esntrevista de ciavatta a luiz flavio

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    Luiz Flvio de Carvalho Costa

    Prtica poltica no campo:uma experincia da militncia comunista

    A entrevista que apresentamos de Nazareno Ciavatta pode despertar o interesse em dois sentidos. Primeiramente, ajustado sua experincia vivida e insero social, Ciavatta nos fornece uma viso da prxis poltica imediata, dos contornos das fazendas, e revela manifestaes do cotidiano que normalmente escapam das anlises presas no espao das chamadas foras estruturais. Ciavatta nos fala de um momento - segunda metade da dcada de 1950 - quando pela primeira vez no pas, atravs do Partido Comunista do Brasil (PCB), a prtica sindical se insinua pelo campo. A mobilizao de quadros pecebistas para o trabalho no campo no se faz sem dificuldades. Por ser o incio da sindicalizao rural, falta o apoio da tradio. Era pequeno o conhecimento e incomum o exerccio de militncia poltica no meio rural. Faltavam no apenas quadros partidrios com experincia na sindicalizao do trabalhador agrcola, como tambm militantes oriundos do prprio meio rural. Eles se movimentariam com maior

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    familiaridade e eficincia do que aqueles que deixavam as luzes das cidades para exercerem seu ofcio em terreno desconhecido. Entretanto, o trabalho de recrutamento tambm se realiza no campo e comea a alterar o perfil do militante comunista em exerccio na zona rural. O prprio Ciavatta de famlia de lavradores do interior do estado de So Paulo e ingressou no PCB no momento em que os comunistas mobilizavam foras para uma ao poltica no campo.

    O depoimento do lavrador/militante traz aspectos singulares do fazer poltica no campo, em contraste com o espao operrio-urbano, este sim um meio j ento bastante conhecido da atividade comunista A aproximao aos camponeses e o estabelecimento de relaes com eles significam dificuldades desconhecidas do militante da cidade. Os primeiros contatos com os trabalhadores das fazendas se do no botequim, nos dias de compra, nas pescarias, nas quermesses, nas festas. No um comunista que se apresenta, seno um sindicalista. Comunismo ainda uma palavra difcil de pronunciar. Na maioria das vezes, apresentar-se como comunista causa espanto e desperta desconfiana.

    Embora difcil, entra-se s vezes nas fazendas durante o dia, quando os trabalhadores esto no local de trabalho, ainda que dispersos. Aqui, o contato cumpre mais a tarefa de fazer acertos da reunio que se realizar mais tarde na colnia. Durante o dia era comum entrar como mascate, vendendo linhas, agulhas, e aos domingos o futebol tambm era um bom pretexto.

    Em geral os militantes entravam noite nas fazendas. A escurido enfraquecia o domnio do fazendeiro sobre seu territrio e tornava a propriedade mais vulnervel. A escurido amparava quem se atrevia a transpor os limites das fazendas. Havia outra vantagem. Os trabalhadores encontravam-se principalmente nesse espao de tempo e se criavam, assim, as condies para o contato coletivo.

    Embora a dificuldade de contato tornasse mais estreita a ao poltica, havia explicaes menos singelas dos insucessos e oscilaes do movimento social. Aqui se encontra o segundo sentido aludido no incio deste texto que pode despertar a ateno dos estudiosos: a ambigidade na qual se debatia o PCB naquele momento em razo do conflito entre a teoria e a prtica, no impasse e contradio entre duas estratgias excludentes. Estamos nos referindo s duas estratgias pendulares que marcavam a atuao do Partido: uma envolvendo a idia de revoluo aberta com a derrubada do governo; e outra idia orientada

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    para a acumulao de foras e para a unio com outros segmentos da sociedade. Aqui se insere a mudana operada na pauta de reivindicaes agrrias do PCB, agora em favor de conquistas parciais, consubstanciadas nas leis trabalhistas, tendncia essa que passa a predominar a partir de 1958.

