escola e tecnologia: um olhar discursivo sobre essa ... · aprender na escola pouco mudaram. estes...
TRANSCRIPT
II Congresso Internacional TIC e Educação
513
ESCOLA E TECNOLOGIA: UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE ESSA
COMPLEXA RELAÇÃO
Fernanda Maria Pereira Freire
NIED (COCEN) e CEFIEL (IEL) – Universidade Estadual de Campinas
Resumo
Com base em pressupostos teóricos sobre o uso discursivo de computadores este artigo analisa práticas escolares que fazem uso de tecnologias digitais. Tais análises são feitas a partir de dados provenientes do acompanhamento longitudinal de diferentes contextos educacionais e representam três tipos de relação entre a escola e a tecnologia: tradicional, moderna e viva. Palavras-chave: escola, tecnologia, práticas sociais de uso da linguagem, discursivo, aprendizagem
Abstract
Based on theoretical assumptions about the discursive use of computers this article examines school practices that use digital technologies. Such analyzes are made based on data from the longitudinal follow-up of different educational contexts and represent three types of relationship between the school and technology: traditional, modern and alive. Keywods: school, technology, social practices of language use, discursive, learning
1. O USO DISCURSIVO DE TECNOLOGIAS
Este trabalho, com base em pressupostos sobre o uso discursivo de computadores
(Freire 1999/2006), analisa algumas práticas escolares que fazem uso de tecnologias
digitais, a partir da observação e do acompanhamento do que acontece em vários
contextos educacionais que fazem uso de tecnologias, em especial, no Programa Um
Computador por Aluno (PROUCA). O PROUCA, iniciado no final de 2009 pelo Ministério
da Educação do governo brasileiro, visa promover a inclusão digital e a melhoria da
qualidade da educação. O Programa distribuiu um laptop para cada aluno e professor
da educação básica de escolas públicas pertencentes a (cerca de) dez municípios de
cada estado brasileiro. Seguindo um modelo de parceria entre estados e municípios,
universidades públicas e privadas (UFRGS, USP, UNICAMP, PUCSP, PUCMG, UFRJ, UFSE,
II Congresso Internacional TIC e Educação
514
UFC, UFPe) e o governo federal, as equipes do PROUCA preparam os professores das
escolas envolvidas no Programa para integrarem o laptop às atividades educacionais.
Curiosamente, a presente reflexão remete ao final dos anos 80, período que coincide
com a entrada dos computadores nas escolas brasileiras, impulsionada fortemente
pelos princípios teóricos do Construcionismo (Papert, 1980/85; 1990) e
reinterpretados por Freire (1999/2006) a partir de pressupostos teóricos da
Neurolinguística Discursiva ou ND (Coudry, 1986/88; Coudry et all, 2010).
A ND, orientada por uma visão abrangente de linguagem (Franchi, 1977/92), estuda as
relações entre o cérebro, a linguagem e a vida em sociedade, e compreende o uso
discursivo do computador “como um exercício dialógico (...) que coloca frente a frente,
interlocutores que comentam, questionam, respondem, confrontam suas dúvidas e
certezas” (Freire 1999/2006). O diferencial do uso discursivo das tecnologias é que se
estabelecem dois níveis de interação relacionados: o do aluno/sujeito com o
professor/investigador, mediado pela língua da qual são falantes, e o do aluno/sujeito
com o computador, mediado pelos recursos verbais e não verbais disponíveis na
interface da aplicação utilizada. O computador é visto como um mediador coadjuvante
(Freire, 2011a) que, em resposta às ações do aluno/sujeito, apresenta algum tipo de
contrapalavra (Bakhtin 1929/99) cuja interpretação pelo aluno/sujeito é amplamente
beneficiada pela mediação do professor/investigador. Articulam-se, assim, o uso social
e cognitivo da linguagem em um movimento recíproco, tendo como tema a tarefa a
ser desenvolvida por meio do computador: uma pesquisa na web, um post escrito em
um blog, um cálculo feito com o auxílio de uma planilha. Ocorrem, assim, por meio
dessas interações, práticas digitais de uso social da linguagem.
