especial araguaia - 30 de março de 2014

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ARAGUAIA Memórias da guerra de guerrilha do Brasil, que durante muitos anos ficou envolto em um manto de silêncio T ravada de abril de 1972 a janeiro de 1975, a guerrilha do Araguaia foi uma guer- ra sangrenta e silenciosa, que deixou para sempre cicatrizes no coração dos habitantes da região e na vida dos familiares dos guerrilheiros e soldados do Exército brasileiro, sacrifica- dos nas sombras da Floresta Amazônica. Durante 2 anos e 9 meses, 63 guerrilheiros do PCdoB — estudantes universi- tários ideologistas, militantes comunistas e comandantes experientes, com treinamento em Cuba, Rússia e China - re- sistiram aos pelotões de até 10 mil homens enviados ao Araguaia para extirpar, defini- tivamente, o foco de guerrilha na região. “Guerra silenciosa” como ficou conhecido esse período negro da história do Brasil pós-64 e foi escondido por muitos anos pela censura imposta pela ditadura militar, que se instalou no país. Somente em janeiro de 1979, o repórter Fernando Portela quebraria esse silên- cio com uma série reporta- gens bombásticas publicadas no “Jornal da Tarde”, um dos mais importantes jornais do país, que deixou de circular em 2010. Enquanto o povo brasileiro vivia a euforia do milagre econômico, a promes- sa de integração nacional pela Transamazônica e delirava, ufanísticamente, a conquista do tri-campeonato na Copa do Mundo do México, uma verda- deira carnificina acontecia às margens do rio Araguaia, pró- ximo às cidades, nas cercanias de São Geraldo do Araguaia e Marabá, no Pará, e Xambioá, ao norte de Goiás, região conhe- cida como “Bico do Papagaio”. Calcula-se que a maioria dos guerrilheiros das Forga – For- ças Guerrilheiras do Araguaia -, foi morta pelo Exército, alguns deles degolados, outros com os corpos pendurados sobre os helicópteros que sobrevoavam os povoados, atemorizando a população. Pessoas inocentes foram torturadas e mortas sem pelo menos saber o que esta- va acontecendo. Até padres foram parar no pau-de-arara e espancados publicamente. Quanto ao números de sol- dados das Forças Armadas mortos no aniquilamento da guerrilha – que também não foi pouco –, nunca revelado, porque até hoje o Exército não abriu seus arquivos. Os relatos que o leitor do EM TEMPO vai ter acesso agora, estão contidos no livro “Guerra de Guerra; hás no Brasil”, re- sultados da série de reporta- gens assinada pelo jornalista Fernando Portela, publicadas no “Jornal da Tarde” e trans- formadas em livro pela Global Editora . Trata-se de uma obra rara porque, quando foi lança- do, a censura impediu a sua distribuição. O exemplar que fundamentou esse trabalho, foi comprado pelo repórter do EM TEMPO no 1º Congresso da UNE depois da ditadura, reali- zado em Salvador, em 1979. A reportagem de Fernando Portela surpreendeu o país naquele 13 de janeiro de 1979, um sábado. Nem bem o “Jor- nal da Tarde”, de São Paulo, chegou às bancas e teve sua edição de 105 mil exemplares esgotada em poucas horas. A manchete, que prendia a aten- ção de quem pousava o olhar sobre a banca do jornaleiro, ocupava metade da página: “Guerra de Guerrilha”. Em sete páginas, o jornal publicava a primeira reportagem de uma série de sete, que viria a se tor- nar o mais completo trabalho jornalístico sobre um fato que até então o governo militar simplesmente silenciara. O palco da sangrenta guer- rilha, que deixaria centenas de mortos, entre eles os guerri- lheiros que acreditavam ser capazes de derrubar a dita- dura e implantar a revolução socialista, a exemplo de Cuba e da China, foi a região do rio Araguaia, no sul do Estado do Pará e Norte do Estado de Goiás. O levante foi iniciado em 1966 e extirpado em 1975, com a derrota total dos guer- rilheiros comunistas. No Brasil daquela época, ninguém sabia o que esta- va acontecendo na região do Bico do Papagaio. Jovens re- crutas e oficiais sem nenhuma experiência de selva, foram sacrificados e guerrilheiros em sua maioria estudantes, militantes, ex-parlamentares comunistas e comandantes do PCdoB foram torturados, mortos e degolados. O foco foi aniquilado, mas, antes, a guerrilha obrigou o governo militar a mandar 10 mil ho- mens ao Araguaia para matar 63 guerrilheiros, “num espaço de tempo que superou todas as expectativas do Exército”, narra o livro. Quanto foi gasto para debelar a luta armada, também só vai ser possível saber quando o Exército decidir abrir seus arquivos. Foram poucos os brasileiros que na época conseguiram sa- ber alguma coisa a respeito da guerrilha do Araguaia. De acordo com o próprio autor da reportagem, Fernando Portela, houve uma única exceção, a reportagem publicada pelo jor- nal “O Estado de São Paulo”, em setembro de 1972, “que escapou milagrosamente do lápis vermelho do regime do general Médici”. — Mas, o segredo imposto pelo governo chegou a ser tão bem guardado, que nem a imprensa internacional con- seguiu acesso a informações mais precisas sobre a guerri- lha do Araguaia – conta o livro. Por outro lado, a guerrilha conseguiu confundir alguns círculos importantes no exte- rior, mais precisamente nos centros das decisões políticas e econômica, “onde as notícias que corriam falavam de uma guerra civil na Amazônia”, em- bora o Exército insistisse em tratar o conflito como “um foco de 63 guerrilheiros”. Especial LUTA ARMADA Os guerrilheiros que acreditavam ser capazes de derrubar a ditadura e implantar a revo- lução socialista, a exemplo de Cuba e da China MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO Forças do governo chegam ao Araguaia. A euforia foi só no começo, porque depois a aventura virou um pesadelo, com muitos soldados inexpe- rientes mortos por guer- rilheiros, que já estavam na selva há 6 anos Área onde foi travada a guerrilha

