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 40 CIÊNCIA HOJE  • vol. 31 • nº 184 Os naturalistas que, no século 19, percorreram diferentes regiões do planeta ampliaram muito o conhecimento científico da época. Sem diminuir a importância do seu trabalho, é preciso lembrar que o sucesso das expedições deveu-se, em boa parte, à colaboração e aos conhecimentos recebidos das comunidades locais, nativas ou residentes. Os próprios naturalistas reconhecem esse auxílio, em seus escritos, mas em  geral ele é desconsiderado  pelos historiadores da ciência. Ildeu de Castro Moreira Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia (Área Interdisciplinar de História das Ciências e Epistemologia) e Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro H I S T Ó R I A D A C I Ê N C I A 

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40 • CI ÊNCI A H OJE • vol. 31 • nº 184

Os naturalistas que,

no século 19, percorreram

diferentes regiões do planeta

ampliaram muito

o conhecimento científico

da época. Sem diminuir aimportância do seu trabalho,

é preciso lembrar que

o sucesso das expedições

deveu-se, em boa parte,

à colaboração e aos

conhecimentos recebidos

das comunidades locais,

nativas ou residentes.

Os próprios naturalistas

reconhecem esse auxílio,em seus escritos, mas em

 geral ele é desconsiderado

 pelos historiadores da ciência.

Ildeu de Castro MoreiraCoordenação dos Programasde Pós-graduação em Engenharia(Área Interdisciplinar de História das Ciências

e Epistemologia)e Instituto de Física,Universidade Federal do Rio de Janeiro

H I S T Ó R I A D A C I Ê N C I A

O escravo 

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"

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Em 1826, o pintor francês Jean Baptiste Debret  (1768-1848), em uma das

O papel do conhecimento

nat ivo nas viagenscientíficas do século 19

mais expressivas obras que pintou no Rio de Janei-

ro, O escravo do naturalista, registrou de forma

simbólica a participação dos escravos e auxiliares

locais no trabalho de campo dos naturalistas es-trangeiros que, a partir do início do século 19,

percorreram várias partes do Brasil.

 As contribuições das culturas nativas de regiões

distantes da Europa para o conhecimento científi-

co adquirido ou construído pelos naturalistas qua-

se sempre têm sido desconsideradas pelos histo-

riadores da ciência. A atenção destes é dirigida

para as observações e teorias dos cientistas, para

suas formações, instrumentos e métodos de tra-

balho, para a difusão de suas idéias e para as

influências científicas, políticas, filosóficas e eco-

nômicas em e de suas obras. Com freqüência elesdescrevem as populações locais como iletradas e

ignorantes, mas delas dependia, em boa medida, o

êxito das expedições científicas.

 As redes de apoio formadas pela interação com

as comunidades residentes nas áreas visitadas tor-

naram possível o trabalho de campo de muitos

cientistas. Essas redes incluíam outros naturalis-

tas, estrangeiros (residentes ou aventureiros), gru-

pos indígenas, caçadores, escravos, fazendeiros,

autoridades, padres, membros da elite, diploma-

tas, militares, fornecedores, transportadores, em-

pregados diversos e outros.

do  naturalista  

H I S T Ó R I A D A C I Ê N C I A

  O E  S  C  R A V  O D  O N A T  U  R A L I   S T A  /   J  E A N B A P T I   S T E D E B R E T 

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Em muitos trechos de seus relatos, artigos oucartas, diversos naturalistas descrevem como oshabitantes locais contribuíram com conhecimentose atividades para o seu trabalho. Havia, é claro, oprevisível apoio logístico e de infra-estrutura: for-necimento de alimentos, meios de transporte e ou-

tros recursos materiais; presença como guias, carre-gadores, intérpretes e companhia pessoal; e auxílionos contatos com grupos indígenas e no aprendiza-do de línguas nativas. Muitas vezes, porém e é esseponto que nos interessa , verificava-se, por parte deindivíduos e comunidades locais, a transmissão deconhecimentos obtidos com a longa experiência nafloresta. Esses conhecimentos viriam a ser sistema-tizados pelos naturalistas, depurados dentro da vi-são científica predominante e incorporados aocabedal científico universal.

