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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 33, n. 2, 2602 (2011) www.sbfisica.org.br Esferas de Arist´oteles, c´ ırculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem (Aristotle’s spheres, Ptolemy’s circles and Duhem’s instrumentalism) Humberto Antonio de Barros-Pereira 1 Graduando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciˆ encias Humanas, Universidade de S˜ao Paulo, S˜ao Paulo, SP, Brasil Recebido em 17/8/2010; Aceito em 4/1/2011; Publicado em 8/7/2011 Este artigo apresenta um comparativo das cosmologias aristot´ elica e ptolomaica, cujos modelos s˜ao detalha- damente descritos, e a concep¸c˜ ao instrumentalista de Duhem sobre Ptolomeu para determinar a existˆ encia ou ao do conflito epistemol´ogico entre realismo e instrumentalismo na astronomia grega. Palavras-chave: hist´ oria da ciˆ encia, filosofia da ciˆ encia, astronomia, cosmologia. This paper present a comparative between the Aristotle’s and Ptolemy’s cosmology, whose planetary models are shown in detail, and the Duhem’s instrumentalism conception about Ptolemy to establish the existence or not of the epistemological conflict between realism and instrumentalism in greek astronomy. Keywords: history of science, philosophy of science, astronomy, cosmology. 1. Introdu¸c˜ ao Acaracteriza¸c˜ ao de Ptolomeu como instrumentalista, emoposi¸c˜ ao ao realismo de Arist´oteles, ´ e amplamente empregada devido a Duhem, um dos grandes pioneiros da Hist´oria da Ciˆ encia, que, em S´ozientaphain´omena. Essai sur la notion de th´ eorie physique de Platon `a Ga- lil´ ee (1908) [1], viu no slogan “salvarosfenˆomenos”, ou “salvar as aparˆ encias”, amotiva¸c˜ ao dos antigos e medi- evais astrˆonomos na busca da explica¸c˜ aocinem´aticados fenˆomenos celestes, por meio de movimentos circulares e uniformes, independente da realidade. Atualmente, ´ e de conhecimento que a paternidade deste programa de estudo ´ e, possivelmente, de Posidˆ onio [2] e n˜ao de Plat˜ao como foi estabelecido no texto de Simpl´ ıcio em seu Coment´ario do De caelo de Arist´oteles : Plat˜ ao admite, em princ´ ıpio, que os cor- pos celestes se movem com um movimento circular, uniforme e constantemente regu- lar; ele coloca ent˜ ao este problema aos ma- tem´ aticos: quais s˜ao os movimentos circula- res, uniformes e perfeitamente regulares que conv´ em tomar como hip´otese, a fim de po- der salvar as aparˆ encias apresentadas pelos planetas? [1, p. 7] Para analisar a concep¸c˜ ao de Duhem sobre a astro- nomia grega – onde ele vˆ e, como express˜ao do conflito entre formas epistemol´ogicas contr´ arias: realismo e ins- trumentalismo(designa¸c˜ oes estas n˜ao empregadas por ele), que havia desde a antiguidade duas distintas con- cep¸c˜ oes nos estudos astronˆomicos: a astronomia f´ ısica, que objetivava descrever o universo de modo realista, e a astronomia matem´atica, que descrevia os movimen- tos celestes em termos geom´ etricos, cabendo, assim, ao astrˆ onomo a tarefa de salvar os fenˆomenos [2]. De um lado, estava a astronomia; geˆome- tras como Eudoxos e Callipos combinavam teorias matem´aticas por meio das quais po- diam ser descritos e previstos os movimen- tos celestes, enquanto que os observadores julgavam o grau de concordˆancia entre as previs˜oes do c´alculo e os fenˆomenos natu- rais. De outro lado, estava a f´ ısica pro- priamente dita ou, para falar a linguagem moderna, a Cosmologia celeste; pensadores como Plat˜ao e Arist´oteles meditavam sobre a natureza dos astros e sobre a causa de seus movimentos. [1, p. 104] ´ E apresentado, abaixo, um comparativo da cosmo- logia aristot´ elica e da ptolomaica, cujos modelos pla- net´ arios deste s˜ao pormenorizadamente descritos, se- guidodaan´aliseepistemol´ogicacomcaracteriza¸c˜ ao do slogan “Salvar os Fenˆ omenos” e da an´alise do instru- mentalismo de Duhem. 1 E-mail: [email protected]. Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

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  • Revista Brasileira de Ensino de F́ısica, v. 33, n. 2, 2602 (2011)www.sbfisica.org.br

    Esferas de Aristóteles, ćırculos de Ptolomeu

    e instrumentalismo de Duhem(Aristotle’s spheres, Ptolemy’s circles and Duhem’s instrumentalism)

    Humberto Antonio de Barros-Pereira1

    Graduando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, BrasilRecebido em 17/8/2010; Aceito em 4/1/2011; Publicado em 8/7/2011

    Este artigo apresenta um comparativo das cosmologias aristotélica e ptolomaica, cujos modelos são detalha-damente descritos, e a concepção instrumentalista de Duhem sobre Ptolomeu para determinar a existência ounão do conflito epistemológico entre realismo e instrumentalismo na astronomia grega.Palavras-chave: história da ciência, filosofia da ciência, astronomia, cosmologia.

    This paper present a comparative between the Aristotle’s and Ptolemy’s cosmology, whose planetary modelsare shown in detail, and the Duhem’s instrumentalism conception about Ptolemy to establish the existence ornot of the epistemological conflict between realism and instrumentalism in greek astronomy.Keywords: history of science, philosophy of science, astronomy, cosmology.

    1. Introdução

    A caracterização de Ptolomeu como instrumentalista,em oposição ao realismo de Aristóteles, é amplamenteempregada devido a Duhem, um dos grandes pioneirosda História da Ciência, que, em Sózien ta phainómena.Essai sur la notion de théorie physique de Platon à Ga-lilée (1908) [1], viu no slogan “salvar os fenômenos”, ou“salvar as aparências”, a motivação dos antigos e medi-evais astrônomos na busca da explicação cinemática dosfenômenos celestes, por meio de movimentos circularese uniformes, independente da realidade. Atualmente,é de conhecimento que a paternidade deste programade estudo é, possivelmente, de Posidônio [2] e não dePlatão como foi estabelecido no texto de Simpĺıcio emseu Comentário do De caelo de Aristóteles:

    Platão admite, em prinćıpio, que os cor-pos celestes se movem com um movimentocircular, uniforme e constantemente regu-lar; ele coloca então este problema aos ma-temáticos: quais são os movimentos circula-res, uniformes e perfeitamente regulares queconvém tomar como hipótese, a fim de po-der salvar as aparências apresentadas pelosplanetas? [1, p. 7]

    Para analisar a concepção de Duhem sobre a astro-nomia grega – onde ele vê, como expressão do conflito

    entre formas epistemológicas contrárias: realismo e ins-trumentalismo (designações estas não empregadas porele), que havia desde a antiguidade duas distintas con-cepções nos estudos astronômicos: a astronomia f́ısica,que objetivava descrever o universo de modo realista, ea astronomia matemática, que descrevia os movimen-tos celestes em termos geométricos, cabendo, assim, aoastrônomo a tarefa de salvar os fenômenos [2].

    De um lado, estava a astronomia; geôme-tras como Eudoxos e Callipos combinavamteorias matemáticas por meio das quais po-diam ser descritos e previstos os movimen-tos celestes, enquanto que os observadoresjulgavam o grau de concordância entre asprevisões do cálculo e os fenômenos natu-rais. De outro lado, estava a f́ısica pro-priamente dita ou, para falar a linguagemmoderna, a Cosmologia celeste; pensadorescomo Platão e Aristóteles meditavam sobrea natureza dos astros e sobre a causa de seusmovimentos. [1, p. 104]

    É apresentado, abaixo, um comparativo da cosmo-logia aristotélica e da ptolomaica, cujos modelos pla-netários deste são pormenorizadamente descritos, se-guido da análise epistemológica com caracterização doslogan “Salvar os Fenômenos” e da análise do instru-mentalismo de Duhem.

    1E-mail: [email protected].

    Copyright by the Sociedade Brasileira de F́ısica. Printed in Brazil.

