e

fumando cigarros. Na tentativa de auxiliá-la terapeuticamente no alívio

da ansiedade, o terapeuta sugeriu-lhe durante a sessão que manuseasse

argila, para que a tensão pudesse ser descarregada e ela falasse dos

sentimentos geradores de ansiedade com maior facilidade, não apenas

desviando-os e os acalmando com o uso de chicletes e de cigarros. A

paciente aceitou prontamente a sugestão e no transcorrer da sessão falou

sobre vários assuntos, todos relacionados à referida queixa. Próximo do

término da sessão foi investigado o que elaborou com a argila. Fizera

sobre a mesa, num plano unidimensional, como um desenho, uma

modelagem nomeada por ela de: “Chapeuzinho Vermelho”, sobre o qual

relatou o seguinte: “Sinto-me como o Chapeuzinho Vermelho na floresta, temendo

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MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

ser devorada pelo Lobo Mau, que seria esta cidade estranha que não conheço e

receio as pessoas, as quais são diferentes de meus amigos que lá deixei e não os

substituem. Sinto falta deles, como também de meu pai que lá ficou....”. Com a

utilização do barro algo ali se processou, a paciente havia ficado menos

ansiosa, relaxara, soltando-se para falar de outras temáticas até então

não abordadas, como o fato da saudades do pai.

O segundo demarcador, que revelou que a utilização da argila nas

sessões terapêuticas iria além da forma proposta até então, é o caso de

uma família de pais separados. O pai havia constituído nova família e

sua atual companheira encontrava-se grávida, fato não aceito pelos filhos

e pela ex-esposa, a qual não elaborará ainda a separação, gerando muitos

conflitos e muita agressividade.

Nesse período em que eles se encontravam em trabalho terapêutico,

a profissional que os atendia estava grávida, e sua barriga já evidenciava

tal fato. Como o atendimento era realizado na abordagem Familiar

Sistêmica, que considera o terapeuta um elemento participativo e

ativamente comprometido com o sistema familiar, na criação de objetivos

a serem atingidos por meio da planificação de estratégias que levem o

sistema em questão a comunicar seus sentimentos para futura elaboração

e mudança do padrão relacional que se estabelece neste momento,

aproveitou-se a própria vivência da terapeuta para levantar com eles o

tema da gravidez (ANDOLFI, 1981). O tema estava sendo vivido por eles

intrinsecamente, sem ser falado, e contribuía para manter uma situação

insustentável na relação do pai com os filhos e entre o ex-casal, cujos

problemas matrimoniais mal resolvidos vinham contaminando as crianças.

Havia então a necessidade de uma estratégia para evocar tal assunto

em sessão, uma vez que o sistema, apesar do sofrimento, resistia muito

para falar dele. Pensou-se na utilização da técnica de argila como

instrumento de viabilização de tal estratégia; a terapeuta moldaria em

argila uma mulher grávida, como recurso intermediário para trabalhar a

situação triangular que ali se estabelecia: mãe e filhos – terapeuta grávida

– pai e companheira grávida.

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ARGILA: Espelho da Auto-Expressão

Na sessão, a mãe e os dois filhos (o mais velho de 10 anos e a

caçula de seis anos) são convidados para, junto com a terapeuta, brincarem

com barro em lugar predeterminado da sala de atendimento. Cada

participante recebeu uma porção de barro com a qual brincaria e modelaria

o que desejasse. As crianças inicialmente utilizaram o material para

descarregar a agressividade, socando e retalhando a argila. Num segundo

momento elaboraram diversas formas, mas desmanchavam-nas

bruscamente. Próximo do final da sessão começaram a falar das peças

que elaboraram por último e que na sessão seguinte receberiam a pintura.

A mãe realizou um vulcão, o filho fez um dinossauro e a filha confeccionou

um aparelho telefônico. A terapeuta então apresentou sua escultura da

mulher grávida, revelando sua gravidez e solicitando da família se tal

tema lhe suscitava algo. Pela primeira vez todos falaram de suas mágoas

e ressentimentos com a gravidez da companheira do pai das crianças em

questão, bem como de todas os problemas mal resolvidos com a separação.

O trabalho teve continuidade em nova sessão dedicada à pintura das

peças e a sua representabilidade; com o dinossauro o filho quis significar

toda sua raiva projetada naquela figura e que estava prejudicando seu

rendimento acadêmico; com o telefone, a filha reivindicava maior contato

com o pai, pois a comunicação entre eles não acontecia nem mesmo por

telefone em função do ressentimento. A mãe, por sua vez, queria mostrar

o quanto de mágoa e raiva guardava dentro de si, como um vulcão prestes

a explodir.

Essas experiências, marcantes e riquíssimas, possibilitadas com tal

recurso, motivaram seu uso mais freqüente com outros pacientes,

inicialmente crianças e famílias e posteriormente adolescentes e adultas.

A partir da constante aplicação percebeu-se, porém, que, da mesma

forma que o recurso facilitava ao sujeito falar de seus sentimentos e

conteúdos internos, em algumas situações provocava resistência,

paralisando o processo. Desses avanços e recuos foram surgindo

questionamentos e buscas de novas alternativas para alcançar-se as

respostas pretendidas. Dessa forma o somatório dos procedimentos

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MARIA DA GLÓRIA CRACCO BOZZA

experimentados na aplicação da modelagem em argila nas sessões

psicoterápicas acabou por constituir um método.

O grande número de aplicações da modelagem em argila, as

esculturas que ficavam expostas, bem como o conteúdo trabalhado

posteriormente, resultaram em diferentes modalidades de aplicação de

tal recurso, com diferentes procedimentos. Tudo isto somado transformou-

se num método; porém, faltava batizá-lo. Não poderia ser qualquer nome,

teria que ser um que muito o representasse, ou seja, que fosse “a sua

cara”, como dizemos aos recém-nascidos em relação à fisionomia e sua

correlação com o nome que o designará e pelo qual será conhecido.

O que ficava muito claro é que sua aplicação auxiliava o sujeito em

processo psicoterápico a expressar seus conteúdos internos, que seriam

clarificados posteriormente por aquilo que ele viesse a falar sobre sua obra.

O sujeito, ao submeter-se ao método, visualiza uma imagem e a

materializa na argila ou na escolha de uma escultura pré-confeccionada.

Nasio (1995, p.18) nos diz que “não vemos coisas, vemos imagens. O

mundo que vemos – para a Psicanálise – é um mundo de imagens não é

a coisa em si. E quem vê não somos nós, não são os olhos do corpo,

quem vê é o eu”.

Ele não projetará qualquer imagem, a imagem percebida é aquela

inscrita em sua essência e que se tornou o próprio ser. Portanto, ao

construir algo em argila ou escolher uma entre as pré-confeccionadas,

essa imagem materializada é a expressão do próprio sujeito, ou seja, seria

o espelho da própria existência desse ser, em que a imagem elaborada,

construída em tal recurso, reflete, como um espelho, a expressão interna

do sujeito, formando um contínuo e não podendo ser percebida separada-

mente. Assim, não realizará qualquer imagem, uma vez que “... o eu

percebe imagens pregnantes, imagens que, de longe ou de perto, reflitam

o que ele é, essencialmente” (NASIO, 1995, p.21).

Portanto, a metáfora do espelho, como um objeto que reflete nossa

imagem, e estamos falando da imagem interna, muito bem denominaria

este método servindo de “ESPELHO DA AUTO-EXPRESSÃO”.