A partir de vários desses escritos, pode-se estabe-

lecer os principais tipos de contribuições do pessoallocal: identificação, localização, coleta e nomencla-tura de animais e plantas; preparação e preservaçãode espécimes; descoberta de novas espécies; análisede hábitos e usos de animais e plantas; conhecimen-tos geográficos, meteorológicos e de distribuição deanimais e plantas; relatos antropológicos; indicaçãode locais mais favoráveis para pesquisa; domesticaçãode animais; e fabricação de instrumentos (inclusivepara captura e preservação de animais).

Aqui, trataremos especificamente da intera-ção entre três notáveis naturalistas, os inglesesAlfred R. Wallace (1823-1913) e Henry W. Bates

(1825-1892) e o suíço Louis Agassiz (1807-1873),que fizeram expedições ao Brasil no século 19, e asredes de apoio locais. Com base em relatos deviagem, cartas e artigos científicos, é discutido opapel exercido pelo pessoal nativo e por colabora-dores locais. Tais cientistas tiveram seu sucesso

reconhecido nos campos da coleta de plantas eanimais e da descoberta de espécies novas, emestudos biogeográficos e, no caso de Wallace, naformulação da teoria da seleção natural, na mes-ma época que Charles Darwin (1809-1882). JáAgassiz, entre outros objetivos, buscava em suaviagem argumentos contra essa mesma teoria.

O resultado da análise oferece surpresas: essesnaturalistas deixam evidente, em inúmeras referên-cias, a importância dos nativos e dos seus conheci-mentos para o êxito das expedições. Isso contrasta,em geral, com o formato sintético dos artigos cientí-

ficos e com a grande maioria dos relatos de historia-dores da ciência, onde as referências a colaboradoreslocais quase nunca aparecem ou são minimizadas.

Bates, Wallace   e a Expedição Thayer   

Antes de tratar dos três naturalistas considerados,vale mencionar um episódio descrito por CharlesDarwin em sua passagem pelo Rio de Janeiro, em1832, a bordo do Beagle, navio da armada britânicano qual viajava como geólogo. A viagem, como

N E  G R  O  S V  O L  T A N D  O D A  C A  Ç A D A  , /   J  E A N B A P T I   S T E D E B R E T 

 A aquarelade Debretmostra negros voltandode uma caçada(à esquerda)e o escravo(à direita)de umnaturalistae seu auxiliar,com espécimesda faunae da florabrasileiras

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vários historiadores destacam, tinha certas finalida-des políticas e econômicas e estava imersa no con-texto colonial do expansionismo britânico. Darwin,em particular, dispunha de boa infra-estrutura ma-terial e contatos com autoridades britânicas portodo o mundo. Nesse sentido, diferia bastante da

incursão de Bates e Wallace.Dentro de nossa perspectiva, um pequeno trechono diário de viagem de Darwin atrai a atenção. Nele,o cientista fala da ajuda recebida em sua coleta deinsetos no Rio de Janeiro: Um mulato e um pequenobrasileiro me acompanharam. Esse último era quaseuma criança (...). Nunca vi nada igual a seu poder depercepção. Muitos dos animais mais raros nas trilhasmais obscuras foram pegos por ele. Eu não ficaria tãobem servido se um besouro se tivesse transformadoem traidor e se tornado meu ajudante, do que em terencontrado um colaborador tão capaz (...).

Em sua viagem à Amazônia, Bates (que ali estevede 1848 a 1859) e Wallace (de 1848 a 1852) nãodispunham das facilidades a que Darwin teve aces-so. Oriundos de estratos sociais mais populares,sobreviviam do seu trabalho: enviavam espécimesde insetos e animais coletados para serem vendidosem Londres. Portanto, tinham de contar com novosmeios para realizar o trabalho de campo. Um delesfoi a criação de uma rede de contatos baseada napopulação nativa e em conhecidos que residiam naAmazônia. Ao chegarem no Brasil, já traziam umalista de contatos e cartas de apresentação para váriaspessoas, em especial conterrâneos.

Bates teve a percepção clara do que deveria fazer,como diz em seu livro sobre a viagem: Eu já haviaaprendido que a única maneira de alcançar os obje-tivos que me tinham trazido ao país era acostumar-me ao modo de vida das classes mais humildes dolugar. Essa atitude de Bates e Wallace possibilitouo sucesso extraordinário de seu trabalho. Bates, em

como um dos principais e mais tenazes opositoresda teoria da seleção natural de Darwin-Wallace.

