escrever É preciso antes que um anjo vire um demÔnio ... · mas quando ele falava que ia embora...

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ESCREVER É PRECISO...

ANTES QUE UM ANJO VIRE

UM DEMÔNIO DENTRO DE

MIM.

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§ Capítulo I §

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Cresci em uma casa ampla e confortável, onde nada faltava. Exceto paz e tranqüilidade. Minha mãe achava que meu pai tinha um caso com a secretária e às vezes brigava muito com ele. Meu pai nada respondia, o que deixava ela mais enfurecida ainda. Mas quando ele falava que ia embora de casa , minha mãe começava a chorar e dizia que ele não podia fazer isto , pois havia assinado um papel de casamento e fechava as portas da sala. Eu não entendia muito bem sobre casamento, e não sabia o quão aborrecida poderia ser a vida de uma pessoa adulta, mas de uma coisa eu estava certa, se ela não falasse tanto, ele não iria embora não! Nos domingos de manhã, minha mãe levava eu e meu irmão para a escola dominical. Ela era protestante a pelo menos três gerações e se orgulhava muito disso. Eu não queria ir à igreja, mas minha mãe dizia que deveríamos ir à casa do senhor agradecer a tudo que ele nos deu durante a semana. Eu não conseguia entender, achava que talvez Deus não gostasse de visitas, pois nunca o vi por lá. Mas eu via Deus por toda parte... no céu, no mar, no jardim lá de casa, nas minhas redações da escola, nas minhas amigas e principalmente dentro de mim! À noite, na hora de dormir, eu sempre conversava com Deus na minha cama e tinha certeza absoluta que ele me ouvia e eu era muito feliz por causa disto. Na igreja nos contavam um monte de estórias sobre como há muito tempo atrás, Deus tirara seu povo da escravidão no Egito e de como o mar se abriu para que eles passassem e se fechou quando os soldados do Egito estavam passando e também sobre como Adão e Eva haviam desobedecido à Deus e comido do fruto proibido. Havia também um rei que pedia a Deus sabedoria e se tornou o homem mais sábio que já habitou a terra, seu nome era Salomão. Eram muitas as estórias e todas estavam na bíblia, no velho testamento. No novo testamento havia a história de Jesus que havia morrido na cruz, para me salvar. Eu, sinceramente, sentia muita pena de Jesus e juro que não queria ter lhe causado tanto sofrimento. Mas me falaram que ele morreu por todos nós, assim a minha culpa foi diluída por toda a humanidade e se tornou mais suportável. Também nos ensinavam que não devíamos mentir, roubar, falar palavrões, responder a nossos pais e mais um monte de outros pequenos

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delitos, todos eram chamados de pecados e diziam que todos éramos pecadores. Sinceramente, nunca concordei com isto, pois nunca me senti pecadora, não entendia muito bem porque falavam tanto em pecado. O meu pai nunca ia à igreja! Ele ficava em casa ouvindo música. Eu adorava ouvir as músicas do meu pai. Mesmo antes de saber que os Beatles existiam, eu ouvia Michelle orquestrada e ficava simplesmente fascinada! Eu não sabia de onde vinham músicas tão belas e talvez só existissem aquelas em todo o mundo. Meu pai também gostava muito de livros e enchia a casa deles. Teve até que comprar uma estante nova, pois a que tínhamos lá, não coube mais nenhum. Ele também comprava discos com estórias para crianças e eu ouvia diversas vezes a mesma estória. Eu já sabia o fim, mas era sempre a mesma emoção ouvir novamente. Eu também ganhava muitos livros com figuras bonitas que eu passava horas vendo e imaginando uma estória para cada gravura. Nos finais de semana, meu primo ia lá para casa ficar conosco, pois ele adorava jogar futebol com o meu irmão. Eles tinham um time que invariavelmente perdia para o time dos meninos mestiços e descamisados do bairro e sempre chegavam em casa procurando uma explicação por não jogarem tão bem quanto os outros. O nome dele era Cláudio Jorge, e ele era muito divertido, nós riamos muito de suas palhaçadas. O nosso primo não era nosso primo de verdade, mas o simples fato do nosso pai e os pais dele terem vindo de Portugal e terem se conhecido por lá , aliado a total escassez de primos por perto de ambos os lados , fez de nós primos . Então para os amigos, ele era nosso primo, mas bem lá no fundo de nossos corações, eu tenho certeza que ele era bem mais do que um primo, ele era nosso irmão. Minha mãe era médica e quase nunca estava em casa, pois todas as vezes que os vizinhos precisavam dela, lá ia ela embora! Não importava a que horas fosse, até de madrugada. Certa vez, um vizinho chegou em casa bêbado e bateu na mulher. Adivinha onde ela foi buscar ajuda? ... Lá em casa , é claro ! E assim, ela era conhecida por todo o bairro, atendia a todos as pessoas que passavam mal, podendo ou não pagar a consulta. Eu achava que Deus tinha feito minha mãe para atender as pessoas pobres do bairro e também tinha feito as empregadas para ficarem com as crianças cujos pais não tinham muito tempo. Algumas eram até bem boazinhas e conversavam bastante comigo. Eu me lembro especialmente da Neuza que me levava nas aulas de inglês, às quartas-feiras, dia do plantão

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da minha mãe, e conseguia sempre um dinheirinho extra para comprar um sorvete para a gente, fazendo deste dia da semana, um dia especial.

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§ Capítulo II §

Eu estudava em um colégio de freiras e gostava muito de ir a escola. Se eu pudesse ia a escola até nos finais de semana. Meu primo me chamava de CDF, mas eu nem ligava! Eu ficava pensando que entre todas as meninas do mundo todo, aquelas, especialmente aquelas eram as minhas amigas de classe, o que

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fazia delas, crianças especiais para mim. Lá na escola, todos me conheciam. Uma vez a professora de português pediu para que fizéssemos uma poesia e ela gostou tanto da minha que leu para as alunas das turmas mais adiantadas e elas vieram me cumprimentar na hora do recreio e eu ... nem precisa falar... Fiquei super orgulhosa. Minha melhor amiga era a Sandra, a gente fazia tudo juntas, íamos juntas e voltávamos juntas para a escola, sentávamos perto na sala de aula, na hora do recreio comprávamos a nossa merenda, quase sempre igual e nas provas eu dava cola para ela. Um dia, no ônibus da escola, vi um movimento diferente, havia uma amiga da minha amiga Sandra que não estava normal, eu fiquei muito assustada, mas minha amiga me tranqüilizou dizendo que ela estava “ recebendo santo”. No princípio, não quis nem chegar perto, mas depois aos poucos eu fui chegando e ouvindo a conversa. Ela falava como uma criança. Minha amiga me falou que era o espírito de uma criança que havia morrido e que eu podia conversar com ela. Apesar de saber o que minha mãe achava sobre aquilo, eu fui me aproximando devagar e em pouco tempo já estava conversando com ela também. Aos poucos, a amiga da minha amiga ia recebendo santo até dentro da escola, ao lado da capela. Sempre que precisávamos, chamávamos a Rosinha , que era como o espírito dizia se chamar, e perguntávamos o que queríamos saber. Rosinha passou a ser uma amiga e junto com ela vieram outros espíritos, todos de crianças. Eu nunca falava nada em casa, pois não sei o que minha mãe faria, mas eu me sentia especial por ter um contato com outro mundo. Vamos dizer assim, com um mundo que não vemos e ficava feliz em saber que tinham espíritos que me protegiam como as “crianças” diziam. Na escola eu também tinha aula de religião e nos faziam assistir à missa na capela. A freira dizia que a religião católica era a primeira religião, a igreja que Cristo fundou e que as demais começaram de grupos descontentes dentro da igreja. Mas que a religião católica era a mais certa de todas. Em casa, minha dizia que os católicos adoravam imagens e que isto era abominável perante Deus e que estava tudo escrito na bíblia e os macumbeiros, esses não iam para o reino dos céus, pois faziam mal aos

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outros e invocavam os mortos. Eu não me sentia culpada por conversar com os espíritos das crianças, mas no fundo do meu coração, eu achava aquilo tudo uma grande confusão, alguém deve estar certo e eu preciso saber quem está com a verdade! Domingo, eu não escapava da escola dominical, por mais convidativo que o sol e a praia estivessem. Contudo, dentro de mim, uma pergunta não calava e em nenhum lugar eu poderia achar a resposta. Por que os protestantes acham que estão certos, os católicos acham o mesmo e ambos condenam receber santos, falar com os mortos e coisas assim? Eu pensava que a verdade não poderia estar com todos, tem que estar em um lugar só e só um pode responder realmente – Deus. - Deus! Quem está certo afinal? Todas as noites, antes de dormir, eu conversava com Deus e perguntava _Por que uns dizem que os outros estão errados? - Por que não se entendem?- Porque tantas religiões, se dizem que Deus é um apenas? - Quem está certo, afinal? Um dia, antes de dormir, como era de costume, eu comecei a conversar com Deus e eu o vi, no meu quarto, flutuando, do lado esquerdo da minha cama, perto do teto. Se você perguntar como ele é, eu não vou saber responder, pois via com olhos que não pareciam ser os meus, era como uma luz, uma fumaça uma nuvem, não sei! Só sei que era Deus e a sensação era muito boa! Então eu perguntei com toda força da minha vida, como num grande grito, que ninguém ouviu, um grito interno, bem forte, com toda força do mundo – Deus, me mostra o caminho , e repeti por várias vezes, até que peguei no sono.

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§ Capítulo III §

As brigas lá em casa, de esporádicas passaram a freqüentes e o inevitável aconteceu. Meus pais se separaram definitivamente. O único pilar que sobrou (minha mãe) desmoronou e o teto caiu sobre as nossas cabeças. E a dor, que deveria ser apenas dela foi dividida igualmente entre

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nós, sobrando para os filhos a pior parte _ o silêncio. E a dor era... Simplesmente insuportável! Minha mãe ficou fora de si, desesperada, falava o tempo todo, o quanto ela havia brigado com toda a família para se casar com o nosso pai, o quanto ela era uma boa esposa e boa mãe e como havia sido trocada por outra mulher, que meu pai abandonara a família e não gostava dela e nem dos filhos. Aquelas palavras entravam em mim, como uma faca, me cortando a alma, o espírito, a carne e mais quantas camadas eu tivesse que fossem capazes de sentir. Eu me sentia indefesa, apanhando uma grande surra de um gigante, sem condições de reagir e sem saber ao certo onde doía realmente e o que fazer para evitar tanta dor. Mães são seres poderosos, mágicos, as palavras de uma mãe são à prova de qualquer blindagem que a mais alta tecnologia seja capaz de inventar. Acho mesmo que as mães governam o mundo indiretamente através dos filhos. Por exemplo: será que alguém foi saber quem era a mãe de Hitler, de Napoleão Bonaparte, e porque não citar exemplos positivos como Gandhi e Nelson Mandela. E apesar de saber que grande parte das palavras da minha mãe eram de pura dor e despeito, elas entraram dentro de mim, mesmo sem que eu quisesse, mesmo que eu lutasse contra. Entraram como uma inundação, derrubando tudo o que havia pela frente, transformando o meu mundo no lugar mais devastado do planeta. Eu já não sabia mais quem era, uma adolescente abandonada, uma mulher rejeitada, alguém que estava programada a não acreditar no amor, alguém que estava condenada a dor pelo resto da vida. E assim a vida prosseguia, eu e a minha dor, continuávamos vivendo...estudando. Como toda garota da minha idade, parecia ser normal, mas mal conseguia olhar para dentro de mim. Já não via mais Deus, já não escrevia mais, pouco falava e menos ainda, sonhava. Havia um buraco dentro de mim que eu não conseguia preencher com nada, nem a escola me bastava, nem as amigas, nem nada que pudesse pensar. Com 15 anos minha mãe não conseguiu me abrigar a ir a igreja, não mais, teria que me carregar no colo e já estava muito pesada para ela. Mas também já não queria ficar em casa. Tudo se tornara em nada! Eu carregava aquela dor dentro de mim , esperando que um dia algum milagre acontecesse e eu voltasse a conversar com Deus, a escrever, amar a escola, os meus amigos e acreditar de novo no meu mundo.

