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4ª EDIÇÃO ESCULTORES POPULARES DO NORDESTE Esse livro, para mim, vale mais do que minha Carteira de Identidade; po- bre só é notícia em tempo de enchente ou quando faz uma desgraça... Benedito José dos Santos (Declaração do escultor ao receber o livro, em 1980) Receber um livro como esse, entregue nas minhas mãos, foi a primeira atenção respeitosa que eu recebi na minha vida. Um livro onde eu falo de mim, da minha arte... Givaldo Cardoso Jaciara (Declaração do escultor ao receber o livro, em 1980) ...Como não amar de amor enlevado esses homens supostamente rús- ticos, que têm tamanha capacidade de interpretar a vida, exercendo a imaginação e as mãos? Carlos Drummond de Andrade Jornal do Brasil, 1980 ESCULTORES POPULARES DO NORDESTE

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4ª EDIÇÃO

ESCULTORES POPULARES DO NORDESTE

Esse livro, para mim, vale mais do que minha Carteira de Identidade; po-bre só é notícia em tempo de enchente ou quando faz uma desgraça...

Benedito José dos Santos(Declaração do escultor ao receber o livro, em 1980)

Receber um livro como esse, entregue nas minhas mãos, foi a primeira atenção respeitosa que eu recebi na minha vida. Um livro onde eu falo de mim, da minha arte...

Givaldo Cardoso Jaciara (Declaração do escultor ao receber o livro, em 1980)

...Como não amar de amor enlevado esses homens supostamente rús-ticos, que têm tamanha capacidade de interpretar a vida, exercendo a imaginação e as mãos?

Carlos Drummond de Andrade Jornal do Brasil, 1980

ESCULTO

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ESTE

AutoresSilvia Rodrigues CoimbraFlávia MartinsMaria Letícia Duarte

FotógrafosMaria do Carmo Buarque de Hollanda / PiiiDalvino Troccoli França

Coordenação desta ediçãoFlávia Martins

Projeto gráfico de miolo e capaGisela AbadAssistentesAlyne MirandaMariana Melo

Tratamento de imagensRobson Lemos

Revisão OrtográficaFlávia MartinsPedro Belchior

Impressão e acabamentoGráfica Santa Marta

A345r Coimbra, Silvia Rodrigues.

O Reinado da lua: escultores populares do Nordeste / Silvia Rodrigues Coimbra, Flávia Martins Albuquerque, Maria Letícia Duarte. – 4. ed. – Recife: Caleidoscópio, 2010.

336 p. : il.

ISBN: 978-85-63055-05-7

1. Escultura. 2. Arte popular. 3. Artes. I. Título

CDU- 7.067.26

Fundarpe - Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de PernambucoRua da Aurora, 463/469Boa Vista, Recife - PE - BrasilCEP 50050.000Fone 81 3184.3000

Edição Caleidoscópio [email protected]

À memória do querido Geraldo Pereira Jordão, o qual, por meio de sua Editora Salamandra, foi responsável pelas duas primeiras edições de O Reinado da Lua.

Disso você não entende não, isso é coisa do reinado da Lua.

NHÔ CABOCLO Artista de Pernambuco

13 PREFÁCIO 15 AGRADECIMENTOS 17 NOTA DA 4ª EDIçãO 19 APRESENTAçãO23 SANTEIROS DO MASSAPÊ

28 Severino de Tracunhaém e os Vieiras 39 Antônia Leão 42 Maria Amélia 44 Nuca e Maria 47 Zezinho de Tracunhaém 49 Luís e Elisete 52 Severina Batista 54 Betinho

57 A PRESENçA DO MESTRE 63 A família Vitalino 69 Zé Caboclo e Família 77 Manuel Eudócio 81 Zé Rodrigues 84 Ernestina 86 Manuel Antônio, Luís Antônio e Odete 89 Zé Henriques e Ivonete