Os trópicos eram, em meados do século 19, opalco privilegiado para o exame das teorias sobre aorigem das espécies. Darwin no Brasil, na Argen-tina e em Galápagos levantou pistas que o leva-

riam, em 1858, instigado e direcionado pelo trabalhode Wallace, a propor a hipótese da seleção natural.Wallace, na Amazônia e depois na Malásia, encon-trou no estudo da distribuição geográfica dos ani-mais que constatou sob forte influência dos nati-vos e seus conhecimentos um caminho que, aliadoa outros fatores, o levaria à mesma hipótese.

Anos depois, Agassiz, conhecendo as idéias eargumentos de ambos, buscava no Brasil evidênciasem contrário à teoria proposta por eles. O propósitode Agassiz, em sua expedição, foi claramente expos-to em seu livro de viagem. Além de fazer coleçõespara estudos futuros, disse estar dominado pelaconvicção de que a combinação das espécies, nessecontinente em que as faunas são (...) tão diferentesdas de outras partes do mundo, irá proporcionar-meos meios de provar que a teoria das transformações[das espécies] não repousa sobre fato algum.

Bates: um naturalista   no Amazonas   

Ao longo de todo o relato de sua viagem à Amazônia,Bates cita a maioria nominalmente cerca de 135

pessoas, de diversas procedências, que o ajudaramno trabalho de campo e na localização e captura deespécimes: negociantes, fazendeiros, servos, escra-vos, militares, guias, índios e caçadores.

Em certo trecho, escreve: Nosso auxiliar maisvalioso era Alexandro (...), um jovem tapuia, inteli-gente e afável, perito em navegação e incansável "

11 anos na Amazônia, recolheu14.712 espécies diferentes (a gran-de maioria de insetos), das quais8 mil eram novas para a ciência.

 Já Louis Agassiz, que liderou

de 1865 e 1866 a ExpediçãoThayer, contou com amplos re-cursos (financeiros, materiais ehumanos) e forte apoio do gover-no imperial brasileiro. O caráterempreendedor de Agassiz, natu-ralista de reconhecida importân-cia na época e formulador de teo-rias sobre a glaciação universal, olevaram a ser um dos cientistasmais influentes dos Estados Uni-dos, onde vivia. No entanto, ele émais freqüentemente lembrado    E

    X    T    R    A     Í    D    O     D

    O     L

    I    V    R    O     T

    H    E    A    M    A    Z    O    N  –    P    A    S    T ,

    P    R    E    S    E    N    T    A    N    D    F    U    T    U    R    E

Segundo

historiadores,a litografiado século 19mostraHenry Batescapturandoum jacaré,“um dosmonstrosamazônicos”,mas na verdadea capturaé feita pelosíndios

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caçador. À sua dedicação devemos o fato de teremsido levados avante todos os objetivos de nossaviagem. Em outro, conta: Ao procurar criados, ti-ve a sorte de arranjar um mulato livre, ativo e ho-nesto, chamado José, que se dispôs a trabalhar paramim. Sua família cozinhava para mim, enquantoele me ajudava a coletar espécimes. José foi de gran-de valia nas diversas excursões que fizemos pos-teriormente.

Caçadores locais eram indispensáveis em casosmais difíceis: Eles [pássaros trepadores] eram tãoraros que só conseguiríamos arranjar algum com aajuda de um caçador nativo, que muitas vezes per-

dia o dia todo e tinha de ir muito longe para con-seguir dois ou três espécimes. Dessa maneira, foi-me possível obter, entre outros, alguns espécimesdo Trogon pavonius (o suruquá-grande dos nativos),uma ave belíssima, com plumagem verde-dourado,o peito vermelho e o bico cor-de-laranja; arranjeitambém um espécime da Ampelis ponpadoura, umacotinga de cintilante plumagem púrpura e asas corde neve.