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Eu agora estudava em um colégio grande com várias turmas, já não era um colégio católico e tinha meninos também. De lá, sairiam os primeiros colocados no vestibular, portanto das nove turmas do primeiro ano, apenas cinco passariam para o segundo. Os demais alunos repetiriam o primeiro ano, ou iriam estudar em outra escola. À tarde eu continuava a fazer um curso de inglês em um bairro bem distante. Tinha um menino ruivo que estudava na mesma escola que eu, só que mais adiantado e fazia o mesmo curso de inglês e ele sempre olhava para mim, na esperança que eu o reconhecesse. Ás vezes pegava o mesmo ônibus e ele sempre me olhava. Eu gostava dele também, mas eu fazia de conta que não o via, acho que no fundo, eu não queria que ele chegasse perto de mim e descobrisse o quanto eu me sentia horrível por dentro e por fora. No final do primeiro ano, eu havia passado para o 2º ano, mas a única amiga que conseguira fazer na escola, apesar dos meus esforços de estudar com ela na véspera das provas, fora reprovada, o que me deixou mais isolada e sozinha no ano seguinte. Uma vez, na hora do recreio, eu vi os meus colegas jogando vôlei nas quadras de areia, pareciam tão felizes, e eu me perguntava: Porque viver? Qual a razão disto tudo? Se eu tivesse pelo menos um motivo! Por que todos estão felizes e eu não? Eu me lembrava de tudo que havia sonhado, do quanto eu era feliz, como o meu mundo era um lugar seguro, um lugar de paz e do quanto eu tinha certeza que poderia ser tudo o que sonhasse. Agora, tudo parecia tão difícil, tão distante e o mais trágico...sem sentido. Não tinha do que me queixar, na realidade, eu estava freqüentando uma escola, em um país onde grande parte da população não tem escolaridade. Iria com certeza para a universidade, tinha o que comer, o que vestir, tinha mais do que precisava e isto deveria fazer de mim, uma pessoa muito feliz, mas não fazia. Minha mãe sempre falava como era dura a vida dela e o quanto ela estudou com tanto sacrifício e que nunca teve carro para ir à escola e nem usava roupas da moda. E eu, só me sentia pior ainda! Eu procurava o meu mundo, o que eu sabia que existia, o que eu havia perdido, sem nem mesmo saber aonde. Pensei que fosse talvez, um preço que se pagasse para ser adolescente, mas não poderia aceitar. Eu buscava Deus, buscava a mim mesma, buscava a paz e a esperança que havia perdido, tinha que encontrar, onde quer que fosse, nem que tivesse

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que ir ao inferno. E, sem saber, eu fui mesmo! Minha casa virara um reduto de mulheres descasadas e mal amadas. Reuniam-se para falar mal dos respectivos ex-maridos e minha mãe, para variar, desfiava o rosário de queixas sem fim contra o meu pai, contando fatos e sendo impulsionada pela memória das próprias amigas de tantos anos, que como ela falou, sabiam toda a sua vida. Ela também se refugiava na igreja, em busca de sei lá o que, aquela altura do campeonato, eu já não sabia se ela queria que meu pai voltasse para casa para brigarem mais ou se queria simplesmente esquecê-lo. Eu não conseguia entender bem aquele sentimento, mas eu sabia de uma coisa - ele estava me devorando. Nos finais de semana quando meu pai aparecia para nos levar para almoçar fora, minha mãe sempre lembrava tudo o que ele havia nos feito, e nos perguntava, cheia de uma mágoa desesperada como nós ainda tínhamos coragem de sair com ele. A única forma de enfrentar a situação era calar e continuar andando, mas não sem sentir os tremendos arranhões na alma, que às vezes chorava sem parar, sem mesmo saber porque. Não falava da minha dor, era uma forma de me proteger, pois sabia que poderia ser ainda mais magoada. Virara um silencio ambulante, não sabia onde tudo aquilo ia acabar e começava a temer o futuro.

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§ Capítulo IV §

Acabava de passar para o 3º ano, chamado pré-vestibular. No ano seguinte iria para a universidade. Isto poderia ser um motivo por si só de grande alegria, mas eu nem sabia que carreira seguir e começava a achar que minha vida seria um grande fracasso. Na época do carnaval, fui convidada para um “retiro espiritual”. Explicaram-me que era um grupo grande de jovens, com idades que variavam dos16 aos 30 anos, universitários em sua grande maioria, que formaram uma igreja, porque viram suas vidas mudadas por Deus e que estavam muito felizes. Um deles, inclusive havia sido viciado em drogas, mas agora estava feliz e recuperado. Eu não gostava muito de igrejas, apesar de ter sido criada em uma

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delas, mas por razões que nem a razão conhece, eu fui. Íamos passar os quatro dias de carnaval em uma espécie de pousada, com piscina, quadras de vôlei, futebol e outros entretenimentos mais que ficava em uma cidade no interior do estado, cerca de duas horas de viajem. Quando lá cheguei, não havia nada disto, mas havia outras coisas que jamais imaginei nos meus 17 anos de vida. Fomos alertados a ir sem comer, fazia parte do ritual, era o chamado jejum, e nos explicaram que Deus ouviria melhor nossas orações deste jeito. Talvez Deus goste de famintos, não sei muito bem, mas de qualquer jeito eu não ia quebrar o jejum, poderia até perder uns quilinhos que eu sempre achava que tinha a mais. Chegamos. Já era tarde da noite e pensava que iríamos direto para o refeitório, mas ao contrário, fomos conduzidos para uma espécie de capela, onde, o que se dizia pastor, começou um culto bastante movimentado. Primeiro começou a orar à Deus, de forma que qualquer um acreditaria que Deus fosse surdo, tamanho eram os gritos que ele dava. Depois de longos minutos de oração, ele falou que tinha uma profecia diretamente de Deus para todos, tipo um recado, e começou dizendo que Deus tinha chamado, exatamente aquelas pessoas ali, para um concerto na vida delas e que se você estava ali, naquela momento, poderia ter certeza, O senhor, todo poderoso queria mudar sua vida e estava te chamando para uma grande missão. Nesta altura, eu já estava bastante arrependida de ter ido, mas estava lá e não poderia fazer mais nada e pensando bem, a minha vida estava mesmo uma droga! Começava a ficar confusa. O pastor continuava falando de forma bastante inflamada, na realidade ele berrava! Algumas pessoas começaram a cair no chão, era um teatro de horror e eu só queria estar longe, muito longe, mas era tarde demais. Ele falava incessantemente de como todos eram pecadores, muitos choravam e concordavam e eu só queria sumir dali. Mas para onde iria? Voltaria a viver, se é que aquilo poderia ser chamado de vida, sem esperança, sem respostas e principalmente sem objetivo. Os minutos passavam e eu no meio do tumulto, confusa e sozinha, acabei sendo convencida que eu era uma grande pecadora e que precisava mudar de vida. Então o pastor fez um apelo para os que queriam mudar de vida e

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deixar o senhor todo poderoso entrar em suas vidas, que se levantassem. Ainda pensava, quando ouvi uma voz, estranha, externa, mais audível e clara. - Se você não se levantar eu vou endurecer o seu coração! Não pensei mais, apenas me levantei. Depois de passar ali, os quatro dias previstos de carnaval, voltei para casa com uma forte sensação que algo mudara dentro de mim. Sim, algo havia mudado, sem dúvida! Já não sentia aquele grande vazio, não sabia dizer o que acontecera, mas desfrutava de um sentimento de paz, sem razão, sem explicação. Parecia que algo em mim havia sido retirado, exatamente o que me incomodava, restando agora, uma sensação de aceitação. Eu estava feliz, não queria mais voltar a me sentir vazia novamente, tinha a impressão que enfim, encontrara Deus, iria viver em paz!. Ali era meu lugar, pertencia aquele grupo e me sentia aceita lá. Agora precisava seguir os protocolos; andar como eles, falar como eles, pensar como eles, todos em um, perfeita união, mesmos objetivos, mesmos princípios e estar sempre pronta a reagir quando alguém de repente se rebelasse contra as nossas regras. Jesus Cristo era o senhor e salvador das nossas vidas e a partir daquele momento, toda a nossa vida seria submetida a ele. Cada novo convertido teria um membro mais experiente para ajudar na tarefa de viver uma vida santificada, segundo os preceitos do grupo. Deveríamos ler a bíblia sempre e a interpretação deveria estar incondicionalmente de acordo com o princípio da submissão, qualquer outra forma de questionamento ou raciocínio deveria ser descartado. Os que por um motivo qualquer deixassem de aceitar as regras, deveriam ser imediatamente considerados rebeldes e segundo os preceitos bíblicos, jogados para fora do rebanho e entregues ao Diabo. Tudo que eu fizesse a partir daquele momento, deveria ser comunicado a minha pastora, que oraria junto comigo, para saber a boa e perfeita “vontade de Deus”. Deveríamos ler a bíblia todos os dias e buscar a santificação através da palavra e também deveríamos buscar mais membros para a nossa igreja, pois esta era a vontade do Senhor. Ali, nada era questionado. Todos estavam bem e felizes, pois eram tementes ao Senhor e o Todo poderoso abençoava enormemente os filhos fiéis. Qualquer tropeço, qualquer fraqueza já indicavam pouca fé e pouca comunhão com Deus. Está claro que existiam as hierarquias, mas os mais fracos na fé, deveriam prosseguir na busca de aperfeiçoamento, pois não havia limites,