    O dilema de Ciavatta - se ns no temos fora para obrigar os fazendeiros a pagar os salrios e a cumprir as leis trabalhistas, que dir tomar a fazenda dele! - o dilema em que o PCB se encontrou durante um largo perodo e lhe causou fissuras ideolgicas e organizacional e conformou, em largo sentido, a situao das esquerdas no Brasil. Lyndolpho Silva trata esse dilema com desassombro - divide o movimento sindical de 1945 a 1964 em duas etapas, tendo o V Congresso do PCB em 1960 como linha divisria e analisa: Nossa posio sectria e esquerdista contribua para os ataques da reao. A nossa linha poltica naquele perodo nos levava a ver os sindicatos rurais como mais um instrumento de agitao para a luta armada, dentro da tese errnea da revoluo a curto prazo. Em geral, a preocupao principal, logo que surgia um sindicato, no era conseguir seu registro, nem lutar pela sua consolidao e educao das massas de assalariados, por suas reivindicaes mnimas, imediatas ou parciais, de acordo com seu nvel de conscincia. Ao contrrio, era marchar para exigncias muito elevadas, para lutas violentas, armadas, inclusive, se fosse o caso, arrancar greve sem que a massa estivesse preparada, etc., o que nos levava a cometer aventuras sem conta que s causavam prejuzo. 1

    O trabalho poltico no campo ser afetado por essa incoerncia entre palavras e aes, pela coexistncia de estratgias conflitantes. A radicalizao que da decorria muitas vezes levava ao isolamento e perda de influncia sobre a sociedade. A idia de composio, a linha de acumulao de foras, o envolvimento com a estrutura sindical existente com o simultneo afastamento da estratgia do confronto direto vo produzir resultados visveis na faixa do movimento social em que atua. Durante demasiado tempo o PCB foi prisioneiro desse enigma: lutar para se integrar sociedade, reivindicar presena legal em seu seio usando como argumento as leis e normas formais da sociedade e propor a destruio dessa mesma sociedade. Afora esse paradoxo, a confrontao de foras, quando se colocou, parece ter sido sempre uma proposta imprudente, com resultados que ficaram conhecidos, sem variao, como sectarismo e

    1 Lyndolpho Silva, Sobre a sindicalizao rural, datilografado, s/d.

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    aventureirismo, assim vistos pelo prprio Partido Comunista Brasileiro. O depoimento de Nazareno Ciavatta, a propsito, elucidativo do embarao que essa situao causa, tanto no plano mais geral da estratgia de mudana social como no nvel mais bsico da prtica poltica, no cho da fbrica ou no terreno das fazendas.

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    Entrevista: Nazareno Ciavatta*

    Luiz Flvio de Carvalho Costa

    Como foi sua chegada em Ribeiro Preto e como o senhor se envolveu com o Partido Comunista do Brasil (PCB)?

    Bem, eu sou campons desta regio e fui para So Paulo onde passei quinze anos. Voltei de So Paulo em 1954 e fui para Dumont, aqui perto. Fui trabalhar na roa outra vez. Como l em So Paulo eu pertencia ao Partido, vim a Ribeiro Preto procurar por ele, fui atrs de uma sede que se chamava Panela Vazia. Vim pedir ajuda para organizar um comcio em Dumont, porque os preos naquele tempo subiam muito. O Partido fazia esse tipo de comcio contra a carestia, os outros no faziam nada, pelo menos o que me lembro. O Partido queria fundar um sindicato e me convidou para ajud-lo. Eu tambm queria fundar um sindicato. Tinha morado em So Paulo e sabia que o sindicato sempre trazia vantagens ao trabalhador. Eu concordei em ajudar. Foram feitas duas reunies, a primeira no dia 6 de setembro de 1954, na Unio Geral dos Trabalhadores. A segunda foi realizada no sindicato da construo civil na Vila Tibrio. Assim comeou a se fazer o sindicato. Quem me deu as instrues de organizar a diretoria e tudo o mais foi o sindicato dos marceneiros.

    Quer dizer que os operrios urbanos se envolviam com os trabalhadores rurais e prestavam ajuda?

    Sem eles no teramos fundado nada.

    Como se fundava um sindicato? Que medidas vocs tomavam nesse sentido?