Depois de arranjar os homens que me haviam pro-metido dois robustos índios de 17 ou 18 anos, umchamado Ricardo e o outro Alberto (...) começamos

a explorar cuidadosamente as terras baixas e parcial-mente pantanosas ao longo da costa, ao norte de San-ta Cruz. (...) Embora o resultado fosse nulo com rela-ção ao Cebus branco, (...) consegui acrescentar váriasespécies novas de passarinhos à minha coleção.Métodos e técnicas locais de captura permitiam ricascoletas: Passamos o dia todo ali, enquanto os homensbatiam com pedaços de timbó nas águas paradas (...)entre as dunas e a terra firme, conseguindo apanharuma grande quantidade de peixes, tendo eu reserva-do seis espécies novas para a minha coleção.

Bates também destaca a colaboração de crianças:Sebastião [um indiozinho] me acompanhava quase

anos de idade, ficamos perdidos na mata (...). Nossocaso parecia sem esperança, e de imediato não nosocorreu consultar nosso pequeno companheiro, queficara brincando com o seu arco e flecha (...), semprestar atenção, aparentemente, no caminho queseguíamos. (...) Quando lhe pedimos, ele apontouno mesmo instante a direção certa de onde nossacanoa estava atracada. Não conseguiu, porém, ex-plicar por que sabia; acho que registrava mental-mente o percurso que fazíamos (...). No seu caso, osenso de orientação parecia instintivo.

Ajudantes que atuavam a grande distância cola-boraram bastante nos estudos de Bates: Consegui

reunir uma vasta coleção em São Paulo, tendo paraisso contratado um ajudante para fazer coleta paramim, permanentemente, em Tabatinga e nas mar-gens do Jauari. Em conseqüência, adquiri um ra-zoável conhecimento de toda a fauna e flora da re-gião que bordeja o Amazonas até o final do territóriobrasileiro, em uma extensão de 3 mil quilômetrosdesde a foz do Pará, no Atlântico.

A relação com a população local foi decisiva parao êxito da expedição de Bates, como ele declaraexplicitamente: Eu vivia como já devo ter deixadoclaro em completa harmonia com os habitantes de

Ega. Ele relata outros tipos de interação: Passei oresto do dia ali [em uma aldeia Mundurucu], tendomandado Aracu pescar, com os meus ajudantes,enquanto eu me entretinha com a companhia dotuxaua e da sua gente. Umas poucas palavras basta-ram para explicar o objetivo da minha viagem aolongo do rio; ele não teve a menor dificuldade emcompreender por que os homens brancos admira-vam os belos pássaros e mamíferos do seu país efaziam longas viagens para colecioná-los, e nem elenem sua gente disseram uma só palavra sobre paga-mento ou nos causaram problemas cobiçando ascoisas que tínhamos trazido.

sempre nas minhas andanças pela mata,sendo de grande ajuda para encontrar ospássaros que eu caçava, os quais às vezescaíam no meio de cerradas moitas demato (...). Ele tinha uma grande habilida-de para pegar lagartos com as mãos e para

trepar em árvores, e mesmo as palmeirasde tronco mais liso não lhe ofereciamnenhuma dificuldade.

A habilidade de orientação dos nati-vos, na floresta, despertava a admiraçãodos naturalistas, que dela dependiam àsvezes para a própria sobrevivência, comoBates relata: Tenho observado nas crian-ças indígenas um senso de orientaçãoquase tão apurado quanto o das vespas daareia. Certa ocasião, um velho portuguêse eu, acompanhados por um garoto de 10

O primeiro

mapa detalhadodo rio Negro,que cortao norteda Amazônia,foi desenhadopelo naturalista Alfred Wallace,um dos ‘pais’da teoriada evoluçãodas espécies

E X T R A Í   D  O D  O L  I  V R  O T H E F   O  R  G  O T T E N N A T  U 

R A L  I   S T –I  N  S E A R  C H  O F  A L  F  R E D R  U  S  S E L  WA L  L  A  C E 

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Em seu livro, Bates também desmente uma visãomuito propagada de que os naturalistas se exporiama riscos extremos nas expedições: O perigo repre-sentado pelos animais selvagens era praticamenteinexistente, e chega a ser ridícula a idéia de que osnativos pudessem constituir algum risco numa terra

onde até mesmo uma simples descortesia a umestrangeiro é uma raridade.