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faríamos milagres, seríamos como Jesus Cristo, bastava crer e viver de acordo com os preceitos estabelecidos. Os mais humildes eram aproveitados para trabalhos domésticos na casa dos pastores e os que tivessem algum defeito físico, eram convidados a se retirar, pois assim era a vontade do Senhor e assim estava na sua palavra. Enfim, eu fazia um grande esforço para agradar a Deus, mas com o decorrer de um tempo, não muito longo, já sentia que falhava em algumas coisas e me sentia triste comigo mesma. Deveríamos louvar, a Deus, todo o tempo, fazer sempre a sua vontade, andar sempre em santidade, amá-lo acima de tudo e todos e acima de nós mesmos. Começava a amar um Deus fora de mim, que exigia um grande preço pelo seu amor e que a qualquer momento poderia me mandar para fora do paraíso. E eu faria qualquer coisa para permanecer neste paraíso, aliás , já tinha feito, abri mão da minha própria liberdade. Agora eu estudava em outro colégio, localizado em uma zona nobre do meu bairro. Era um curso pré-vestibular, onde o regime de aulas não era nem um pouco espartano, como dos colégios onde havia estudado. Assistíamos às aulas que queríamos e podíamos chegar em qualquer tempo, poderíamos até ficar sentados nas mesas lá fora, ninguém ia perguntar nada e nem tinha caderneta escolar. Só tinha uma turma de terceiro ano, bem grande e nossa sala era isolada do resto da escola, era bem ampla, cheia de janelas que davam vista para um gramado maravilhoso. Nesta turma, havia a maior concentração de pessoas bonitas por metro quadrado que eu já vira na vida, eram meninos e meninas entre 17 e 21 anos, todos bonitos, bem tratados e felizes e eu me sentia muito bem ali! No intervalo das aulas, todos conversavam animadamente sobre assuntos variados e sobre o vestibular. Uma vez, conversava com um menino que me perguntou qual carreira eu seguiria: - Ainda não sei, respondi e devolvi a pergunta: - E você? - Vou fazer agronomia. - Legal! Respondi. De repente, ele me encara sorrindo e fala:

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- Você não quer plantar batata comigo? Eu dei uma risada sonora, gostara, era com certeza a cantada mais charmosa da minha vida. Quando o encarei de novo, percebi que ele esperava uma resposta e bem antes de pensar se eu queria ou não plantar batata com aquele menino bonito e espirituoso, eu me lembrei que a minha pastora não estava ali, para podermos orar a Deus e perguntar se era da vontade dele ou não e provavelmente não seria, pois ele não era um dos nossos. Por fim, chegou a hora da inscrição no vestibular e eu não sabia ainda que carreira seguir. Orei, pedi a Deus e parecia não ter resposta alguma. Liguei para a minha pastora e ela disse que tinha orado e sentira do Senhor que eu deveria fazer História. Fiquei bem feliz, eu gostava mesmo de História. Fiz a inscrição, sabia que havia sido preparada para uma carreira bem mais concorrida e que seria muito fácil passar em História.

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§ Capítulo V §

Estudava pouco, pois gastava muito do meu tempo e energia, tentando desesperadamente agradar aquele Deus e ser merecedora do paraíso. Mesmo com tanta dedicação, via aquela sensação de paz do começo, ser gradativamente substituída por uma sensação de culpa. Eu amava a um Deus que me dera a vida, me dera seu filho, para morrer na cruz por mim, me dava tudo e parecia que tudo que eu pudesse dar em troca era muito pouco! Era um Deus extremamente exigente e que me amava na condição de eu tentar ser uma pessoa que eu não era e jamais seria, mas eu ainda tentava, iria conseguir, ainda acreditava. Na igreja, pequenos escândalos de pessoas que tropeçavam na fé, começavam a aparecer e nós ficávamos abalados. Uns se arrependiam publicamente e outros iam embora da igreja e nós éramos alertados para nem cumprimentar estas pessoas, pois eram pecadores. Eu jurava que jamais tropeçaria, jamais decepcionaria à Deus, mas no fundo sentia - me culpada, pois sabia que poderia ser melhor. Deus esperava muito mais de mim, com certeza, tinham muitas pessoas

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melhores que eu na igreja e este sentimento ia aos poucos tirando minha paz. Eu achava que tudo continuaria exatamente assim, quando de repente o inesperado aconteceu: Depois de um ano e meio freqüentando a igreja, um dia, à noite, antes de dormir, deitei-me na cama e de repente, uma voz interna clara e firme, começou a falar: - Você não percebe que eles estão dominando a sua vida? Tentei retrucar: - Não! Não era bem assim... - Eles estão decidindo o que você vai estudar, vão decidir com quem você vai se casar e como você vai viver. Eles estão tirando de você o direito de viver! Eu ainda tentei retrucar, mas a firmeza daquela voz, derrubou em pouquíssimo tempo todas as minhas convicções e o véu caiu. No outro dia, percebia claramente que havia me tornado um robô, que a responsabilidade de viver e os prazeres da vida haviam sido retirados de mim. Perdera o direito sobre a minha própria vida. Aquele direito básico de viver, de ganhar e perder, de sorrir e de chorar, de escolher, enfim de viver, com todas as responsabilidades que isto implica. E só agora eu via isto claramente. Peguei a bíblia que havia lido por um ano e meio e nunca entendera nada e como que por milagre, alguns versículos saltaram aos meus olhos, haviam se tornado tão claros, que mesmo que eu não quisesse entender seria impossível. Voltei à igreja e falei com o pastor principal , como que para dar uma última chance, para ter certeza de que era realmente assim, tipo uma prova final, depois de estar lúcida. Discuti com ele um versículo sobre “a promulgação de leis para santos”. Ele ficou boquiaberto, não havia palavras que pudessem derrubar os meus argumentos, mas no final ele disse que iam orar para ver o que o Senhor dizia sobre aquilo e então percebi claramente que nada iria mudar e que eles continuariam a dominar e a subjugar os jovens que ali estavam e que por um motivo ou por outro, decidiram trocar suas liberdades por uma migalha de amor. Eu simplesmente me despedi amigavelmente e não disse nada, mas nunca mais voltei. Decidira sair do “paraíso” andando com as minhas próprias pernas e

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convicta de que não havia mais nada a fazer. Eu só precisava continuar vivendo e sepultar este vergonhoso capítulo da minha vida. Eu agora era livre, poderia ir aonde desejasse, fazer o que bem quisesse, falar com quem bem entendesse e dizer sim ou não, quando precisasse. Tudo parecia simples, mas não era! E apesar de ter saído da igreja opressora e apesar de ver tudo com clareza, alguma coisa ainda estava dentro de mim, que eu não conseguia simplesmente administrar e nem ao menos sabia o que era. Só me restava viver! Voltaria para a minha vida e tentaria de novo, mas não via futuro, eu não conseguia entender o que se passava, deveria estar feliz, estava livre, o que mais poderia desejar ? Como alguém que teve a alma escravizada, dar liberdade agora, não era suficiente. Eu não poderia encarar este mundo aqui fora, pois estava programada. A liberdade de nada me servia, pois eu não sabia para onde ir, nem o que fazer e pelo menos lá dentro eu me sentia de certa forma protegida pelo grupo, pelas ideias, pelos objetivos que por mais inalcançáveis que fossem já faziam parte da minha vida. Um dia, no meu quarto, eu pensava sobre o que minha vida, uma vez tão promissora, havia se tornado, na minha falta de objetivo, nas minhas perguntas sem respostas, na vergonha que agora sentia de mim mesma e principalmente no Deus que cobrava um preço tão absurdamente alto para me amar e então percebi que não havia mais nada a fazer. Dentro de mim, existia a maior decepção que um ser humano, poderia ter em sua vida – eu me decepcionara com o próprio Deus!

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§ Capítulo VI §

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Aproximadamente quatro meses depois, eu era encaminhada para o hospital universitário com um caroço no pescoço e um grande tumor no mediastino anterior à esquerda, bem próximo ao coração. Família, parentes e amigos, todos consternados, ninguém conseguia entender o que acontecera. Passado o susto inicial, eu me lembrei novamente de Deus e vi alguma coisa mágica acontecer dentro de mim. Algo que não tinha explicação... eu estava finalmente em paz... é isto mesmo, estava em paz, na mais profunda paz que poderia imaginar e começava a amar aquele tumor. Começava a amar a vida e novamente sentia, dentro de mim, o Deus da minha infância. Como em um passe de mágica, ele havia retornado, depois de eu ter perdido todas as esperanças. No início, me encaminharam para o centro cirúrgico, já preparada para uma grande cirurgia, contudo , dentro de mim, eu sabia que esta cirurgia não iria acontecer. No centro cirúrgico apenas fizeram a biópsia do caroço no meu pescoço e por certo devem ter feito congelação do tecido pois descartaram a cirurgia, me avisaram que eu estava de alta hospitalar e que faria quimioterapia ambulatoriamente, mas que eu não me preocupasse, teria grande possibilidade de ficar boa. Eu estava como que encantada, conectada diretamente com o céu,

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sentia-me leve, feliz e gozava de cada minuto da minha vida. Começava a adorar música novamente. Nada mais era importante, estava em paz comigo, em paz com Deus e em paz com o mundo.Eu sabia que iria ficar boa e mais do que isto eu sabia que algo muito grande iria acontecer, só não sabia exatamente o que , mas estava confiante! Uma noite, recebo o telefonema do meu pai, que esteve ausente por uma grande temporada, ele havia passado às festas de final de ano e parte de janeiro fora e ficara sabendo pela secretária que eu tinha um tumor no coração. Avisei que não era bem no coração, era perto, mas que eu já estava em tratamento. Meu pai , morava não muito longe lá de casa com uma mulher e o filho dela. Aos poucos, ele foi se aproximando e me levou na casa deles. Eu comecei a viajar com eles, nos finais de semana para a serra e desfrutar por uns breves momentos do que seria uma vida em família, feliz e saudável. Por uns breves segundos, no mais íntimo do meu ser, pensei o quanto seria bom, se a vida fosse sempre assim! Minha mãe ficava furiosa, toda vez que eu saia e dizia que a culpa de eu estar doente era do meu pai. Mas, diferente de antes, eu não sentia nem um leve arranhão provocado pela culpa, ia na mais profunda paz que um ser humano poderia experimentar na vida. Não havia culpados, eu estava certa, eu ficaria boa e tudo tinha um propósito. Tirando os dias de quimioterapia, que eu passava um pouco mal, no outro dia eu já estava bem, para viver e sentir a vida. Um dia fui visitar um amigo. Eu tinha um amigo que era Marxista convicto. Ele estudava ciências sociais e como sabia que eu estudava História, todas as vezes que nos víamos, debatíamos temas sociais, políticos e econômicos. Fui visitá-lo e o papo ficou inflamado. No meio da discussão perguntei-lhe o que teria acontecido se Hitler não tivesse nascido, ou melhor, o que não aconteceria. Será que a 2º guerra mundial teria ocorrido? Definitivamente vi-o engasgar, não tinha resposta, nem mesmo eu tinha, a única diferença é que fui eu, quem fez a pergunta. Parecia que até o meu raciocínio estava mais rápido e melhor. Eu ouvia música e parecia que a música fazia parte de mim, de minha vida, era um sentimento maravilhoso. Eu saia e nada temia, nem ladrões, nem acidentes, nada, absolutamente nada! Eu não sentia culpa de absolutamente nada, existia uma grande força ao meu redor que dava um sentido à tudo e preenchia tudo, era um sentimento maravilhoso, indescritível.