Nos anos 90 utilizávamos um desktop e alguns poucos aplicativos voltados para o
ensino-aprendizagem. A linguagem Logo se tornou um “quase-paradigma”, uma
espécie de filosofia de aprendizagem (Papert, 1980/85). Mas, os tempos são outros.
Vejamos, a título de exemplo, a Figura 1, que mostra o tweet de G, abreviatura do
nome de um aluno do ensino fundamental II de uma escola particular da região de
Campinas (São Paulo/Brasil):
II Congresso Internacional TIC e Educação
515
Figura 1: Tweet postado por G
Observamos, no final da mensagem, três caracteres que em conjunto compõem um
emoticon - um hífen, um ponto final e outro hífen – cujo sentido, segundo a wikipédia,
pode ser: tédio, sarcasmo e desprezo (http://pt.wikipedia.org/wiki/Emoticon). O que a
mensagem de G. expressa é a contradição da escola contemporânea, o que nos leva a
inferir: (i) que a tecnologia evoluiu muito e rapidamente; (ii) que os modos de ensinar-
aprender na escola pouco mudaram. Estes dois fatores dão uma ideia da complexa
relação entre a escola e o uso de tecnologias.
É, pois, em torno dessas duas questões que este texto se organiza com o objetivo de
apresentar três tipos de relação entre a escola e a tecnologia denominadas
respectivamente de tradicional, moderna e viva. Para tanto, serão apresentados alguns
dados-achados (Coudry, 2006), que resultam de uma metodologia de base heurística
que orienta os estudos da ND, utilizada no acompanhamento longitudinal que direta
ou indiretamente a autora realiza em diferentes contextos educacionais.
2. UM MUNDO DE TECNOLOGIAS
Dos anos 90 para cá a transformação da tecnologia foi grande e rápida. Do MSX – que
usava um televisor portátil como monitor e tinha slots para encaixar softwares
armazenados em cartuchos – chegamos aos modernos Ipads, finíssimos, leves, com
tela sensível ao toque: basta girar a tela para que o conteúdo seja exibido horizontal
ou verticalmente. Passamos do teclar, tal como fazíamos com as máquinas de
II Congresso Internacional TIC e Educação
516
escrever, para clicar e, agora, tocar com a ponta dos dedos. Interfaces novas que
demandam mudanças nos gestos para ler e escrever.
Como num piscar de olhos, o novo se torna velho. Com o MSX, usávamos,
basicamente, a linguagem Logo e o editor de textos; com um Ipad temos acesso a
bibliotecas digitais, museus, laboratórios remotos, programas de simulação, uma
infinidade de conteúdos com finalidades educativas.
Direta ou indiretamente, as tecnologias fazem parte do nosso cotidiano,
especialmente nos centros urbanos. A escola no início dos anos 90, adepta do uso das
novas tecnologias, era, sem dúvida, uma agência de letramento (digital) privilegiada e,
muitas vezes, a única; muito diferente do ocorre hoje em dia (Kleiman, 1995).
Duas tecnologias relativamente recentes entraram para valer na vida das pessoas, em
especial, na vida dos jovens, e têm tido uma grande penetração nas escolas: a internet
e as redes sociais.
O uso da internet provavelmente é uma das práticas escolares digitais mais comuns.
Não há dúvida que a web é um elemento tecnológico fundamental pela sua riqueza
como mídia que suporta múltiplas linguagens e formas de comunicação, podendo
fortalecer e ampliar, de modo ainda pouco explorado, o ambiente escolar (Rocha,
2003).
A internet, no entanto, é mais (re)conhecida e usada educacionalmente, como uma
extensa base de informações ou uma enorme biblioteca que contém várias outras. Sua
propagação aumentou expressivamente a veiculação de informações, mas sabemos
que aumento de informação não significa aumento de qualidade da informação
(Rocha, op. cit.); tampouco que acesso à informação é garantia de conhecimento
(Valente, 1993).
A “pesquisa na internet” se tornou uma atividade comum nas escolas. Até o
aparecimento da internet os livros e, em especial, as enciclopédias, eram considerados
acervos confiáveis e fidedignos das formulações histórico-culturais que organizam de
certo(s) modo(s) o mundo (a cultura, as ciências, as relações sociais) de uma
determinada comunidade discursiva – os sistemas de referência (Franchi, 1977/92).