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Especial Araguaia - Caderno especial do jornal Amazonas EM TEMPO

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Page 1: Especial Araguaia - 30 de março de 2014

ARAGUAIAMemórias da guerra de guerrilha do Brasil, que durante

muitos anos ficou envolto em um manto de silêncio

Travada de abril de 1972 a janeiro de 1975, a guerrilha do Araguaia foi uma guer-

ra sangrenta e silenciosa, que deixou para sempre cicatrizes no coração dos habitantes da região e na vida dos familiares dos guerrilheiros e soldados do Exército brasileiro, sacrifica-dos nas sombras da Floresta Amazônica. Durante 2 anos e 9 meses, 63 guerrilheiros do PCdoB — estudantes universi-tários ideologistas, militantes comunistas e comandantes experientes, com treinamento em Cuba, Rússia e China - re-sistiram aos pelotões de até 10 mil homens enviados ao Araguaia para extirpar, defini-tivamente, o foco de guerrilha na região. “Guerra silenciosa”

como ficou conhecido esse período negro da história do Brasil pós-64 e foi escondido por muitos anos pela censura imposta pela ditadura militar, que se instalou no país.

Somente em janeiro de 1979, o repórter Fernando Portela quebraria esse silên-cio com uma série reporta-gens bombásticas publicadas no “Jornal da Tarde”, um dos mais importantes jornais do país, que deixou de circular em 2010. Enquanto o povo brasileiro vivia a euforia do milagre econômico, a promes-sa de integração nacional pela Transamazônica e delirava, ufanísticamente, a conquista do tri-campeonato na Copa do Mundo do México, uma verda-deira carnificina acontecia às margens do rio Araguaia, pró-ximo às cidades, nas cercanias de São Geraldo do Araguaia e Marabá, no Pará, e Xambioá, ao norte de Goiás, região conhe-cida como “Bico do Papagaio”. Calcula-se que a maioria dos guerrilheiros das Forga – For-ças Guerrilheiras do Araguaia -, foi morta pelo Exército, alguns deles degolados, outros com os corpos pendurados sobre os helicópteros que sobrevoavam os povoados, atemorizando a população. Pessoas inocentes foram torturadas e mortas sem pelo menos saber o que esta-va acontecendo. Até padres foram parar no pau-de-arara e espancados publicamente.

Quanto ao números de sol-dados das Forças Armadas mortos no aniquilamento da guerrilha – que também não foi pouco –, nunca revelado, porque até hoje o Exército não abriu seus arquivos.

Os relatos que o leitor do EM TEMPO vai ter acesso agora, estão contidos no livro “Guerra de Guerra; hás no Brasil”, re-sultados da série de reporta-gens assinada pelo jornalista Fernando Portela, publicadas

no “Jornal da Tarde” e trans-formadas em livro pela Global Editora . Trata-se de uma obra rara porque, quando foi lança-do, a censura impediu a sua distribuição. O exemplar que fundamentou esse trabalho, foi comprado pelo repórter do EM TEMPO no 1º Congresso da UNE depois da ditadura, reali-zado em Salvador, em 1979.

A reportagem de Fernando Portela surpreendeu o país naquele 13 de janeiro de 1979,

um sábado. Nem bem o “Jor-nal da Tarde”, de São Paulo, chegou às bancas e teve sua edição de 105 mil exemplares esgotada em poucas horas. A manchete, que prendia a aten-ção de quem pousava o olhar sobre a banca do jornaleiro, ocupava metade da página: “Guerra de Guerrilha”. Em sete páginas, o jornal publicava a primeira reportagem de uma série de sete, que viria a se tor-nar o mais completo trabalho jornalístico sobre um fato que até então o governo militar simplesmente silenciara.

O palco da sangrenta guer-rilha, que deixaria centenas de mortos, entre eles os guerri-lheiros que acreditavam ser capazes de derrubar a dita-dura e implantar a revolução socialista, a exemplo de Cuba e da China, foi a região do rio Araguaia, no sul do Estado do Pará e Norte do Estado de Goiás. O levante foi iniciado em 1966 e extirpado em 1975, com a derrota total dos guer-rilheiros comunistas.

No Brasil daquela época, ninguém sabia o que esta-va acontecendo na região do Bico do Papagaio. Jovens re-crutas e oficiais sem nenhuma experiência de selva, foram sacrificados e guerrilheiros em sua maioria estudantes, militantes, ex-parlamentares comunistas e comandantes do PCdoB foram torturados, mortos e degolados. O foco

foi aniquilado, mas, antes, a guerrilha obrigou o governo militar a mandar 10 mil ho-mens ao Araguaia para matar 63 guerrilheiros, “num espaço de tempo que superou todas as expectativas do Exército”, narra o livro. Quanto foi gasto para debelar a luta armada, também só vai ser possível saber quando o Exército decidir abrir seus arquivos.

Foram poucos os brasileiros que na época conseguiram sa-ber alguma coisa a respeito da guerrilha do Araguaia. De acordo com o próprio autor da reportagem, Fernando Portela, houve uma única exceção, a reportagem publicada pelo jor-nal “O Estado de São Paulo”, em setembro de 1972, “que escapou milagrosamente do lápis vermelho do regime do general Médici”.