  • 2602-2 Barros-Pereira

    2. Astronomia grega

    A história da astronomia grega pode ser subdivididaem quatro peŕıodos: o primitivo, cuja caracterizaçãoé dificultada pela existência somente de fragmentos detextos, o da confecção de calendários a partir de ob-servações cada vez mais precisas, o do desenvolvimentode um modelo esférico do cosmos (Platão, Eudoxos,Calipo e Aristóteles); e o do desenvolvido após a assi-milação da astronomia babilônica, de sistemáticas ob-servações e acuradas previsões de fenômenos lunares eplanetários devido ao seu caráter astrológico, cujos es-quemas aritméticos foram substitúıdos por elaboradosmodelos cinemáticos geométricos pelos gregos: Hipar-cos e Ptolomeu.

    Aristóteles desenvolve todo um corpo filosófico ba-seado na percepção, nos sentidos, ao modificar o sen-tido de phýsis, que deixa de significar a totalidade doser (o ser e o não-ser, o corpóreo e o não corpóreo)para referir-se só ao tanǵıvel, pois a essência das coi-sas, segundo ele, esta nas próprias coisas. Portanto, ocosmos aristotélico, apresentado no De caelo [3], é umtodo filosófico, sendo que “o Todo é necessariamente ecompletamente perfeito” [3, p. 44]. Embora não sendoastrônomo, integra as observações e as melhores teoriasconhecidas à sua filosofia f́ısica. Assim, ao descrevero cosmos, adota o modelo geométrico de esferas motri-zes homocêntricas heteroaxiais de Eudoxos e de Calipo,transformando os constructos geométricos [4] em esfe-ras corpóreas constitúıdas do elemento éter, ou seja,transforma objetos conceituais em reais, concretos.

    Aristóteles demonstra, partindo de premissas toma-das a priori como verdadeiras, a existência e as pro-priedades do quinto elemento, o éter, diferente dos ele-mentos: terra, ar, água e fogo.

    Todo movimento com respeito ao lugar, quechamamos translação, tem de ser retiĺıneo,circular ou mescla de ambos: estes dois, comefeito, são os únicos simples. A razão é quesó estas magnitudes são simples, a saber, aretiĺınea e a circular. Circular, pois é o mo-vimento em torno ao centro, e retiĺıneo, oascendente e o descendente. E denomino as-cendente o que se distancia do centro, e des-cendente o que se aproxima do centro. Demodo que, necessariamente, toda translaçãosempre ocorrerá desde o centro, para o cen-tro ou em torno ao centro. (...)

    Dado que existe o movimento simples, que éo movimento circular, (...) é necessário quehaja um corpo simples que lhe corresponda,de acordo com sua própria natureza. (...)

    O movimento circular tem de ser necessari-

    amente primário. Pois o perfeito é anteriorpor natureza ao imperfeito, e o ćırculo estaentre as coisas perfeitas. (...) Por conse-guinte, e posto que o movimento primárioseja próprio de um corpo primário por na-tureza, o movimento em ćırculo é anteriorpor natureza ao retiĺıneo. (...)

    A partir disto, é evidente, então, que exista,por natureza, alguma outra entidade cor-poral diferente das formadas aqui (os ele-mentos - terra, água, ar e fogo - têm mo-vimento retiĺıneo), mais divina e anterior atodas elas. [3, p. 44-49]

    Ainda:

    O corpo que se desloca em ćırculo é im-posśıvel que possua gravidade ou leveza,pois nem por natureza nem de maneira an-tinatural cabe a ele mover-se para o centroou afastar-se do centro. (...)

    Igualmente razoável é supor também acercade que ele não é gerado e é incorrupt́ıvel,não suscet́ıvel de aumento nem de alteração.(...)

    Como não é suscet́ıvel de aumento nem dedestruição, pelo mesmo racioćınio temos desupor que é também inalterável. (...)

    É evidente que o imortal seja envasado peloimortal, sendo imposśıvel que seja de outromodo. Logo se existe algo divino, como éo caso, também, é correto o que se acabade expor. (...) Por isso, considerando que oprimeiro corpo é distinto da terra, do fogo,do ar e da água, chamaremos de éter ao lu-gar mais excelso, sendo essa denominaçãodada a partir do fato de deslocar-se sempre.[3, p. 44-57]

    Continuando com a caracterização espacial e tem-poral do cosmos, Aristóteles descreve o cosmos comofinito - “não existe em absoluto nenhum corpo fora docéu” [3, p. 73], único e eterno - “não somente único,sendo que é imposśıvel que se formem vários, e que éeterno, por ser indestrut́ıvel e não gerado” [3, p. 83];delimitado - “chamamos céu, em um sentido, a enti-dade do orbe extremo do universo, ou ao corpo que seencontra no orbe extremo do universo” [3, p. 85] e como“exteriormente não há lugar, nem vazio e nem tempo”[3, p. 87], o cosmos “abraça todo o tempo e toda suainfinitude é sua duração” [3, p. 88].

    Prosseguindo, agora com enfoque cosmológico,Aristóteles dá forma esférica ao cosmos e o provê derotação, e, como seu cosmos é carente de vazio, ca-racteriza, também, como esféricas as camadas etéreas2.

    2Para melhor entendimento do cosmos aristotélico, o rótulo “esferas cristalinas”, criado ao final da Idade Média em referência aosorbes etéreos, não é empregado, pois, como exposto, o éter transcende a imaginação humana, capacidade esta que só representa objetossegundo qualidades dadas à mente através dos sentidos.

  • Esferas de Aristóteles, ćırculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem 2602-3

    Procedendo a distinção entre supralunar e sublunar,descreve os lugares naturais dos elementos sublunares(terra, água, ar e fogo) como esféricos e os ordena noespaço: “a água está em torno da terra, o ar em tornoda água e o fogo em torno do ar” [3, p. 121].

    É necessário que o céu tenha forma cir-cular: pois esta figura é a mais adequada àdivindade e a primeira por natureza. [3, p.118]

    E porque a primeira figura é própria docorpo primeiro, e o corpo primeiro é o que seencontra no primeiro orbe, aquele que giracom movimento circular será esférico. Etambém o imediatamente cont́ıguo a aquele:pois o cont́ıguo ao esférico é esférico. Eigualmente os corpos situados para o cen-tro destes: pois os corpos envoltos por umesférico e em contato com ele hão de serpor força totalmente esféricos; e os situadosabaixo da esfera dos planetas estão em con-tato com a esfera acima. De modo que cadacamada será esférica: pois todos os corposestão em contato e são cont́ıguos com as es-feras. [3, p. 119]

    Os astros, por sua vez, são condensações esféricasdo éter das esferas às quais pertencem, e, por estaremfixos a elas, se deslocam devido ao movimento de suasrespectivas esferas.

    O mais razoável e consequente com o ex-posto é consideram cada um dos astroscomo constitúıdo por aquele corpo dentrodo qual se deslocam. [3, p. 129]

    Cada um dos < astros > se desloca com arotação de sua esfera. [3, p. 130]

    Só cabe que se movam as esferas e que osastros permaneçam quietos e se desloquempor estarem fixos às esferas. [3, p. 132]

    E quanto à figura de cada um dos astros, omais razoável é considerá-la esférica. [3, p.138]

    Ao contrário da Terra que esta imóvel no centro docosmos, o movimento das esferas que contêm os astros éresultante da interação do movimento de outras esferas,exceto a esfera das estrelas que só possui um movimentoregular.

    O ato da divindade é a imortalidade, istoé, a vida eterna. De modo que a divindadeterá necessariamente movimento eterno. E,posto que o céu seja assim (pois é um corpodivino), tem, por ele mesmo, corpo circular

    que se move sempre em ćırculo conforme suanatureza. [3, p. 114]

    A cerca de seu movimento depois do quefoi dito, cabe expor que é uniforme e nãoirregular. Digo isto do primeiro céu e daprimeira translação: pois nos inferiores secombinam com mais translações para pro-duzir uma só. [3, p. 124]

    O máximo bem de todas as coisas é alcançaraquele fim primeiro; sendo, sempre melhorquanto mais próximo se está do bem su-premo. [3, p. 142]

    É, precisamente, por isso que a Terranão se move em absoluto e os astrospróximos a ela apresentam poucos movi-mentos: pois não encontram o bem último,sendo que só até certo ponto podem al-cançar o prinćıpio mais divino. O primeirocéu , ao contrário, alcança-o com um só movimento. Os astros situa-dos entre o primeiro céu e os últimos con-seguem, certamente, por meio de múltiplosmovimentos. [3, p. 143]

    No Meteorológicos [5], Aristóteles dá como causados meteoros, da aurora boreal, dos cometas e da ViaLáctea o movimento das esferas etéreas ao ser transmi-tido ao mundo sublunar.

