espaço, tempo e éter na teoria da relatividade

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Exposio Einstein

Espao, tempo e ter na teoria da relatividadePalestra de Roberto Martins - 18/10/2008 Apresentador Boa tarde a todos. A revista Pesquisa FAPESP d seqncia programao cultural da exposio Einstein com duas palestras neste final de semana. Hoje o professor convidado Roberto Martins, que falar sobre o tema Espao, tempo e ter na teoria da relatividade. Roberto Martins fsico, formado pela Universidade de So Paulo [USP] em 1972, com doutorado em lgica e filosofia da cincia pela Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] e ps-doutorado pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Hoje ele professor do Instituto de Fsica Gleb Wataghin, da Unicamp, e colabora como orientador na PUC [Pontifcia Universidade Catlica] de So Paulo e na USP. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Histria da Cincia e da Associao de Filosofia e Histria da Cincia do Cone Sul. Dedica-se pesquisa sobre histria e filosofia da cincia, especialmente da fsica, e possui bolsa de produtividade e pesquisa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico] de nvel 1B. Agradeo a todos pela presena, essa programao cultural vai se estender at dezembro com diversos outros especialistas. Gostaria de convidar a todos. Com vocs, o professor Roberto Martins. Roberto Martins Eu falarei alguma coisa sobre os conceitos de espao e tempo e de ter tambm fazendo um histrico, abordando como essas coisas vo se desenvolvendo com o passar do tempo. Os conceitos de espao e tempo so importantes dentro do pensamento ocidental desde a Antiguidade em que se faziam perguntas, por Aristteles e outros, sobre se possvel se falar em espao sem matria ou se s existe espao porque existe matria; se podemos falar de um espao vazio de tudo, no s de matria, sem mais nada dentro; se o tempo est relacionado a fenmenos de movimento ou mudanas ou se ele pode existir sem que nada esteja mudando; se podemos falar de um tempo antes de existir o Universo, ou seja, antes de qualquer coisa que possa mudar e se transformar. Ainda havia coisas do tipo: Bom, e se tudo congelasse, se todas as coisas parassem no Universo, podemos falar que existe um tempo? Podemos falar sobre um tempo no qual nada absolutamente acontece?. Ento as relaes entre a matria, entre as coisas que acontecem no mundo e o espao e o tempo so questes muito antigas. claro que a gente pode ficar dias falando sobre todas as idias a respeito disso ao longo do tempo. Pularei s 2 mil anos para ir ao sculo XVII, falarei um pouquinho de Newton, depois a gente vai 1

correndo at o sculo XIX e incio do sculo XX. Newton, em seus estudos sobre fsica e filosofa, precisou desenvolver umas idias importantes sobre espao e tempo que foram extremamente influentes. Ele defendeu a existncia de espao e tempo absolutos essa palavra significando alguma coisa que no depende de nenhuma outra, independentemente das coisas. Ele defendeu a existncia de um Universo independente dos acontecimentos que ocorrem. Ele disse, por exemplo: O tempo absoluto, verdadeiro e matemtico flui de forma regular por si mesmo e por sua prpria natureza, sem relao com nada externo. Ento, dentro da concepo de Newton, por exemplo, se o Universo fosse congelado, o tempo continuaria a existir. uma coisa que flui, que est passando, e que no depende de nenhuma outra coisa. O tempo no pararia junto com o congelamento do Universo. Esse um tempo que ele chama de tempo absoluto, independente das coisas. Mas existe tambm um tempo relativo, que depende dos acontecimentos e podemos medi-lo. Medimos o tempo atravs de movimentos, seja os que ocorrem no relgio, seja o movimento celeste, como a variao entre dia e noite e coisas desse tipo. A mesma coisa em relao ao espao. Para Newton existe o espao absoluto e ele diz que o espao absoluto permanece sempre igual e imvel por sua prpria natureza, sem relao com nada externo. Ento, ele repete, sem relao com nada externo, tanto para o tempo como para o espao. Assim, esse espao no se move. As coisas se movem no espao, mas o espao no se move, ele sempre igual, ele no sofre transformaes. Ele o palco onde as coisas acontecem. Mesmo que voc pudesse retirar tudo o que existe no Universo esse espao continuaria a existir. Agora, alm desse espao absoluto, existe um espao relativo para Newton, que determinado pelas relaes entre os objetos. Ento, esses conceitos de espao e tempo absolutos so conceitos metafsicos, claro. So coisas que no podem ser observadas, mas apesar disso Newton as acha importantes como uma conceituao fundamental para poder construir e pensar a fsica. O que a gente pode observar tempo e espao relativo. No entanto, embora a gente no possa observar o prprio espao e o prprio tempo, podemos, segundo Newton, notar efeitos. De certo modo, a gente pode observar movimentos absolutos. O que um movimento absoluto? o transporte de um corpo de um lugar absoluto para outro. O movimento relativo o transporte de um lugar relativo para outro. Ento, se tomarmos um objeto qualquer, como esta revista e a passarmos daqui para c, houve um movimento relativo da revista, que estava perto deste copo de gua e agora est mais longe. uma coisa que depende dos vrios objetos que estamos observando. Podemos nos 2

perguntar sobre o movimento absoluto. Todas essas coisas esto paradas ou no. Se a Terra se move e estamos na Terra, essas coisas tm um movimento absoluto, mesmo que no observemos. Se, alm de a Terra se mover, todo o Sistema Solar estiver se deslocando pelo espao, existe um outro movimento absoluto que est nos transportando e no o vemos nem o observamos diretamente. Mas Newton vai dizer que tem alguns tipos de movimento absoluto que podem ser observados os de translao uniforme no. Se a Terra tivesse apenas num movimento de deslocamento em linha reta no espao absoluto com velocidade estvel uniforme, segundo Newton, nunca poderamos observar isso. Ento, pensem, por exemplo, em um carrossel girando. As coisas que esto dentro desse carrossel tendem a se afastar do eixo de rotao. Se uma coisa est girando muito depressa, ela tende a jogar para fora as coisas que esto l. Essa rotao uma rotao absoluta para Newton, no seguinte sentido: se o carrossel estiver parado e uma poro de pessoas comear a correr em volta dele no vai acontecer nada com as pessoas que esto dentro.. No porque o carrossel est girando com relao a outras pessoas ou s paredes que esto em volta que surge esse efeito. Newton vai defender que por causa do movimento absoluto e que esses mesmos movimentos de rotao da Terra produzem efeitos, fazem com que os plos de achatem. A Terra no esfrica, ela tem algumas irregularidades. Ela um pouco achatada. A distncia entre os dois plos menor do que o dimetro equatorial. Newton no foi s o primeiro a afirmar isso, ele calculou matematicamente esse achatamento e disse como ele poderia ser medido. Isso impressionou extraordinariamente as pessoas na poca, foi um resultado da fsica newtoniana, que ajudou muito na projeo de seu trabalho no continente, na Frana etc. H um experimento imaginrio descrito por ele que nos ajuda a aprender essa diferena entre movimento absoluto e movimento relativo, que o experimento do balde em rotao. Vamos imaginar que temos um balde cheio de gua. Quando esse balde est parado, a superfcie da gua horizontal, plana. Suponhamos que voc comece a fazer o balde girar, preso por uma corda. A gua no comea a girar instantaneamente junto com o balde. Pelo fato de a gua no estar presa fisicamente ao balde, embora haja algum atrito, ela no vai comear a girar junto. Inicialmente, o balde estar girando, mas a gua no, sendo que a superfcie da gua permanece plana. Depois de o balde estar girando h algum tempo, a gua tambm vai girar junto, e a superfcie da gua se curvar, pois a gua tenta subir pelas paredes do balde, afastando-se dele, como ocorre com qualquer objeto em rotao. Tanto aqui como aqui, a gua est parada em relao ao balde, ento est tudo girando junto.