Wallace nos rios   Amazonas e Negro   

No livro sobre sua expedição amazônica, Wallacelista uma centena de pessoas com as quais interagiuou que o ajudaram diretamente. Depois, no arquipé-lago malaio (de 1854 a 1862), recolheria o fantásticonúmero de 125.660 espécimes da fauna, com milha-res de espécies novas (em especial insetos). Nessatarefa monumental ele teve a ajuda de um rapazinglês (Charles Allen), por três anos, e de auxiliareslocais. Um deles, Ali, teve papel de grande destaquecomo ajudante de Wallace.

Trechos do livro de viagem de Wallace ao Brasile de artigos científicos escritos com base na expe-dição evidenciam a participação de auxiliares lo-cais na coleta de espécimes e no mapeamento dorio Negro. Wallace destaca com freqüência a im-portância que o conhecimento nativo sobre flora efauna e sobre a distribuição geográfica de animaise plantas teve nos seus trabalhos. Um exemplo: O

velho guia [Isidoro] (...) labutara outrora na flores-ta, estando a par não só dos nomes de todas asárvores, como também de suas propriedades eusos. (...) O fato é que ele realmente gostava deexibir seus conhecimentos sobre esses assuntosacerca dos quais ainda nos encontrávamos no está-gio da mais completa ignorância, mas cuja apren-dizagem queríamos efetivamente alcançar. Seumétodo de ensino constava de uma série de rápidasobservações sobre as árvores à medida que passá-vamos por elas. Esse é um interessante exemplode transmissão de conhecimentos no sentido inver-

so ao usualmente considerado.As crianças também colaboravam com freqüên-cia na captura de animais: Não é coisa fácil pegaruma dessas ágeis criaturas [lagartos], e todas as nos-sas tentativas nesse sentido fracassaram redonda-mente. oi preciso apelar para a ajuda de alguns me-ninos negros e índios, que saíram a procurá-los comseus arcos e flechas. oi assim que conseguimos di-versos espécimes. Um apoiador importante na co-leta foi assim descrito: Vicente (...) era um homemrobusto e bem apessoado, habilíssimo na coleta debichos, que é como aqui chamam aos insetos, rép-teis e outros animais pequenos. Sabendo de nosso

interesse, logo nos trouxe diversos insetos...Outro aspecto significativo para a preservação do

material recolhido veio do uso da andiroba, umproduto repelente de insetos: Elas [formigas] ha-viam destruído, em algumas horas, diversos pre-ciosos espécimes. Depois disso, ficamos sabendo

que um certo óleo local muito amargo, o de andiroba,afugentava as formigas. Passamos então a embeberos barbantes nesse óleo, ficando por fim livres desuas incursões.

No prefácio de seu belo livro sobre as palmeirasamazônicas (  Palm trees, 1853), Wallace indicouclaramente suas fontes de informação: Inicialmen-te esforcei-me para me familiarizar com o aspecto decada espécie [de palmeiras] e em aprender comoconhecê-las. Mas mesmo isso não era uma tarefafácil, porque freqüentemente eu era incapaz deperceber qualquer diferença entre árvores que osíndios me asseguravam que eram bem distintas eque tinham propriedade e usos bastante diversos.

Ele também usou amplamente o conhecimentodos índios e caçadores nativos em artigos científi-cos, para fundamentar suas observações pioneirassobre a origem das espécies e sobre as distribuiçõesbiogeográficas. Em trabalho sobre os macacos daAmazônia (no qual lançou a chamada hipótese dasbarreiras fluviais), Wallace diz: Durante minhaestada na região, aproveitei cada oportunidade paradeterminar os limites de espécies, e logo descobrique o Amazonas, o Negro e o Madeira formamlimites além dos quais certas espécies nunca pas-

sam. Os caçadores nativos estão perfeitamente a pardesse fato (...). Aproximando-nos das cabeceiras dosrios eles cessam de ser uma fronteira, e a maioria dasespécies é achada em ambos os lados.