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Nada, absolutamente nada me preocupava, eu não temia o futuro, não tinha mágoa do passado e vivia o presente simplesmente na mais perfeita harmonia que eu poderia sonhar. Mas deveria pensar que aquele momento especial da minha vida, chegaria ao fim.

§ Capítulo VII §

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À medida que o tumor desaparecia do raio X, eu começava a entrar novamente naquele túnel escuro, e bem conhecido que havia sido a minha vida até então. Eu comecei a me desesperar, não sabia que isto fazia parte do tratamento. Deveria fazer o caminho de volta e voltar ao ponto de origem, onde tudo começou, e só assim, eu saberia a razão e só assim, eu conseguiria saber exatamente o que procurava e só assim, eu teria a resposta, a grande resposta que eu havia esperado por toda minha vida. Mas eu precisava voltar ao ponto de origem, só voltando ao começo, eu poderia dar uma contra-ordem e acabar definitivamente com aquele tumor. Apenas eu poderia fazer desaparecer a energia que o havia gerado, uma vez que fui eu a geradora de tudo. A quimioterapia poderia matar as células tumorais, até todas, mas ela jamais conseguiria me curar, pois as células malignas tinham vida própria e obedeciam a um outro comando, que agora esperava uma contra-ordem para cessar seu efeito e esta contra-ordem só ocorreria nas mesmas condições da primeira ordem, ou seja, o veneno, agora seria o antídoto. Portanto eu deveria seguir novamente por aquele túnel escuro, mas eu não entendia, o que estava acontecendo, só sabia que todos os meus males voltavam novamente e eu escorregava sem que nada pudesse me deter para o ponto de origem. Lutei contra, mas era inevitável, nada poderia deter a minha queda e então voltei a minha velha programação mental. Já tinha um plano em mente, eu voltaria para aquela igreja

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opressora, me arrependeria de ter saído de lá um dia, pediria perdão aquele Deus e voltaria a viver ali, debaixo do comando deles. Eu estava certa, faria isto e então peguei a bíblia que já estava esquecida em um canto qualquer e foi neste momento que mais uma vez o inesperado aconteceu. Abri a bíblia ao acaso e meus olhos leram as seguintes palavras – sua cura apressadamente brotara e a glória de Deus será a tua retaguarda – era no livro de Jeremias. Quase que simultaneamente escutava uma voz, externa, clara e audível, no meu ouvido direito: – Você não precisa mais fazer quimioterapia , você está curada. Continuei lendo e logo abaixo eram enumerados vários pecados cometidos pelo povo Hebreu e Deus chamando-os ao arrependimento. Quase que automaticamente a minha culpa emergiu de forma violenta e eu comecei a gritar pela minha casa, que milagrosamente em um sábado à noite, quando costumava ser um clube de tantos jovens amigos dos meu irmão , estava restrita a presença da minha mãe. Eu comecei a gritar que estava curada, mas eu também entendia que eu deveria me arrepender dos pecados, que deveria levar uma vida santificada, que deveria abrir mão da minha vida, justamente depois que a vida se mostrara tão maravilhosa e eu lutava comigo mesma, iria conseguir. Corria desesperada pela minha casa ampla e confortável, com um belo jardim e uma piscina para passarmos os dias quentes do verão carioca, e culpava o meu fracasso por todos os confortos que havia conhecido na vida, mas ainda brigava comigo, eu iria conseguir. Voltei para o meu quarto, agora havia em mim, um sentimento de saudades da vida, indecifrável apego aos momentos de felicidade e liberdade, quando novamente uma voz firme e interna me fala: - Você não vai conseguir, Mônica. É .. eu sabia .. havia falhado, jamais conseguiria, principalmente, depois de ter sido tão feliz nos últimos dias. Eu estava arrasada, nada poderia me consolar. Agora eu admitia para mim mesma que não poderia, jamais conseguiria. No fundo, tudo que eu queria era simplesmente viver, ser feliz, ser aceita como eu sou, ser amada como eu sou, mas nada poderia fazer, só esperar a justiça divina. Naqueles segundos que pareciam uma eternidade eu encarava a dura sensação de indignidade _ indigna de viver, era como eu me sentia. Quando de repente... do meu lado esquerdo, junto à janela, eu vi uma imagem impressionante, mal poderia acreditar, era Jesus Cristo, pregado na cruz! Ainda estava confusa, quando aquela voz, que já havia me dito que eu não ia conseguir, que desistisse de tentar, continuou .

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- Ele morreu para você viver, Mônica. Eu ainda estava confusa e a voz continuava: - Ele levou sobre si as nossas enfermidades, o castigo que nos traz a paz, estava sobre ele. Eu estava muda, ainda não tinha conseguido entender o significado de tudo aquilo, tamanha a programação mental a que fora submetida. Mas aquela voz continuava firme. A partir de agora, você pode fazer o que quiser, voltar a quimioterapia... Não, por favor não, isto não. Gritei desesperada! Se você não quiser, não volta, você está curada. Eu continuava estupefata, não conseguia assimilar, não entendia a grandiosidade do que estava acontecendo,mas a voz continuava firme dentro da minha cabeça até o momento que peguei no sono. No outro dia de manhã, ainda a ouvia: Ele morreu para você viver! Novamente eu estava no ponto de origem, onde eu decidira que não havia mais o que fazer, que não havia esperança e que Deus havia cobrado um preço tão alto, que melhor seria decretar a minha própria falência , para descobrir que eu era livre, que não havia nenhum preço a ser pago, que eu poderia fazer o que bem entendesse da minha vida, sem culpa. Pensar que eu ia conseguir entender isto naquele dia mesmo, é como pensar que um ser humano caquético, daquele tipo que sai de um campo de concentração, iria conseguir sentar em uma mesa e comer uma fausta feijoada, regada a muita caipirinha. Era simplesmente impossível! Minha mãe estava muito assustada e mais uma vez recorrera à igreja para espantar seus males. No horário do almoço voltou para casa com duas “ irmãs em Cristo “, que oraram por mim e falaram para a minha mãe que eu estava curada. Minha mãe, eu sentia que tinha um pé lá e outro cá, não estava engolindo nada disto, mas como toda mãe tentava acreditar no melhor. Agora, eu voltava a minha velha vida, já conhecida e da qual eu havia desistido, mas havia algo diferente. Tudo ao meu lado havia sido destruído como em um grande terremoto e uma outra realidade ia aos poucos se instalando. O apelo da vida falava mais forte e já não havia motivos para morrer. Acabara de me agarrar fortemente aqueles acontecimentos do sábado à noite. A imagem de Cristo, a voz firme, que me mandava viver e me dizia que eu era livre. Tentava entender, tentava racionalizar, pois esta

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seria a minha única chance de vida , eu estava certa! O tratamento para o suposto Linfoma, não havia terminado e eu deveria voltar ao hospital para o que seria uma das últimas aplicações. Eu ainda estava bastante confusa. Minha mãe me levou para o hospital, como quem fala, você pode se achar curada, mas é melhor terminar o tratamento convencional. E eu guardava uma ilusão de que na hora certa, como que por um milagre, receberia alta do tratamento. Mas nada havia mudado na cabeça dos médicos, se mudou alguma coisa foi dentro de mim e eu mais uma vez não conseguia entender. Entrei no ambulatório, tudo ocorria como de costume, perguntei se ainda continuaria a fazer quimioterapia. Responderam que sim, naturalmente. Agora eu estava realmente confusa, sabia que não precisava mais, se eles não sabiam disso, a culpa não era minha, pensava. Minha cabeça continuava povoada de mil pensamentos, deitei na maca , quando de repente, dei um grande salto: - Não, eu não vou mais fazer quimioterapia. Um grande alvoroço se criou dentro do pequeno recinto. O residente, desesperado, segurou a minha mão e falou com uma voz que deixava transparecer grande emoção: - Você não tem o direito de fazer isto com as pessoas que te amam! Minha mãe completava de forma bem sutil: - Eu vou comprar uma coroa de flores para o seu enterro. - Eu não vou morrer. Respondi calmamente, sem deixar transparecer a pressão que estava vivendo e depois mergulhava novamente no silêncio. Eu me lembrava que, se quisesse, poderia até fazer quimioterapia, mas eu simplesmente não queria. Eu me recusava a estender o braço. Estava resoluta, se nada do que aconteceu é real, então melhor morrer. Pensava que a maior prova, seria realmente não fazer mais o tratamento e eu precisava desesperadamente desta prova. Fui encaminhada ao chefe do serviço que me esperava em seu consultório...

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§ Capítulo VIII § No Hospital

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Na pequena sala de paredes cinzentas do consultório, havia uma única e diminuta janela, pela qual se podia ver um pedaço pequeno de um céu azul profundo,mesclado por algumas nuvens brancas e brilhantes. Meus olhos, furtiva e confusamente, fitavam aquele azul, buscando uma resposta. De uma hora para outra descobri que havia dois mundos distintos que naquele momento se anulavam e se fundiam em um só... Como entender? Ainda me lembrava dos recentes acontecimentos, parecia tudo muito distante, nada parecia ser verdade... Nada poderia estar acontecendo realmente... Meus olhos voltaram novamente para o médico e ouvi impassível uma sentença de morte. Não, não podia ser verdade! Novamente meus olhos buscavam o azul do céu, que nada falava, apenas mostrava o infinito... O infinito que não cabia naquelas quatro paredes e muito menos na cabeça das pessoas que ali continuavam a me olhar, com um misto de sentimentos, que eu não conseguia decifrar e nem tão pouco me importava. A única coisa que estava bem claro para mim é que não importa agora quem está certo, o que importa é, em que mundo eu preciso acreditar, pois a morte física não deve doer tanto quanto a morte em vida, esta era a única certeza que meus neurônios cansados conseguiam entender e aceitar naquele momento. Nada importa, nem vida, nem morte. Nada vale a pena, se o azul do céu não for além do que realmente conseguimos enxergar. Fitei novamente o médico e disse calmamente, como quem informa apenas e não como alguém que desmente tantos anos de vida acadêmica e experiência profissional: _Eu não vou morrer . Novamente eu ouvia nova sentença de morte e outras argumentações, que não tiveram espaço da vez passada. Minha cabeça continuava confusa, mas não com a idéia da morte,