91 ANIMANDO A BRINCADEIRA 95 Ginu, o Professor Tiridá 99 Antônio Pedro 101 Capitão Pereira 103 Dedé

107 ASSOMBRAçÕES DO SãO FRANCISCO 112 Ana das Carrancas 115 Domingos 119 Bitinho 121 Manelito 123 Jocanto

127 IMAGENS DE UM REDUTO POPULAR 131 Louco 134 Maluco Filho 136 Doidão 138 Bolão 140 Armando 143 Tamba

265 TUDO SE TRANSFORMA 269 Anete 271 Dona Biu 274 Neilton 277 Antônio Paulo 279 Antônio Matos 281 Angelino 283 Tonho Cosme 285 Dary

287 ESPAçO IMAGINAR 291 Nhô Caboclo 296 Benedito 299 Paulo 302 Bigode 305 Manuel de Camaragibe

311 ÍNDICE ONOMÁSTICO315 ANEXO

315 Mapeamento dos escultores entrevistados 317 Relação de escultores populares localizados

no decorrer da pesquisa e não entrevistados 321 BIBLIOGRAFIA 329 CRÉDITOS DE FOTOGRAFIA

145 EM TORNO DE OLEIROS 150 Vitorino 153 Almerentino 156 Boreste 160 Zé Curu 162 Biu e Maurílio 165 Rosalvo

169 EXERCÍCIO DE LIBERDADE 174 Caxiviti 175 José Inácio 178 Jaciara 181 João batista 183 Braulino 184 Sebastião 186 Walter 188 Valdevino 190 Tita Caxiado 193 Zé do Gato 194 Nivaldo e Josafá

197 À SOMBRA DOS CARNAUBAIS 202 Mestre Dezinho 204 Expedito 206 Edmar 207 José Soares 209 Cornélio 211 Francisco Soares 212 Manuel Martins

215 REFLEXOS DO BELO 219 Antônio Pedro 222 Judite 224 João do Gado 226 Francisca Alves 227 João Santeiro 229 Teodora 231 Paulina 233 Júlio Cassiano 235 Luzia Dantas 237 Etewaldo 239 Zé do Carmo

241 EM TERRA DE ROMARIA 246 Mestre Noza 248 Franciner 250 Nino 252 Cícera Araújo 254 Cícera Lira 256 Maria Cassiana e Galdino 258 Zé Duarte 261 Dedé 262 Francildo

Vivemos uma época em que o prazo de validade de alguns livros, no campo das artes, é medido em meses, às vezes em semanas, para logo terem que ser substituídos por outros que supostamente os superaram. É o espírito do tempo em que incorporamos – não somente para os bens de consumo, mas mesmo para esforços de pesquisa e teóricos – o adjetivo descartável. A reedição de O Reinado da Lua: Escultores Populares do Nordeste, quase trinta anos depois da primeira, deve ser saudada como um fato que o transforma inevitavelmente num clássico de sua área. E quando entramos em contato com diversas publicações posteriores ao Reinado podemos observar como se converteu numa referência incontornável; mais que isso: foi a fonte que economizou esforço similar por outros autores, sendo aproveitado em algumas de suas passagens, às vezes sem as devidas aspas.

A meu ver, três são os aspectos que preservam a integridade do Reinado, expostos com muita clareza pelas autoras na apresentação. Primeiro, a compreensão de um processo histórico que transformou objetos antes “funcionais” em obras de arte e de sua inscrição pelos segmentos “cultos” da sociedade em um mercado de arte específico. No caso do Brasil, isto se dá a partir do movimento modernista e seu trabalho de construção de uma identidade mais complexa que aquela que reservava a categoria “arte” para designar somente as obras produzidas no interior de um saber que, na falta de termo melhor, continuamos a chamar de erudito. Essa metamorfose do trabalho-arte produzido pelos setores mais humildes da população – que se passa na apreensão subjetiva de seu resultado – é plena de consequências para aqueles que o realizam, sobretudo no plano econômico.