Esse acervo representava (e regulava) o que podia ser lido/dito a respeito de um
II Congresso Internacional TIC e Educação
517
determinado assunto. Em geral, esse material impresso, difícil de ser renovado e
atualizado, dispunha os fatos e acontecimentos em ordem alfabética, critério que
orientava a busca dos conteúdos.
Na web a informação é dispersa e o acesso a ela se faz por meio de sites de busca. A
busca alfabética, no entanto, não faz mais sentido; procuramos conteúdos por
palavras-chave e, de certa forma, obedecemos a indexação feita pelo site utilizado. O
Google, por exemplo, classifica os sites utilizando um algoritmo de aproximadamente
200 variáveis que calcula um ranking de relevância. Há fatores externos e internos a
um site que podem lhe conferir maior visibilidade na indexação, mas existem outros
que têm lugar de destaque, por outras razões, como é o caso de anunciantes de
diferentes tipos de produtos. Em outras palavras, não é o sujeito/usuário quem busca
a informação desejada, mas sim, um algoritmo, cujo critério e lógica são
desconhecidos, e que funciona como mecanismo regulador do que pode/deve ser
consultado, pelo menos, com maior frequência.
Boa parte das informações não tem “selo de qualidade” e é possível encontrar, de
clique em clique, informações divergentes, complementares, idênticas, incoerentes, de
todos os tipos. Se a diversidade de fontes de consulta permite diferentes leituras de
um suposto mesmo fato, o que é desejável do ponto de vista educacional implica
maior responsabilidade na formação de alunos preparados para interpretar e usar
produtivamente o que lá está posto e continuamente reposto. A jornalista Mona
Chollet do Le Monde Diplomatique da França diz que “o cuidado na abordagem de
informações novas e a verificação dos dados, antes a cargo dos jornalistas, agora estão
nos ombros dos internautas” (Chollet, 2011, p.37).
Quero com isso dizer que a mediação (Vygotsky, 1988; 2007) de um adulto mais
experiente – no contexto educacional, o professor – faz diferença para a leitura e a
interpretação desse mar de informações, bem como para o estabelecimento de
relações entre o que é novo e velho, já conhecido (Coudry 2010). Isso é aprender.
Por outro lado, vivemos uma crescente onda de redes sociais (gerais ou profissionais) -
orkut, facebook, quepasa, linkedin, twitter - espaços de interação que seguem regras
sociais que balizam as relações que nelas se estabelecem: é preciso convidar um
II Congresso Internacional TIC e Educação
518
amigo; só quem é amigo pode visualizar o conteúdo de um determinado usuário; as
mensagens podem ser públicas ou particulares, etc. As interações podem ser
totalmente à distância, como no caso de amigos que moram em localidades
geograficamente distantes, ou semipresenciais, no caso daqueles que se encontram
também em outros contextos da vida social (escola, clube, esporte, igreja).
Nas redes sociais, em geral, as pessoas postam conteúdos que falam de suas vidas: o
que fazem e gostam; publicam fatos que viram ou ouviram e que causaram algum
impacto no modo como pensam/agem. Uma preocupação crescente de toda a
sociedade e, em especial, de pais e professores, diz respeito à segurança na internet.
Por trás de um perfil homogeneizado existem pessoas que podem estar anos-luz de
distância umas das outras, não só no sentido espaço-temporal, mas também no
sentido ético. “Todos compartilham a mesma interface, às vezes, a mesma língua, as
mesmas práticas de sociabilidade virtual, mas o resultado, como diz Chollet, é um
“esperanto digital”, onde se encontra “o pior e o melhor que pode produzir uma
multidão” (Chollet, 2011, p. 37).
Uma pesquisa feita por uma empresa de telecomunicações da Austrália em 2010
mostra que 65% dos pais de jovens entre 10 e 17 anos que foram entrevistados acham
que a participação em redes sociais interfere negativamente no aprendizado (Araújo,
2010). No entanto, creio que pais e professores podem se surpreender se olharem
com mais atenção sobre o que (mais) se fala nesse universo. É possível encontrar
pequenas comunidades que têm como objetivo discutir tarefas escolares, como
mostra a Figura 2, comunidades organizadas pelos próprios alunos e cuja existência
pais e professores desconhecem.