O primeiro mapa detalhado da região do rioNegro foi feito por Wallace, valendo-se de medidasobtidas com seus parcos instrumentos e do conhe-

    E    X    T    R    A     Í    D    O     D

    O     L

    I    V    R    O     H

    A    R    T    T  :    E    X    P    E    D    I    Ç    Õ    E    S    P    E    L    O    B    R    A    S    I    L    I    M    P    E    R    I    A    L  A mestiça

de negro e índio Alexandrina,retratada porWilliam Jamesem 1868,foi uma dascolaboradoraslocaisda expediçãoliderada porLouis Agassiz

"

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cimento de canoeiros e outros habitantes locais. Omapa está hoje nos arquivos da Royal GeographicalSociety, em Londres. Sobre ele, Wallace escreveu:O mapa que construí do rio Negro e do Uaupésprovém das observações feitas durante duas subidase descidas desses rios nos anos 1850, 1851 e 1852.Os únicos instrumentos que eu possuía eram um

compasso prismático, um sextante de bolso e umrelógio. (...) Determinei as posições de cada ponto eilha visível na viagem, com esboços, englobandotoda a informação que eu podia obter das pessoasque me acompanhavam e que conheciam bem o rio.

Wallace invoca ainda o testemunho de indíge-nas para comprovar suas hipóteses sobre a distri-buição dos animais, como a dasbarreiras fluviais, ou para refu-tar afirmações de outros cientis-tas. Ele mostra que o zoólogo ale-mão Johann von Spix (1781-1826)

não percebeu essas barreiras,talvez por não ter dado atençãoà população local: Spix, em seutrabalho sobre os macacos doBrasil, freqüentemente escrevemargens do rio Amazonas comouma localização, não tendo apa-rentemente notado que as espé-cies achadas de um lado muitofreqüentemente não ocorrem dooutro lado [do rio], embora o fatoseja geralmente conhecido dosnativos.

Agassiz e a   enciclopédia indígena   

Louis Agassiz e sua esposa, Elizabeth Agassiz (1822-1907), também detalham, em cartas e em diversaspassagens de seu livro de viagem ao Brasil, a extensa

rede de apoiadores da Expedição Thayer. Do apoiodireto do imperador Pedro II, passando pelo domilitar, engenheiro e geólogo brasileiro João Martinsda Silva Coutinho (1831-1889) principal colabora-dor local , até o de inúmeros ajudantes anônimos,em especial na coleta de peixes e outros animais, umdos objetivos centrais da expedição.

No livro e em cartas, Agassiz destaca o papelessencial do major Silva Coutinho na expedição,com seus conhecimentos geológicos e naturalistassobre a Amazônia: Os bosquejos frios e descarna-dos de um naturalista [Agassiz] teriam sido muitomais imperfeitos se não fosse o precioso auxílio doseu companheiro de viagem [Silva Coutinho] (...), acuja inteligência e ativa cooperação ele deve o fatode ter feito observações mais completas e obtidoresultados os mais importantes.

Os Agassiz afirmam repetidamente que a contri-buição dos habitantes locais na localização, capturae conhecimento do comportamento dos peixes ama-zônicos foi essencial para seu sucesso. Em muitoslugares até meninos indígenas e de escolas do inte-rior saíram à cata de peixes. Eles receberam ainda,prontas, muitas coleções de peixes e outros animais,recolhidas por pessoas das regiões visitadas ou de

outros locais. Uma delas, por exemplo, foi coletadapor ordem de D. Pedro II nos rios do Sul do país. Olivro dos Agassiz cita nominalmente esses auxilia-res voluntários (104, no total) e reconhece suascontribuições. Várias das coleções, registradas emHarvard, indicam quem foi o coletor, mas hoje édifícil obter maiores detalhes sobre eles.

O grande conhecimento dosíndios sobre a flora e a fauna,suas distribuições, comportamen-tos e usos, e a importância do fatopara a ciência, é enfatizado:

Grande número das árvores queformam essas florestas são desco-nhecidas ainda da ciência; entre-tanto, os índios, esses botânicos ezoólogos práticos, têm conheci-mento perfeito não só de suasformas exteriores, mas tambémde suas diferentes propriedades.Esse conhecimento empírico dosobjetos naturais que os rodeiamvai tão longe entre eles que reunire coordenar as noções esparsasnas diversas localidades dessa re-

E X T R A Í   D  O D  O L  I  V R  O H A  R T T  : E X P E D I   Ç  Õ E  S P 

E L  O B  R A  S I  L I  MP E  R I  A L 

E X T R A Í   D  O D  O L  I  V R  O T H E F   O  R  G  O T T E N N A T  U R A L  I   S T –I  N  S E A R  C H  O F  A L  F  R E D R  U  S  S E L  WA L  L  A  C E  /  E D  .A R  C A D I  A 