Segundo, o interesse documental do livro, ao cobrir um universo de 109 artistas de diferentes estados do Nordeste. Se não é uma amostra no sentido estatístico do termo, como nos advertem as próprias autoras, trata-se de um corpus bastante significativo. Atento às particularidades do fenômeno artístico, não importa qual seja este, o Reinado lembra que “documentar, aqui, significa considerar o escultor e sua obra como singularidades: é de sua individualidade, em relação com o contexto em que se situa, que pretendemos dar conta.”

Terceiro aspecto, que deriva diretamente do segundo, mas o extrapola e dá um caráter pioneiro à obra: o lugar privilegiado da fala dos artistas no lugar do exercício interpretativo das autoras. Com isto, o Reinado não os reduz a meros informantes de uma pesquisa em ciências sociais: apresenta-os como protagonistas da produção artística em posse, não apenas de um “saber fazer”, mas também de um discurso sobre sua vida e sua obra. Não se trata de atribuir nenhuma essência de verdade privilegiada ao “texto” de artista em relação a qualquer outra fala. Os depoimentos coletados em o Reinado adquirem uma significação especial levando em consideração a extração social, a educação formal precária e o índice de analfabetismo nessa população. Mesmo quando sabem ler e escrever, esses artistas raramente o fariam para discursar sobre o próprio trabalho.

Esses três aspectos, junto com a redação fluente e a contextualização mais que exata - sensível às particularidades de cada um dos doze grupos construídos pelas autoras -, aliadas a um precioso balanço entre as narrativas dos artistas e o texto que os visita, cravaram o destino de O Reinado da Lua: ser um marco na abordagem da arte popular no Brasil.

Passados cerca de trinta anos, como será lido, sobretudo pelas novas gerações de artistas e cientistas sociais, esse livro? De 1980 – ano da primeira edição – para cá mudou muito o mundo, mudou também o Brasil. O abismo entre a produção de arte popular e o chamado “sistema da arte” só fez se aprofundar. Este, além de se inscrever definitivamente na indústria do lazer, levando milhões de visitantes por ano aos principais museus do planeta, foi fortemente

PREFÁCIO

AGRADECIMENTOS

marcado pelo império da imagem e tem sua produção controlada por um mercado sofisticado e agressivo. Nessas três décadas de debilitação proposital da esfera pública em todos os campos, vimos crescer o papel das feiras de arte a tal ponto que elas hoje ocupam, quando não superam em importância, as mostras tradicionais, como as bienais internacionais.

Durante esse período surgiram no campo da teoria da arte, particularmente nas obras de Hans Belting e de Arthur Danto do início da década de 1980, reflexões que circunscrevem os fenômenos artísticos, tal como os experimentam os segmentos cultos do Ocidente, como uma manifestação particular a esta cultura, com data de nascimento e morte. E, se não morte, pelo menos sua transformação em algo que teria pouco a ver com o que era chamado de arte. Para essas teorias, a arte teria surgido no Renascimento e se transformado a ponto de desaparecer em relação ao que representava a partir dos anos 60 do século XX. Esta seria a “era da arte”: do século XV à arte moderna. Antes dela e depois dela, mas, acima de tudo, fora dela, não haveria experiência de arte.

Não cabe, aqui, desenvolver o quanto uma leitura apressada dessas teorias pode levar a equívocos. Mas é sintomático que elas possam ser levantadas como argumento contra o valor de manifestações artísticas que se encontram fora do “sistema da arte”, embora este possa lidar tranquilamente com as manifestações de antiarte produzidas pelo questionamento do conceito de arte de Marcel Duchamp, pelas obras e happenings dadaístas, até a Merda d’artista, múltiplo de supostos excrementos do artista, enlatados por Manzoni. Todos esses fatores e muitos outros atuaram nas últimas décadas para aprofundar o divórcio entre o que se catalogou como “arte popular” e o outro, nem sempre “erudito”, mas incluído no “sistema da arte”.