II Congresso Internacional TIC e Educação
519
Figura 2: Trecho da interação da comunidade. Os diálogos são transcritos a seguir.
A – No texto expositivo argumentativo você vai...(a favor da reforma agrária, contra a
reforma agrária, sei lah naum pensei nisso ainda)
B – eh pra quando mesmo?
C – ela ainda não marcou...
B – Eu vou a favor, mas não apoio o MST
D – se fizessem uma pesquisa para quem REALMENTE apoia a reforma agrária, aposto que o
resultado seria diferente
E – eu so contra, mas a favor eh mais facil...
D – não necessariamente, tem que retomar toda a história da reforma agrária pra ter um
bom argumento de que ela torna a sociedade mais justa. Se falar que é contra, é só justificar
II Congresso Internacional TIC e Educação
520
que a alteração geográfica seria baixa, pois o Brasil é 84% urbano
Neste microcosmo ganha visibilidade a heterogeneidade de posturas e de interesses
diante da escola e do conhecimento. Neste pequeno excerto o que se pode perceber?
Os jovens falam sobre o que estão aprendendo na escola, fazendo uso de formas de
escrita típicas da internet: o sujeito A., responsável pelo início da interlocução, faz uma
pequena enquete sobre como os amigos pretendem construir seus argumentos a
respeito do tema Reforma Agrária; B. pergunta qual a data limite para entregar o
trabalho e C. responde que a professora ainda não marcou o prazo final; B. responde à
pergunta de A. dizendo que será a favor da reforma, embora não apoie o MST
(Movimento dos Sem Terra); D. acrescenta uma mensagem em tom irônico; e E.,
marotamente, mostrando-se um aluno “esperto”, diz que embora seja contra a
Reforma Agrária, assumirá posição contrária para construir seus argumentos por
considerar ser “mais fácil”, ao que D. contesta, apresentando um argumento a favor e
outro contra a Reforma.
Dois aspectos chamam a atenção. O primeiro deles tem a ver com a representação
(Hall, 1997) que o aluno E. mostra ter de professor, escola e aluno, ao assumir o
tradicional jogo escolar: como aluno, ele cumpre as tarefas de modo a corresponder
àquilo que supõe ser mais “fácil” ou “esperado” pelo professor, mesmo que tenha que
contrariar sua própria opinião, talvez por antecipar que será mais trabalhoso construir
argumentos contrários à Reforma Agrária. O segundo aspecto tem a ver com o papel
da interlocução na formulação de ideias e argumentos (Coudry e Freire, 2010). Os
jovens, pela interlocução, são levados a assumir uma posição enunciativa particular. É
pelo confronto com o enunciado de E. que D. explicita seus argumentos a favor e
contra a Reforma Agrária, mostrando o que sabe ou o que supõe saber sobre o
assunto.
Assim, para além do visível e em meio a muitas e muitas camadas sobrepostas que
escondem outras pequenas redes, encontramos estes jovens internautas que se
organizam em uma comunidade de prática (Smith, 2003), de auxílio mútuo, para
II Congresso Internacional TIC e Educação
521
discutir, perguntar, tomar posição, argumentar, confrontar, criticar, zoar, tendo como
tema comum, os conteúdos escolares do 7º ano.
A rede pode sim, ser também um lugar para ensinar e aprender de um modo
diferente, informal, quase acidental. E a escola? Como se ensina e se aprende na
escola? Passo, então, à segunda constatação de G.: “o método de aula tem quase 200
anos”.
3. MODOS E MODOS DE ENSINAR
A palavra “modo” no plural e repetida no título desta seção tem o propósito de marcar
a multiplicidade de “teorias” que rondam a sala de aula e habitam vários cursos de
formação de professores. A despeito delas, vejamos na Figura 3, como um aluno
recém ingressante na 1ª série do ensino fundamental em 2002 responde à questão do
livro didático de História: “qual a diferença entre o que você aprende na escola e o que
aprende em casa?”