    O Partido ficou de me ajudar. Comecei a trabalhar e me mudei para Ribeiro Preto. Comecei a viajar, arranjar os registros de nascimento do pessoal, escrever para fora para que me mandassem cpias de registros de nascimento. O campons tem medo de dar documentos para os outros, eles tm esse cuidado, mas depois eu os devolvia. A fundao desse sindicato aconteceu no dia 31 de janeiro de 1955. O PCB e eu gastamos dinheiro nisso. O aluguel da

    * Entrevista concedida a Luiz Flvio de Carvalho Costa em Ribeiro Preto (SP), em 31 de maro de 1990.

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    sede custava 600 cruzeiros. Foi aberto o sindicato, vieram caminhes de todos os lados, fizemos reunies. Tinha muito campons, pois o sindicato era bem aceito, apesar da violncia da polcia e dos fazendeiros.

    Por que eles aceitavam?

    Porque eles sabiam que o sindicato ia pr lei na roa.

    Que leis eles queriam?

    As leis trabalhistas. Colonos, meeiros, camaradas, todos. Eles queriam ter direito porque no havia direito algum. O direito aqui era a polcia entrar e prender se algum reclamasse. Delegado naquele tempo s subia na vida se fosse truculento, caso contrrio ficava l naquela baixada mesmo. Os trabalhadores se encontravam em dificuldades para fazer os fazendeiros pagarem o salrio. Os fazendeiros tambm no entendiam de lei. Os camponeses me exigiam boletins com as leis trabalhistas, o material do Partido, o jornal Terra Livre. Queriam um papel para poderem falar: isso que vocs tm que me pagar e no aquilo que esto me pagando.

    Eles esperavam uma orientao do Partido para negociarem com os fazendeiros?

    Esperavam uma orientao dos sindicatos. Naquele tempo a misria era muito grande. Os fazendeiros pagavam a metade dos salrios de lei, de modo que a misria era terrvel. Sofriam mais aqueles que no trabalhavam em fazendas de caf: meeiros, parceiros, camaradas, pees, vaqueiros. Trabalhavam 10, 11, 12 horas por dia pela metade do salrio. No havia lei. Certa vez os trabalhadores da fazenda So Sebastio do Alto vieram ao sindicato e me falaram da misria, que suas casas pareciam chiqueiros de porco, chovia dentro Eu disse a eles que o sindicato tentaria ajudar, mas eles acharam que a providncia seria fazer greve. Eu recomendei que eles falassem com o fazendeiro.

    Ento a greve era uma proposta deles e no do sindicato?

    No propus greve porque sabia que era perigoso. At o sindicato poderia ser fechado. Eu alertei que se eles fizessem greve a primeira coisa que iria acontecer era a polcia prender todos. Eles responderam que no tinham medo porque j estavam com a corda no pescoo. Eu recomendei ento que eles se organizassem. Dois meses depois voltaram e disseram que estavam preparados para a greve e que no haviam falado com o fazendeiro, porque ele andava com um 38 na cinta. Eu era presidente do sindicato. Eles tinham o direito de fazer

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    greve porque no recebiam salrio.

    Qual era o apoio do PCB? Eles mandavam o jornal Terra Livre? Como o senhor conhecia esses direitos?

    Eu conhecia esses direitos por ter morado em So Paulo. E, por ser do sindicato, eu estava em contato freqente com os sindicatos operrios. Os trabalhadores disseram que precisavam dos boletins porque os fazendeiros falavam que no sabiam quanto eles tinham que pagar. O fazendeiro tambm era um ignorante, podia at ter vontade de pagar mas no podia, pois no sabia o valor. A saiu a greve. Aconteceu o que eu havia previsto: a polcia foi l e prendeu os grevistas. Trouxeram 32 homens em cima do caminho. Mandaram uma intimidao para eu ir polcia, e eu fui. Comeou aquele gritaria, aquela valentia de delegado, tira, DOPS, dizendo que eu era comunista, que estava fazendo a revoluo, que estava botando fogo em Ribeiro Preto, no Brasil. Ele perguntou ao lder dos camponeses se no sabia que eu era comunista. Olha, doutor, eu no sei se comunista, mas sei que para ns esse homem muito bom porque defende a gente da pobreza, respondeu o campons mostrando a cala rasgada e os ps descalos.