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No caso, em um situao temos a superfcie da gua plana, no outro curva. O que produz essa diferena? Newton diz que a rotao absoluta. No o movimento da gua em relao ao balde que produz efeitos, tanto que aqui o balde est girando e a gua no, permanecendo plana. E aqui, como vocs podem ver, na ltima situao, se, de repente segurarmos o balde, a gua continua a girar por algum tempo e continua com a superfcie curva. Newton utiliza esse tipo de experimento para dizer que tem sentido fisicamente falarmos das rotaes absolutas. A argumentao de Newton era bastante forte, mas no foi aceita por todos. Raramente uma proposta, mesmo quando bem defendida, de aceitao geral. Um pensador importante da poca de Newton que vai discordar dele [Gottfried Wilhelm Von] Leibniz, seu arquiinimigo. Eles brigaram com relao a quem inventou o clculo diferencial integral etc. Existe uma famosa troca de cartas chamada de correspondncia entre Leibniz e [Samuel] Clarke que durou muito tempo ela s acabou porque Leibniz morreu. O Clarke era, por assim dizer, um fantoche do Newton. Era um amigo do Newton e, na verdade, o que o Clarke estava escrevendo era o que Newton lhe dizia. H uma troca de cartas entre Leibniz e Clarke sobre questes filosficas gerais, sobre espao e tempo, sobre causalidade, sobre Deus, sobre uma poro de coisas importantes. Era impossvel chegarem a um acordo, totalmente impossvel. A discusso no converge, ela vai divergindo, as cartas se tornam cada vez maiores e cada um tentando discutir todos os argumentos que o outro colocou. No ia chegar a nada mesmo e, com a morte de Leibniz, termina a correspondncia. Para Leibniz, no existe esse conceito de espao e tempo absolutos, mas s de espao e tempo relativos, que dependem dos movimentos, dos acontecimentos no Universo. Podemos comparar a idia dos dois para vermos a diferena entre esses conceitos. Por exemplo, para Leibniz no tem sentido discutir se Deus quis criar o Universo em um lugar diferente do espao, pois o espao s passa a existir quando existe o Universo. Newton discorda totalmente, sua concepo seria outra. Ambos acreditam em Deus, mas para Newton o espao absoluto algo dado, independentemente do Universo, onde Deus vai colocar o Universo. Para Newton, Deus poderia ter colocado o Universo um pouquinho mais para c, um pouquinho mais para l... Leibniz disse que nada disso tem sentido. No poderia existir espao sem as coisas, porque elas que determinam a existncia do espao. Leibniz tambm afirma que no tem sentido pegarmos o Universo inteiro e desloc-lo atravs do espao, pois se Deus fizesse isso o espao se deslocaria junto, pois o espao essa relao entre os objetos. 4

Para Newton, entretanto, isso tem sentido. Newton pode pensar o Universo se deslocando com uma certa velocidade atravs do espao e Deus saberia que o Universo est se deslocando. A mesma coisa em relao ao tempo absoluto, eles discordam totalmente. Para Leibniz no tem sentido dizer que Deus poderia destruir todo o Universo e depois criar um totalmente igual depois de algum tempo, pois no existiria esse tempo entre o aparecimento e o desaparecimento, porque no haveria nada, no haveria tempo, no haveria nada acontecendo, enquanto para Newton poderia. O tempo continuaria a passar mesmo se o Universo no existisse porque Deus percebe o tempo passando. Basicamente, para Newton o espao e o tempo esto muito ligados a Deus, so formas de manifestao da prpria divindade. Independentemente das discusses mais filosficas, esses conceitos de espao e tempo de Newton foram teis, porque eles permitiram formular com clareza a fsica newtoniana, a mecnica, a astronomia, isso d uma srie de fenmenos e foi aceito pela maioria dos fsicos at o sculo XIX, quando ainda se continua a aceitar a concepo de Newton, mas adicionada uma outra coisa que no faz parte da concepo newtoniana que o conceito de um ter, uma substncia invisvel, que no feita das matrias que a gente conhece, no constituda de tomos. Ento, uma substncia material preencheria o espao, inclusive o espao entre os planetas, entre as estrelas. Em todo lugar onde parece que no tem matria haveria ter. Esse ter era algo que havia sido proposto na Antigidade. Aristteles defendia a existncia desse ter. No sculo XIX, porm, ele se tornou um conceito fsico importante, associado principalmente ptica e ao eletromagnetismo. Assim, basicamente para explicar as foras eletromagnticas e para explicar a propagao da luz pelo espao, passou-se a acreditar na existncia desse ter. No caso da luz, at o final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, quase todos acreditavam que a luz chegava at ns em forma de partculas, como tomos que vm at ns. Por outro lado, no incio do sculo XIX, a idia que vai dominar, a partir de 1920, que a luz uma forma de onda. Essa concepo ondulatria da luz se d por conta de alguns fenmenos que no podem ser explicados considerando-se a luz uma partcula. Ento, se a luz uma onda, ela tem de ser uma onda de alguma coisa que est vibrando, oscilando e transmitindo ondas isso seria o ter. Assim, na tica, quando fenmenos ondulatrios de difrao e interferncia comeam a chamar a ateno, fixa-se a idia de que existe um ter que transmite a luz. No eletromagnetismo tambm 5