Figura 3: Resposta do aluno de 6a6m à lição de História
Embora esteja há pouco tempo na escola, o aluno mostra que já percebeu seu
funcionamento. Em seu texto, a escrita de “1ª série”, marca o lugar que ocupa na
escola determinando o que nela pode fazer. Chama a atenção é o “enquadre
disciplinar e serial que prescreve o que pode e o que deve ser dito/escrito” (Coudry e
Freire, 2005) e o que pode ser pensado/aprendido; ambos reduzem as relações entre o
sujeito, a escola, o conhecimento/aprendizagem. Essa redução aparece no texto do
II Congresso Internacional TIC e Educação
522
aluno pelo marcador argumentativo “só” que delimita conteúdos e saberes possíveis
nesse nível de escolaridade e é, assim, que ele diferencia o que se aprende na escola
do que se aprende fora dela. Em casa, onde também existem lugares discursivos
estabelecidos pela relação familiar, o mundo está presente: na novela, nas conversas
com pais e irmãos que vivem outras experiências e comentam sobre elas, na lista de
compras, no noticiário, no telefone que toca ou na correspondência entregue pelo
carteiro. Em casa não há pré-requisitos, não há um currículo previamente estabelecido
para ser seguido: a vida é o projeto de aprendizagem.
É a esta escola que Papert, um dos criadores da linguagem Logo nos anos 80, dirige sua
crítica (Papert, 1980/85; 1994). Uma escola que se preocupa em ensinar os conteúdos
organizados hierarquicamente na forma de um currículo, utilizando “métodos
instrucionistas” que resultam na "aprendizagem de um assunto morto" (Papert,
1993/94, p. 124, 62).
Ao contrário, a escola vislumbrada por Papert e representada pela escola de samba,
encanta pela qualidade das “relações entre sambistas experientes e novatos nos
ensaios das escolas” (Valente, 1985, prefácio), um ambiente de aprendizagem
socialmente coeso e colaborativo, onde todos aprendem de forma integrada à
realidade (Papert, 1980/85, p. 213).
Segundo Papert (1990) o aluno aprende significativamente quando é capaz de atribuir
um sentido do ponto de vista cognitivo (levando em conta o que já sabe a respeito do
assunto); afetivo (quando o aprendizado é orientado por um interesse pessoal, um
desejo, condizente com a sua história de vida); social (em função do reconhecimento
da importância que o aprender tem na sua vida) e cultural (considerando a inserção do
novo aprendizado no conjunto de sistemas e valores historicamente construído pela
sociedade), tal como ocorre na escola de samba.
Neste processo, ganham importância, os objetos culturais que são usados para
learning-by-making, isto é, aprender-fazendo. Os artefatos tecnológicos são fruto da
atividade reflexiva humana que antecipa e configura aquilo que o homem
precisa/deseja fazer. Nascem, portanto, de demandas ou urgências histórico-culturais.
O homem antecipa suas necessidades/desejos ao criar e desenvolver ferramentas – de
II Congresso Internacional TIC e Educação
523
todos os tipos - e configura novas percepções, associações e aprendizagens ao utilizá-
las com determinado propósito, dando a elas sentido (Coudry e Freire, 2005).
O que há de diferente quando se usa o computador? Na interação entre a criança e
esse dispositivo, a máquina funciona como um interlocutor virtual, ora porque se
submete às instruções/comandos da criança, ora porque apresenta uma ação
inesperada, um erro, em um processo interativo dinâmico (Freire 1999/2006). Em
qualquer uma das situações, o computador oferece uma contrapalavra a palavra da
criança (Bakhtin 1929/1999, p. 132) dando-lhe indícios que a ajudam a se manter na
interação. É o que Papert chama de debugging (ou depuração), ocasião em que a
criança constrói estratégias e busca soluções. Assim, o erro é parte do processo de
aprender, um processo que não é linear.
Nem sempre o aluno/sujeito é capaz de ler/interpretar os indícios que o computador
lhe oferece. Assim, o processo de depuração se beneficia e se amplia quando mediado
pela leitura do outro que aproxima a leitura que o aluno/sujeito faz de conhecimentos
sistematizados historicamente. A mediação do outro, portanto, potencializa o
aprendizado, ao instigar a descoberta do que falta ao que se pretende fazer e se
configura como condição para reorganizar o sentido daquilo que, muitas vezes, é
percebido pelo aluno/sujeito parcial e informalmente (Freire, 2011b).