    Depois disso o fazendeiro dispensou os lderes, cinco ou seis. Eles vieram para o sindicato e passavam fome. Havia uma audincia marcada para a semana seguinte, mas eles quiseram ir imediatamente Justia. Os fazendeiros j estavam l e a polcia prendeu um dos camponeses que estava conosco. Eu resisti mas o delegado no quis saber de histria. Houve uma discusso entre mim e o delegado e comearam os pontaps. Foi um tumulto. Mas ns conseguimos entrar no Departamento do Trabalho. Os soldados ficaram do lado de fora, mas logo vieram reforos. O dr. Tavera, advogado do sindicato, veio para nos defender. Fomos presos, uns 25 homens, mas apenas eu e o Lus Anaconde, o lder deles, ficamos na cadeia.

    Algum era do Partido?

    No tinha isso, ningum era do Partido. Isso pode ter ocorrido em 1945. Agora eles se filiavam aos sindicatos. Eu fiquei preso em Cravinhos. O delegado me removeu porque queria me esconder. Para mim at que foi bom - a cadeia e a comida eram melhores que as de Ribeiro Preto. A polcia fez sair no jornal A Cidade, do dia 8/4/1955, a notcia de que eu era comunista e que queria derrubar o Governo, e que tinha minado todos os trabalhadores do campo. O jornal no disse que eu era presidente do sindicato. O Lus saiu depois de 8 dias, mas eu fiquei. O Partido considerou que estava demorando demais para

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    eu sair da cadeia e mandou um advogado de direitos polticos de So Paulo que me visitou na cadeia. O dr. Tavera entrara com pedido de habeas-corpus, mas como eu era acusado de agresso e desacato polcia, o juiz negou. Fiquei preso por dois meses.

    Outros sindicatos foram fundados nessa poca?

    O de Franca foi fundado logo depois, mas no ficou muito tempo aberto. Foram tambm fundados sindicatos pelo Partido em Morro Agudo e Altinpolis, mas tambm de curta durao. Eu estive no Rio de Janeiro em 1956. O Partido mobilizou os presidentes dos sindicatos para um encontro com o ministro. O assunto era a legalizao dos sindicatos rurais. O ministro Nlson Omenha (PTB) nos disse que faltava em Ribeiro Preto a instalao da Junta de Conciliao e Julgamento, para onde deveriam ser encaminhadas as reclamaes. Sem ela, os sindicatos ficariam vulnerveis, presas fceis da polcia. Ele estava mais certo que o Partido. Em maio de 1957 se instalou a Junta. Fui expulso do Partido em setembro de 1957.

    Por que o senhor foi expulso?

    Os trabalhadores queriam ir para um lado e o Partido para outro.

    O senhor poderia explicar melhor isso? O que os trabalhadores queriam e o que queria o PCB?

    Os trabalhadores queriam as leis trabalhistas. Os sindicatos foram fundados para implantar as leis trabalhistas para o homem do campo, e isso era um compromisso nosso com eles. Mas o Partido, no sei se todo ou em parte, no entendeu ou no quis entender dessa forma. Eles queriam que eu levasse ao homem do campo o seu material que pregava a derrubada do governo. O Partido tinha lanado em 1950 o Manifesto de Agosto, que pregava a derrubada do Governo, a diviso das fazendas, etc. Isso foi reafirmado em 1954. Era estatutrio. O programa era claramente de derrubada do governo. Eu fui expulso por essa razo. Isso prejudicava todos, no apenas o campons. No se podia abrir a boca que diziam esse a quer derrubar o governo.

    O material do Partido dessa poca orienta no sentido de se estabelecer leis de proteo ao trabalhador rural, como frias, salrio mnimo, descanso semanal remunerado, etc. Eles no aplicavam isso?

    Bem, eu no sei... Se o jornal falava uma coisa, depois os lderes do PCB

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    mudavam tudo. O Partido me convidou para fundar o sindicato para trazer as leis trabalhistas. Isso foi explicado aos trabalhadores rurais durante a fundao. Depois, queriam que eu fosse ao campo levar o material do Partido favorvel derrubada do governo.