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mas pelo que acabara de descobrir... Não podia ser! E olhava em volta, estava isolada, ninguém acreditaria... E novamente o céu azul que nada falava , mas ao mesmo tempo dizia tudo, nutria em mim, a última esperança... Não de permanecer viva, mas de poder acreditar que a vida era muito, muito mais do que aquelas quatro paredes e do que os conhecimentos acadêmicos daquele profissional. E foi por esta vida que eu procurei e apenas nesta vida eu faria questão de viver, caso contrário, a morte seria um grande ganho. Sai do hospital naquela manhã, deixando para trás, a indignação daqueles profissionais, mas estava resoluta, não fiz o tratamento. Tudo que eu queria era uma chance de provar que estava certa, mas nem isto eu teria com certeza. Achavam que eu era louca e que queria morrer. Devo confessar que não estavam tão errados assim! Mas talvez viver valesse a pena realmente e se viver vale à pena, eu não preciso mais dos tratamentos que eles acham que eu preciso, era simples! Mas não me ouviriam, nem sabem do que eu estou falando. Pensava eu, no longo caminho de volta para casa. Cheguei em casa e tudo o que eu mais desejava era ficar sozinha. Não queria ouvir ninguém, não queria que me aconselhassem, não queria nem que olhassem para mim. Tudo estava confuso, precisava ficar sozinha, para colocar minha cabeça em ordem e não sabia se conseguiria, talvez estivesse enlouquecendo!... Eu já não sabia ... Mas me lembrava do céu azul e uma esperança novamente parecia surgir de algum lugar. Já não sabia em que acreditar, mas tudo foi tão real... Não podia ser.... Novamente voltava meus olhos para o mundo que me mostravam e novamente a certeza... Prefiro morrer! Não quero viver neste mundo medíocre e mesquinho. Quero ser livre! Se ainda precisava fazer quimioterapia, então o mundo deles é mais real que o meu mundo. Prefiro morrer! Desejava que me deixassem em paz, mas naquelas circunstâncias, sabia que seria praticamente impossível. Poucos dias depois, minha mãe bate na porta do quarto e conversa comigo calmamente. Dizia que ninguém estava com raiva de mim e que os médicos tinham uma nova proposta de tratamento. Eu escutava tudo sem nada dizer. A proposta era a radioterapia. Era indolor e não provocava vômitos. Voltamos ao hospital e ficou tudo acertado, uma nova equipe seria

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responsável por este novo tratamento. Eu seria irradiada diariamente por um mês. O tratamento começou e eu estava disposta a ir até o fim, com um único objetivo, que me esquecessem, definitivamente , depois de tudo. No final da primeira semana, meus cabelos que até então, estavam firmes na minha cabeça, não obstante as várias aplicações de quimioterapia, começaram a cair em grandes tufos na parte de trás, o que me deixou bastante abalada. Eu me sentia fraca e cansada, contudo tinha esperança que tudo aquilo acabasse. E tudo acabou bem antes do que eu esperava. No final da 2º semana de tratamento, chamaram - nos para o consultório médico. Senti novamente o chão saindo debaixo dos meus pés. - O que queriam agora? Pensava. Eu mal conseguia imaginar o que nos falariam, imaginava algo terrível, não sabia, estava insegura e perdida. Gostaria de sair correndo, voltar para o meu quarto ou qualquer lugar onde pudesse me sentir segura. Mas tive que ouvir o que tinham a me dizer. O medico então falou que o meu caso estava sendo estudado por uma equipe, entre os quais, um convidado internacional. - Se já não bastassem os brasileiros, mais um de fora para se intrometer! Pensava impaciente. E a notícia que tinham para me dar é que o tumor não respondia a radioterapia, ou seja, estava do mesmo tamanho. Portanto eles me deram algumas opções que seriam; voltar para a quimioterapia, continuar fazendo radioterapia ou me submeter a uma cirurgia para que constatassem o que havia acontecido, pois havia o relato de um caso, que o tumor tinha virado um “linfomado residual”, não havia mais um tumor propriamente dito. Ventilaram inclusive a possibilidade de um erro no diagnóstico. E neste jogo de múltipla-escolha, escolhi a quarta opção, que eles não deram, sai do hospital naquele dia e nunca mais coloquei meus pés lá dentro.

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§ Capítulo IX §

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A partir daquele dia, finalmente conseguira minha carta de alforria. Poderia morrer em paz, se fosse o caso, pois a própria classe médica não sabia o que fazer comigo. Tão pouco eu sabia o que fazer comigo mesma, mas sabia que precisava viver. Não tinha mais motivo para morrer, precisava agora arrumar motivos para viver. Ainda tinha muito medo, ás vezes ficava paralisada pelo pânico, constantemente me perguntava o que faria se o tumor voltasse... Será que morreria mesmo? Será que ainda teria forças para me tratar? Lá em casa, não se tocava mais no assunto, se restringiam a perguntar se eu estava bem. Superficialmente bem _ pois o resto não interessava. Ninguém mais perguntou o que acontecera realmente. Criara-se, por assim dizer, uma parede de ferro, a mesma que eu havia visto no hospital, no dia que me recusara a fazer a quimioterapia. Mas pelo menos, ninguém mais me mandava de volta ao hospital e nem me lembravam que eu estava doente. O assunto estava por assim dizer, encerrado. Lembrava novamente daquela noite em que tudo acontecera, de tudo o que aprendera, parecia surreal, gostaria de contar, mas ninguém vai acreditar! Estava difícil me readaptar a vida, ainda tinha muito medo, medo de estar errada e medo de estar certa, medo de viver e medo de morrer. Precisava urgente voltar à vida e só havia uma saída. Peguei todos os acontecimentos, joguei-os em um quarto escuro, fechei com sete chaves e disse a mim mesma que não poderia conviver com aquilo. Deveria voltar a viver urgentemente, ser uma pessoa normal como todas as outras e o que aprendera era uma realidade demasiado pesada para carregar, não poderia falar sobre isto, deveria viver como as outras pessoas. Melhor fazer de conta que nada aconteceu, melhor conviver neste mundo sabendo de tudo e fazendo de conta que não sabe de nada. Pensava em como as pessoas estão enganadas, vivem enganadas, mas não poderia fazer nada, não poderia mudar o mundo, aliás, naquele momento eu não sabia nem o que fazer comigo mesma. Pensava que talvez fosse melhor não saber de nada. Desejei por

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alguns momentos que nada tivesse acontecido. Tentava me convencer que nada daquilo tinha importância, o melhor era esquecer, enterrar, em algum lugar na minha mente e nunca mais mexer. A bíblia, coloquei-a de lado, abri mão da posse daquele livro, não vou destruí-lo, mas não o quero mais. Este pode ser o livro mais importante da civilização ocidental, mas agora, também descobrira que era igualmente o mais perigoso. Voltar a viver! Aonde foi que eu parei, mesmo? Já não sabia quem era e nem tão pouco o que me tornara, não sabia nem ao menos o que queria. O que eu precisava saber, já sabia, a grande coisa que eu pressentira que iria acontecer enquanto estava, por assim dizer “doente”, já acontecera Mostrando-me que não tinha motivo para morrer, só me restava andar com as próprias pernas e ver aonde a vida me levaria e foi o que fiz. Encontrei, com a ajuda dos amigos, o caminho de volta às praias, aos barzinhos, boates, festas, tudo que me fizesse esquecer o que acontecera e me tornasse uma jovem normal com apenas 19 anos. Não que estes lugares fossem os meus favoritos, mas precisava ir para algum lugar. Precisava fugir de dentro de mim mesma, pois carregava o mais precioso tesouro que já sonhara e isto pesava sobremaneira, o conhecimento. Principalmente quando se convive em um mundo, onde não há espaço para sequer questionar qualquer coisa que fuja aos nossos cinco sentidos.

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§ Capítulo X §

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Um dia, em um encontro de amigos lá em casa, apareceu um moreno bem bonito, era vizinho, mas nunca o via, conversamos um pouco, mas logo fui dormir. Reparei que com freqüência ele começou a aparecer lá em casa. Não demorou muito, começamos a namorar. Ele dava ao nosso namoro um caráter mais sério do que eu teria condições de assimilar naquele momento, pois sentia que precisava de uma realização pessoal, pois havia parado a faculdade e ainda não sabia o que fazer. Roberto era tudo de bom, bonito, cheiroso, bem arrumado, me tratava bem e ainda por cima era moreno. Daquele tipo que na volta da praia, você não fica com a impressão que trocou seu namorado por um camarão. Mas minha insatisfação ainda era grande, tinha que me redescobrir e foi assim que eu decidi voltar a fazer a única coisa que havia feito até então, estudar. Voltei para a faculdade de História e ao mesmo tempo, tentei vestibular para medicina. Não entendia muito bem o que me aproximava da medicina, se tudo que eu queria era ficar bem longe da classe médica e de hospitais. Talvez quisesse saber de onde vinha o poder daqueles profissionais. Roberto fazia muitos planos para nós dois e eu não conseguia nem ao menos fazer planos para minha vida. Só sabia que não ia viver na sombra de ninguém. Comecei a estudar. Ele reclamava da falta de espaço na minha vida e eu estava determinada a viver, mas não a vida que ele planejou para mim. Acabamos rompendo, mas foi valido, ele era tudo de bom, mas sabia que tinha muito a viver antes de me casar com quem quer que fosse. Passei para a faculdade de medicina em uma cidade a aproximadamente 200 km da cidade do Rio de Janeiro, onde morava. No exato momento que sai de casa, os meus medos, que pareciam estar sob controle, voltavam em surtos que eu tentava controlar. Sai da minha gaiola, para viver a vida lá fora, em uma casa desconfortável, quase sem móveis, velha e que eu dividia com mais duas estudantes.

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O tumor, não dava mais sinal de vida, o único termômetro que eu tinha, era o caroço, no pescoço que nunca mais apareceu. Envolvida em uma rotina pesada de estudos e cercada por novos amigos, jovens e às vezes bastante engraçados, eu fui vivendo. Fiz amigos... Fiz inimigos... Entrei, sem querer, em um triângulo amoroso... É a vida! Mas eu estava bem, não pensava mais sobre o que se passara e tinha meus surtos de insegurança, cada vez mais sob controle. Eu me misturava aos estudantes, não só da minha turma, mas dos outros anos também e até me convencia ser uma pessoa normal. Nesta cidade eu passei cinco anos de minha vida. Fiz grandes amizades, éramos uma família por assim dizer, pois a maioria estava como eu, longe de suas casas. Tive amores relâmpagos e as primeiras experiências sexuais. Era interressante perceber que no nosso pequeno mundo não havia privacidade e todos sabiam da vida de todos, não precisavam nem de jornais, as notícias chegavam com grande velocidade para quem quisesse ouvir . Nós íamos a barzinhos nos fins de semana, estudávamos noite à dentro, chorávamos, nos divertíamos, brigávamos , fazíamos as pazes, enfim, vivíamos! Eu era exatamente igual a todos os jovens, em nada eu me diferia deles e nem de ninguém a não ser pelo que havia escondido dentro de mim que agora estava guardado a sete chaves. Também não voltei mais ao hospital e se por acaso precisasse de um médico, eu excluía da anamnese a dolorosa HPP (história patológico pregressa). É claro que isto não duraria a vida toda. E foi exatamente quando voltei ao Rio de Janeiro para fazer o sexto ano de faculdade que eu experimentei novamente a sensação de falar sobre o assunto. Eu era interna em um hospital de porte médio, juntamente com outros estudantes de outras faculdades. Tínhamos aulas práticas e teóricas nas cadeiras básicas de pediatria, clínica, cirurgia e ginecologia, acompanhados pelos médicos do serviço e por residentes. Um dia após uma aula teórica, quando descia a rampa do hospital para voltar ao ambulatório, escutei uma voz logo atrás de mim: - Você quer comer bolo? Voltei instintivamente para a direção daquela voz, e vi um dos