No learning-by-making, proposto por Papert, a experimentação precede a
formalização e a formalização é beneficiada pela experimentação e pela mediação do
outro.
Outro ponto enfatizado pelo autor é o fato de o aluno poder mostrar o seu trabalho,
tomando-o como algo que pode ser “discutido, examinado, sondado e admirado"
(Papert, 1993/94, p. 127). É assim que o aluno/sujeito pode rever o que fez a partir da
perspectiva do outro e com base em outros sistemas de referência (Franchi, 1977/92),
o que pode levá-lo a novas reflexões, depurações, transformações e aprendizagens. A
mediação se amplia e convoca novos elementos que podem ser incorporados pelo
aprendiz.
Pensar-com e pensar-sobre, de maneira colaborativa e em sintonia com as demandas
da vida em sociedade, são ideias relativamente simples, mas que ainda estão de fora
II Congresso Internacional TIC e Educação
524
da maior parte das nossas escolas. A escola reconhecida por G. (Figura 1) e pelo aluno
da 1ª série (Figura 3) – provavelmente por indícios diferentes – abre pouco espaço
para o imprevisível, para a invenção, para novas relações de conhecimento, para suas
próprias histórias. Nessa escola retratada por ambos, a prática escolar – com ou sem
tecnologia - é pautada em treinos que demandam memorização de itens, cópias,
respostas que repetem fórmulas, desconsiderando muitas vezes, quem é o sujeito que
aprende e em que mundo vive, o que acaba incentivando posturas como a de E.
(Figura 2), membro da comunidade do facebook que vai se posicionar a favor da
Reforma Agrária, mesmo sendo contrário a ela, porque considera ser “mais fácil”
elaborar e sustentar um argumento que não é o seu.
4. ESCOLA TRADICIONAL, MODERNA E VIVA
Não parece fácil quebrar esse modo de funcionamento da escola padrão (Coudry e
Freire, 2005). Desde os anos 90 a introdução dos computadores nas escolas traz a
promessa de desencadear inovações educacionais, mas o que se observa é que em
organizações complexas a tendência é incorporar as tecnologias de maneira a não
modificar substancialmente seu modo de trabalho, como é o caso da escola (Papert,
1997).
Embora vários programas tenham sido desenvolvidos pelo governo brasileiro desde os
anos 80 visando o uso educacional das tecnologias digitais, a sua utilização com
sentido, isto é, como práticas sociais de uso da linguagem, continua sendo um desafio.
Para se ter uma ideia, uma pesquisa divulgada em agosto de 2010 pelo Comitê Gestor
da Internet no Brasil aponta a pequena inserção da tecnologia na prática escolar.
Foram entrevistados 1.541 professores de Português e Matemática, 4.987 alunos
distribuídos entre o 5º ano do Ensino Fundamental I, o 9º ano do Ensino Fundamental
II e o 2º ano do Ensino Médio; 497 diretores e 428 coordenadores pedagógicos de 497
escolas municipais e estaduais de áreas urbanas do país. Os resultados indicam que
cerca de 80% das escolas públicas urbanas que têm laboratório de informática estão
conectadas à internet por banda larga, mas o baixo número de computadores e a baixa
velocidade da conexão emperram sua efetiva utilização e apenas 20% dos professores
II Congresso Internacional TIC e Educação
525
utilizam a internet com os alunos. E o que fazem os professores que usam os
computadores e a internet durante as aulas? 66% ensinam os alunos a usar o
computador, 44% realizam pesquisas de informação e 43% propõem projetos ou
trabalhos sobre um tema.
Esses dados fazem pensar a respeito de diferentes relações entre a escola (pública e
privada) e a tecnologia, tomando como referência as instituições e/ou projetos de
inserção de tecnologias em espaços de aprendizagem que tenho acompanhado nos
últimos tempos. Passo, então, a apresentar 3 tipos de relações/abordagens de uso de
tecnologia denominadas de tradicional, moderna e viva.