— Mas, o segredo imposto pelo governo chegou a ser tão bem guardado, que nem a imprensa internacional con-seguiu acesso a informações mais precisas sobre a guerri-lha do Araguaia – conta o livro. Por outro lado, a guerrilha conseguiu confundir alguns círculos importantes no exte-rior, mais precisamente nos centros das decisões políticas e econômica, “onde as notícias que corriam falavam de uma guerra civil na Amazônia”, em-bora o Exército insistisse em tratar o conflito como “um foco de 63 guerrilheiros”.

Espe

cial

LUTA ARMADAOs guerrilheirosque acreditavamser capazes dederrubar a ditadura e implantar a revo-lução socialista, a exemplo de Cuba e da China

MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO

Forças do governo chegam ao Araguaia. A euforia foi só no começo, porque depois a aventura virou um pesadelo, com muitos soldados inexpe-rientes mortos por guer-rilheiros, que já estavam na selva há 6 anos

Área onde foitravada a guerrilha

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Page 2: Especial Araguaia - 30 de março de 2014

2 MANAUS, DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014EspecialARAGUAIA

Baseado na teoria do “foquismo” e inspira-do no que ocorrera na China e em Cuba,

o Comitês Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) começou a arquitetar a guer-rilha em reuniões, que se alternavam entre Rio e São Paulo, para driblar a repres-são. O encaminhamento pela luta armada, por volta de 1962, provocaria o “racha” com o lendário comandan-te Luiz Carlos Prestes. Por ordem de Moscou, Prestes havia se transformado em um “pacifista” e passou a apoiar as reformas anunciadas pelo presidente João Goulart, en-tre elas a tão sonhada refor-ma agrária.

Já os ex–deputados co-munistas da Constituinte de 1946, João Amazonas e Mau-rício Grabois apostavam que antes das reforma, Jango seria derrubado pelos milita-res. Não deu outra. Com isso, veio a racha, com Prestes mudando a sigla do parti-dão, que passou a ser PCB, ficando a outra metade com PCdoB. A leitura estratégica de Amazonas e Grabois,que anteviram o golpe, deu muita força ao PCdoB e as esquer-das começaram a encarar com mais seriedade a ideia da luta armada, sob as bên-çãos da ideologia marxista-leninista, a guerrilha come-çou a tomar forma.

De acordo com o jorna-lista Fernando Portela, nas reuniões seguintes, os co-mandantes João Amazonas e Maurício Grabois passaram a discutir qual seria a região ideal para instalar a resis-tência ao regime militar.

“Olheiros foram enviados a vários confins brasileiros, inclusive Mato Grosso, Goi-ás, Acre e o então território de Rondônia.

— Mas região que pare-cia ideal estava no baixo Araguaia, no limite de três estados: Pará, Maranhão,

e Goiás, uma região consi-derada maldita, virgem de progresso e atenção dos go-vernos estaduais e federal –, conta Portela.

Considerada miserável, além das condições locais de penúria, a região era ideal para os guerrilheiros, que souberam cativar os habitantes com assistência médica, educacional e com gestos de solidariedade.

ALERTA

João Amazonas e Maurício Grabois apostavam que antes das reformas, Jango seria derruba-do pelos militares

MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO

A Guerrilha foi concebida nas entranhas do PC do B

Após um racha com Luiz Carlos Prestes, os militantes do PC do B decidiram pela luta armada para tentar derrubar a ditadura

Apesar da cortina de si-lêncio imposta pela ditadu-ra, o Araguaia foi palco da guerrilha mais importante do continente americano, depois da ação vitoriosa dos guerrilheiros de Fidel Castro, em Cuba. “Guerra de Guerrilhas; faz essa aná-lise. Na Bolívia, na segunda metade da década de 60, Ernesto Chê Guevara con-tava com menos de duas centenas de homens, dos quais pouco mais de uma dúzia era realmente ex-

perientes. Mas tinha um detalhe, Chê não contava com o apoio das popu-lações rurais bolivianas. Apesar de quase fazer cair o governo de René Bar-rientos, acabou morren-do sozinho, enfraquecido e doente, executado por um tiro covarde.

A diferença é que os guer-rilheiros do Araguaia não chegaram a ameaçar o go-verno do general Garrastaz Médici, diz o livro, mas re-cebeu o apoio da população

durante pelo menos três anos. Os “paulistas’, como os camponeses chamavam o pessoal do PCdo B, que es-tava na região desde 1966, conquistaram a confiança e a amizade do povo humilde do Araguaia.

— “Era tudo gente boni-ta, moça bonita, gente com cara de família boa. A gente via que era gente de fora –, contou o jagunço José Bezerra, o China, que foi re-crutado pelo Exército para rastrear os guerrilheiros.

A mais importante guerrilhadepois de Cuba de Fidel

Uma das raras fotos dos guerrilheiros no combate nas selvas do Araguaia

A revolução vitoriosa de Fidel em Sierra Maestra, inspirou os militantes do PC do B

Banca do PC do B na Constituin-te de 1946,

formada por Luiz Carlos

Prestes, Car-los Marighela,

Agostinho Dias de Oli-

veira, Alcedo de Morais

Coutinho, Gre-gório Bezerra,

Jaquim Batista Neto, João Amazonas,

Maurício Gra-bois, Alcides

Rodrigues Sabença,

Claudino José da Silva,

Milton Caires de Brito, Jorge

Amado, José Maria Crispim,

Osvaldo Pa-checo e Abílio

Fernandes

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Page 3: Especial Araguaia - 30 de março de 2014

3MANAUS, DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014 EspecialARAGUAIA

Corria o governo do Marechal Umberto de Alencar Castelo Bran-co, 1966, quando o

primeiro líder guerrilheiro se instalou na região. Era Osvaldo Orlando Costa, que chegou ao Araguaia viajando de ônibus pela rodovia Belém-Brasília, Osvaldão era um negro ca-rioca de 1,90m, simpático, que costumava vestir a cami-sa do Botafogo, lembrando o tempo em que lutara boxe, na categoria de peso-pesado pelo cube carioca.