surge essa idia do ter, e um dos precursores foi [Michael] Faraday. Ele foi um grande pesquisador dos fenmenos eletromagnticos no sculo XIX, pois acreditava que as foras interagindo entre ms, as foras entre cargas eletromagnticas, no so as que operam a distncia. Assim, se h dois ms separados por uma certa distncia, eles no podem saber da existncia um do outro porque eles no tm olhos, no tm sentidos. Tentem se colocar no lugar do m e fechar os olhos, imaginando que tem ali um outro m nos puxando. No d. Faraday desenvolveu a idia de que tem alguma coisa fsica prendendo os ms, talvez como fibras elsticas invisveis no espao, coisas desse tipo. Isso tambm uma forma de ter, ento uma carga magntica, um m, provocaria em volta dele uma modificao, uma perturbao do ter, que seria uma substncia elstica capaz de transmitir tenses, e essa modificao do ter o que se espalharia. Se temos um m, ao seu redor surgem coisas diferentes no espao. Mas no o espao vazio, mas sim o ter. Essas modificaes se espalham por todos os lados e o outro m sente aquilo que est encostado nele, so essas modificaes do ter. Ele no sente o outro m a distncia. Ele s pode sentir aquilo que existe onde ele est. O ter, ento, seria esse intermedirio nas foras eltricas e magnticas. Essa uma idia que soa meio estranha porque ela no foi conservada na fsica que aprendemos hoje em dia, mas os grandes fsicos do sculo XIX ajudaram a desenvolver o eletromagnetismo, como [James Clerk] Maxwell. Eles tinham certeza de que o ter existia e parte importante da teoria deles. Atualmente falamos de campo eltrico e campo magntico como sendo algo abstrato. Para Maxwell no, o campo eltrico uma modificao do ter, produzida por cargas eltricas que agem sobre cargas eltricas. O campo magntico seria uma modificao do ter e poderia existir no espao vazio. Por isso podem existir ondas eletromagnticas no espao vazio de matria, pois h o ter l. Para a mecnica newtoniana, seria impossvel detectarmos movimentos como o de translao ou o de deslocamento em linha reta com velocidade constante atravs do espao absoluto. Isso continua sendo vlido no sculo XIX, mas a crena na existncia de um ter muda a situao. Por qu? Porque agora o espao no est vazio, ele tem uma coisa fsica. Por que no poderamos sentir os efeitos do movimento da Terra ou de outros objetos atravs do ter? Aparentemente poderamos. Essa foi uma descoberta interessante, a de que no existe espao absolutamente vazio, pois existe uma substncia que produz efeitos fsicos, que o ter, preenchendo todo o espao, ento deve ser possvel observarmos seus efeitos. 6

Suponhamos que possamos medir a velocidade de deslocamento da Terra atravs do ter. No estaremos medindo a velocidade absoluta, pois estaremos medindo o deslocamento em relao a uma entidade fsica. Como se imaginava que o ter estava parado em relao ao espao absoluto, se estaria medindo indiretamente dessa forma o deslocamento em relao ao espao absoluto, mas por causa da existncia desse intermedirio o ter. Vejam que no h nenhum absurdo nisso. Podemos observar, por exemplo, os efeitos do vento. No podemos ver o ar, mas o ar em movimento produz certos efeitos, podemos fazer coisas girarem, quando um avio se desloca ele pode medir sua velocidade em relao ao ar. Ento, por que no se pode pensar na mesma coisa em relao ao ter? Se a Terra estivesse se deslocando em um ter, deveria ser possvel medir esse deslocamento de alguma forma, com algum instrumento. Isso motivou muitas pessoas no sculo XIX a tentarem medir a velocidade de deslocamento da Terra em relao ao ter. O prprio Maxwell fez experimentos nesse sentido. Pensamos nele como um grande fsico terico, mas ele fez vrios trabalhos com a fsica experimental. Tentou fazer experimentos para medir a velocidade de deslocamento da Terra em relao ao ter e no conseguiu, mas escreveu bastante sobre esse assunto e motivou outras pessoas. Alguns fsicos do sculo XIX fizeram experimentos e disseram: Eu medi, eu detectei efeitos do movimento da Terra em relao ao ter. Dois dos mais famosos so [Armand] Fizeau e [Anders Jns] Angstrm, que fizeram experimentos com a luz e disseram que estavam medindo os efeitos de movimentao da Terra em relao ao ter. Eram experimentos muito delicados, o efeito medido era muito pequeno e, depois de repetidos, no deram o mesmo resultado. Ficaram marcados mais como uma curiosidade histrica. O experimento mais famoso para se tentar medir o deslocamento da Terra atravs do ter foi o de [Albert Abraham] Michelson e [Edward] Morley em 1887, um famoso experimento, tambm usando luz, um instrumento chamado interfermetro. Era um experimento muito delicado, sensvel, que deveria poder medir o que se procurava. Para frustrao dos dois, no conseguiram observar os efeitos previstos. Deve ter sido uma situao muito ruim, dedicar-se meses realizao de um experimento bastante complicado que no deu certo. Com uma srie de experimentos que no davam certo, que no mediam a velocidade de deslocamento da Terra em relao ao ter, no final do sculo XIX algumas pessoas comearam a pensar que aquilo iria acontecer sempre, que no adiantava esperteza, pois no daria certo. O porqu no se sabia, acreditava-se que havia algo fsico 7

na natureza que impedia essa observao. Um dos pesquisadores mais importantes desse perodo, Henri Poincar, que era principalmente matemtico, professor de fsica na Sorbonne, filsofo, tinha interesses amplos. Em 1900 ele vai discutir isso detalhadamente e dizer que h o princpio da relatividade ele d esse nome que nos impede de observar uma velocidade que no seja entre corpos materiais. No podemos observar movimentos em relao ao ter. Isso no quer dizer que Poincar estivesse propondo que se parasse de falar sobre o ter. Por qu? Exatamente porque essa questo da medio dependia totalmente da existncia de um ter. Ento, as ondas eletromagnticas que se propagam em um espao sem matria s podiam ser entendidas, de acordo com Maxwell, com a existncia do ter, alguma coisa que transporta os campos eltricos e magnticos. O ter, ento, era importante para a compreenso. Mesmo que ele no pudesse ser observado, era necessria a manuteno desse conceito. O prprio Maxwell chamava a ateno para isso. Conforme ele, a velocidade da luz pode ser calculada, pode ser prevista. Ela depende, ainda segundo ele, de duas propriedades do ter. So as constantes fsicas do ter que nos permitem calcular a velocidade da luz. E sendo a luz uma onda no ter, como o som se propagando no ar. A velocidade depende do meio pelo qual a onda est se propagando, e no de quem a emitiu. A velocidade da luz, ento, no deveria depender da velocidade da fonte luminosa, por exemplo. Mas, supondo-se que seja correto o princpio da relatividade como Poincar estava formulando, se no podemos detectar por nenhum meio o movimento da Terra em relao ao ter, isso significa que todas as leis fsicas so iguais, estejamos parados ou em movimento em relao a ele, incluindo as equaes bsicas do eletromagnetismo, que chamamos de equaes de Maxwell. Os fsicos tericos da poca tinham muita dificuldade de encaixar isso matematicamente, pois uma coisa que depende das contas, e parecia que os fenmenos eletromagnticos deveriam ser diferentes quando estivssemos parados ou em movimento em relao ao ter. Mas no podiam, do contrrio se teria descoberto um modo de medir a velocidade de deslocamento da Terra com relao ao ter. Ento, na ltima dcada do sculo XIX, vrios fsicos importantes, de vrios pases, como [Hendrik] Lorentz, que holands, Poincar, da Frana, [Joseph] Larmor, que ingls, [Woldemar] Voigt, que alemo, estavam procurando um modo de conciliar o eletromagnetismo com o princpio da relatividade, dessa impossibilidade de se medir a velocidade em relao ao ter. isso 8