    Os camponeses no aceitavam essa orientao?

    Claramente, no aceitavam. Eles no tinham condies para isso. Eu procurava inicialmente seguir a orientao e dizia a eles que os fazendeiros no pagavam, abusavam deles, a polcia prendia, e que s mesmo fazendo uma revoluo iria resolver aquele estado de coisas. Um campons disse para mim: Olha, Ciavatta, se ns no temos fora para obrigar os fazendeiros a pagar os salrios e cumprir as leis trabalhistas, para derrubar o governo vai ser ainda mais difcil. Da eu percebi que o Partido estava errado.

    Eu levantei essa questo dentro do Partido. Um dirigente me criticou dizendo que eu queria fazer coisas paliativas, como a aplicao de leis trabalhistas. Eu expliquei que tnhamos discutido essa questo com os camponeses e que ns havamos concordado que o importante era a luta pela aplicao das leis trabalhistas. Disse-lhe tambm para ele mesmo distribuir o material de derrubada do governo, porque eu iria distribuir os boletins para garantir os salrios. Dessa forma eu estava em sintonia com os trabalhadores rurais. O sindicato era dos trabalhadores, e no do Partido. Tinha um assistente do Partido no sindicato, o Feijo, que me apoiava.

    Essa discusso durou dois anos, mas eu aprendi. Eu cheguei ao ponto de no ter mais condies de obedecer ao Partido. Eu no acatava mais a ordem de divulgar material que pregava a derrubada do governo, mesmo porque, desconfiada de mim que estava a polcia, se fosse pego com esse material eu estaria perdido.

    Como foi a sua expulso do Partido?

    Fui expulso oito dias depois de uma spera discusso com o Girotto, dirigente do Partido. Para mim foi uma batalha, fui desligado sem um tosto, devendo dois meses de aluguel. Trabalhar nas fazendas no podia mais, porque os administradores, fiscais, puxa-sacos, todos me conheciam, mandavam o empreiteiro me mandar embora. Cheguei a essa situao, e ento fui ao prefeito Gustavo Romano para arrumar servio, prometido para o ms seguinte.

    Mas o senhor foi expulso do Partido, e no do sindicato.

    O Partido e a polcia, pressionada pelos fazendeiros, queriam me tirar o sindicato. Escrevi uma carta pedindo meu afastamento do Partido. Depois de uns

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    dias veio um tira ao sindicato e me entregou uma intimao para eu comparecer polcia. J tinha sido expulso do PCB, mas ainda era presidente do sindicato. Chegando polcia o escrivo me disse que era amigo do Luciano Lepera e que admirava nossa luta. Perguntou-me h quanto tempo eu era presidente do sindicato. Respondi que ia fazer dois anos em outubro, mas era mais. O estatuto previa mandato de dois anos. Mas eu estava l porque ningum queria ficar no sindicato, pois j tinham me visto ser preso, mandado para a cadeia na calada da noite para So Paulo. Ningum queria a presidncia e, por isso, no havia disputa pelo cargo. Foi ento escrito um documento onde era colocada minha sada para a admisso de uma nova diretoria. Com aquele documento a polcia acalmou os fazendeiros.

    Os camponeses vinham ao sindicato?

    Sim. Eles vinham saber a orientao, se havia leis trabalhistas, vinham para pegar os boletins para distribu-los nas fazendas. A perseguio era terrvel.

    O senhor visitava as fazendas?

    Visitava noite.

    Durante o dia era mais difcil?

    Sim. Alm do mais, durante o dia no encontrava ningum porque estavam trabalhando. Ia s fazendas durante a noite e nem sabia direito onde eu estava. Havia desconfiana de estarem ocorrendo assassinatos. Quando pediam para ir a uma fazenda eu no dizia quando ia, chegava de surpresa. Em muitas fazendas eu sa escoltado - os camponeses me levavam para fora porque temiam um assassinato. Uma vez na fazenda So Pedro eu quis sair noite mas eles no deixaram. Alertaram-se de que havia jagunos querendo me dar uma surra. Sa s 5:30h na companhia deles, depois de tomar caf com po de broa e fui pegar um nibus para Sertozinho.