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médicos do serviço, que nos ministrava aulas teóricas e que já havia me dado um fora no ambulatório de pediatria. _ Sim. Respondi humildemente, como cabia a uma interna. Ele me conduziu ao ambulatório de clínica médica e me mostrou seu consultório. Era hematologista, e para minha surpresa trabalhava com a mesma equipe que havia tratado de mim, no hospital universitário, mas na época ainda não estava formado. Sentia-me pisando em território inimigo, mas me mantive firme. Ele mandou que eu me sentasse, pegou o bolo e explicou que havia ganhado da mãe de um paciente. Cortou um pedaço, me ofereceu e começou a me fazer perguntas pessoais: - Quantos anos você tem? - 27. - Quantos vestibulares para medicina você fez? - Apenas um, é que eu fazia História. - Por que trocou? Nesta altura comecei a pensar no que ia falar, pois ele era demasiado esperto e estava indo rápido demais. - Eu me decepcionei com a faculdade. Respondi. De repente eu mesma, me pego entregando o jogo. - Aconteceu uma outra coisa também. Comentei, meio sem querer. Mais do que depressa, ele pergunta, sem dar muito tempo para que eu pensasse. - O que aconteceu? - Deixa para lá, eu não gosto de falar sobre este assunto. - Você quer falar. Disse ele, como se me conhecesse intimamente. - Não, deixa para lá, melhor esquecer. Ele espertamente lança novamente a rede: - Eu estou imaginando uma coisa horrível! Parei, pensei um pouco e ele continuou. - Doença na família? - Não, eu mesma. - O que você teve? Ele estava decidido a saber e no fundo eu queria mesmo contar. Respondi, então com uma mudança do tom de voz, como uma criança que confessa a mãe que quebrou o vidro da janela.

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- Tudo bem, eu vou contar, mas você promete que não vai fazer uma cara muito feia? - Prometo! Falou ele cruzando os dedos e levando-os a boca, com um sorriso e um brilho no olhar peculiar de quem se sente vitorioso. - Doença de Hodgkin - Como? - Doença de Hodgkin. Repeti. - Ah! Você teve um linfoma! Falou, em um tom bem estudado, de quem queria fazer daquilo a coisa mais natural do mundo. - Eu fiz uma cara muito feia? Perguntou ele, preocupado. - Não. Respondi, simplesmente Contei-lhe então que não havia terminado o tratamento e que havia sofrido uma grande pressão da equipe. Mas enfim, tantos anos depois, tudo parece ser muito natural, até o fato de eu ter ficado curada sem o consentimento da classe médica. - Porque vocês, médicos... Ele me interrompe: - Nós, médicos... Falou ele me corrigindo. Mas eu não me sentia médica, bem, na verdade, eu ainda não era, e não queria nem pensar quando tivesse que assumir isto na minha vida. Eu jamais conseguiria fazer de um paciente, um pedaço de carne, sem alma e sem voz. Continuamos a conversar e ele me falou da sua própria vida, como havia perdido o pai cedo. Enfim, mostrou-se humano também. Caminhamos juntos até o metrô e cada um foi para sua casa. Dias depois, o encontrei, sábado de manhã, no hospital, arrumado como nunca o tinha visto. Pediu-me carona e me convidou para almoçar com ele. Aceitei. Eu estava demasiado envolvida no nosso papo para dizer que não. No horário marcado, cheguei ao restaurante no baixo Leblon e ele já estava lá. Almoçamos, mas o rumo da conversa acabou mudando e apesar de termos passado a tarde juntos, eu fiquei bastante frustrada, pois em nenhum momento ele fez a pergunta que eu gostaria de ouvir, a pergunta chave _ Como você sabia que estava curada? Ele estava no meio da ponte que me separava do resto da humanidade e eu torcia para que ele seguisse em frente. Mas simplesmente, ignorou.

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Percebi, então, a grande dificuldade da classe médica em lidar com assuntos que não são explicáveis nos livros de medicina. A mensagem é clara, se não entendemos, simplesmente ignoramos. E assim, sai frustrada e me sentindo novamente sozinha. Tentando me convencer que talvez aquilo nem fosse tão importante. Mas dentro de mim, eu sabia que não havia nada mais importante do que aquele segredo que eu guardava a sete chaves. Se de certa forma me afastava das pessoas, de outra me devolvia a vida, era minha fonte de equilíbrio e loucura, minha inspiração e minha segurança e por fim, a única coisa que tinha o poder de me manter viva.

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§ Capítulo XI §

Depois de passar 6 anos em uma faculdade de medicina, passei a entender melhor o comportamento dos médicos. Era tudo muito simples! Na faculdade só se ouve falar em doença, diagnosticamos a doença,

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tratamos da doença, fazemos a profilaxia da doença, tentamos descobrir uma causa orgânica, se não descobrimos hoje, quem sabe qualquer dia, alguém vai descobrir. Mas ninguém fala no paciente. Tudo o que se sabe sobre o paciente, é se ele é orientado ou não, cooperativo ou não e já sabemos muito. O indivíduo é um mero portador da doença, que por um azar do destino, o infeccionou, ou quem sabe até mesmo, vítima de uma desafortunada herança genética. Portanto, tratamos da doença! Quanto mais agressiva a patologia, mais agressivamente respondemos a ela. Quanto ao paciente? Bem, ele não tem nada a ver com isto! Optei, então, por não conviver com os pacientes. Depois de formada, fui para São Paulo, fazer residência em Anatomia patológica. Tinha apenas uma colega de residência, a Karla . E foi com ela que compartilhei os dois primeiros anos da minha nova vida como residente de um grande hospital, em uma grande cidade, que às vezes assustava, mas que oferecia muito entretenimento para pessoas solteiras e sem compromisso como nós. Fizemos a primeira necropsia juntas. Parei para pensar na morte novamente, quando vi aquele corpo sem vida sendo jogado como um objeto, pelos técnicos do serviço, para cima de uma mesa fria, de alumínio e sendo aberto assim como um animal. Ali estava um ser humano, ou melhor, o que sobrara dele. Alguém que amou, chorou, perdeu, ganhou, enfim, viveu. Perguntava-me novamente a razão disto tudo, porque terminávamos deste jeito? A vida é frágil e os nossos corpos não valem absolutamente nada sem vida. Passado o período de adaptação e a irrefutável necessidade de nos adaptar, já fazíamos as necropsias sorrindo, sem pensar em nada, apenas na patologia. No final do dia, assistíamos à todos os filmes em cartaz no shopping Ibirapuera e quando já não tinha mais nenhum para assistir por lá, íamos ao shopping Paulista. E para fechar a noite, íamos para o Viena tomar um sorvete, invariavelmente o mesmo, o “choco love”. Nos finais de semana, saíamos com outros residentes do hospital que eram de fora, a grande maioria do nordeste e íamos para teatros e barzinhos. Sábado de manhã, sempre tinha alguma orquestra filarmônica de

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algum lugar se apresentando no parque Ibirapuera e lá íamos nós. Enfim, uma vida bem movimentada e divertida. No 2º ano, já não conseguíamos sair durante a semana, pois o trabalho aumentara tremendamente e tínhamos que ficar até tarde no serviço. Mas nos divertíamos lá dentro também, falando mal de todo mundo. No final do 2º ano, Karla optou por terminar a residência fora e enfim nos separamos. Perdi a companheira de todas as horas, com quem me divertia, dava boas gargalhadas, escorregava no chão encerado do serviço, mas às vezes também brigava. Faz parte da vida! No 3 º ano de residência, resolvi fazer as pazes com a classe médica e fui ao serviço de oncologia . Desta vez, não omiti a minha HPP ( história patológica pregressa). Mas também não contei que havia abandonado o tratamento. Enfim, um caso comum, precisava ver se estava tudo bem, simples rotina. O médico pediu um monte de exames de sangue e tomografia computadorizada. Por alguns instantes tive medo de colocar os olhos naquele exame, o que tinha acontecido com aquele tumor, afinal? Não respondera mais a radioterapia, mas tantos anos depois, o que tinha acontecido? Era uma incógnita e só a tomografia poderia mostrar. No dia marcado para pegar o resultado, pedi a um colega da dermatologia, que estava fazendo estágio na patologia para ir comigo. Estava tudo combinado, peguei o exame, entreguei na mão dele e mandei que ele olhasse primeiro e depois me falasse. Entrei dentro do carro, estava tensa. Via-o tirar as enormes chapas de dentro do envelope e examiná-las a luz do dia. Baixei a cabeça, era muita expectativa! Fui interrompida por um barulho. Quando levantei a cabeça, vi-o batendo com a chapa no pára-brisa do carro e gritando: - Não tem porra nenhuma aqui! Não tem porra nenhuma aqui! Nunca mais vou esquecer aquela cena! Sorri, era exatamente isto que eu esperava. Fui examinar melhor. O que uma vez era o tumor, havia sido substituído por múltiplas calcificações. Passado o sentimento de alívio momentâneo, percebi que nada havia mudado na minha vida. E eu continuava com a mesma sensação de antes, havia algo que me incomodava, algo impenetrável, alguma coisa me

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ameaçava, sem que eu conseguisse identificar. Eu não sabia, mas dentro de mim, um novo tumor estava crescendo, jamais seria visto por nenhum método radiodiagnóstico, por mais sofisticado que fosse e jamais viraria bloco de parafina. Era um tumor feito de silêncio, de um silêncio com um fim em si mesmo, sem solução, sem remédio, sem perspectiva. Era o tumor da não aceitação, do desprezo que me fazia viver na penumbra de dois mundos, um que eu precisava e o outro que efetivamente me era permitido viver. Já que eu estava disposta a tocar superficialmente no passado, resolvi voltar ao Rio e através da esposa de um amigo de infância que trabalhava no hospital universitário, consegui a lâmina do meu tumor. Afinal, agora, eu posso olhá-lo e ver se realmente houve erro no diagnóstico ou não. Fui à casa da Bia, na Barra da Tijuca, me sentindo um pouco constrangida, pois estava indo lá, com o único objetivo de pegar a lâmina, não achava muito educado da minha parte. Tentei parecer o mais tranqüila possível, mas estava ansiosa. Ela foi extremamente educada e simpática. Sentei um pouco, conversamos, não sei quanto tempo e nem lembro o que falei, pois eu só pensava na lâmina. Quando cheguei à São Paulo, mal pude esperar para olhar a cara daquele tumor. E se não fosse realmente um linfoma? Linfoma tipo Hodgkin, sub-tipo histológico esclerosante nodular, este era seu nome completo, morfologia clássica, não havia engano. Aqui no Brasil, no Japão, ou em qualquer lugar do mundo, nenhum patologista teria problemas para assinar em baixo deste laudo. Não houve erro! Dispensava até imunohistoquímica.