que vai dar origem ao que chamamos de teoria da relatividade especial, que no tinha esse nome no incio, mas o que saiu da. Uma das principais pessoas responsveis por isso esse senhor simptico que o Lorentz. Sempre associamos a teoria da relatividade com o nome de Einstein. Sabemos que todos os resultados da teoria da relatividade j tinham sido atingidos antes de Einstein publicar o seu primeiro trabalho sobre o assunto em 1905. Suponhamos que Einstein tivesse morrido enquanto criana. Isso impediria o surgimento da teoria da relatividade especial? No, pois j havia uma poro de pessoas trabalhando na mesma direo, embora Einstein seja o personagem famoso da histria. A construo dessa teoria foi um trabalho coletivo, como costuma acontecer em todas essas reas. Aqui vemos umas das equaes mais importantes da relatividade especial, so medidas de espao e tempo com dois referenciais. Elas so chamadas equaes de Lorentz porque foi ele quem as apresentou dessa forma, quem mostrou como elas poderiam ser utilizadas para que os fenmenos do eletromagnetismo fossem compatveis com o princpio da relatividade. Isso antes de Einstein. Outras equaes, tambm obtidas por Lorentz, relacionam os campos eletromagnticos observados de diferentes referenciais etc., e outras equaes que so da dinmica relativstica, como as que mostram que a massa dos corpos varia com a velocidade etc. Tudo isso anterior a Einstein. Essa teoria, desenvolvida por esse conjunto de pessoas, incluindo Einstein, se baseia na teoria da relatividade, e todos admitem que no se pode medir a velocidade de nenhum objeto em relao ao ter. No entanto, a teoria no exigia que se negasse a existncia do ter. Praticamente todas as pessoas que desenvolveram a teoria da relatividade aceitavam a existncia do ter, como Larmor, Lorentz e Poincar. Costuma-se dizer que, com o experimento de [Albert] Michelson e [Edward] Morley, se descobriu que o ter no existe. No verdade, Michelson morreu acreditando no ter, no fim da dcada de 1920 e ele no foi um cara burro, muito pelo contrrio. A teoria da relatividade, ao contrrio do que tenta se dizer, no prova que o ter no existe. Algumas pessoas que foram importantes para a construo da teoria continuaram a acreditar no ter at morrerem. A posio de Poincar, por exemplo, muito clara. Ele diz que no nos interessa se o ter realmente existe, isso um problema para os metafsicos. Para ns, o que importante que tudo acontece como se ele existisse e que essa hiptese adequada para a explicao dos fenmenos, ou seja, uma hiptese til se existe 9

mesmo, no podemos saber, ningum sabe, s Deus. Mas, do grupo das pessoas que desenvolveram a teoria da relatividade, Einstein tinha uma posio diferente. Ele segue basicamente a posio filosfica de Ernst Mach, por quem tinha uma enorme admirao. Mach, no final do sculo XIX, defendeu uma posio filosfica empirista, segundo a qual voc no deveria utilizar na cincia nada que no pudesse ser observado ou medido a cincia s deve trabalhar com coisas que podemos medir e observar. Ele tinha atacado diretamente o espao e o tempo absolutos de Newton porque no preenchiam esses requisitos. Einstein vai fazer a mesma coisa aplicando a crtica de Mach ao ter. Ele rejeita o uso do ter na fsica porque no podemos medir nem definir suas propriedades. Isso quer dizer que Einstein provou que o ter no existe? No, ele utilizou um princpio filosfico, no nenhum experimento, no nenhuma previso experimental, no nenhuma medida ele usou um argumento filosfico, empirista, para afirmar que no devemos usar o conceito de ter na cincia. Ningum poderia provar que o ter no existe. Podemos tentar observar e no observar, mas isso no prova que no existe. Ento, vamos supor que algum chegue e diga que nesta sala h dez anjos para cada pessoa aqui. Algum pode dizer: Bem, mostre esses anjos. No posso mostrar. Se voc no me mostrar, ento no acredito. Bem, se voc no quiser acreditar, problema seu, mas eles esto aqui e voc no pode provar que eles no esto. a mesma coisa, no podemos provar que o ter no existe. Voc pode no observar, voc pode escolher no acreditar nele, mas no podemos provar que algo que no vemos no existe. Por exemplo, posso provar que nesta sala no h um elefante, algumas coisas podemos provar, so coisas que podemos observar. Se houvesse um elefante aqui, por causa de seu tamanho e visibilidade, saberamos que ele estaria aqui. Assim, eu no conseguir observar um elefante aqui mostra que no tem um elefante aqui, porm no conseguir observar o ter no mostra que ele no existe. Bom, assim Einstein tem uma interpretao especial para a teoria da relatividade. No outra teoria, um modo de voc pensar uma teoria. Para ele, a teoria est associada a essa idia de que no existem espao e tempo absolutos, no existe o ter e s existem os movimentos e o espao e tempo relativos. Algumas pessoas aceitaram e outras no a posio filosfica de Einstein. Basicamente as mais velhas no aceitaram e as mais jovens aceitaram, pois estava na moda a filosofia empirista que Einstein vai usar. Como o ter e o espao absoluto fazem parte do mesmo 10