Muitos peixesdescritos pornaturalistas –como N. mulata(no alto)e acará,desenhadosem 1865por JacquesBurkhardt,da ExpediçãoThayer – foramcoletadoscom a ajudade nativos

Wallace,que passouquatro anosna Amazônia,reconheceua importância,para seusestudos, doconhecimentodos habitanteslocais sobrea natureza

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"

gião seria (...) contribuir grandemente para o pro-gresso das ciências. Seria mister (...) escrever umaenciclopédia da floresta ditada pelas tribos que aspovoam. Seria (...) excelente maneira de colecionarir de aldeia em aldeia, mandando os índios colhe-rem as plantas que conhecem, secá-las, pôr-lhes

etiquetas de acordo com os nomes vulgares do lugare inscrever, sob esses títulos, ao lado de seuscaracteres botânicos, (...) indicações relativas àssuas propriedades medicinais ou outras.

Agassiz chega a propor a D. Pedro II que crie umacomissão para recolher toda a informação dos índiossobre o meio natural, a flora e a fauna, para essaenciclopédia do conhecimento indígena: Cumpreprincipiar por conhecer o lugar onde cada espécie seencontra. Por ora, é um conhecimento que só osíndios têm, e enquanto ainda há índios seria pruden-te criar uma comissão que, da boca deles, colhaesclarecimentos precisos que de outra fonte nãopodem obter-se. (...) A respeito das propriedadesmedicinais das plantas, estão melhor informados doque quantos sábios têm estudado a matéria. (...)Cumpriria, pois, convocar os índios, pedir-lhes amos-tras, ouvir os seus esclarecimentos sobre as madei-ras, óleos, gemas, resinas, fibras teáveis, frutas etc.

As imagens dos escravos   dos naturalistas   

Pintores e desenhistas que acompanharam as expe-

dições de história natural, ou os próprios naturalis-tas, também retrataram cenas que exibem momen-tos da prática dos naturalistas e de suas relaçõescom pessoas da terra. Uma prancha do pintor ale-mão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), por exem-plo, tem o título  Encontro de índios com viajantes

europeus. Em sua Vista do Rio de Janeiro, tomada do

aqueduto, aparecem naturalistas com instrumentosde trabalho (puçá, livros etc.) e auxiliares negros.

Debret também deu atenção a esses aspectos, nolivro sobre sua viagem ao Brasil, onde comenta osdesenhos ali realizados. Sobre a prancha 5 (Caboclo  

 índio civilizado), diz: Esses hábeis caçadores [cabo-clos] são muito procurados pelos naturalistas estran-geiros, que os utilizam como companheiros indispen-sáveis de suas excursões através das florestas virgens,não somente a fim de obter os animais selvagens,cujos hábitos os índios conhecem perfeitamente, masainda para prover de alimentação toda a caravana.

Sua descrição da prancha 19 ( Negros voltando da

caçada. Escravo de um naturalista) ilustra bem aimportância dos auxiliares locais das expedições:Outros negros caçadores, dedicando-se mais espe-cialmente às coleções de história natural, fazemestadas prolongadas durante meses nas florestas e

voltam, uma ou duas vezes por ano, trazendo ascoleções obtidas para os amadores de história natu-ral (...). Para o mesmo fim, a administração doMuseu Imperial de História Natural sustenta negroscaçadores espalhados por diversos pontos do Brasil.O negro capaz de ser um bom escravo de um natu-

ralista pode ser considerado um modelo do maisgeneroso companheiro de viagem, cuja inteligênciaiguala o devotamento. Debret relata ainda ter vistonaturalistas estrangeiros, de volta das excursões aointerior do Brasil, libertarem escravos que os ajuda-ram, como recompensa por seus serviços.

Diz também: É fácil reconhecer o negro natura-lista, tanto pelo seu modo de carregar uma serpenteviva como pelo enorme chapéu de palha eriçado deborboletas e insetos espetados em compridos alfine-tes. Anda sempre armado de fuzil e com sua caixa deinsetos a tiracolo. (...) Sabe-se também no Rio de

 Janeiro, pela intensificação da atividade dos negrosnaturalistas, da chegada de navios franceses, cujosoficiais são em geral grandes amadores de coleçõesde história natural.