Técnico em máquinas e mo-tores, Osvaldão se identifica-va como estudante em Minas Gerais, mas na verdade era segundo-tenente da reserva do CPOR, do Rio.

É como posseiro que o futuro comandante de uma das bases da guerrilha se instala em um castanhal conhecido como Ga-meleiro. Para disfarçar, Osval-dão também trabalha na roça, planta arroz e faz farinha. Nas horas vagas, revende tecidos em Marabá e Xambioá. Em pouco tempo conquista a sim-patia da população humilde.

— Era respeitador. Nunca foi visto bebendo cachaça. Nem na zona, nem olhando cobiçoso para mulher alguma – conta o livro de Fernando Portela. De

acordo com o jornalista, Osval-do era mesmo tudo isso, “mas o bom mocismo fazia parte da técnica de aliciamento dos guerrilheiros do PCdoB.

Num segundo momento, começam a chegar ao Ara-guaia os “parentes” e amigos de Osvaldão: um velhinho, que na realidade era o ex-deputado João Amazonas, à época com mais de 60 anos, Elza Monnerat, uma velha militante comunista e Ânge-lo Arroyo, operário metalúr-gico de São Paulo. Ninguém desconfiava que aquele fos-se o inicio da guerrilha, até porque as cidades de Marabá e Xambioá eram locais de muita movimentação, um “vai e vem de gente perse-guida que procurava uma terra para morar”.

MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO

OSVALDÃO

Gameleiro, Caiano e Faveiro as três bases da guerrilhaO restante do pessoal do

PCdoB, que se preparava para entrar no Araguaia ficou em um vilarejo cha-mado Porto Franco, a Oeste do Maranhão, aguardando o comando para entrar na área de guerrilha. Alguns tinham vindo da China, onde foram treinados para guer-ra de guerrilha.

Era o ano de, em 1966, quando os militantes do PCdoB se mudaram para a pequena para Porto Franco. Ali permaneceram por mais de um ano à espera de or-dens da cúpula do partido para se transferirem para o Sul do Pará, região escolhida para instalar a guerrilha. Em Porto Franco, eles assumi-ram diversos disfarces. Era

médicos, posseiros, agentes de saúde, procurando viver de forma pacata para não cha-mar a atenção. Viviam razo-avelmente em um “conforto’ que não veriam jamais.

Nesse grupo estavam o ve-terano líder do PCdoB Mau-rício Grabois (codinome Má-rio), seu filho André Grabois (Zé Carlos) e o genro Gilberto Olímpio Maria (Pedro), além do médico gaúcho João Car-los Haas Sobrinho (dr. Juca), considerado o mais bonito e sedutor guerrilheiro, pelo porte físico e pela facilidade com que se relacionava com as pessoas mais humildes..

Enquanto aguardava o co-mando para seguir para a área de guerrilha, João Car-los Haas Sobrinho se inte-

grou totalmente à vida social da comunidade. “Guerra de Guerrilha no Brasil” narra em um de seus capítulos que os 63 Araguaia conseguiram, por força e suas convicções ideológicas, os guerrilheiros enfrentavam uma vida du-pla. “Uma vida que desgasta-ria fisicamente a maioria das pessoas. Ao mesmo tempo em que preparam a guerra eles se misturavam ao povo, cada vez mais cativado, e, por ecletismo ideológico, iam às missas e terecôs (candomblé local), participavam de for-rós, sempre mantendo uma postura de monges, pessoas do comportamento moral ir-repreensível, tantos os soltei-ros quanto os casados”.

Em 1970, o ano da Copa

do México, enquanto o país catava euforicamente “Todos juntos vamos/ pra frente Brasil, Brasil/ salve a seleção... “ Os 63 guer-rilheiros já estavam sendo treinados dentro da selva por três comandantes, que respondiam pelas três bases guerrilheiras:

Gameleiro – Comandada por Osvaldão, que também funcionava como sede do comando central;

Caiano – Comandada por Paulo Rodrigues;

Faveiro – comandada pelo medico gaúcho Haas Sobrinho.

A organização dos guer-rilheiros funcionava assim: Cada base possuía 21 ho-mens dividido em grupo

de sete. Essas três bases estavam subordinadas a uma comissão militar for-mada pelo pessoal mais experiente, o ex-deputado Maurício Grabois, o ex–me-talúrgico Ângelo Arroyo, os comandantes Osvaldão e Haas Sobrinho.

Este era considerado o “coração da guerrilha”, que não saia da selva, a exceção de Osvaldão e Paulo Rodri-gues, que também coman-davam Gameleiro e Caiano. O comando central possuía também uma excelente apa-relhagem de comunicação, alimentos armazenados para um longo tempo e uma oficina de adaptação e re-paros de armas. A guerrilha ia começar.

O médico-guerrilheiro João Carlos Haas Sobrinho vive seus últimos dias deDr. Juca em Porto Franco (MA) antes de se juntar à Guerrilha do Araguaia

O primeiro comandante guerrilheiro a chegar ao Araguaia

Osvaldão, o mais caris-mático líder comandante guerrilheiro do Araguaia

Dezembro de 1967: Antes de partir para a guerrilha, os guerrilheiros André Grabois(no fundo, de óculos) e Gilberto Olímpio Maria (à esquerda, em primeiro plano) participam

da festa dos formandos da 4ª série do Ginásio Dom Orione, em Porto Franco, Maranhão

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Page 4: Especial Araguaia - 30 de março de 2014

4 MANAUS, DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014EspecialARAGUAIA

Foi a Polícia Militar de Marabá e Xam-bioá que alertou o Exército da presença

de “estranhos subversivos” na região. As duas PMS era acostumadas a proteger fazendeiros e grileiros, que quase sempre resolviam seus conflitos com os posseiros à base de bala. Por isso as duas PMs eram constantemente informadas pelos fazendei-ros. Dessa vez, a notícia que chegava à polícia era que havia uma “certa resistência subversiva” comandada por gente de São Paulo”.