grupo de entidades inobservveis, Einstein rejeita os dois e tambm o tempo absoluto, usando o mesmo critrio epistemolgico. O cientista alemo no comeou nem terminou a teoria da relatividade especial, ento outras pessoas trabalharam muito para seu desenvolvimento, como Hermann Minkowski, um matemtico importante que foi seu professor. Minkowski que vai criar o conceito de espaotempo. Ele vai mostrar que possvel trabalhar matematicamente o tempo uma questo matemtica, no basta acharmos como sendo uma quarta dimenso anloga s trs dimenses do espao e que isso determina relaes matemticas entre eles. Dessa forma, na abordagem de Minkowski, as transformaes de Lorentz, que so na verdade as equaes mais importantes da relatividade especial, saem dessa interpretao que Minkowski d de que o espao e o tempo so partes de uma entidade mais complicada, que o espaotempo, e que, devido a uma mudana de sistemas de referncia, voc muda as relaes de espao e tempo, assim como na geometria mudamos o sistema de coordenadas espaciais e mudam as medidas tambm de espao e tempo. No caso, a abordagem de Minkowski no trazia uma mudana significativa na interpretao da relatividade especial, mas isso vai ter conseqncias grandes logo depois. Por qu? Bem, existem duas teorias da relatividade. H a relatividade especial, da qual tratei at agora, e a relatividade geral, que surgiu depois e serve para estudar fenmenos gravitacionais de sistemas acelerados, que esto sendo empurrados com alguma acelerao ou que esto girando, coisas desse tipo. Quando Einstein e outras pessoas tentaram aplicar a teoria da relatividade gravitao, surgiram dificuldades muito grandes, havia coisas que no funcionavam muito bem. Ento Max Abraham, outro matemtico importante, comeou a introduzir no estudo da relatividade um ferramental matemtico diferente, que se chamava clculo diferencial absoluto, ou clculo tensorial, que claro que eu no vou explicar, mas que permite trabalhar de uma forma muito poderosa as relaes entre espao e tempo para qualquer referencial. Quando as pessoas que vo usar esse ferramental comeam a fazer isso, Einstein odeia. Ele escreve um artigo combatendo o uso desse ferramental matemtico porque dizia que era muito complicado, que no precisava. Mas depois ele disse que precisava. A um de seus colegas de escola, chamado Grossmann, disse que precisava de ajuda, pois no havia entendido nada. interessante vermos algum to famoso ter tambm suas fraquezas. Ele precisou de ajuda para entender a matemtica que usou depois para desenvolver a teoria da relatividade geral. 11

Utilizando essa ferramenta que a teoria da relatividade geral foi construda, e o que podemos falar qualitativamente o seguinte: o espaotempo comea a ter propriedades especiais quando h campos gravitacionais. Descrevemos isso dizendo que o espaotempo se encurva, ele passa a ter propriedades matemticas e propriedades fsicas especiais por ser curvo. A comparao, a analogia que fazemos a seguinte: o espao dentro da relatividade especial no introduz uma relao nova porque como um espao, com o qual estamos acostumados a trabalhar na geometria euclidiana, que plano, chato. Por outro lado, na relatividade geral temos um espaotempo complicado, curvo, e isso produz efeitos importantes, e essas curvaturas so produzidas pela presena ou proximidade de matria e energia. Ento a matria e a energia produzem deformaes no espaotempo e quando um objeto est colocado no espao em uma regio onde h a deformao do espaotempo ele sente os efeitos, sente foras, sofre aceleraes, desviado em seu movimento. Isso no s com objetos materiais, mas tambm com a luz. A luz influenciada por essas curvaturas do espaotempo. Ento, na teoria da relatividade geral, um objeto no atrai o outro a distncia. algo semelhante ao que comentei sobre o eletromagnetismo, pois uma carga eltrica no produz efeito em outra carga eltrica; ela produz uma perturbao no ter e essa perturbao vai agir sobre a outra carga. Na relatividade geral a mesma coisa. Se temos um corpo material, como a Terra ou o Sol, este no atrai os planetas na relatividade geral, ele produz uma deformao no espaotempo e os planetas, ao se moverem nesse espaotempo curvo, so obrigados a seguir trajetrias especiais. Eles sentem a deformao do espaotempo, no a atrao do Sol. Ento tem uma semelhana muito grande entre o modo como a relatividade geral trabalha a gravitao e o ter do eletromagnetismo. Isso comeou a incomodar uma poro de pessoas. Uma delas foi esse fsico, o [Paul] Ehrenfest, um amigo de Einstein, que, em aproximadamente 1918, 1919, escreveu-lhe uma carta pressionandoo, dizendo que na relatividade especial ele, Einstein, joga o ter fora e d a impresso, na relatividade geral, que est trazendo um novo ter o espaotempo seria um novo ter. Einstein responde, mas sua resposta final feita em homenagem a Ehrenfest em uma palestra que d na Holanda em 1920. uma conferncia que se tornou muito famosa. Logo aps sua apresentao foi publicada na forma de um livrinho com o ttulo ter e teoria da relatividade. Nessa conferncia Einstein diz: De acordo com a teoria da relatividade geral, um espao sem ter 12

impensvel (...). Vejam que frase forte, no podemos nem pensar a respeito da relatividade geral sem um ter (...) porque em um espao assim no haveria propagao da luz, nem possibilidade de padres de espao e de tempo (rguas e relgios), nem intervalos de espaotempo, no sentido fsico. Ou seja, em 1920 Einstein percebeu que a desconfiana de Ehrenfest era real. Estou acreditando em algum tipo de ter na relatividade geral. Vejam outras frases da mesma conferncia, para notar o peso disso. Einstein disse que o que fundamentalmente novo no ter da teoria da relatividade geral, diferente do ter de Lorentz, que o estado do primeiro [o ter da relatividade geral] determinado em cada lugar por conexes com a matria e pelo estado do ter em lugares prximos, estando sujeito a leis na forma de equaes diferenciais. Quer dizer, o espaotempo da relatividade geral influenciado pela matria, pela energia, (...) enquanto o estado do ter de Lorentz na ausncia de campos eletromagnticos no est condicionado por nada fora dele, e o mesmo em todos os pontos. Ento o ter da relatividade geral sempre igual em todos os pontos. Mas so dois tipos de ter. Assim, basicamente, Einstein agora est dizendo que o ter que ele havia rejeitado do Lorenz um pouco diferente desse que estou aceitando, mas ele usa essa expresso: o ter da relatividade geral. Novamente, ele vai admtir que, no fundo, o mesmo ter. O ter da teoria da relatividade geral se transforma conceitualmente no ter de Lorentz se substituirmos por constantes as funes do espao que descrevem o primeiro, omitindo as causas que condicionam seu estado. Portanto, penso que podemos dizer que o ter da teoria geral da relatividade o resultado do ter de Lorentz, relativizado. uma imensa homenagem que Einstein faz a Lorentz, que estava assistindo sua conferncia. Portanto, mesmo que essa nova concepo de Einstein de dizer que o espaotempo um ter na relatividade geral no tenha sido defendida por ele quando falava na relatividade especial, h uma continuidade, no fundo ele est admintindo que so a mesma coisa. Aqui vemos uma foto deles juntos, na Holanda, exatamente naquele ano. Em certo sentido, a relatividade geral o resultado de um programa de pesquisas do ter de Lorentz e Poincar, e no uma continuidade da atitude de Einstein de 1905 de negar o ter. Na relatividade geral Einstein negou o ter, assim como o espao e tempo absolutos, considerando que o espao e o tempo eram grandezas fsicas puramente relativas, mas na relatividade geral ele se viu obrigado a introduzir o espaotempo como uma entidade fsica, cheia de propriedades. Portanto trata-se de uma espcie de ter, mesmo que no gostemos desse nome. interessante porque, embora Einstein tenha dito isso tudo, a maior parte dos fsicos atuais diz que no h ter porque Einstein o negou, mas essa parte da histria no costuma ser contada. 13

Assim, o desenvolvimento da teoria da relatividade exigiu uma reflexo sobre os conceitos de espao, tempo e ter, e essas coisas foram mudando. As pessoas, inclusive o prprio Einstein, foram oscilando entre vrias interpretaes. No houve a prova de que o espao e o tempo so relativos ou de que o ter no existe. Isso interessante tambm para no ficarmos com uma concepo errada do que a cincia. Usamos muito a expresso a cincia provou. No existe muito isso, a cincia uma coisa dinmica, ela vai mudando, e no pelo fato de a gente ainda aceitar a teoria da relatividade geral e especial no presente que ela eterna. Daqui a cem anos poderemos ter teorias completamente diferentes. Isso que bonito na cincia, essa dinmica, essa evoluo constante. No devemos acreditar que j chegamos ou que vamos chegar a uma verdade final. Obrigado.