Esquecidos pela história   

Há muitas outras passagens sobre a ajuda essencialdos habitantes locais para os naturalistas nos seusrelatos de viagens ou em cartas. No entanto, dadoo formato conciso das publicações científicas (li-vros, relatórios ou artigos), essas informações não

têm difusão ampla. Isso contribuiu, entre outrosfatores, para o surgimento da imagem social docientista herói-desbravador que, sobrevivendo aimensos perigos, com esforço hercúleo e quasesolitário, descobriu grande quantidade de espé-cies novas de animais e plantas. Muitas vezes é ditoque tais cientistas enfrentaram condições hostisentre grupos indígenas, o que ocorreu apenas em

Em 1865,

Charles Landseepintou estaVista do Pão de Açúcar tomadda estrada do Silvestre ,que mostracaçadoresnegros auxiliarede naturalistas

    C    H    A    R    L    E    S

    L    A    N    D    S    E    E    R ,

    V    I    S    T    A

    D    O     P

    Ã    O     D

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H I S T Ó R I A D A C I Ê N C I A

expropriatório estivesse de fato emjogo. Preconceitos quanto à relevância do con-texto cultural e de conhecimentos que não têm aforma sistematizada da ciência moderna têm impe-dido uma visão mais realista sobre as práticas daciência naturalista.

Um exame mais cuidadoso dessas práticas tal-vez leve a uma reconceitualização de sua história,em que os aspectos eurocêntricos não sejam osúnicos considerados. Analisar também a transmis-são de conhecimentos no sentido inverso, do na-tivo para o naturalista, talvez possa contribuir paraque se entenda melhor o real funcionamento daciência e da tecnologia atuais. É evidente a exis-tência de posturas e processos, dentro da ciência,que favoreceram e ainda favorecem atitudesespoliativas, como ocorre com freqüência no Ter-ceiro Mundo. A biopirataria moderna pode, assim,ser vista como um aspecto atual de mecanismoshistóricos anteriores. ■

Sugestõespara leitura

AGASSIZ, L. eAGASSIZ, E. C.Viagem ao Brasil – 1865-1866 ,São Paulo,Itatiaia/Edusp,1975.

BATES, H.Um naturalistano rio Amazonas ,São Paulo,Itatiaia/Edusp,1979.

DARWIN, C.Charles Darwin’s Beagle diary ,Cambridge,CambridgeUniversity Press,1988.

DEBRET, J. B.Viagem pitorescae histórica ao 

Brasil (Tomo I),São Paulo,Itatiaia/Edusp,1978.

WALLACE, A. R.

Viagens pelos rios Amazonas e Negro ,São Paulo,Itatiaia/Edusp,1979.

raras ocasiões, mas não se menciona que a própriaexistência, o apoio e o conhecimento desses nati-vos foram pontos importantes para o sucesso deseus empreendimentos.

Os naturalistas receberam também outro tipo deinfluência local, de caráter mais geral e difícil de ser

avaliada. Ela se traduz no grande choque cultural dese deparar com uma natureza tão diversificada epovos de hábitos e formas de conhecimento muitodistintos dos europeus. Em certo sentido, foramlevados a olhar a natureza de forma mais integradae a comparar diferentes visões de mundo.

Um aspecto não considerado aqui, mas quemerece ser estudado, está na forma como os nati-vos classificavam e nomeavam animais e plantas eem que medida isso contribuiu para o trabalho dosnaturalistas. Outros aspectos referem-se às eventu-ais repercussões e heranças deixadas nos locaispor que passaram e à análise de como eram vistospela população.

Essas considerações não pretendem minimizarméritos individuais de cientistas importantes, masanalisar o contexto em que operaram e discutira importância da rede de colaboradores. Não setrata de substituir um mito por outro: o do nativoque tudo conhece e é espoliado pelo cientista es-trangeiro, embora um processo social e econômico

E X T R A Í   D  O D  O L  I  V R  O T H E F   O  R  G  O T T E N N A T  U R A L  I   S T –I  N  S E 

A R  C H  O F  A L  F  R E D R  U  S  S E L  WA L  L  A  C E 

O galo-da-serra, com sua belaplumagem laranja, tambémfoi capturado por Wallacee seus ajudantes locais durantesua longa permanênciana floresta amazônica