    O esta necessariamenteem contato imediato com as transações su-periores, de modo que toda sua potênciaesta governada desde lá: com efeito, aquelede onde procede o prinćıpio do movimentopara todas as coisas tem de ser consideradocomo a causa primeira. [5, p. 247]

    Ao deslocar-se em ćırculo o primeiro ele-mento e os corpos que estão nele, a parteimediatamente cont́ıgua do mundo sublunar ao dissolver-se porefeito do movimento, se inflama e produz ocalor. [5, p. 253]

    ...quando é movido pela revolução dos céusse inflama. [5, p. 259]

    Mas é no Metaf́ısica [6] que, tendo como base os mo-delos astronômicos de Eudoxos e de Calipo, Aristótelesdescreve o movimento dos astros.

    Mas, qual é o número de estes movimen-tos é o que devemos per-guntar a aquela das ciências matemáticasque mais se aproxima da filosofia; querodizer, à astronomia; porque o objeto daciência astronômica é uma essência, é certo,pois as outras ciências matemáticas não têmpor objeto nenhuma essência real, como aaritmética e a geometria. [6, p. 270]

  • 2602-4 Barros-Pereira

    A descrição dos movimentos das esferas etéreas jásuscitou muita polêmica por ser dúbia ao entendimentosobre: qual composição dos modelos de Eudoxos e deCalipo é assumida por Aristóteles, a que astros sãoatribúıdas as esferas reagentes, quais os movimentosmencionados que o Sol e a Lua não devem possuir; e,por fim, o ponto de maior dificuldade, a frase: “nãohaverá no todo mais de quarenta e sete esferas” [6, p.273].

    Como a nova edição das obras completas deAristóteles (Revised Oxford Translation) [7] adotacomo valor, não os quarenta a sete, mas, sim, quarentae nove; valor este demonstrado por Sosigene que expli-cou tal erro como sendo um eqúıvoco quando de suaescritura [8]. Portanto, Aristóteles faz uso de seis esfe-ras do sistema de Eudoxos, que descrevem o movimentoda Lua e do Sol, e vinte e três do de Calipo, relativo aosplanetas; e acrescenta, exceto para a Lua, esferas com-pensadoras (Tabela 1), restituintes de movimento, pois,devido às esferas serem concêntricas e o movimento sertransmito da periferia para o centro, acarretando às in-ternas serem mais rápidas, é necessário a existência deesferas intercaladas, com movimento inverso, que corri-jam esta influência, sendo a quantidade destas esferaspara cada astro igual a do astro menos uma.

    Tabela 1 - Número de esferas celestes dos sistemas de Eudoxos,Calipo e Aristóteles.

    Eudoxos Calipo restituintes AristótelesLua 3 5 – 3Sol 3 5 2 5Mercúrio 4 5 4 9Vênus 4 5 4 9Marte 4 5 4 9Júpiter 4 4 3 7Saturno 4 4 3 7

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    De modo geral, o De caelo apresenta uma explicaçãonaturalista da causa do movimento das esferas etéreas,ou seja, giram em ćırculo por sua própria naturezaintŕınseca: “De todos os corpos e magnitudes naturaisdizemos que são móveis por si em relação ao lugar” [3,p. 44]; Por outro lado, no F́ısica [9] a causa do movi-mento é explicada pela influência, direta ou indireta, deum motor imóvel distinto dos corpos: “(...) se movem asi mesmos, embora estando fora deles a causa primeira:pois o motor é outra coisa distinta” [9, p.:417]. Mas éno Metaf́ısica, onde ocorre a plena integração da filo-sofia aristotélica, que explica o primeiro motor, causado movimento da esfera das estrelas, cujo movimento étransmitido às demais.

    Posto que o que é movido é movido neces-sariamente por algo, que o primeiro motor éimóvel em sua essência, e que o movimentoeterno é imposto por um ser eterno, e que

    o movimento único por um ser único (...) épreciso que o ser que imprime cada um des-ses movimentos seja uma essência imóvel eeterna. [6, p. 270]

    O ser imóvel move como objeto do amor, eo que é móvel imprime o movimento a todosos demais. [6, p. 267]

    Ptolomeu chega à conclusão, partindo de fatos ob-serváveis, que o céu e a Terra são esféricos, estandoesta imóvel no centro geométrico do céu; e admite se-rem os corpos celestes esferas sólidas homogêneas com-postas de éter que se movem circular e regularmente,pois, “naturalmente, os matemáticos que faziam astro-nomia estavam submetidos a certos prinćıpios f́ısicosque não eram de sua competência questioná-los. Es-tes prinćıpios tão só delimitavam o marco no qual sedesenvolvia a investigação astronômica” [10, p. 19n3].

    No ińıcio do livro Sintaxe Mathematica, mais conhe-cido como Almagesto [11], Ptolomeu apresenta a divisãodo saber teórico, de tradição aristotélica, em três ramos:o teológico, que se preocupa com as coisas imateriais,o f́ısico, que trata das coisas sujeitas à geração e a cor-rupção; e o matemático, que investiga a natureza dasformas e dos movimentos que possuem os corpos ma-teriais. Sendo este, do qual faz parte a astronomia aose ocupar das coisas divinas e celestes ao investigar oque não sofre mudança, intermediário entre os outrosramos, pois participa de qualidades que os outros pos-suem.

    Para descrever os movimentos dos astros celestes,desenvolve modelos geométricos, detalhadamente apre-sentados abaixo, cuja atual compreensão é dificultadapelo uso numérico de base sexagesimal 2 e pela diferençaexistente entre as modernas funções trigonométricas eo uso de cordas da antiga trigonometria plana empre-gada.

    Pode-se compreender perfeitamente o Prin-cipia sem ter um excessivo conhecimento daastronomia anterior, mas não se pode ler umsó caṕıtulo de Copérnico ou Kepler sem co-nhecimento do Almagesto. [12, p. 3]

    2.1. Modelos Ptolomaicos

    2.1.1. Sol

    Ptolomeu parte da distinção, estabelecida por Hipar-cos, entre o ano sideral e o tropical, que acarretou àtradição helênica a ruptura com a tradição babilônicaque identificava o “ano solar” com o ano sideral, ou seja,na crença do retorno do Sol à mesma posição em relaçãoàs estrelas. A determinação feita por Hiparcos do anotropical, que é o intervalo de tempo para o retorno doSol ao mesmo solst́ıcio ou equinócio, em 365;14,483 dias

    3Valores expressos no sistema sexagesimal podem ser transformados ao sistema decimal, e vice versa, conforme exemplo: 51,7;32,49↔ 51.601 +7.600 +32.60 −1 +49.60 −2.

  • Esferas de Aristóteles, ćırculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem 2602-5

    foi assumida por Ptolomeu que, assim, obteve a veloci-dade média4 do Sol. Conforme a terminologia empre-gada na época, o sol médio era considerado um corpoideal que se deslocava na ecĺıptica à velocidade médiade 0;59,08,17,13,12,31

    ◦/d em relação ao observador ter-restre, e coincidia com o Sol verdadeiro no apogeu e noperigeu.

    Para descrever a aparente irregularidade ou ano-malia do movimento solar, adota, assim como Hipar-cos, dois arranjos geométricos: o da órbita excêntrica,cujo centro esta alocado sobre a linha apsidal, a umadistância fixa do observador, denominada excentrici-dade (e), e o do epiciclo, cujo centro da deferente estáfixado no observador e o centro do epiciclo percorrea deferente; tanto a deferente como a excêntrica têmo mesmo sentido dos signos do zod́ıaco, já o epicicloé retrogrado em relação a eles. Embora a invençãodo modelo do epiciclo seja atribúıda, por Ptolomeu, aApolônio, “hoje em dia não há dúvida de que tantoo modelo do excêntrico como o do epiciclo eram co-nhecidos muito antes de Apolônio, mas não é posśıvelprecisar o desenvolvimento anterior” [11, p. 391]. “De-vido ao Almagesto, sabemos que este foi o primeiro ademonstrar a equivalência” [13, p. 135]. Ptolomeu,também, demonstra que ambos os arranjos são equi-valentes quando a excentricidade (e) for igual ao raiodo epiciclo (r) e as anomalias médias da excêntrica(km) e do epiciclo (αm) tiverem o mesmo valor absoluto(Fig. 1).