Perguntas Platia Voc falou praticamente at a dcada de 1920, 1930, de algumas dcadas para c, porm, tem havido um grande avano na rea da cosmologia. Os dois postulados principais da cosmologia so a homogeneidade e a antropia. O postulado da homogeneidade quebraria a idia de um ter, que estaria associado a um espao absoluto. Bem, como o senhor disse, no podemos provar que o ter no existe, mas a cosmologia no deixa ele mais fraco? Roberto Martins Mais ou menos, a coisa bastante complicada. A cosmologia mais recente tem mais problemas do que solues; existem muitas coisas que no funcionam na teoria cosmolgica atual, em particular o fato de que aquilo que j conhecemos sobre matria e energia existentes no Universo muito menos do que deveria existir para o Universo obedecer nossa teoria, que o problema da chamada matria escura. Uma das propostas para contornar esse problema exatamente trazer de volta o ter para a cosmologia, e tem bons fsicos trabalhando com essa possibilidade, de que essa energia, essa matria escura que no est na nossa contabilidade, pode ser uma propriedade de um ter, num certo sentido do espaotempo, mas no de nenhuma forma de energia ou matria conhecida. Ento no h nenhum problema nisso. Por outro lado, tem fenmenos importantes de outras reas, como na mecnica quntica, que trazem de volta a concepo de que aquilo que parece ser um espao vazio cheio de propriedades fsicas. Na eletrodinmica quntica, se voc tem um espao 14

to vazio quanto voc possa imaginar, no entanto est todo o tempo surgindo uma poro de coisas fsicas l partculas e antipartculas , e tambm existe uma energia eletromagntica do espao vazio que j foi detectada, j foi medida no efeito casimir, por exemplo, e que, quando voc faz as medidas das foras no efeito casimir, no sei se voc pode dizer alguma outra coisa, a no ser que est medindo efeitos do ter de uma radiao eletromagntica que no deveria estar l, mas que faz parte desse substrato de onde voc tirou tudo o que consegue tirar. Ento, espao fsico vazio cheio de propriedades fsicas. Se voc no quer usar a palavra ter porque acha feia, no a use, mas ele est a. Platia Professor, essa posio do Einstein de 1920 e ele morreu em 1955. Nesses ltimos 35 anos ele no voltou a se manifestar sobre isso? Ele morreu com a mesma posio? R.M. Ele nunca mais se pronunciou to claramente a respeito dessa questo, quer dizer, no tem nenhum outro trabalho posterior a essa poca em que ele apresente muito claramente isso. H alguns, ainda da dcada de 1920, em que ele vai falar um pouco sobre isso, e interessante porque eu disse que ele era um grande admirador de Ernst Mach nesse perodo Mach no mais o dolo dele. Ele vai atacar as concepes filosficas de Mach, que era exatamente o que dava base para voc rejeitar o ter, ele vai dizer claramente: No, no nem um pouco necessrio s usar na cincia aquilo que se pode medir e observar; a fsica no feita assim e nem se deve tentar fazer isso. Voc pode introduzir na fsica coisas que no possam ser observadas e a nica coisa importante que sua teoria tenha conseqncias observveis, mas no que cada coisa da sua teoria tenha que ser observada e medida. Ele passa a defender uma viso filosfica geral que diferente da que ele tinha inicialmente, e essa nova viso filosfica abre as portas para voc aceitar o ter, sem nenhum problema. Essa viso ele mantm, claramente, at o fim da vida. Platia Professor, essa viso do ter que ele introduziu em 1920 no tem nada a ver com a constante cosmolgica, que ele botou nas equaes e depois disse que foi o seu maior erro? O que exatamente esse ter que ele defende? Se o ter o espaotempo, e se so a mesma coisa, o que o ter? s mais uma palavra? R.M. A questo da constante cosmolgica realmente independente. Quando Einstein formula as equaes da relatividade geral e tenta aplicar ao Universo como um todo, ele v que no consegue criar um modelo de Universo esttico quer dizer, que as estrelas e as galxias estivessem paradas no espao e que o Universo fosse sempre exatamente igual, sem nenhuma mudana. Ele no 15

pensava inicialmente num Universo dinmico, ele queria um Universo esttico e ento vai introduzir uma mudana nas equaes que no to forada assim quanto s vezes se coloca, porque possvel provar que a nica mudana matematicamente razovel que voc pode fazer nas equaes de campo da relatividade geral em que aparece uma constante cosmolgica e o novo termo que ele introduz permite criar um modelo de Universo estacionrio, esttico, que no sofre mudanas, em que as coisas ficam paradas. A motivao era essa. Agora, qual o significado desse ter da relatividade geral? Em algumas frases que coloquei de Einstein, vejam que ele fala que sem se pensar no ter no se poderia nem pensar na propagao da luz. uma coisa muito forte, ele est retornando idia de que se a luz uma onda claro que a ele j est pensando em propriedades de corpo, tem dualidade e esse negcio todo, mas em parte uma onda e o Einstein vai retornar posio do sculo XIX voc no pode pensar nessa onda sem alguma coisa que ondula, e se no houvesse esse ter no haveria as propriedades da luz, e principalmente na relatividade geral a velocidade da luz depende de um ponto para o outro, a luz sofre refrao no campo gravitacional, ela se encurva e muda de velocidade. Isso muito parecido com o que ocorre em um meio transparente, e se em cada ponto do espao a velocidade diferente e sofre refrao, a luz est diretamente ligada s propriedades do espaotempo. novamente o que eu disse: se voc no quer chamar isso de ter, no chame, mas ; aquilo em que a luz se propaga e que determina as propriedades da propagao da luz, aquilo que determina, segundo Einstein, a possibilidade de voc atribuir um sentido fsico ao espaotempo, como uma coisa que modificada pela matria e pela energia e que por sua vez age sobre a matria e a energia, porque espao matemtico no pode ser influenciado pela matria e pela energia, tem que ser alguma coisa fsica. No devemos confundir o espao matemtico que na verdade s existe na nossa cabea com alguma coisa que interage com a matria. Uma coisa que interage com a matria fsico, e para Einstein o ter. Platia Li recentemente que um dos fatos de Einstein figurar como um dos personagens centrais da teoria da relatividade especial foi uma arquitetao feita, sobretudo pelo David Hilbert na Alemanha, para que Henri Poincar fosse meio que esquecido de todo esse desenvolvimento, entre o Minkowski e outras figuras que trabalhavam na Alemanha. Queria saber a sua opinio sobre isso, se de fato algo arquitetado. R.M. Acredito que no houve um compl desse tipo. Voc tem pessoas com posies diferentes, 16