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§ Capítulo XII §

O 3º ano de residência foi mais tranqüilo que o 2º ano, mas ainda se trabalhava muito. Agora minha grande amiga era a Márcia, uma residente da patologia clínica. Ela era sem dúvida, a residente mais folgada que eu conhecera, chegava ao hospital às 10 horas da manhã, saia às 3 horas e ficava uma hora no refeitório conversando. Ia constantemente ao serviço de patologia falar comigo.

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Falava com um jeito peculiar, de quem não está acreditando. - Credo Mônica! Você ainda está por aí? - E ainda tenho muito trabalho. Respondia sempre. - Não sei como você agüenta! A minha amiga tinha um dom especial de debochar de mim, sem que eu me sentisse ofendida, pelo contrário, eu me divertia quando a ouvia imitando o meu sotaque de carioca. Ela conseguia me fazer rir de mim mesma e não há nada melhor nesta vida. Por fim, ficamos grandes amigas e em alguns finais de semana, íamos para Santos, na casa dos pais dela, onde passávamos muito bem. Comida boa e farta, uma piscina no quintal, passeios de escuna e papos bem descontraídos. Quando terminei a residência , tive que entregar o quarto que ocupava no alojamento dos residentes. Então fui dividir um apartamento em Santa Cecília, com uma amiga que conhecera no Rio, a Ana. Ana era baiana e para minha sorte, cozinhava muito bem. Ela era realmente uma pessoa especial, sempre de bom humor e sempre preocupada comigo: - Mô, eu trouxe pão, você não está com fome? Dizia ela quando chegava do trabalho. - Acho que vou fazer um jantar. Você quer? Com a Ana, acho que poderia viver o resto da vida que jamais conseguiria brigar. Nos feriados ia para Santos com minha amiga Márcia, pois a nossa amizade sobreviveu ao fim da residência médica. Para minha sorte, continuávamos amigas. Pois com um amor, um grande amor, eu poderia até sonhar, mas sem amigos, eu não poderia viver. Enfim, minha vida não era nada de especial. Sentia um pouco de falta da residência, dos amigos, das conversas no refeitório, das festas. Por mais que se trabalhasse, era divertida a nossa vida. Agora ficara tudo tão sem graça! São Paulo, fora dos limites do hospital onde eu fizera residência médica, já não era mais tão divertido. Agora, a lei era a sobrevivência e parecia que estava faltando muito espaço naquela cidade. Por exemplo: o sinal abria e fechava várias vezes e você simplesmente não conseguia sair com o seu carro do lugar, e o metro então! Parava e abria a porta, mas você

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não conseguia entrar, a menos que já tivesse visto pelo menos umas três vezes aquela cena. Vaga para o carro! Pode esperar, você vai ter que andar pelo menos uma hora até conseguir uma. E no cinema! A fila era tão grande que era melhor colocarem um telão no parque Ibirapuera. Ficava-se até uma hora para percorrer 6 km e quando a gente parava no sinal, eram ambulantes , que vendiam tudo que você possa imaginar e pedintes de todos os tamanhos e caras que se podia pensar. Mas, enfim, é a vida, pensava! Será que tem que ser assim? São Paulo não parava e nem seus habitantes. Todos andavam correndo de um lado para outro, tentando pelo menos sobreviver aquele dia. Será que aquilo é mesmo viver? De repente, como tudo que acontece na minha vida, uma grande rede, lançada do sul do Brasil, me levou embora, sem que eu conseguisse entender o que estava acontecendo. Mal o conhecera e ele já estava me pedindo em casamento. Ele foi tão decidido, que foi impossível dizer que não. Tinha um raciocínio rápido e o dom de perscrutar a alma das pessoas com quem conversava. Um ano e um mês depois, estávamos nos casando no sul, para quebrar o protocolo de que casamento deveria ser na terra da noiva. E eu, que jamais, nem no mais remoto dos meus sonhos me vira entrando de noiva numa igreja, segui todos os protocolos e tradições estabelecidas para um casamento. Tentei negociar um chapéu na cabeça, achava lindo! Ele argumentava que não ia ficar bem, não combinaria com o horário e o tipo de festa e por fim, foi tudo como ele quis, nos mínimos detalhes. Agora morava em uma cidade considerada de porte médio, mas para a minha cabeça era bem pequena. Esta cidade era muito interessante, quando o sinal abria a gente automaticamente andava com o carro, mesmo nos horários de pico. Achei extraordinário! Tudo era perto, ninguém vendia nada no sinal e não tinha nem meninos de rua e nem metrô. Uma vez perguntei se eu levaria quinze minutos para chegar a um determinado lugar. Riram da minha cara: - Aqui com 15 minutos você sai da cidade! Eu realmente ainda não tinha adaptado a minha mente ao tamanho daquela cidade, mas, de uma coisa eu estava certa; a vida por ali era bem mais tranqüila.

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Até que chegou o inverno e eu conheci o frio, pela primeira vez na minha vida. Não sabia como aquelas pessoas sobreviviam. Fiquei o inverno inteiro sonhando com as praias e o calor do Rio e pensava “Se existe lugar mais frio que este, eu nem quero ir!” Em um dia de inverno, ao abrir a janela do quarto de manhã, fato tão cotidiano e sem importância até então, fui surpreendida com uma cena inusitada na minha vida, tudo estava branco lá fora, o telhado das casas, a capota dos carros, os galhos das árvores e pequenos flocos de neve ainda caiam silenciosamente no chão. Eu fiquei maravilhada! Habitante de um país tropical, agora presenciava uma paisagem de cartão postal europeu debaixo da minha janela. Fotografei! Não podia deixar passar esta cena sem documentar, foi no dia 18 de agosto de 1999. Depois de cinco anos de casamento, sendo que metade do quarto ano usando antidepressivo, constatei que casamento era uma formula muito simples, 1 ( um ) + 1 ( um ) não é igual a 2 ( dois), e sim, 1 ( um ) + 1 ( um ) é igual a 1 ( UM ), ou seja um manda e o outro obedece. E como sempre, quando eu enfrentava uma situação em que me sentia oprimida, simplesmente não conseguia reagir, eu me deprimia. E foi deste jeito que fui parar no consultório do psiquiatra, para usar um antidepressivo fraco, como o médico falou, para alguém que nunca usou. Logo na primeira semana fiquei bem melhor, se não estava feliz, pelo menos já trabalhava sem nenhum sentimento forte de estar escravizada, ou coisas assim. Se eu queria ser uma pessoa comum, acho que agora eu realmente conseguira o meu objetivo, faltando apenas os livros de auto-ajuda, mas estes eu não li. Se por um lado o casamento me asfixiava, por outro, me deu dois grandes presentes. Tive os filhos mais lindos que eu poderia imaginar; inteligentes, carinhosos, enfim, perfeitos! Descobri, então, que aqueles pequenos seres trazem o amor com eles, são mágicos, eles nos hipnotizam quando os olhamos. Nós não os amamos, nós apenas refletimos o amor que eles trazem. E assim me tornei mãe, aumentando a minha motivação e o meu amor pela vida, mas também o meu trabalho. Com aqueles dois pequenos seres, estavam as minhas esperanças. Eles herdariam o meu segredo.

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§ Capítulo XIII §

Marcos fora para o extremo norte do Brasil fazer um concurso para ser funcionário público, como sempre quis e eu fiquei no sul, tomando conta dos filhos e do laboratório. Depois de aprovado, esperava que eu fosse morar por lá também, mas eu nunca fui. Agora eu me sentia livre novamente. Estava certa de que Deus havia criado o amor e a liberdades, mas tinha minhas dúvidas quanto a quem inventara o casamento, pelo menos nos moldes que me foram apresentados até então. Certa noite, fui compelida a ligar para o Rio, para a casa do meu pai, pois fazia tempo que não sabia notícias dele.

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Ele atendeu ao telefone e me contou que sua esposa havia rompido com ele. Eu nunca tinha ouvido aquele tom na voz do meu pai, percebi que ele estava sofrendo. Perdera tudo o que tinha e agora a mulher o deixara. Você vem morar comigo aqui no sul. Falei. Não, deixa. Respondeu. Vem sim, não vai ficar sozinho aí. Insisti. Ele cedeu, no fundo estava mesmo sozinho. Meu pai trouxe na bagagem tudo que lhe restara, suas grandes paixões, seus livros e sua música. Quando chegou ao sul, vi-o renascer na minha companhia e na companhia dos meus filhos. Sabia que ele havia sido profundamente magoado por pessoas que amara, mas estava novo em folha para recomeçar sua vida, com o mesmo entusiasmo de sempre, mesmo com 72 anos de vida. Nunca o ouvira maldizer a vida ou lamentar o que lhe fizeram Simplesmente continuou vivendo e em pouco tempo já administrava o meu laboratório e estava muito feliz por estar trabalhando. Com sua grande paixão por livros, ele me ensinou o caminho de volta às livrarias e os meus filhos foram juntos e assim passamos horas agradabilíssimas, tomando cafezinho e vendo os livros. Meu pai e a personificação da frase de Erasmo de Roterdam: Quando tenho algum dinheiro, compro livros. Se ainda sobrar algum, compro roupa e comida.” Gastava quase toda a aposentadoria em livros, comprava para ele, dava para os meus filhos, enfim, nossa casa está repleta deles, de todos os temas, História, filosofia, mitologia, economia... Um dia através do nosso “personal booker” fui apresentada aos Evangelhos perdidos. Achei interessante e comprei dois livros sobre o assunto. Comecei a ler e fui devorando cada página. Eu não podia acreditar que aqueles evangelhos haviam sido escondidos. Por que fariam aquilo? Eu me perguntava. Isto foi um verdadeiro crime, considerando-se que muita coisa ali se perdeu, pelo tempo e pelas condições em que foram abandonados. Eu ia lendo e caindo por terra, mais uma vez a sensação de revolta. Porque a igreja, o poder vigente na época, não aceitou estes livros se acabo de perceber o quanto são importantes. Porque não estão entre os canônicos? Agora, aos poucos, eu ia novamente acendendo a grande paixão

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dentro de mim, que me intrigara na infância e quase me enlouquecera na juventude – Deus x religião. Eu ia lendo mais e mais livros e parecia ter um apetite insaciável por mais conhecimento. Percebi que o que eu sabia, muita gente, consciente ou inconscientemente, já sabia e há tempo tentava destruir a grande barreira de ignorância e desconhecimento que se criara ao redor de todos nós, seres humanos. Muita gente, até muito tempo antes de mim, já se perguntara muita coisa, já não se conformara com este mundo e as respostas prontas e sem coerência que ele tem a oferecer. Muitas pessoas , assim como eu , estavam dispostas a ir fundo, mergulhar no mais sombrio dos oceanos, única e exclusivamente para achar a verdade e eu simplesmente as amava. Principalmente porque haviam deixado escrito, registrado, para mim, ou qualquer um ver e eu decididamente as amava com todo o meu coração.