    Figura 1 - Equivalência entre os arranjos da excêntrica e dodeferente-epiciclo [14].

    Na determinação dos parâmetros do modelo solar,Ptolomeu utiliza o arranjo da excêntrica, cujo raio(R = 60) é pré-estabelecido, e os peŕıodos de 94 12 diasentre o equinócio vernal e o solst́ıcio de verão e de 92 12dias entre o solst́ıcio de verão e o equinócio de outono;obtendo o valor de 2;30 para excentricidade (e). Pto-lomeu inova ao estipular que todas as longitudes têm oponto vernal (� 0◦) como referência, calculando, assim,a longitude de 65;30◦ para o apogeu solar.

    Ptolomeu denomina o ângulo, visto pelo observa-dor, entre o sol verdadeiro e o sol médio de “equação”

    da anomalia (c) e para confeccionar a tabela de c(α)[11, p. 102] analisa o arranjo do epiciclo quando o Solocupa, para o observador, a posição perpendicular àlinha apsidal (quadratura), que ocorre quando as ano-malias médias (αm = km) são 92;23

    ◦ e 267;37◦; obtendopara a “equação” da anomalia o valor de 2;23◦, que éo seu máximo valor (Fig. 2). Como assinala Neuge-bauer: “embora Ptolomeu não prove que a velocidadede P vista de O, nesta posição, é a velocidade média,isto é, igual a velocidade de C, faz uso freqüente dessefato” [14, p. 57].

    Figura 2 - Arranjo da posição em quadratura [14].

    Finalizando o estudo do movimento solar, temos quea longitude do Sol (λS), por ser em referência ao pontovernal, é a soma da longitude da linha apsidal (λa) coma anomalia (k) (Fig. 3).

    Figura 3 - Relações entre longitudes e anomalias [14].

    2.1.2. Lua

    Movimento em longitude

    Como explicação prévia ao ińıcio do estudo da tra-jetória lunar, era de conhecimento que a órbita da Luaapresentava uma inclinação em relação à ecĺıptica es-timada em 5◦. Embora esta obliquidade seja pequena,ela é causa do movimento latitudinal da Lua. Por outrolado, quando da análise do movimento longitudinal e desua anomalia, considerado com referência à ecĺıptica,esta inclinação, por ser pequena, era negligenciada paraefeito de cálculo. Mas como o retorno em latitude nãocorresponde ao retorno em longitude era de se supor

    4Os sistemas geocêntricos ptolomaicos são baseados em geometria esférica. Logo, todas velocidades são angulares. Para evitarprolixidade, o adjetivo angular é suprimido no texto, ficando-o subentendido.

  • 2602-6 Barros-Pereira

    que o eixo dos nodos da órbita lunar com a ecĺıpticativesse movimento de rotação [11, p. 109].

    Estes fatos eram do conhecimento de Hiparcos que,embora utilizando o método de origem babilônica queenvolve o aparente diâmetro da Lua, assumido serde 1/650 da órbita da Lua, ou seja, de 0;33,14, e oraio da sombra terrestre para a distância média daLua, estimado em 2;30 raios da Lua, obteve para omovimento de rotação dos nodos o valor negativo de0;03,10,41,06,46,49

    ◦/d (Fig. 4).

    Figura 4 - Esquema de eclipse [14].

    Hiparcos também calculou o mês lunar, atualmentedenominado mês sinódico, que é o tempo que a Lua levapara voltar a ocupar a mesma posição em relação ao Sol,em 29;31,50,08,20 dias e obteve que em 251 peŕıodossinódicos há 269 ciclos de anomalia longitudinal e quepara 5.458 peŕıodos sinódicos ocorrem 5.923 ciclos lati-tudinais. Ptolomeu, partindo destes dados e sabendo avelocidade média do Sol (0;59,08,17,13,12,31

    ◦/d), cal-culou os seguintes valores:a) 389;06,23,01,24,02,30,57◦ → percurso lunar duranteum mês sinódicob) 13;10,34,58,33,30,30

    ◦/d → velocidade média diáriaem longitudec) 13;03,53,56,29,38,38

    ◦/d → velocidade média diáriaem longitude com anomalia

    (valor corrigido para 13;03,53,56,17,51,59◦/d)

    d) 13;13,45,39,40,17,19◦/d → velocidade média diária

    em respeito ao nodo(valor corrigido para 13;13,45,39,48,56,37

    ◦/d)e) 12;11,26,41,20,17,59

    ◦/d → elongação médiaA partir destes valores construiu a tabela dos movi-

    mentos em longitude média, da “equação” da anomaliae da elongação média [11, p. 114-119].

    A teoria de Hiparcos para o estudo do movimentolunar empregava o modelo do epiciclo, equivalente aoda excêntrica, e a utilização de eclipses lunares paraa determinação dos parâmetros lunares. Como Hipar-cos não eliminou a anomalia solar de seus cálculos nãoobteve sucesso. Ptolomeu, por sua vez, inicia o estudodo movimento lunar pelo estudo do movimento longitu-dinal, conhecido como 1a anomalia lunar, empregandosomente eclipses lunares, pois as longitudes solares sãosuficientemente precisas e independentes de paralaxe.

    Fazendo uso do arranjo da deferente, centrada noobservador e movendo-se no sentido dos signos, como epiciclo, movendo-se em direção contrária, e empre-gando somente três eclipses lunares encontrou valoresdo raio do epiciclo próximos a 5;15◦, sendo este valoro adotado na construção de tabelas. Da tabela de c(α)[11, p. 139] temos que a 1a anomalia lunar adquire valorabsoluto máximo de 5;1◦ para α = 96◦ e α = 264◦.

    Lua - movimento em latitudePara o estudo do movimento em latitude da órbita

    lunar, Ptolomeu assume o mesmo arranjo do movi-mento longitudinal (Fig. 5), onde o plano do epiciclocoincide com o plano da deferente, que é o plano incli-nado da órbita em relação à ecĺıptica, cuja inclinação(i= 5◦) é desprezada nos cálculos dos parâmetros domovimento longitudinal; a Terra permanece centradano eixo dos nodos, que apresenta movimento de rotaçãode - 0;03,10,41,15,26,07

    ◦/d .

    Figura 5 - Modelo lunar: movimento latitudinal [14].

    Somente baseado em dados observacionais de paresde eclipses lunares, ao contrário do método empregadopor Hiparcos que envolvia valores dif́ıceis de serem de-terminados, e empregando, em seus cálculos, a distânciaangular da Lua ao ponto mais ao norte da órbita lunar(w’), ou seja, o ponto de maior declinação da órbita,elabora a tabela β(w’), que é a declinação em funçãodo argumento para a longitude (w) para a inclinaçãoorbital fixa de 5◦ [11, p. 160] (Fig. 6).

    Figura 6 - Inclinação e declinação [14].

    Ptolomeu, assim como Hiparcos, ao analisar os da-dos acumulados de observações de eclipses, desde os

  • Esferas de Aristóteles, ćırculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem 2602-7

    babilônios, encontrou discrepâncias entre os valores es-perados e os obtidos. Seu estudo, tendo por base omodelo da 1a anomalia, mostrou que há o incrementodo tamanho do raio do epiciclo em comparação coma previsão, embora, aparentemente, esses desvios pa-recessem ser irregulares estão associados a determina-das posições de quadratura, pois nas posições em quea Lua está próxima ao apogeu ou ao perigeu os desviosou são ı́nfimos ou não ocorrem. Para resolver este pro-blema, desenvolve um modelo dependente da elongaçãosolar que ao aproximar o epiciclo do observador simulao efeito do aumento de raio do epiciclo.

    O arranjo adotado apresenta a Lua percorrendo oepiciclo, no sentido contrário ao dos signos, ao passoque o centro do epiciclo percorre a deferente no mesmosentido, sendo a elongação (η) a diferença entre o solmédio e a lua média. O centro da deferente gira envoltado observador, a uma distância de 10;19, denominadaexcentricidade (e), no sentido contrário aos signos, comdeslocamento, igual a elongação, medido a partir doeixo observador/sol médio. Ptolomeu manteve a corres-pondência com a 1a anomalia, onde o centro do epiciclo,de raio igual a 5;15, apresenta velocidade constante emrelação ao observador, e tanto na conjugação (η = 0◦)quanto na oposição (η = 180◦) a distância do centrodo epiciclo ao observador permanece igual à da 1a ano-malia (OC = R = 60); o que possibilita o cálculo doraio da deferente (MC = R – e = 49;41). Isso implicaque nas posições de quadraturas (η = 90◦ ou 270◦) adistância entre o observador e o centro do epiciclo émı́nima (OC= R-2e = 39;22) (Fig. 7).