no articuladas no vejo como articulao, planejamento; o Hilbert teve um papel importante no desenvolvimento da relatividade geral, ele era, num certo sentido, competidor de Einstein. Como eu tinha dito, Einstein teve bastante dificuldade no domnio da matemtica necessria do clculo diferencial absoluto, enquanto Hilbert brincava com isso. Os primeiros trabalhos que Einstein publica esto simplesmente errados matematicamente. Em 1915, Hilbert se interessa pela teoria da relatividade geral, tem muito mais facilidade com a coisa e chega um momento em que Hilbert obtm as equaes corretas da relatividade geral. Einstein na mesma poca tambm obtm e eles publicam dois trabalhos independentes, com uma diferena de semanas o Einstein publica antes (risos). Mas, novamente, se Einstein tivesse atrasado um pouquinho, tivesse sofrido um desastre de trem, tivesse morrido, teramos a relatividade geral, e o autor seria Hilbert, ele estava envolvido com a coisa. Em um determinado perodo podemos dizer que houve uma movimentao bem articulada para tornar Einstein o grande personagem cientfico que ele se tornou. No foi um compl de judeus, no foi um compl de alemes, quem articulou isso foi um ingls, o [Arthur] Eddington, e uma histria bastante interessante. At 1919, a gente no pode dizer que Einstein fosse o Einstein um personagem extremamente conhecido, respeitado, o top , ele era um fsico e muitas pessoas achavam que alguns trabalhos dele eram bons, outros que no eram to bons assim etc. O que ocorre em 1919? exatamente nesse ano que Einstein se torna o personagem da fsica, reconhecido mundialmente graas a Eddington, que um ingls pacifista. Durante a Primeira Guerra Mundial existe aquela polarizao os alemes esto guerreando a gente, so todos uns desgraados em todos os sentidos e isso repercute tambm na cincia. O Eddington acha o fim da picada que isso influencie as relaes cientficas e vai defender publicamente e sofre por causa disso que, independentemente da guerra, deveria se manter uma atitude neutra em relao cincia. E durante a Primeira Guerra que Einstein est publicando os trabalhos sobre relatividade geral. Em 1916 Eddington escreve o primeiro trabalho em ingls sobre relatividade geral, divulgando as idias, elogiando Einstein em plena Guerra Mundial isso muito corajoso. Depois, quando termina o conflito, ele toma Einstein como smbolo, para tentar reatar as relaes, e ser ento um dos organizadores da Expedio Astronmica que vai tentar verificar uma das previses da relatividade geral, que o desvio da luz das estrelas durante o eclipse do Sol a luz se encurva ao passar no campo gravitacional da estrela etc.

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A previso confirmada bastante bem e Eddington faz um circo com isso no voc simplesmente publicar o resultado numa revista cientfica, no, mobilizar os jornais, as revistas populares em cima disso, e isso que vai tornar Einstein famoso do dia para a noite. uma coisa fantstica, e ele convidado para todos os lugares, todo mundo quer ver Einstein e quer saber o que ele fez.. Se houve um esforo organizado para tornar Einstein um grande personagem, foi nesse momento, e isso se deveu a Eddington. Antes a gente pode dizer que ele era conhecido? Era conhecido, era um dos fsicos que os outros fsicos conheciam, estava no meio dos outros mas a partir de 1919 ele se torna o Einstein. Platia Boa tarde, meu nome Natan e minha pergunta sobre esse dilema da existncia de espaotempo entre Newton e Leibniz. Se eu entendi bem a mensagem da palestra, me parece que voc falou que a relatividade geral ainda no deu uma resposta definitiva para isso, que continua sendo mais uma discusso filosfica a questo se existe espaotempo independentemente da existncia do Universo e da matria e da realidade fsica de um movimento absoluto, alm de um movimento relativo. Quero saber se existem propostas para se tentar distinguir entre uma possibilidade e outra, porque me parece que esse dilema bem o campo de pesquisa do professor Assis, da Unicamp da existncia do espao absoluto , s que o pouco que li ele discutia s com a fsica newtoniana, no o vi dialogar com a relatividade geral. Quero saber se existem propostas baseadas na relatividade geral para se distinguir espaotempo independente da matria ou no. R.M. Pergunta interessante. Dentro da sua teoria, Einstein tentou inicialmente incorporar a idia de que todos os fenmenos da relatividade geral s dependeriam, vamos dizer assim, das relaes entre os objetos materiais e a energia, e depois ele concluiu que no, que isso no possvel, que voc pode ter propriedades do espaotempo mesmo onde no h matria, no h energia, e ento voc no pode reduzir a descrio do Universo apenas matria e energia, tem alguma outra coisa que num certo sentido interage com a matria e a energia, mas diferente, tem realidade prpria. No caso da proposta do professor Assis a sala do professor Assis em frente minha na Unicamp, a gente se d bem, embora eu no concorde com muitas coisas do trabalho dele; ns podemos ter uma relao amigvel e cordial e discordar , ele procura mostrar a possibilidade de voc analisar certos fenmenos gravitacionais e tambm da relatividade especial sem usar a teoria da relatividade, e qualquer coisa desse tipo til para a gente pensar, para explorar novas possibilidades. Como eu disse, no acredito que as teorias que temos hoje em dia sejam definitivas, mas tambm no acho que o Assis chegou alternativa mais interessante. 18