As informações não para-vam por aí. Eles diziam que os “paulistas” andavam en-sinando o povo humilde a ler e escrever e, no meio deles, haviam médicos, porque es-tavam sendo distribuídos re-médios de graça e que não eram amostra grátis”.

Com base nessas infor-mações, o Exército enviou à região um grupo de pes-soal “especializado – poli-ciais disfarçados, barbados, cabeludos, trajando jeans e camiseta –, para investi-gar a situação. Pouco tem-po depois eles retornaram com a informação de que se tratava de “estudantes subversivos do Sul em fase de refrescamento”, isto é, es-tavam saindo de circulação dos grandes centros, onde seus nomes já estavam na

lista negra do departamento de Ordem Política e Social (DOPS). “Estão se fixando na região até a coisa esfriar”, informaram.

Mas Exército não deu muita importância. Subestimou a capacidade de organização e preparação dos guerri-lheiros. Alguns anos depois, alguns militares admitiram que foi um “erro de avaliação” .Nessa fase de investigação o próprio governo federal não deu muita importância ao foco, se limitando a repassar o problema para o Servi-ço Nacional de Informação (SNI) e para o DOI-CODI (De-partamento de Operações e Informações–Centro de Ope-rações de Defesa Interna).

Em uma reunião de chefes militares no Comando Mili-tar do Planalto a ordem dada foi prender “todos os sub-versivos amazônicos. Mas, para a imprensa, nenhuma linha sequer.

MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO

Exército subestimouo foco de guerrilhaPara os “especializados”, eram apenas estudantes subversivos do Sul saindo de

circulação dos grandes centros, onde seus nomes já estavam na lista negra do DOPS

Algumas vezes o exército usou mateiros para identificar a trilha dos guerrilheiros na selva

Helicóptero das forças do gover-no sobrevoavam a floresta rastre-ando guerrilhei-ros e suas bases

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Page 5: Especial Araguaia - 30 de março de 2014

5MANAUS, DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014 EspecialARAGUAIA

Na primeira campa-nha para aniquilar a guerrilha, tropas formadas por 2 mil

homens das Brigadas de In-fantaria da Selva (BIS) e ou-tras unidades da área, além de comandos vindos do Rio de Janeiro e de Brasília inva-diram a região do Araguaia na caça aos “paulistas” do PCdoB, inclusive um pesso-al à paisana, os chamados “especialistas”, mas que per-tenciam ao Comando Militar e do Planalto.

As forças tomam de as-salto o baixo Araguaia fa-zendo Marabá e Xambioá

cidades-quartéis.Outro grande erro das for-

ça do governo apontado pe-los historiadores foi mandar para a guerra de guerrilha soldados inexperientes e com total desconhecimento da selva. De acordo com um depoimento dado em 1979 por um soldado do Exército que participou do combate à guerrilha, no começo da operação muitos morreram “porque entravam na selva apavorados”, tinham medo da mata e “não sabiam o que fazer”, contou o militar mantido no anonimato.

— Os conscritos (recru-tas), entraram totalmente despreparados, tanto psi-cológica como militarmente,

digamos assim. E a verdade é esta. Nós, por sermos um país em fase de desenvolvi-mento, (naquela época) , não temos meios adequados e

tempo necessário para for-mar uma tropa, ou melhor, para formar um recruta ou homem de tropa. Então, ele fez seu serviço militar var-rendo o quartel, muitas vezes fazendo outra faxina que não tem nada a ver com adestra-mento para combate, nem preparação psicológica para a realidade de matar”.

Foi só depois de sofrer muitas baixas que o Exército percebeu que os paulistas não eram subversivos co-muns, estudante e operários embarcando numa aventura romântica, mas uma força militar preparada e orga-nizada do PC do B, que conseguira cativar os tra-balhadores rurais e famílias

humildes do baixo Araguaia. Só depois dessa conclusão começaram a chegar refor-ços de todo o país, lanchas da Marinha que vasculhavam a região, helicópteros e aviões das Forças Armadas Brasi-leira para apoiar a grande incursão. Somente a Transa-mazônica recebeu cerca de dez postos de patrulhamento e a Belém-Brasília três.

Conta Fernando Portela, que foi nessa época, fins de abril e começo de março, que os recrutas começaram a morrer dentro da mata. Cada vez mais se sentia a necessidade de soldados profissionais, de preferência com treinamento de guerra antiguerrilha”.

MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO

A primeira campanhapara esmagar a guerrilha

A maioria das tropas eram formadas por militares das Brigadas de Infantaria de Selva (BIS)

Comboio do exército chega para primeira campanha, das três lançadas pelo Exér-

cito para aniquilar a guerrilha

Sem nenhuma experiência de selva soldados

foram enviados ao Araguaia

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Page 6: Especial Araguaia - 30 de março de 2014

6 MANAUS, DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014EspecialARAGUAIA

Em 1972, a primeira campanha militar para aniquilar o foco guerrilheiro estava

chegando ao fim com um saldo negativo. Os militares admitindo que, na primeira fase, não pegavam ninguém e “os soldados morriam na mata”, disse um militar ten-tando explicar que toda vio-lência é comum e até lógica, “numa situação de conflito em que as forças governistas não dominavam a situação”.