    Figura 7 - Modelo lunar [14].

    De posse desses parâmetros, podemos notar que amenor distância entre a Lua e o observador é de 34;07(= R – 2e – r) e que a máxima é de 65;15 (= R +r) , o que leva a uma incoerência pois este grau de va-riação não condiz com a variação observada do aparentediâmetro lunar. “Ptolomeu nunca mencionou esta di-ficuldade embora não possa ter-se despercebido dela”[14, p. 88].

    A análise mais acurada, quando a Lua em octante(η = 45◦), mostra que a anomalia média (αm) é obtidaa partir do ponto que Ptolomeu convencionou chamarde “apogeu médio” do epiciclo (Ā), que é a intersecçãoexterna do epiciclo com a reta que passa pelo ponto di-ametralmente oposto ao centro da deferente em relaçãoao observador e pelo centro do epiciclo. A variaçãoda direção desta reta, que corresponde à diferença en-tre a anomalia e a anomalia média, foi denominada in-clinação do epiciclo (θ).

    2.1.3. Planetas - movimento em longitude

    Mercúrio

    Ptolomeu adota para o movimento de Mercúrio omodelo no qual o planeta (P) percorre o epiciclo nomesmo sentido que o cento do epiciclo (C) percorre adeferente, que é o mesmo sentido dos signos. O centroda deferente (N) não permanece fixo, mas move-se, emsentido contrário ao dos signos, em volta do centro doexcêntrico da deferente (M), que está localizado sobre alinha apsidal, a meia distância entre o apogeu (A) e seuponto diametralmente oposto (π). O raio da deferenteé pré-estabelecido (R = 60) e o raio do excêntrico dadeferente é igual a excentricidade (e). A velocidade docentro da deferente em relação ao centro do excêntricoda deferente é a mesma do centro do epiciclo em relaçãoao ponto equante (E), que são iguais à longitude médiasolar (Fig. 8).

    Ptolomeu inicia o estudo do movimento pela de-terminação da linha apsidal utilizando observações demáxima elongação (Tabela 2). Como as elongações dasobservações I e II são iguais, é indicativo de simetria doepiciclo com respeito à linha apsidal. Portanto, a bis-setriz do ângulo entre as duas posições de Mercúrio é alinha apsidal. Procedendo assim, encontra os pontos dalinha apsidal (A = a10◦ e A’ = �10◦). As observaçõesIII e IV vêm confirmar a definição da linha apsidal.Para estabelecer o apogeu, utiliza as observações V eVI que apresentam o centro do epiciclo próximo à linhaapsidal. Como a menor elongação indica estar o epici-clo mais distante do observador, é determinado que oapogeu ocorra em a10◦. Portanto, as observações de Ia IV distam aproximadamente 120◦ do apogeu. Comoa soma das elongações das observações I e II é maiorque o dobro da elongação da observação V, Ptolomeuconclui que o centro do epiciclo nas posições distante120◦ do apogeu está mais próximo do observador queno ponto diametralmente oposto ao apogeu.

  • 2602-8 Barros-Pereira

    Figura 8 - Modelo para Mercúrio : movimento longitudinal [14].

    Tabela 2 - Observações de máxima elongação [11, p. 296-311].

    Mercúrio Sol médioI f 1◦ e 9; 30, 15◦II ]18;30,15◦ ^10◦III _ 7◦ ^10;30◦IV d 13; 30◦ e 10◦V ]4;20◦ � 11; 30◦VI ` 20; 12◦ a 9; 15◦VII � 6; 20◦ _ 10; 05◦VIII ^20;05◦ _ 10; 20◦

    Analisando antigas observações nota um incrementona longitude de 4◦ em 400 anos, que corresponde à cons-tante de precessão, levando-o a concluir que não só alinha apsidal de Mercúrio mas as de todos planetas sãosideralmente fixas.

    Das observações VII e VIII, quando o centro do epi-ciclo está em quadratura (km = 90

    ◦), cuja projeção àlinha apsidal é o ponto equante (centro do movimentouniforme do centro do epiciclo), e das V e VI deter-mina que a distância do observador ao centro do epici-clo nesta posição é a mesma da do observador ao centro

    do epiciclo quando na posição diametralmente opostaao apogeu, que o raio do epiciclo (r) é de 22;30 e que oequante, além de ser o ponto médio de OM, é igual àexcentricidade ( 12OM = OE = EM = e = MN) que é 3.

    Por meio da análise da posição de Mercúrio emrelação às estrelas fixas, determina que a variação diáriada anomalia média (αm) é de 3;06,24,06,59,35,50

    ◦/d .

    VênusPtolomeu adota para o movimento de Vênus o ar-

    ranjo no qual o planeta (P) percorre o epiciclo nomesmo sentido que o cento do epiciclo (C) percorre a de-ferente, que têm o mesmo sentido dos signos. O centroda deferente (M), cuja distância ao observador é deno-minada de excentricidade (e), esta posicionado sobre alinha apsidal a meia distância do apogeu (A) e do peri-geu (π). O raio da deferente é estabelecido (R = 60) e avelocidade do centro do epiciclo é uniforme em relaçãoao ponto equante (E). O centro do epiciclo, ou seja oplaneta médio, coincide com o sol médio (Fig. 9).

    Figura 9 - Modelo para Vênus : movimento longitudinal.

    Empregando igual procedimento ao utilizado emMercúrio e baseado em observações de máximaelongação (Tabela 3), primeiro obtém, das observaçõesI a VI, a posiçao do apogeu (A = ]25◦) e da o peri-geu (π = b25◦). Da análise das observações V e VIdetermina que o raio do epiciclo (r) é de 43;10 e quea excentricidade (e) é igual a 1;15. Das observaçõesVII e VIII, quando o centro do epiciclo está em qua-dratura (km = 90

    ◦), cuja projeção à linha apsidal é oponto equante, estabelece que o centro da deferente é

  • Esferas de Aristóteles, ćırculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem 2602-9

    equidistante do observador e do equante.

    Tabela 3 - Observações de máxima elongação [11, p. 312-321].

    Vênus Sol médioI ]1;30◦ f 14; 15◦II ^18;30◦ � 5; 45◦III � 0; 20◦ a 17; 52◦IV e 19; 36◦ d 2; 04◦V � 10; 36◦ ]25;24◦VI d 12; 50◦ b 25; 30◦VII d 11; 55◦ e 25; 30◦VIII � 13; 50◦ e 25; 30◦

    Finalizando o estudo do movimento de Vênus, es-tabelece, por meio de análise de diferentes posições emrelação às estrelas fixas, que a variação diária da ano-malia média é de 0;36,59,25,53,11,28

    ◦/d .

    Marte, Júpiter e SaturnoPara o estudo do movimento dos planetas Marte,

    Júpiter e Saturno, Ptolomeu emprega o arranjo no qualo planeta (P) percorre o epiciclo no mesmo sentido queo cento do epiciclo (C) percorre a deferente, que têm omesmo sentido dos signos. O centro da deferente (M),cuja distância ao observador é denominada de excentri-cidade (e), está localizado sobre a linha apsidal a meiadistância do apogeu (A) e do perigeu (π). Estabeleceque a direção sol médio/observador é a mesma que pla-neta/centro do epiciclo (O ⊙// CP), que a velocidadedo centro do epiciclo é uniforme em relação ao pontoequante (E) e, como em todo o estudo dos outros corposcelestes, o raio da deferente também é pré-estabelecido(R = 60) (Fig. 10).

    O estudo do movimento desses planetas, por Pto-lomeu, embora empregue o mesmo procedimento, é re-alizado individualmente. Inicialmente, assume que ocentro da deferente coincide com o equante, para efeitode cálculo, pois a órbita planetária assim seria circu-lar e três observações bastariam para defini-la; e, deste

    modo, baseado em três observações em oposição ao solmédio, determina o dobro da excentricidade. Dandoseqüência à análise, com a separação do centro da de-ferente e do equante, define o apogeu e calcula, para aterceira observação de cada planeta, a longitude médiaem relação ao apogeu (km) e a anomalia média (αm).Prosseguindo, utiliza uma quarta observação, realizadaapós a terceira oposição, para a determinação do raiodo epiciclo (r) (Tabela 4).