    J existiam muitos trabalhadores que moravam nas cidades? Era mais difcil estabelecer contatos com esses trabalhadores?

    Muitos j moravam nas cidades e o contato com eles era mais difcil. Eles vinham s fazendas de caminho e sempre procuravam tambm servios nas cidades. Eles pouco vinham aos sindicatos, contrariamente queles que moravam ainda nas fazendas.

    Era freqente a expulso de trabalhadores das fazendas?

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    As expulses de trabalhadores das fazendas se tornaram mais freqentes quando as leis trabalhistas comearam a se impor, porque os fazendeiros precisavam reformar as casas e cumprir uma srie de exigncias trabalhistas. O Estatuto do Trabalhador Rural acelerou as expulses. Em vez de cumprir as obrigaes eles preferiam dispensar aqueles trabalhadores e contratar bias-frias. Foi o que eles fizeram.

    Quer dizer que as leis trabalhistas, em certo sentido, prejudicaram os trabalhadores agrcolas?

    Era uma luta, no era? Durante a luta tem todas essas conseqncias. De qualquer jeito acho que foi vlido. O campons no tinha mesmo futuro. Ele vinha para a cidade e o filho poderia trabalhar numa indstria, tirava carteira de motorista, aprendia servio de pedreiro, mecnico, podia melhorar sua vida. Na cidade tinha aluguel para pagar, mas com famlia grande sempre melhorava a situao.

    Famlias grandes viviam melhor do que as pequenas?

    Sem dvida.

    Quais eram os principais tipos de trabalhador rural desta regio?

    O colono do caf tinha uma caderneta expedida pelo Departamento Estadual do Trabalho e nela figuravam algumas leis de Getlio Vargas que o fazendeiro era obrigado a cumprir, como aquela que diz que o trabalhador na roa tem o direito de plantar alimento para a manuteno de sua famlia. Antes, para segurar o trabalhador, os fazendeiros davam um pedao de terra para o roado. Depois, quando veio a cana-de-acar, comearam a derrubar tudo. A cana, quando substituiu o caf, botou gente para fora e mandou muitas pessoas para as cidades. O colono do caf pegava por mil ps de caf. A cada mil ps ele recebia uma quantia. Era mais ou menos 4 mil ps de caf para cada trabalhador. Ele tinha que dar conta daquela quantia e depois fazer a panha do caf. Todos os colonos de uma fazenda juntavam-se para apanhar caf. Quando acabava a colheita eles voltavam a tratar dos seus 4 mil ps. Uma famlia com 2 ou 3 homens tratava de 10 a 12 mil ps de caf. Em um alqueire paulista, me parece, d 2.200 ps. Cada colono tratava mais ou menos de 2 alqueires.

    Os colonos do caf tinham direito a um roado?

    Sim. Tinha fazenda que dava, a cada quantidade de caf tratado, um pedao

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    de terra para plantar. Depois, quando comeou a vir a cana, tudo se acabou. Teve terra de caf que virou pasto.

    Camarada aquele que trabalha por dia e recebe por ms de acordo com a quantidade de dias que trabalha. O descanso semanal no era remunerado. Trabalhava em qualquer servio: capinagem, fazer cerca, derrubar mato, plantao... Os camaradas eram os que mais vinham aos sindicatos, mais do que os colonos que tambm freqentavam os sindicatos. Quando o colono ia trabalhar em outra fazenda como camarada, ele recebia menos que os outros camaradas, pois os fazendeiros diziam que ele j era colono em outra fazenda. Eles abusavam.

    Empreiteiro era aquele que contratava homens para fazerem um determinado servio como apanhar caf, quebrar milho, plantar milho, etc. Muitos trabalhavam por empreitada. O trabalho era tambm por mil ps de caf, mas eles no tinham contrato para ficarem na fazenda o ano inteiro. Era s por uma determinada poca. O colono era fixo e quem trabalhava por empreitada podia mudar, ir embora no final do ms.