O desafio para o teórico contemporâneo da arte – não estou falando do “teórico da arte contemporânea” – seria reconstruir os conceitos e retraçar as fronteiras do fenômeno estético de modo que possamos realizar a leitura das obras lado a lado, independente de sua origem social e de sua inscrição no mundo institucionalizado da “história da arte”. A leitura atualizada de O Reinado da Lua seria um desses inevitáveis pontos de partida para uma nova construção teórica.

No momento atual, não existe ponte traçada entre um mundo – o da arte popular – e o outro – o do “sistema da arte”. Entretanto, quando visito o Museu do Pontal, no Rio de Janeiro, não deixo de me emocionar e aprender com a magnífica herança organizada por Jacques Van de Beuque. Ali se encontra um maravilhoso acervo de escultura popular no qual podemos entrar em contato direto com o universo mapeado e narrado pelo Reinado da Lua. E constatar na experiência direta com as obras a riqueza apresentada nas páginas desse livro. Que venham muitas outras edições.

Paulo Sergio Duarte Rio de Janeiro, maio de 2009.

Foram muitos aqueles que, de diferentes formas, participaram na abertura das trilhas de O Reinado da Lua: da idealização e montagem do projeto a suas condições de realização, do trabalho de campo à leitura crítica e à revisão dos textos, da datilografia à digitação, do suporte material e financeiro à programação visual e a todos os procedimentos editoriais necessários a suas quatro edições.

O projeto e o livro que dele resultou não teriam sido possíveis sem o apoio de tantos profissionais dedicados, de  amigos, companheiros e  instituições empenhados na difusão e preservação de nossa cultura.

A todos e a cada um desta extensa lista o nosso carinho.

Albina PereiraÁlvaro Pantoja LeiteAna Luisa EscorelAna Maria B. ReisAugusto Rodrigues Aurivan FrançaBanco do Nordeste do Brasil – BNBCafíDaniel CamposDorothy PritchardEdgard AndradeFabiano LeiteFINEP - Financiadora de Estudos e ProjetosFrancisca Souza LimaFrançois de LespinayFUNDARP EGaleria Nega Fulô de Artes e Ofícios – Recife Gisela AbadHeloísa Parga RodriguesHenilton MenezesHermilo Borba FilhoIvandro da Costa SalesJacques LabergeJosé Augusto Guilhon AlbuquerqueJosé Manoel Carvalho de MelloLuisa Albuquerque de Mello

Márcia de Holanda Cavalcanti Maria de Fátima Alves de OliveiraMaria de Fátima Santiago CostaMaria de Lourdes de AlmeidaMaria José SantosMaria José Marques CavalcantiMaria Lúcia Moreira da CostaOrganisation Catholique Canadienne pour le Développement et La PaixPatrícia Martins de AlbuquerquePedro BelchiorPedro Duarte de AndradePeter WarnerRegina RochaRoberto MachadoRodrigo Xavier Rogerio LuzRosana Martins de AlbuquerqueStella Maris Da PoianTaciana Martins de AlbuquerqueTereza Dourado Vera Martins Marques

A presença da escultura popular no circuito oficial de arte é consequência do crescente interesse de intelectuais e artistas por esses produtos da imaginação e do trabalho do povo, vistos como manifestação cultural significativa, de caráter estético. Tem suas raízes no Movimento Modernista de 1922 e no Movimento Regionalista de Recife, iniciado em 1923, tendo sido consolidada com a primeira Exposição de Cerâmica Popular Pernambucana, organizada por Augusto Rodrigues e apresentada por Joaquim Cardoso, em 1947.