Com a retirada das tro-pas da primeira campanha, os guerrilheiros festejaram acreditando que estavam ven-cendo a guerra. Comentário de um oficial à reportagem de Fernando Portela:

— Você pensa que o proble-ma dos recrutas era somente o de inexperiência, de não co-nhecer a mata, essas coisas? Ou o medo dos guerrilheiros? Que nada: além de eles te-rem medo dos guerrilheiros, eles, coitados, que vinham de famílias humildes, do Norte mesmo, tinham medo de saci, mãe de fogo, lobisomem...

“Esse medo existia porque naquela época, no Araguaia, os espíritos da mata baixa-vam no candomblé. Além dis-so, todos diziam que Osvadão era mortal”. (trecho do livro Guerra de Guerrilha)

A popularidade dos guer-rilheiros cresceu ainda mais no meio das populações ru-rais, depois que as forças do governo retiraram as tropas. Agosto foi um mês de festa

nos povoados do Araguaia.Segunda campanha O

Exército sentiu que era pre-ciso mudar a estratégia, na segunda operação para sufo-car o levante do Araguaia. No plano de combate à guerrilha: usar o mesmo recurso dos guerrilheiros, isto é, cativar o povo; penetrar sutilmente na região, por meio de espiões, e “evitar também a panca-daria”. Uma outra corrente era a favor de investir nas atividades assistencialistas na região, mas defendia o cerco e aniquilamento, cha-mado de “abafa final” usando tropas descaracterizadas em larga escala e soldados pro-fissionais. Recrutas novatos, nem pensar.

Para o combate na segun-da campanha foi chamado o general Hugo Abreu, que defendia a participação cada vez maior dos paraquedistas da Brigada de Paraquedis-tas do Exército, de acordo com noticiário da época, “os homens mais bem treinados, militarmente, do país”

MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO

O ainda major Curió é apontado como um dos mais cruéis torturadores no combate à guerrilha

Medo de saci e lobisomemVindos de famílias humildes do Norte, soldados inexperientes que eram enviados ao Araguaia temiam até os espíritos da mata

Os guerrilheiros usavam a guer-

ra psicológica para amedron-

tar os soldados à noite

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Page 7: Especial Araguaia - 30 de março de 2014

7MANAUS, DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014 EspecialARAGUAIA

Houve momentos de carnificina e horror na guerra de guer-rilha do Araguaia.

Excessos foram cometidos de dois lados, mas em nome das Forças Armadas, os “es-pecialistas” cometeram atos de atrocidades que, na época, foram condenados dentro do próprio Exército. Existem re-gistros de que guerrilheiros foram degolados, como foi feito com o bando de lam-pião e na também na guerra de Canudos. Esse pessoal à paisana, enviado pelo próprio Exército chegou a ser batizado de “sádicos sem farda”. “Eram

grupos de soldados cabeludos, mal vestidos, barbudos, que se não portassem armamentos moderníssimos, odeiam ser confundidos com hippies”.

Considerado o “anjo da guarda” das populações es-quecidas e ignoradas pelo Estado nas distantes regiões da Amazônia, o Exército por pouco não teve a sua ima-gem de solidariedade com-prometida pela brutalidade dos grupos “especializados”, que, de acordo com o livro “Guerra de Guerrilha” esta-vam “escudados na impossi-bilidade de fiscalização pelos próprios colegas do Exército regular e, da imprensa, na época censurada”.

Informações que não foram dadas somente por guerrilhei-ros, mas também por habitan-tes da região, no dia 18 de abril de 1972, na cadeia de Xambioá, o pessoal “especia-lizado” dava socos, choques elétricos nos pés, testículos e ouvidos. viajantes, hippies, comerciantes dos lugarejos, gritavam por inocência e se-

quer entendiam o que estava acontecendo. Muitos não que-riam acreditar que os “paulis-tas” que eles conheciam tão bem e que eram tão amigos fosse tudo aquilo que o pes-soal especializado enquanto torturavam, que era terroris-tas, assaltantes de bancos e

de floradores de moças”.— Aonde estão os terro-

ristas? Fale! –, gritavam os “especializados” enquanto espancavam, davam cho-ques e pontapés.

Em outubro, o pessoal des-caracterizado tomam de as-

salto também os povoados de Bom Jesus, Metade e Palesti-no. Vão pegando quem eles achavam que eram suspeitas e entupindo as cadeias de presos. Veja esse trecho hor-ripilante do livro-reportagem de Fernando Portela:

“Os policiais, com a alegria da volta do Exército, enche-ram as pequenas celas da cadeia pública de Marabá, de tal maneira que as pessoas só conseguiam ficar numa posi-ção: em pé. E todos comple-tamente nus”.

Era uma cena dantesca. As janelas da cela foram pregadas com tábuas para não entrar o ar. Primeiro vinha o cansaço, depois a fome e, com a tempe-ratura perto dos 40 graus, vinha a sede insuportável. As necessi-dades fisiológicas eram feitas mesmo em pé, um encostado no outro. Outra narrativa do livro: “Mariano, um dos presos em São Domingos, gemendo de sede, fez um pedido ao homem mais próximo:

— Quando você quiser urinar me avise, me avise

porque eu não aguento mas a sede...”

Depois de um certo tempo, nem os soldados suporta-vam mais o mau cheiro vindo da cela e resolveram lavá-las com água e creolina. Isso acabou em tumulto porque a água jogada no chão da celas, misturada com cre-olina, fezes e urina foi dis-putada pelos presos, loucos de sede, mas quase ninguém bebeu porque não havia como se agachar.