    E aqueles que no recebiam em dinheiro?

    Os arrendatrios formavam um outro grupo de trabalhadores. Havia muita encrenca entre eles. Arrendavam a terra, aravam, faziam a plantao e, depois de fazer todo aquele servio mais bruto, deixando a terra melhor, vinham os fazendeiros (no todos) e soltavam as vacas no meio da roa para o sujeito ir embora. Isso realmente acontecia. Ele tinha todo aquele trabalho e, quando ia receber o benefcio, era expulso. O arrendatrio vendia seus produtos e pagava o dono da terra em dinheiro. Quem pagava em espcie eram os parceiros, meeiros e terceiros. O sindicato dava muito apoio tambm aos no-assalariados. Os meeiros trabalhavam na terra de ameia, mas as fazendas tambm os chamavam para trabalhar de camarada, por dia. Eles faziam de tudo.

    Houve represso por aqui em 1964?

    Muito pouco. Eu apanhei. Fui acusado como o comunista mais perigoso por aqui. Fui o primeiro a ser preso. Seis horas da manh a polcia estava me procurando na praa. Andavam feito cachorro louco para me pegar. Eu lerdeei muito. Escutei no rdio que o Joo Goulart tinha fugido, mas achei que, por estar desligado do Partido, eles no me procurariam. Mas estava enganado e eles vieram mesmo. Diziam que eu era um comunista covarde, porque tinha medo

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    de falar qual era a minha ideologia, e a desciam o cacete. No era de quebrar clavcula, mas doa. Fui interrogado mais de duas horas e meia. A polcia no entrou nas fazendas. Nessa altura, o movimento campons estava muito fraco.

    E a Igreja, como atuava?

    Os sindicatos se consolidaram aqui porque certa linha da Igreja assumiu o comando atravs do padre Celso. A Igreja assumiu o lugar do Partido de maneira geral e se tornou mais importante que ele. O sindicato de Batatais, por exemplo, foi reconhecido quando estava o Antnio Sampaio, da linha da Igreja, na sua direo. Sem a Igreja era muito difcil ter sindicato, embora as leis trabalhistas, de certa forma, j penetrassem no campo. A Igreja atuava por conta prpria. Ela fundava o sindicato e levava os direitos at os trabalhadores. Ela fazia isso melhor do que o Partido.

    O que era mais forte para o campons, o boletim ou a reforma agrria?

    O boletim! A bandeira da reforma agrria era importante para o Partido, no para os camponeses. De qualquer forma temos que reconhecer que o Partido estava lutando, tanto que as cadeias estavam cheias deles, e o cemitrio tambm... A reforma agrria no penetrava nas massas. Nunca penetrou porque uma coisa que depende de lei e nunca se fez uma lei para repartir das terras abandonadas.

    Nos congressos e encontros camponeses o tema da reforma agrria estava sempre presente.

    Quem participava dos congressos e encontros camponeses eram os sindicalistas, no os camponeses que moravam nas fazendas, porque eles no tinham condies para isso. Quem participava eram os sindicalistas e os operrios, mais algum campons proprietrio de um pequeno stio. O resto no participava.

    Em 1954 eu fui a uma reunio em So Paulo para discutir essas questes. O sindicato de Ribeiro Preto no havia sido fundado. Discutia-se o problema da terra, a reforma agrria... No fim acabou em lei trabalhista, porque o povo no tinha fora para outra coisa. Pois o campons no me falou ns no temos fora para obrigar o fazendeiro a pagar nossos salrios, que dir tomar a fazenda dele? prefervel uma rolinha na mo do que cinqenta voando. O Partido queria cinqenta voando e nenhuma na mo. Agora os comunistas esto sozinhos, cantando o meu boi morreu...

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    O senhor est aposentado? Quantos anos tem?

    Moro em Ribeiro Preto, estou aposentado e vou fazer 79 anos. Tenho quatro filhos. Uma filha morreu durante a luta em 1956.

    Luiz Flvio Carvalho Costa professor da UFRRJ/CPDA.

    Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 89-102.