Antes de penetrar neste circuito não existe, para esta produção, arte ou conceito de arte como categoria fundamental de explicação ou de classificação. A peça produzida é funcional. Serve, por exemplo, como brinquedo de meninos. Ainda não precisa ser preservada: é o objeto encontrado nas feiras e facilmente substituível, voltado para a comunidade local que o absorve. Descoberta e legitimada como “arte popular”, essa produção passa a ter curso em amplo mercado, atingindo potencialmente toda a sociedade e excluindo, paradoxalmente, a comunidade local. A expressão arte popular tem servido para designar aos produtores um lugar na produção artística em geral. Lugar do “autêntico”, “espontâneo”, “originário”, embora, ao mesmo tempo, secundário com relação à arte erudita. Promove-se seu caráter estético, se lhe confere legitimidade diferencial, tomando como parâmetro o erudito.

Na concepção dos próprios escultores populares nordestinos – desenvolvendo sua produção em condições de penúria, de escassez, vivendo no limiar da sobrevivência, entre assalariados muitas vezes em condições ainda piores do que as suas – trabalho artístico é trabalho produtivo, não podendo entre eles haver diferença no que diz respeito a um aspecto fundamental: garantir a sobrevivência. É nesse contexto que se coloca a questão da arte. Qualificar o produto de seus trabalhos como objeto artístico é, para eles, importante, sobretudo porque tal qualificação desempenha papel significativo para que se efetive esta função econômica.

É então que aparece a natureza complexa do trabalho que realizam. Por um lado, a arte de esculpir situa-se, para seus autores, como uma arte entre outras, em seu velho sentido: arte de pedreiro, arte de carpinteiro, arte de pintor, etc. Arte e ofício encontram-se, portanto, no mesmo plano. Mas, por outro lado, para garantir um espaço de trabalho que lhes dá satisfação, possibilita algum poder de decisão e uma remuneração um pouco menos insuficiente, os escultores – aceitando os valores que lhes são atribuídos – também conceituam sua produção como arte popular, não sem denunciar as injunções do mercado a que estão submetidos, a condição de arte inferior que lhe é atribuída, a situação de exploração em que continuam vivendo.

Procuramos, neste livro, abordar a escultura popular nordestina a partir, basicamente, da perspectiva de seus autores. O principal objetivo é documentar. Pretendemos apresentar uma realidade, um estilo de vida, uma produção, um produto, visões de mundo. Nem se trata de uma simples descrição factual, nem de um estudo explicativo de tipo sociológico. A análise aponta para outras direções.

Documentar, aqui, significa considerar o escultor e sua obra como singularidades: é de sua individualidade, em relação com o contexto em que se situa, que pretendemos dar conta. Conhecer em que condições cada artista desenvolve sua produção, as características

APRESENTAçãO

20 APRESENTAÇÃO APRESENTAÇÃO 21

do produto de seu trabalho, como se realiza a circulação dessa mercadoria, como se constitui o mercado que a absorve. Mais ainda: buscamos apresentar a visão desses artesãos com relação a seu próprio trabalho e ao mundo em que vivem. Quisemos, para quem não os conhece, torná-los conhecidos; para quem já os conhece, possibilitar o acesso a informações sobre sua vida e seu trabalho que podem ser relevantes para a apreciação de sua produção.

É assim que cada um deles aqui aparece de forma individualizada, contando sua própria história e, nela, a história de seu trabalho. Seus depoimentos, muito mais do que simples material para uma possível análise, são, como consequência de uma opção por nós assumida, o âmago do livro. Nesse sentido, sua autoria cabe tanto a eles quanto a nós. Este é um livro realizado em conjunto com cento e nove escultores populares nordestinos.

Não houve, portanto, de nossa parte, preocupação em recorrer a técnicas de amostragem ou de quantificação. Sem pretensão de esgotar o tema – o que seria impossível, dadas a extensão e a complexidade que caracterizam essa manifestação cultural – mas cientes da importância de localizar e contatar o maior número possível de pessoas do povo dedicadas à escultura, percorremos, várias vezes, os nove estados do Nordeste, da Bahia ao Maranhão. Entramos em relação com todos aqueles a quem foi possível ter acesso, recolhendo seus depoimentos. Quando não houve condições para a realização de entrevistas ou para a documentação de suas peças, essas pessoas não foram ignoradas. Os nomes dos escultores localizados, cujos depoimentos não puderam constar desse trabalho, aparecem relacionados em anexo, com seus respectivos locais de moradia.