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§ Capítulo XIV §

Dois anos depois de ir embora para o norte, Marcos me telefona e diz que resolveu me dar liberdade. Cansara de esperar, por certo, arrumara companhia. Fiquei feliz, por as coisas terem se resolvido aparentemente tão fácil, entre nós, sabia que ele não ia me esperar mais por lá, era um alívio! Quanto a liberdade... Esta eu começara a sentir, no exato momento que ele foi embora e que novamente eu tomara as rédeas da minha vida. Podia tomar minhas decisões, confiar de novo na minha intuição, errar ou acertar, mas ter o direito de jogar, de viver, isto era vida no meu entender. Assinar o divórcio, nada ia interferir, assinaria tudo que ele quisesse desde que tudo continuasse exatamente do jeito que estava. Ele avisou que eu poderia continuar usando o nome dele, se assim desejasse, pois o divórcio já estava pronto. Eu ficava com os objetos dentro de casa e tinha a guarda dos filhos. Não discuti, eu nunca discutia, sempre aceitava tudo. Sentimentos não desaparecem, apenas se transformam. E agora, eu

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só lembrava dos nossos bons momentos, sabia que iria amá-lo sempre, por tudo o que vivemos juntos, por tudo que ele me ensinou, pelo que construímos e principalmente pelos dois maiores presentes que demos um ao outro_ nossos filhos. Mas nosso momento juntos havia se acabado. E assim terminava o meu casamento, sem revolta, sem ciúmes e sem remédio... De tédio. Continuei vivendo minha vida, criando os meus filhos, indo aos congressos de patologia, envolvida com o laboratório, enfim nada de especial. Meu pai me ajudando não só na parte administrativa, que eu, definitivamente, nunca gostei, como também, com sua experiência de vida, me apoiando nas decisões que eu tomava. Enfim, tudo parecia estar indo bem. Como todas as pessoas, eu apenas vivia. Sabia que Deus estava comigo, nunca duvidei, mas também, tinha um outro sentimento que eu não conseguia traduzir e por isso deixava-o esquecido. Mas o passado manda lembranças, mesmo quando nós o ocultamos , enterramos e fazemos de conta que ele não existe e foi assim que no ano de 2006, durante uma mamografia de rotina, fui chamada no serviço de radiologia. Sabia que alguma coisa estava errada com o meu exame, mas me mantive firme e entrei na pequena sala, que dispunha apenas das luzes dos negatoscópios. O colega prendeu a chapa a um deles e me mostrou as múltiplas calcificações encontradas, na minha mama esquerda, não tinha dúvida, era um comedocarcinoma ( dispensava a patologia). Chorei. Chorei e continuei chorando, pois aquilo representava para mim, uma volta ao passado que eu enterrara e definitivamente não sabia como lidar com ele. Passado o susto inicial, eu fui me acalmando e tentando entender o que aquilo queria dizer. Sabia que no fundo, tinha alguma coisa errada. Errada ou certa, nem se tratava disto, mas existia alguma coisa, que eu não conseguia alcançar. Fui mastectomizada e em pouquíssimo tempo voltei a vida. Tinha preocupações, responsabilidades, problemas para resolver, tudo

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normal, como qualquer pessoa. Era uma profissional liberal, tinha um laboratório, folha de pagamentos, impostos, riscos, isto tudo era natural, mas a vida não parava e eu não podia parar também. Passei a ser acompanhada rotineiramente por um especialista. Numa consulta de revisão, pedi ao médico que retirasse a outra mama, mastectomia profilática, pois sabia que tudo continuava igual, eu estava longe de descobrir o que me perturbava, ou melhor, sabia que meu quarto escuro continuava bem fechado e cada vez mais pesado, contudo eu não tinha perspectiva nenhuma de abri-lo.Portanto não via solução. Ele preferiu uma conduta mais conservadora e não mexeu na outra mama. Eu continuava a viver, vida tranqüila, pelo menos aparentemente, não que não tivesse problemas e tive e não foram poucos, mas todos resolvidos em seu tempo. Dois anos depois, em termos médicos, isto é sincrônico, outro tumor na mama direita, novamente eu era mastectomizada. Tentei fazer alguma correlação, do ponto de vista médico, entre o meu primeiro tumor, descoberto aos 19 anos e os que agora apareciam aos 40, mas não havia. Eram independentes. Ninguém conseguia explicar com certeza. Apenas hipóteses, como quase tudo na medicina. As mulheres da minha família morriam velhas, mas levavam suas mamas junto, para o caixão. Nem um único caso na família, nem materna e nem paterna. Para mim, não havia dúvida agora, o anjo que eu escondera tão fortemente, gritava e se revolvia dentro de mim, precisava sair, precisava espaço, antes que se tornasse um demônio.

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§ Considerações Finais §

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Minha pergunta, enfim, havia sido respondida. Não há religião certa. As religiões foram criadas com o intuito de dominar, escravizar e subjugar as pessoas, por interesse de uma classe minoritária. Os evangelhos que foram parar na bíblia, foram escolhidos cuidadosamente, para que as pessoas tivessem a menor quantidade de informação possível, sendo por isto muitos deles manipulados. O nome de Jesus Cristo foi usado e o que ele fez foi corrompido e desprezado. Monopolizaram o nome de Deus, como se somente através da religião se chegasse à ele, mas é exatamente o contrário. A religião afasta as pessoas tanto da essência do amor, que é a aceitação total e irrestrita do ser humano e principalmente do sacrifício da cruz que representa a nossa liberdade de viver, exatamente como somos e como queremos. Esta liberdade assusta, parece que no fundo, queremos pagar um preço, nem que seja com desconto, mas queremos nos sentir merecedores, a famosa cultura do “ eu sou bonzinho”, mas isto de nada vale. Esta liberdade é tão difícil de aceitar e entender que as pessoas preferem se subjugar a cultura das igrejas cristãs ocidentais que nos fazem

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crer que devemos ser modificados, convertidos, transformados, lavados e um monte de coisas mais, para agradar a Deus. Impingem-nos padrões morais, segundo seus próprios critérios. Deus não precisa que nós nos modifiquemos. Não exige nada para nos amar e isto é bem difícil de aceitar, pois estamos acostumados a ouvir que temos uma essência pecadora. Isto não é verdade. Quando aceitamos que somos mal, passamos a nós achar indignos de Deus, não merecedores do seu amor e é exatamente neste momento que não o vemos mais. Se todo o ser humano soubesse, conhecesse o amor, jamais deixaria de amar a si próprio e ao seu semelhante e somente desta forma o mundo poderia mudar. Só o amor é a solução para tudo e só existe uma fonte – Deus. Costumava pensar que um dia, contaria minha história aos meus filhos, contudo, hoje, acho que eles terão que ler meu livro. Desde a mais tenra idade os ensinei que Deus reside dentro deles e que jamais em suas vidas, tentassem encontrá-lo dentro de igrejas feitas por homens, que prometem vida eterna, salvação na outra vida e bênçãos sem fim nesta vida em troca de sua liberdade e também do seu dinheiro, é claro! Penso que a maior herança que se deixa para um filho é o resgate da sua própria essência, que é divina. Se ele sabe que Deus está dentro dele, irá facilmente encontrá-lo e o amor vai brotar automaticamente e somente deste jeito podemos reconhecer Deus no nosso semelhante e o amar segundo os preceitos de Cristo. Tudo é muito simples, não precisamos de nenhuma filosofia teológica profunda e complicada, como nos faz crer os que detem o poder. Nós humanos, carregamos dentro de nós, a essência de Deus, o microcosmos e não precisamos de esmolas, como nos dá a igreja que criminosamente nos faz sentir mendigos e indignos . Dentro de nós, está todo o conhecimento. Mas porque não se aceita? Algumas pessoas, já se levantaram e gritaram contra isto antes, mas pagaram com as próprias vidas, isto está historicamente comprovado. Houve e ainda há inúmeras tentativas de exterminar as pessoas que assim pensam e falam. A resposta é clara, não haveria mais ninguém para dominar e a ganância insaciável de poder das instituições religiosas chegaria ao fim. Vamos pensar em um mundo em que cada criança nascesse e fosse criada, sabendo que Deus está dentro dela e que ela é totalmente aceita, não importa de que jeito for, ou qual opção tomar na vida, é livre. Já imaginou?

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Ela se amaria e automaticamente amaria o seu semelhante, porque tudo o que mais desejamos na vida é o amor, a aceitação, e só o amor é capaz de aceitar incondicionalmente. Este ser jamais pensaria em fazer mal a alguém, pois reconheceria Deus no próximo. Seríamos UM. Se cada pai ou mãe dissesse ao seu filho, sinceramente, que Deus reside dentro dele, esta criança realmente ia se sentir especial e amada e jamais procuraria por Deus, fora de si mesma, ou qualquer outro tipo de apoio ou muleta emocional. Veja bem, isto não é um livro de auto-ajuda e não sou profissional em educação infantil. Se os pais não conseguem olhar para dentro deles mesmos e enxergar Deus ou se não acreditam nisto , melhor nem dizer, porque os filhos saberão que estão mentindo. Uma sociedade em que todas as pessoas acreditem ter Deus dentro de si, esta sim pode ser modificada, pois nada muda se nós não mudarmos. Enquanto isto, seguiremos em um mundo, onde os governantes roubam mais dinheiro do que podem gastar o resto da vida , mesmo sabendo que algumas pessoas não tem nem mesmo o que comer. Vendo bombas serem confeccionadas por mera ostentação de poder, pessoas se matando por não serem da mesma etnia, como se o mundo pertencesse apenas a um grupo privilegiado e o dinheiro valendo mais, infinitamente mais que um ser humano. Na última década, observei o mercado editorial se encher de livros de auto-ajuda. Para princípio de conversa, não tenho nada contra, podem ser até bem interessantes. Mas um em particular me chamou atenção. Ensinava às pessoas que poderiam ter tudo, exatamente tudo que desejassem na vida, bastando para isto usar a lei da atração, e através da energia que cada um possui, conseguiriam transformar qualquer sonho em realidade. Objetivo meramente comercial, mais uma vez, deturpa-se o conhecimento. Realmente nossa mente é poderosa, não tenho dúvidas, contudo você precisa resgatar o Deus dentro de você, o poder e quando isto acontecer vai descobrir que a maioria das coisas que você desejava vão perder completamente o valor. È simples , quando você chegar ao ponto de realmente conseguir tudo o que deseja aqui na terra, você terá descoberto sua maior riqueza dentro de você mesmo, já não precisa de mais nada disto aqui para ser feliz. Tentamos comprar a felicidade com dinheiro e somos muito mais ricos do que tudo aquilo que pensamos que o dinheiro possa comprar.

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O universo está dentro de nós. Ainda tenho muitas perguntas e acho que vou morrer me fazendo perguntas _ inquiridora do universo, vamos dizer assim. De vez em quando me pergunto – Por que Jesus teve que nascer entre os hebreus, se havia muitos outros povos na época? Ainda não sei a resposta, mas tenho um forte palpite – Acho que ele quis salvar a todos nós, a civilização ocidental, judaico-cristã, do todo poderoso Deus de Israel.

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande,

Ainda que para isso tenha que ser o meu corpo E a ( minha alma) a lenha desse fogo.

Fernando Pessoa

No mundo nada mais existe a não ser o amor. Qualquer que ele seja.

Pablo Picasso

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MÔNICA POMBEIRO