Quanto relatividade especial e proposta do professor Assis, por exemplo, existem dados experimentais que contrariam a proposta dele. A sua teoria prev que a massa de repouso de um eltron, por exemplo, seria influenciada pelo potencial eltrico onde o eltron est e isso permitiria que a massa do eltron mudasse muito inclusive se anulasse em determinadas condies ou tivesse um valor dez vezes maior estando parado , mas existem testes experimentais que mostram que isso no acontece. Quanto ao aspecto da relatividade geral, o professor Assis no tem realmente uma teoria que a substitua. O que ele procura fazer, a sua estratgia, tentar mostrar que voc no precisa da relatividade geral, porque muitas coisas dela que consideramos pontos fortes so simplesmente equvocos. Ele vai dizer, por exemplo, que, em termos de cosmologia, aquilo que normalmente se aceita que o Universo est em expanso, que as galxias esto se afastando etc. e que voc descreve pela cosmologia relativista, seria simplesmente uma interpretao equivocada dos dados experimentais, que eles no provam que o Universo est em expanso e podem ser interpretados de outra maneira. Em grande parte ele vai tentar desqualificar certos fenmenos que a relatividade geral tenta explicar, mas ele no tem propriamente uma coisa que substitua a relatividade geral, e o que ns esperamos que acontea uma teoria mais forte e que tambm realize, digamos, um casamento fundamental entre algumas coisas da relatividade geral e da mecnica quntica, que v alm delas e, em casos particulares, no se reduza teoria da relatividade e mecnica quntica, mas que traga muito mais coisas que no sabemos o que se eu soubesse o que , ganharia o Prmio Nobel. Platia Queria saber a sua opinio pessoal sobre Einstein. Fiquei com a impresso de que o senhor no o v como grande personagem, grande fsico, desde Newton. R.M. No, no vejo, realmente no vejo. Acho que a pergunta central sempre essa questo, tentar mudar a histria imaginariamente e ver: se Einstein tivesse morrido ou nunca tivesse nascido tudo seria diferente? No caso, Newton, para mim, um personagem mais forte do que Einstein nesse sentido, porque quando Newton publica sua obra principal de mecnica e gravitao, que a [Philosophiae Naturalis] Principia, 99% do que ele fez ningum estava tentando fazer ou se encaminhando para fazer. Os historiadores da cincia concordam que no mximo dez pessoas daquela poca do Newton tinham condies de ler e entender o que ele fez, mas no teriam condies de ter feito o que ele fez.

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Provavelmente, se Newton tivesse morrido enquanto criana, isso significaria um atraso grande no desenvolvimento da mecnica e do surgimento da teoria gravitacional de Newton, enquanto no caso especfico da teoria da relatividade especial e geral no podemos dizer isso. A relatividade especial talvez o caso em que Einstein foi totalmente dispensvel; a nica coisa nova em termos de equaes que ele prope na relatividade especial a equao E = mc, que sabemos que no uma equao geral e que pouco depois se chegou a equaes mais fundamentais que ela, mas que no so to populares porque so bastante complicadas. Em relao relatividade geral, s vezes se diz: No, mas h a relatividade geral, voc no consegue imaginar sem, mas no bem assim. Havia uma grande quantidade de pessoas tentando criar uma teoria da gravitao na dcada de 1910, usando ou no clculo diferencial absoluto e algumas coisas muito promissoras, fortes, e acho que se pode dizer que, se Einstein tivesse morrido nessa poca, antes de publicar os seus trabalhos sobre relatividade geral, poderia ter atrasado uns cinco anos, mas no dcadas, porque a coisa estava caminhando. E principalmente no caso a teoria da relatividade exige muito conhecimento matemtico e tinha um grupo de italianos desenvolvendo esse trabalho. Pessoas como Hilbert, que eu mencionei, estavam tambm caminhando para a formulao de uma coisa parecida com a relatividade geral. Ento a coisa estava no ar. Depois que as equaes fundamentais da relatividade geral so publicadas, logo em seguida, praticamente todos os resultados mais importantes no so mais de Einstein. A primeira soluo exata das equaes de campo de Einstein, que descreve o campo, por exemplo, de uma estrela sem rotao, chamada soluo de [Karl] Schwarzschild, porque foi Schwarzschild quem a obteve e que fundamental at hoje para voc estudar rbitas de planetas no campo do Sol, para entender buracos negros e Einstein no conseguiu chegar nisso. Os modelos cosmolgicos com expanso do Universo no so de Einstein, devem-se a outras pessoas. Devemos comear a evitar um pouco essa questo do grande gnio, a pessoa que faz tudo sozinha porque distorce a realidade da pesquisa cientfica e principalmente uma pssima mensagem para os jovens, porque se voc acredita que de vez em quando aparece um extraterrestre como Einstein, que nasce com uma cabea privilegiada, ento voc passa essa idia para os nossos jovens, a um deles vai se lamentar: Parece que no sou extraterrestre; tenho a certido de nascimento aqui, eu nasci em Mogi Mirim e no acho que eu seja totalmente diferente dos meus colegas, ento no sou um einstein O que vou fazer na vida? No vou dar nenhuma contribuio importante para a cincia.

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Acho que em termos de mensagem, voc tentar mostrar que tem uma pessoa genial, muito melhor, contraproducente, alm de ser falso historicamente. Acredito que conveniente comearmos a contar uma outra histria e mostrar como a fsica o resultado do trabalho de muitas pessoas que a gente no conhece e no que so as formiguinhas que ajudam com uma migalha, no; so pessoas que fazem coisas muito importantes, fundamentais, mas de que no ouvimos falar por causa dessas distores. A gente quer dolos, a gente quer o Super Homem, a gente no quer os seres humanos trabalhando. Platia Aproveito o gancho para dizer que estou plenamente de acordo com a estatura de Newton, que realmente um caso parte. Justamente eu gostaria de comentar um pouco essa interpretao que voc deu para as idias de Newton colocando muito que ele aquilo, que ele aquela proposta do espao e do tempo absolutos, porque eu, como fsico, e sabendo tudo pelo que Newton se interessou, quando fui ler o trabalho original dele a sensao que tive foi outra, foi que ele teve a conscincia da necessidade de explicitar aquelas coisas que no tinham sido explicitadas antes, para poder construir o que ele ia construir. No fiquei com a idia de que ele tinha uma viso limitada do que era espao e tempo; quase achei o oposto, que ele sentiu necessidade de fazer aquela definio, circunscrever aquilo, para dali partir para o que ele ia construir do zero, porque todo o interesse dele em outras direes e outras coisas nega essa limitao. Queria que voc comentasse isso... R.M. Sim, eu devo ter dado uma impresso errada do que eu acho, porque de modo nenhum penso que seja uma viso limitada, mas sim uma viso riqussima a de Newton acho importante a gente confessar as nossas simpatias. Tambm no acho que seja um anjo em nenhum sentido, mas gosto dele. Era uma pessoa que se preocupava extremamente com esse tipo de problema e que isso estava inserido no s na preocupao dele de fsica, mas nas preocupaes teolgicas. Ele era uma pessoa que estava querendo entender Deus, querendo entender profundamente a religio e essas coisas vo juntas no seu percurso como cientista. Concordo perfeitamente, o que voc diz, ele explicita esses conceitos porque so importantes, so teis para a construo da fsica dele, mas que no de modo nenhum uma coisa que restrinja ou que limite sua viso sobre espaotempo, eu concordo perfeitamente. Foi uma questo de eu no conseguir me exprimir. Obrigado

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