    Figura 10 - Modelo para Marte, Júpiter e Saturno : movimentolongitudinal. [14].

    Tabela 4 - Observações [11, p. 324-379].

    Observações Data Posição ∆tMarte I 15 Hadrian Tybi 26-27 f 21◦II 19 Hadrian Pharmouth 6-7 � 28;50◦ 4 a. 69 d. 20 h.III 2 Antonine Epiphi 12-13 c 2;34◦ 4 a. 96 d. 1 h.IV 2 Antonine Epiphi 15-16 c 53;54◦ 3 d.Júpiter I 17 Hadrian Epiphi 1-2 b 23;11◦II 21 Hadrian Phaophi 13-14 f 7;54◦ 3 a. 106 d. 23 h.III 1 Antonine Athyr 20-21 � 14;23◦ 1 a. 3 d. 7 h.IV 2 Antonine Mesore 26-27 ^ 15;45◦ 1 a. 276 d.Saturno I 11 Hadrian Pachons 7-8 a 1;13◦II 17 Hadrin Epiphi 18 c 9;40◦ 6 a. 70 d. 22 h.III 20 Hadrian Mesore 24 d 14;14◦ 3 a. 35 d. 20 h.IV 2 Antonine Mechir 6-7 e 9;40◦ 2 a. 167 d. 8 h.

    Combinando uma série de observações, também emoposição ao sol médio, onde calcula as anomalias médiase longitudes médias em relação ao apogeu, estabelece

    a variação diária da anomalia média para cada planeta(Tabela 5).

  • 2602-10 Barros-Pereira

    Tabela 5 - Parâmetros dos planetas exteriores.

    Marte Júpiter SaturnoExcentricidade 6;33,30 2;41,30 3;34Apogeu _ 25;30◦ ` 11◦ b 23◦Longitude média (p/ apogeu) 135;39 ◦ 210;36◦ 56;30◦

    Anomalia média 171;25 ◦ 182;47◦ 174;44◦

    Raio do epiciclo 39;30 11;30 6;30

    Anomalia média (variação diária) 0;27,42◦/d 0;54,09

    ◦/d 0;57,08◦/d

    2.1.4. Planetas - movimento em latitude

    Para o movimento dos planetas em latitude, Ptolomeuestabelece dois tipos de inclinações: o angulo entre oplano da ecĺıptica e o plano do deferente (i0) e o ânguloentre o deferente e o epiciclo (i1); e, também, que oeixo de inclinação do epiciclo é sempre paralelo ao eixodos nodos do plano da deferente em relação à ecĺıptica(Fig. 11).

    Para os modelos de Saturno e de Júpiter, baseadoem dados de oposição e conjugação próximos ao apo-geu e o perigeu, determina que as inclinações sejamconstantes. Para Marte, que por apresentar raio doepiciclo e excentricidade maiores, utiliza somente ob-servações de oposição próximas ao apogeu e ao perigeu;mas, como observa Neugebauer: “este modelo não écorreto para um observador terrestre e, sim, para um

    observador ideal (O*) localizado no eixo dos nodos, poisa Terra não está posicionada no plano da deferente” [14,p. 210].

    Já para os planetas interiores, Mercúrio e Vênus,Ptolomeu conclui que as inclinações não são constantes.Ou seja, o plano da deferente tem máxima inclinação(i0max) quando o centro do epiciclo está no apogeu e noperigeu, sendo também máxima a inclinação do planodo epiciclo em relação ao da deferente (i1max); quandoo centro do epiciclo está 90◦ distante da linha apsidal oplano da deferente coincide com a ecĺıptica (i0min = 0

    ◦),sendo, nestas posições, mı́nima a inclinação ao plano doepiciclo em relação ao da deferente (i1min). Portanto,para Mercúrio e Vênus os nodos ascendentes e descen-dentes do plano da deferente em relação à ecĺıptica sãovariáveis, ao contrário dos outros planetas que são fixos(Tabela 6).

    Figura 11 - Modelos dos movimentos latitudinais dos planetas [14].

    Tabela 6 - Apogeu e inclinações da deferente e do epiciclo dos planetas . [11, p. 426-457].

    Mercúrio Vênus Marte Júpiter Saturnoi o [- 0;45◦, 0] [10◦, 0◦] 1◦ 1;24◦ 2;26◦

    i 1 [7◦, 6;15◦] [3;30◦, 2;30◦] 2;15◦ 2;30◦ 4;30◦

    Apogeu a 10◦ ] 25◦ � 0◦ ` 10◦ b 20◦

  • Esferas de Aristóteles, ćırculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem 2602-11

    2.1.5. Disposição dos astros

    Reconhecendo que a disposição dos corpos celestes éum tanto incerta, pois não observa paralaxe, adotaa seguinte distribuição: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol,Marte, Júpiter e Saturno, divergindo da empregada porPlatão e Aristóteles (Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte,Júpiter e Saturno), pois pensa ser correto o Sol dividiros planetas conforme apresentassem ou não distânciaangular com respeito a ele [11, p. 270].

    No livro Hipóteses dos Planetas [15], Ptolomeutrata a questão da distribuição dos corpos celestes deforma sistemática, embora enfatize que “precisar asdistâncias dos cinco planetas não é tão fácil como conhe-cer as distâncias das luminárias (Sol e Lua), porque es-tas distâncias são determinadas pelas medidas das com-binações de seus eclipses. Ao que diz respeito aos cincoplanetas não se pode argumentar da mesma forma, jáque não existe fenômeno algum que permita precisarcom certeza suas paralaxes” [15, p. 80]; sendo que de-termina, no Almagesto V. 13, que a maior distâncialunar é de 64;10 raios terrestres e a menor é de 33;33raios terrestres, e, no Almagesto V. 15, obtém o valorde 1210 raios terrestres para a distância média solar.Procurando determinar a verdadeira ordem, partindoda premissa da inexistência de vácuo, “pois não se podeconceber que na natureza exista um vazio ou coisas semsentido ou inúteis” [15, p. 85], o que leva à distânciamáxima da esfera do sistema de esferas de um corposer coincidente com a mı́nima da do imediatamente su-perior, Ptolomeu utiliza o critério de que a razão dasdistâncias relativas entre os distintos planetas e o cen-tro da Terra (derivada dos modelos geométricos) é iguala razão das distâncias verdadeiras – máxima e mı́nima– dos planetas à Terra (Tabela 7).

    Tabela 7 - Distâncias dos corpos celestes ao centro da Terra, emraios terrestres. [15, p. 81-84].

    DistânciasMı́nima Máxima

    Lua 33 64Mercúrio 64 166Vênus 166 1.079Sol 1.160 1.260Marte 1.260 8.820Júpiter 8.820 14.187Saturno 14.187 19.865Estrelas 19.865

    2.1.6. Cosmologia

    Embora adote a separação do cosmos em supralunare sublunar, ataca a concepção cosmológica aristotélicaao criticar o sistema heteroaxial das esferas, com pólospivotantes conectando esferas, e as esferas compensado-ras; e ao ridicularizar a noção do primeiro motor aris-totélico [15, p. 91-98]. Por sua vez, expõe que as esferasetéreas são inalteráveis, ou seja, eternas, e que apresen-tam dois tipos de movimentos: o universal e o local.

    O movimento universal, cuja natureza deveser simples, que não se mistura com nadae que de modo algum receba situaçõescontrárias. Todos os planetas são afetadospor esse movimento e se movem de lestepara oeste (...). [15, p. 77]

    O movimento local é o primeiro de todos osmovimentos (...); é a causa das alteraçõese contradições qualitativas e quantitativasexistentes nas coisas que não são eternase origina mudanças que não se produzemdo mesmo modo que nas coisas eternas,tal como nos parece em aparência, poisse produzem em seu próprio ser e em suasubstância. [15, p. 78]

    Portanto, os corpos celestes têm um movimento aoqual estão obrigados, causador da rotação diária, e ummovimento voluntário, uma força vital.