As entrevistas, quase sempre gravadas, tomaram por base um roteiro do qual constavam algumas questões consideradas relevantes: dados pessoais; como e quando iniciou a atividade; processo de produção; relação com outros artistas; processo de circulação do produto; concepção sobre o trabalho; suas condições de vida e de sua família. Esse roteiro foi utilizado como fio condutor de um diálogo que pretendemos aberto, permitindo aos escultores a maior liberdade possível em suas afirmações. Nosso principal objetivo foi dar a palavra ao artista.

É importante ressaltar que ao transcrevermos os depoimentos optamos por fazê-lo segundo as normas gramaticais estabelecidas, mantendo as expressões particulares a cada discurso. A linguagem oral não se confunde com a escrita; ao se passar de uma para outra, procede-se obrigatoriamente – em qualquer trabalho dessa natureza – a uma recodificação. Não encontramos, pois, justificativa para tentar reproduzir, textualmente, formas gramaticais consideradas incorretas, próprias à linguagem coloquial.

Além das entrevistas, o registro fotográfico constitui-se em precioso elemento de informação, visando, principalmente, à identificação do escultor, à ilustração de sua obra e, quando possível, à documentação das condições em que vive e trabalha.

Os depoimentos colhidos – a que acrescentamos nossas contribuições – foram agrupados em doze capítulos. Cada um deles é caracterizado por uma homogeneidade – algumas vezes subjacente, outras vezes visível – que flui de um contexto socioeconômico comum aos artistas ali reunidos, do desenvolvimento de uma mesma temática, de condições de mercado que os atinge e envolve de forma marcadamente semelhante, de

condições de trabalho muito próximas, etc. Fatores como esses presidiram à divisão dos doze agrupamentos – cada um deles assinalando uma especificidade encontrada e que produz uma unidade importante.

Assim, por exemplo, em A PRESENÇA DO MESTRE é a figura de Vitalino e a herança por ele deixada, com seu trabalho no barro, aos artistas do Alto do Moura, em Caruaru, o denominador comum que nos permite reuni-los. ASSOMBRAÇÕES DO SÃO FRANCISCO, capítulo relativo aos produtores de carrancas, encontra sua unidade não apenas no que diz respeito à temática, mas, ainda, no que se relaciona à história comum dessa produção, com suas sucessivas transformações, e aos atuais produtores como representantes de uma nova etapa nesse processo. Em EXERCÍCIO DE LIBERDADE, além do espaço de reclusão – o mais forte denominador comum entre os artesãos que estão a ele submetidos – destaca-se o modo pelo qual o trabalho se insere no contexto de uma prisão. Se, por um lado, para a instituição, a atividade produtiva funciona como mecanismo fundamental para introduzir princípios de ordem e regularidade, por outro lado, para o detento, a opção pela arte de esculpir tem outro estatuto, assumindo um valor distinto daquele definido com relação ao trabalho assalariado.

Nas introduções a cada agrupamento, procuramos analisar a problemática específica e melhor explicitar os aspectos comuns a cada um deles. O subsídio fundamental para essa análise mais geral foi a própria palavra do artista. A bibliografia consultada – que se encontra relacionada no final do livro – serviu como instrumento para situar, em um contexto mais amplo, as questões já suscitadas. O contato com pessoas que, mesmo não sendo escultores, revelaram algum tipo de vínculo com o que buscávamos analisar, serviu para complementar informações, fornecer novos dados, indicar outros caminhos.

É importante observar mais uma vez que, no curso da pesquisa, pretendemos sempre analisar o que significa para o artista o seu trabalho, apreender a ótica daqueles que são os responsáveis diretos pela produção desses objetos qualificados como arte popular.