Na cadeia de Xambioá, onde se concentram as prisões e eram praticada abertamente a tortura, e outra cena de barbárie:como a cela não ca-bia mais de tanta gente, os pessoal “especializado” man-dou que fossem cavados no terreno do aeroporto, buracos de mais de dois metros, e fossem cobertos com arame farpado. Os presos eram alge-mados nos pés e nas mãos e dependurados e cabeça para baixo nos arames, pra dentro do buraco, como carne é ex-posta em açougue.

MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO

Os horrores da guerrilhaExistem registros de que guerrilheiros foram degolados, como foi feito com o bando de lampião e também na revolta de Canudos

José Genoíno saiu com vida da guerrilha porque foi preso

GUERRA CIVILAs notícias quecorriam no Exterior falavam de uma” guerra civil na Ama-zônia”, embora o Exército insistisse em tratar o conflito como “um foco de 63 guerrilheiros”

O guerrilheiro José Geno-íno Neto, hoje ex-deputado linchado publicamente e pre-so no processo do Mensalão, só saiu vivo da guerrilha do Araguaia porque foi preso durante um combate.

Genoíno era baseado no destacamento de Gamelei-ro, comandado por Osval-dão. No dia 18 de abril de 1972, conta o livro de Fernando Portela, Osvaldão chama Genoíno e manda ele ir avisar ao comandan-te Paulo Rodrigues, do des-tacamento de Caiano, que “chegara a hora”. Era o sinal para iniciar a luta, pois as forças do governo já avan-çavam pelas de Xambioá e Marabá, estradas e rios, pois já sabem que em Gameleiro, Caiano e Faveiro ”há focos de terroristas”.

No retorno à base, Geno-ínio, um grupo formado por jagunços que trabalhavam para a sargento conhecido como Marra, chefe da po-lícia de Xambioá, dá voz de prisão a Genoíno. O guer-rilheiro é algemado mas aproveita um descuido dos policiais e foge, os jagunços abrem fogo e não acertam. Genoíno é novamente preso e levado com vida para a

cadeia da cidade.Genoíno nasceu no interior

do Ceará, em Quexaramo-bim, filho de pai posseiro e mãe professora primária. Em 67 foi estudar e For-taleza, onde se formou em Filosofia, Foi presidente do Diretório Central de estu-dantes e preso no histórico congresso da UNE, em Ibi-úna, em 1968.

A partir daí viveu na clan-destinidade e em 1970 se-guiu para o Araguaia, onde foi preso e torturado, ficando por 13 meses incomunicá-vel. Foi julgado em 1975 por militância política ilegal sendo condenado a 5 anos de prisão. Foi solto em abril e 1977. Com a democracia restabelecida do país, foi eleito deputado federal; pelo PT de São Paulo.

A queda de José GenoínoMENSAGEMGuerrilheiro foipreso quandolevava umamensagem deOsvaldão parao destacamentode Caiano

Corpo da militante do PC do B, Maria Lúcia Petit, morta pelos “especializados” durante

combate na Guerrilha do Araguaia

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Page 8: Especial Araguaia - 30 de março de 2014

8 MANAUS, DOMINGO, 30 DE MARÇO DE 2014EspecialARAGUAIA

Narra o livro “Guer-ra de Guerrilha”que na terceira e últi-ma campanha para

esmagar de vez a guerrilha, as forças do governo entra-ram “de maneira fulminante na região”, nos primeiros dias de outubro de 1973. Homens invadem as casas e vão retirando os sus-peitos de colaboração com a guerrilha.

Ajudados por camponeses que sob tortura indicavam os locais onde eles estavam, os guerrilheiros estavam acu-ados no meio da mata. O general Hugo Abreu é quem comanda centenas de para-quedistas da Brigada do Rio de Janeiro. “Esta é a primeira vez que as forças do gover-no entram no selva em pé de igualdade de condições com a guerrilha. Segundo relata o livro, nos 11 meses em que estiveram longe do

Araguaia talvez os paraque-distas tenham recebido trei-namentos em outras pontos da Amazônia”, reporta Fer-nando Portela, informan-do que acompanhados de helicópteros sobrevoando as copas das árvores, pe-lotões se embrenhavam na mata e começavam a caça-da. Às vezes eram guiados por mateiros.

Os guerrilheiros, por sua vez, também foram derro-tados pelos próprios erros. Além de não terem elimi-nados os espiões, permane-ceram nas mesmas áreas e bases, “não se deslocaram como seria mais lógico”.

Nessa última campanha, o Exército esmagou a guerri-lha. E o general Hugo Abreu, que já era respeitado dentro

do Exér-c i t o , “ p a s -

s o u a ser um mito”.

A s s i m , as for-

ças do governo encerraram, em janeiro de 1975, sua terceira e última operação no Araguaia. Mais de 50% dos guerrilheiros foram de-

clarados, oficialmente “de-saparecidos”, mas o Comitê Central do PC do B admite que todos foram mortos.

Até hoje, o conflito do

Araguaia foi avaliado so-mente pelos guerrilheiros que conseguiram escapar. O Exército mantém a cortina de silêncio.

MÁRIO ADOLFO Equipe EM TEMPO

Acuada, guerrilha é arrasadaBrigada de paraquedistas comandadas pelo general Hugo Abreu esmagou a guerrilha

General Hugo Abreu, comandante da Bri-gada de Paraquedistas, ficou ainda mais famoso depois que exterminou a guerrilha

Em sentido horário, João Amazonas, Elza Monnerat, Ângelo Arroyo e Maurício Gra-bois, comandantes da guerrilha

Os guerrilheiros não se movimentaram na floresta permanecendo nas mesmas bases e foram derrotados pelo próprio erro

Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão) - o mais carismático e temido guerrilheiro do Araguaia, negro, forte, 1,98 m e ex-campeão carioca de boxe, conside-rado mítico pelos moradores do Araguaia, foi morto num encontro com uma patrulha militar em janeiro de 1974. Seu corpo foi pendurado num helicóptero e mostrado em sobrevoo pelos povoados da região. Decapitado, foi enterrado em lugar desconhecido. É considerado desaparecido político.