    Para melhor compreensão dos movimentos celes-tes, no Hipóteses dos Planetas, expõe todos os mode-los apresentados no Almagesto de forma simplificadacom exceção do modelo lunar, que não atinge a sofis-ticação matemática do Almagesto [16], para que “sejammais facilmente compreendidos, tanto para nós mesmosquanto para os que preferem representá-las mediante afabricação de instrumentos”[15, p. 57], onde cada esferaesta livre e solta. No sistema das esferas das estrelasfixas (Fig. 12) as estrelas estão dispersas por toda aextensão de sua esfera e só apresentam movimento uni-versal. A esfera 1, responsável pela rotação diária, girasobre o eixo AB (equador), e a esfera 2, onde estão asestrelas fixas, gira sobre o eixo CD (ecĺıptica) de talmodo que seu movimento com respeito às esferas 1 e 3é igual. As esferas (1 e 3) são imóveis entre si. Comoo sistema de Saturno vai dentro da esfera 3, esta lhetransmite a rotação diária; e, assim como numa ma-trioska, os sistemas vão sendo alocados até o sistemada Lua, sendo que entre os sistemas existe uma esferatransmissora da rotação diária denominada “motor”.As esferas “motoras” não são encarregadas de mover oscorpos celestes, pois estes se movem graças a sua forçavital, mas, sim, de mobilizar todo o conjunto de esferasde cada astro. Logo, existem 8 esferas “motoras” quesomadas às esferas dos sistemas (estrelas fixas - 1 esfera,Mercúrio - 7 esferas, Sol - 3 esferas, Lua - 4 esferas , epara cada um dos demais planetas - 5 esferas) totaliza43 esferas. Misteriosamente, Ptolomeu, somente nestetrecho do Hipóteses dos Planetas [15, p. 119], diz queo sistema solar tem uma só esfera, sendo, então, o totalde esferas corresponde a 41.

    Em resumo, o cosmos ptolomáico quanto à caracte-rização f́ısica é esférico, delimitado pela esfera motoradas estrelas fixas com a Terra imóvel no centro, e di-vidido em supralunar, com as esferas etéreas apresen-tando os movimentos universal e local, e em sublunar,só com movimento local, pois não há transmissão do sis-

  • 2602-12 Barros-Pereira

    tema lunar ao sublunar do movimento universal; cujosmodelos apresentados no Almagesto são reproduzidosno interior de esferas concêntricas.

    Figura 12 - Sistema ptolomaico de esferas das estrelas fixas [15].

    3. Análise Epistemológica

    3.1. “Salvar os Fenômenos” , o “problema dePlatão e o instrumentalismo

    Como o programa de explicar os fenômenos celestes pormeio de movimentos circulares e uniformes não é de au-toria de Platão, como escreveu Simpĺıcio, mas, sim, for-mulado séculos depois, quando dos elaborados modeloscinemáticos geométricos, remete-nos às questões: o queé o “problema de Platão” e o que é o programa “salvaros fenômenos”.

    O “problema de Platão” é, em essência, o est́ımulodado por Platão à criação de modelos geométricos queexplicassem os movimentos dos corpos celestes, quepode melhor ser observado no frontisṕıcio da Acade-mia: “Não Entrará Nesta Casa Quem Não Soube Ge-ometria”; cuja raiz está na descoberta dos irracionaispelos pitagóricos, que ruiu as esperanças de criação deuma cosmologia baseada na aritmética dos númerosnaturais, causando a derrota tanto do atomismo deDemócrito quanto do pensamento de Pitágoras, umavez que ambos estavam balizados na aritmética. Sendo,então, encorajada por Platão, a invenção de uma teoriageométrica de mundo.

    Platão percebeu que a teoria puramentearitmética da natureza estava derrotada:que era necessário criar um novo métodomatemático para descrever e explicar omundo. [17, p. 115]

    Por sua vez, o método “salvar os fenômenos” ésobrepor relações matemáticas aos fenômenos [18, p.35], ou seja, a caracterização matemática de objetosmateriais mantendo-se estritamente no domı́nio dos

    fenômenos observados, sem procurar inferir as causasdestes ou discutir sua natureza; o que difere do Instru-mentalismo, pois este ao tratar objetos como construc-tos (conceituais) concebe a ciência como mero disposi-tivo computacional de descrição e previsão.

    Mais precisamente, segundo a concepçãoinstrumentalista, uma teoria funciona comouma “senha de inferência”, de acordo com aqual conclusões sobre fatos observáveis po-dem ser tiradas de certas premissas fatuais,e não como premissa a partir da qual taisconclusões são deriváveis. Uma das con-seqüências dessa concepção é que as teoriasnão possuem um significado descritivo, istoé, não podem ser interpretadas em termosde entidades e propriedades de um mundoreal ou imaginário, possuindo apenas umsignificado operacional, dado em termos deoperações de um computador f́ısico, humanoou abstrato. [19, p. 230n]

    3.2. Instrumentalismo de Duhem

    Duhem, com sua reconstrução sistemática da mecânicamedieval, levou ao abandono a concepção estabelecidade que a Idade Média era um peŕıodo de trevas domi-nado pelo preconceito e ignorância, onde a busca deantecedentes significativos da ciência, caso existissem,devia ser na Antiguidade e não no medievo, pois ha-via a convicção de que a Revolução Cient́ıfica do séculoXVII fora uma ruptura clara e decisiva com o passadoimediato. Para Duhem, que sustentava a tese da conti-nuidade do desenvolvimento da ciência, o nascimento daciência moderna ocorrera no século XIII não de formaabrupta, mas decorrente do processo de transformaçãoda concepção aristotélica.

    Numa longa série de ensaios coletados emtrês volumes nos Estudos sobre Leonardoda Vinci chama a atenção para a fecundi-dade das correções medievais da mecânicaaristotélica da queda livre e do movimentodos projéteis, apresentando pela primeiravez o tratamento cinemático medieval domovimento uniforme e uniformemente dis-forme (acelerado e retardo) que teve lugarnas escolas de Oxford (Merton College) e deParis no século XIV. No âmbito desses es-tudos emergiram como figuras centrais nodesenvolvimento da f́ısica medieval tardiaJean Buridan e Nicole Oresme. Foi Duhemquem descobriu e expôs a teoria medievaldo “impetus”, desenvolvida pelos terminis-tas parisienses, revelando assim a origemdesse conceito central no desenvolvimentoda mecânica italiana do século XVI comTartaglia e Benedetti e, posteriormente, na

  • Esferas de Aristóteles, ćırculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem 2602-13

    mecânica do século XVII com Galileu. [20,p. 125]

    Seguindo as idéias instrumentalistas, iniciada porOsiander - “Nem tão pouco é necessário que es-tas hipóteses sejam verdadeiras nem até que sejamverosśımeis, mas bastará apenas que conduzam umcálculo conforme as observações” [21, p. 1] - e Belar-mino, por estes aplicadas como uma maneira de lidarcom hipóteses cient́ıficas inconvenientes, e desenvolvi-das por Berkeley, ao sustentar que a mecânica newtoni-ana se traduz num conjunto de equações que não podeexplicar a essência oculta nas coisas [22]; Duhem faz ademarcação entre a f́ısica - estudo dos fenômenos, cujafonte é a matéria bruta, e das leis que os regem - e acosmologia - parte da metaf́ısica que procura conhecer anatureza da matéria bruta, considerada como causa dosfenômenos e como razão de ser das leis f́ısicas [23, p. 42].Onde, por meio do método experimental, independentede toda e qualquer metaf́ısica, “o estudo dos fenômenose das leis deve preceder a procura das causas” [23, p.43]. Sendo, portanto, o objetivo do trabalho cient́ıfico,a produção de uma teoria f́ısica, que “ao classificar umconjunto de leis experimentais, não nos ensina absolu-tamente nada sobre a razão de ser dessas leis e sobre anatureza dos fenômenos que elas regem” [23, p. 47]. Ouseja, a teoria f́ısica é uma representação simbólica que,ao classificar as leis experimentais fornece regras gerais,é “absolutamente independente de toda metaf́ısica” [23,p. 48] e “não é uma explicação metaf́ısica do mundomaterial” [24, p. 25]. Portanto, para Duhem, o método“salvar os fenômenos” trata as hipóteses astronômicascomo constructos geométricos, independentes da cos-mologia, com os quais as observações celestes são orga-nizadas.