João Amazonas (Velho Cid) - integrante do PCB desde a década de 1930 e um dos fundado-res e secretário-geral do PCdoB, era o teólogo da guerrilha, e responsável pela ligação entre os guer-rilheiros na selva e a direção em São Paulo. Entrou e saiu diversas vezes na área do Araguaia durante o período, transportando militantes, dinheiro e orien-tações políticas, indo para o exílio na Albânia após o aumento da repressão militar na área, que impediu sua movimentação. Voltou ao Brasil após a Anistia e morreu aos 90 anos, em 2002.

Elza Monnerat (Dona Maria) - integrante da direção do PCB, fazia com Amazonas a ligação entre o Araguaia e o sul do país. Responsável pelo transporte de diversos militantes até o local da guerrilha e uma das primeiras a se instalar no Araguaia, durante os preparativos para a criação do núcleo guerrilheiro, voltou à clandestinidade urbana após o aumento da repressão militar na área, que a impediu de retornar à região do conflito, como Amazonas. Presa em fins de

1976 e libertada com a Anistia, morreu em 2004.

Maurício Grabois (Mário) - Membro da cúpula do PCdoB, integrante da Comissão Militar do Partido e comandante-chefe dos guerrilheiros do Araguaia. Foi morto numa emboscada na selva em dezembro de 1973. Seu corpo nunca foi encontrado e sua morte jamais admitida pelo Exército. É dado como desaparecido.

Ângelo Arroyo (Joaquim) - membro da cúpula do PCdoB e militante comunista desde 1945, foi um dos líderes da guerrilha, integrante da Comissão Militar. Foi um dos dois únicos guerrilheiros que escaparam vivos do Araguaia, depois da última campanha militar que exterminou a guerrilha, fugindo a pé para o Piauí atravessando a selva e dali para São Paulo. Foi fuzi-lado em dezembro de 1976 por agentes do Doi-Codi numa casa no bairro da Lapa, em São Paulo, onde se realizava uma reunião do Comitê Central do PCdoB, no episódio conhecido como Chacina da Lapa.

João Carlos Haas Sobrinho (Dr. Juca) - médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, chegou ao Araguaia vindo do Maranhão onde morou com alguns dos principais líderes da guerrilha e atendia a população. Respeitado pelos caboclos locais pelo auxílio que prestava na área da saúde de Marabá e Xambioá, o comandante médico-militar foi morto em combate em 30 de setembro de 1972. Seu corpo nunca foi encontrado e é dado

como desaparecido político.

Dinalva Oliveira Teixeira (Dina) - Geóloga for-mada pela Universidade Federal da Bahia, popular no Araguaia como parteira e temida pelos militares pela coragem física e por ser exímia atiradora, foi a mais famosa das guerrilheiras, lendária entre os moradores da região. Única mulher a ser sub-comandante de destacamento de combate, foi presa já no fim da guerrilha, em julho de 1974, e assassinada a tiros por agentes militares do CIEx. Seu corpo nunca foi encontrado e é dada como desaparecida.

Micheas Gomes de Almeida (Zezinho) - Filho de camponeses, ex-operário e veterano comunista, é o único guerrilheiro sobrevivente do Araguaia a nunca ter sido preso. Melhor guia e conhecedor da selva entre todos os guerrilheiros, fugiu da região guiando Ângelo Arroyo até o Maranhão, durante os últimos dias de aniquilamento da guerrilha. Vivendo com identidade trocada e anônimo em São Paulo por mais de 20 anos, dado como desaparecido, reapareceu nos anos 90. Mora em Goiás.

Maria Lúcia Petit (Maria) - ex-professora pri-mária, participou da guerrilha com os irmãos mais velhos. Morta em junho de 1972 numa emboscada, seus restos mortais foram identificados em 1996. Junto com Bergson Gurjão, são os dois únicos guer-rilheiros mortos e identificados posteriormente. Foi enterrada em Bauru, São Paulo.

Líbero Castiglia (Joca) - Italiano, foi o único estrangeiro que participou da guerrilha. Com treina-mento militar na China, era ligado ao Destacamento A e fazia a segurança da comissão militar da guerrilha. Foi um dos primeiros militantes a chegar à região do Araguaia. É dado como desaparecido desde o ataque do exército ao comando guerilheiro, no Natal de 1973.

André Grabois (Zé Carlos) - Filho de Maurício Grabois e vivendo na clandestinidade desde os 17 anos por causa da perseguição ao pai, foi coman-dante do destacamento A da guerrilha. Morreu em combate junto a outros três guerrilheiros, durante tiroteio com patrulha do exército em outubro de 1973, após caçarem porcos-do-mato. Seu corpo nunca foi encontrado, é dado como desaparecido.

Bergson Gurjão Farias (Jorge) - Ex-estudante de Química da Universidade Federal do Ceará, e sub-comandante do Destacamento C da guerrilha, sob o codinome de ‘Jorge’, foi o primeiro guerrilheiro a ser morto em combate no Araguaia. Ferido a tiros de metralhadora numa emboscada, foi morto a golpes de baioneta dias depois numa instalação militar de Marabá em maio de 1972. Dado como desaparecido político por trinta anos, seus ossos foram identificados por exames de DNA em 2009, após exumação do cemitério de Xambioá.

O destino de cada um

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