    Duhem associa o método de “salvar os fenômenos”à astronomia matemática:

    Esta ciência combina mo-vimentos circulares e uniformes para forne-cer um movimento resultante semelhante aomovimento dos astros; quando suas cons-truções geométricas associam a cada pla-neta um movimento equivalente àquele queé revelado pelas observações, seu objetivofoi atingido, pois suas hipóteses salvaram asaparências. [1, p. 7]

    E ao fazer a distinção entre a astronomia ma-temática e a astronomia f́ısica, deixa bem claro quesão epistemologias contrárias. Sendo que a astronomiaf́ısica trata objetos reais, ao passo que a astronomiamatemática, praticada pelos geômetras, trata objetosconceituais.

    O geômetra e o f́ısico frequentemente consi-deram o mesmo objeto, mas que eles o consi-deram sob pontos de vista diferentes. Tal fi-gura, tal movimento, são contemplados pelo

    geômetra em si próprios e de uma maneiraabstrata; o f́ısico, pelo contrário, estuda-oscomo o limite de tal corpo, o movimento detal móvel. [1, p. 8]

    As combinações de movimentos propostaspelos astrônomos são puras concepções, des-providas de toda realidade, e por isso nãoprecisam ser justificadas com a ajuda deprinćıpios da f́ısica; devem apenas ser adap-tadas de tal forma que as aparências sejamsalvas. [1, p. 19]

    A astronomia não capta aessência das coisas celestes, dá somente umaimagem delas; esta imagem em si não éexata, apenas aproximada: a astronomia secontenta apenas com a aproximação. Osartif́ıcios geométricos que nos servem dehipóteses para salvar os movimentos apa-rentes dos astros não são nem verdadeiros,nem verosśımeis. São puras concepções quenão poderiam ser tomadas reais sem se for-mular absurdos. [1, p. 20]

    Por fim, Duhem estabelece o conflito entre o rea-lismo de Aristóteles e o instrumentalismo de Ptolomeu.

    Ptolomeu, para representar as desigualda-des do movimento planetário, fez cada pla-neta ser transportado por um epiciclo cujocentro, ao invés de permanecer equidistantedo centro do Universo, descrevia um ćırculoexcêntrico ao Mundo, o arranjo de esferasimaginado por Adrastos de Aphrodisia epor Teon de Smyrna tornou-se incapaz derepresentar um tal movimento. Tal ina-dequação cresceu com cada uma das com-plicações que Ptolomeu foi obrigado a adi-cionar às hipóteses primitivas de Hiparcos,para que os fenômenos fossem salvos. (...)Certamente um peripatético não poderiaadmitir que as hipóteses da Syntaxe esta-vam de acordo com os prinćıpios de suaf́ısica. (...) É claro, portanto, que os adep-tos de Ptolomeu eram obrigados a libertaras hipóteses astronômicas das condições àsquais os f́ısicos as haviam geralmente sub-metido, a menos que quisessem renunciar asua doutrina. [1, p. 15-16]

    4. Conclusões

    Pelo exposto, em relação às cosmologias de Aristótelese de Ptolomeu, podemos distinguir duas maneiras defazer astronomia no mundo grego-helênico conforme oprograma de investigação: a astronomia f́ısica, ou cos-mologia, de origem aristotélica, que descreve e explica

  • 2602-14 Barros-Pereira

    o mundo tal como ele é, na qual o Hipóteses dos Plane-tas esta inserido; e a astronomia matemática, que des-creve os movimentos celestes de forma computacional,de origem platônica, na qual o Almagesto está situado.Estas duas astronomias, cada qual com suas normas emétodos, são disciplinas distintas e não concorrentes.

    O intuito de Ptolomeu, apresentado no livroHipóteses dos Planetas, mais do que criar sistemasdidáticos nos quais os modelos descritos no Almagestosão inseridos, foi expor sua cosmologia estóica, ou seja:o cosmos ptolomáico é um organismo animado. Estacosmologia difere da aristotélica, por que não só os sis-temas celestes como, também, a f́ısica apresentada porPtolomeu é diferente; como o próprio Duhem assinala:“Ptolomeu defende uma f́ısica muito semelhante à do Cleanthes” [1, p. 17]. O que, somado ao fatode que as astronomias f́ısica e matemática eram disci-plinas distintas. Portanto, a cosmologia ptolomaica nãotem relação com a aristotélica.

    Embora reconhecendo a importância dos trabalhosde Duhem sobre a história da ciência, discordamos daconcepção duheniana de que Ptolomeu era instrumen-talista, pois na cosmologia ptolomaica, além dos corposcelestes, serem reais e não objetos conceituais, construc-tos, Ptolomeu, no livro Hipóteses dos Planetas, inferecausas e discute a natureza dos fenômenos. Não existiu,então, na astronomia grega o conflito epistemológico,estabelecido por Duhem, entre realismo e instrumen-talismo. O que vai ao encontro da posição assumidapor Popper, que vê, na Renascença, a origem das idéiasinstrumentalistas:

    Duhem reivindica para o instrumentalismouma descendência muito mais ilustre e an-tiga do que pode ser provado. [17, p. 127n].

    Embora, a busca de Duhem por uma descendênciaantiga para o Instrumentalismo seja decorrência deseu pressuposto de que o desenvolvimento cient́ıficoé cont́ınuo, não podemos deixar de sublinhar que aanálise equivocada de Duhem sobre sua suposição dePtolomeu ser instrumentalista se deva, talvez, às li-mitações impostas ao pioneirismo ou, talvez, ao seu des-conhecimento do texto integral do Hipóteses dos Pla-netas, pois parte substancial dele só foi redescoberta,cerca de 60 anos após a publicação de seus trabalhos,por Goldstein [25].

    Referências

    [1] P. Duhem, Cadernos de História e Filosofia da Ciênciasupl. 3 (1984).

    [2] E.J. Aiton, History of Science 19, 75 (1981).

    [3] Aristóteles, A Cerca del Cielo (Ed. Gredos, Madri,2008).

    [4] M. Bunge, Epistemologia: curso de atualização (Ed.T.A. Queiroz / EDUSP, São Paulo, 1980).

    [5] Aristóteles, Meteorológicos (Ed. Gredos, Madri, 2008).

    [6] Aristóteles, Metaf́ısica (Ed. Escapa-Calpe, Madri,1975).

    [7] Aristóteles, Metaphysics, in The Complete Works ofAristotle, edited by J.Barnes (Ed. Princeton Univer-sity Press, Princeton, 1984).

    [8] G.V. Schiaparelli, Scritti sulla Storia della AstronomiaÂntica v. II (Ed. Mimensis, Milão, 1997).

    [9] Aristóteles, F́ısica (Ed. Gredos, Madri, 1998).

    [10] E.P. Sedeño, in (Ptolomeu) Las Hipótesis de los Pla-netas (Ed. Alianza, Madri, 1987).

    [11] Ptolomeu, The Almajest (Ed. Encyclopædia Britan-nica, Chicago, 1955).

    [12] O. Neugebauer, The Exact Sciences in Antiquity, Do-ver Publications, New York, 1969).

    [13] B.R. Goldstein, Centaurus 24, 132 (1980).

    [14] O. Neugebauer, A History of Ancient Mathematical As-tronomy (Ed. Springer-Verlag, Berlin, 1975), 2a ed.

    [15] Ptolomeu, Las Hipótesis de los Planetas (Ed Alianza,Madri, 1987).

    [16] A. Murschel, Journal for the History of Astronomy 26,33 (1995).

    [17] K.R. Popper, Conjecturas e Refutações (Ed. Universi-dade de Braśılia, Braśılia, 1982).

    [18] J. Losee, Introdução Histórica à Filosofia da Ciência(Ed. Terramar, Lisboa, 1998).

    [19] Z. Loparic, Cadernos de História e Filosofia da Ciência18, 227 (2008).

    [20] P.R. Mariconda, in Século XIX: O Nascimento daCiência Contemporânea, editado por F.R.R. Évora,(Ed. UNICAMP/CLE, Campinas, 1992), p. 123-160.

    [21] A. Osiander, in (N. Copérnico), As Revoluções dos Or-bes Celestes (Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lis-boa, 1984), p. 1-2.

    [22] G. Berkeley, Scientiæ Studia 4, 115 (2006).

    [23] P. Duhem, Ciência e Filosofia 4, 41 (1989).

    [24] P. Duhem, Ciência e Filosofia 4, 13 (1989).

    [25] B.R. Goldstein, Transactions of the American Philo-sophical Society, New Series 57, 1 (1967).