4.1 Relação tradicional
Compõe o cenário da abordagem tradicional o laboratório de informática. Essa
abordagem foi durante muitos anos o modelo possível, especialmente para a escola
pública, já que não existem recursos orçamentários suficientes para prover todas as
salas de aula com computadores. Esta passa a ser a solução para, supostamente,
democratizar o acesso de todos os alunos, de todos os níveis de escolarização, aos
computadores da escola. No entanto, foi também, um convite a disciplinação do uso
de tecnologias nas escolas em dois sentidos: (i) como obediência a certas regras que
orientam o compartilhamento deste espaço comum: agendamento prévio, escala de
dias, cumprimento de horários, etc.; (ii) como sistematização e organização de
conteúdos de informática que deram origem a disciplinas de Informática ou
Computação – e que a pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil comprova
Desde os anos 90 vimos discutindo esse modelo – típico das escolas instrucionistas -
contrapondo duas visões - o ensino de informática e o ensino pela informática – um
debate, como se vê, ainda atual (Valente, 1993). Nas escolas públicas, muitas vezes,
aquele professor que tem maiores conhecimentos técnicos acaba assumindo a tarefa
de letrar digitalmente os alunos e tem, portanto, maiores chances de propor uma
prática escolar em que o uso de tecnologia está contemplado.
A escola particular com o propósito de aliar o ensino de informática ao ensino pela
informática mantém em sua grade curricular a disciplina Informática, com professor
II Congresso Internacional TIC e Educação
526
próprio, que além de desenvolver um currículo específico abre espaço para que os
demais professores proponham atividades que usam recursos de informática para
explorar os conteúdos que estão sendo tratados em suas aulas. É o que acontece na
disciplina de Ciências como mostra a Figura 4:
Figura 4: Trabalho de um aluno do 8º ano do ensino fundamental de uma escola particular
Trata-se de um trabalho individual desenvolvido por alunos do 8º ano do ensino
fundamental de uma escola particular. A atividade, realizada por ocasião da pandemia
de gripe suína na região de Campinas (São Paulo/Brasil) em 2009, foi orientada pela
professora de Ciências e pela professora de Informática. A atividade, do ponto de vista
educacional, é interessante: vincula os conhecimentos aos fatos que estavam
acontecendo, sensibiliza e informa os alunos, faz uso de um tipo de gênero textual
particular, prevê a leitura de uma bibliografia sobre o assunto, utiliza recursos de um
software para criação de panfletos e boletins informativos. Uma disciplina, então,
apóia a outra: a Informática aproveita os conteúdos de Ciências para contextualizar os
recursos do software e, Ciências, aproveita os recursos da Informática para
desenvolver seu conteúdo.
II Congresso Internacional TIC e Educação
527
O que chama a atenção, no entanto, é a dissociação entre as duas. Cada professora
trabalha em seu horário, em sua disciplina, com parte dos conteúdos envolvidos na
prática escolar proposta e, assim, os alunos têm que reservar suas dúvidas para um ou
outro momento escolar, espelhando a organização tradicional do cotidiano da escola.
Parafraseando o aluno da 1ª série da Figura 3, pode-se dizer que nas aulas de
Informática só se tira dúvidas sobre Informática; nas aulas de Ciências só se tira
dúvidas de Ciências!
4.2 Relação moderna
A escola moderna, por sua vez é, em geral, da rede privada de ensino. São aquelas que
investem pesadamente em equipamentos de ponta: lousas digitais, laptos ou tablets,
rede wifi. Em termos de infraestrutura, existe tudo o que, provavelmente, todos
sonhamos. A escola de G. da Figura 1 é uma delas. A instituição adota um determinado
sistema de ensino que prevê, além de material impresso, materiais e exercícios
disponibilizados em um Portal. A escola também está inserida nas redes sociais mais
populares: facebook, youtube e twitter.
A digitalização do cotidiano escolar, no entanto não é garantia de modernização dos
métodos de ensino, como bem aponta G.. Ao contrário, soa falsa aos alunos. E por
quê? Vejam o exemplo de Nakazoni (2011) apresentado na Figura 5.
II Congresso Internacional TIC e Educação
528
Figura 5: Página da apostila de inglês de um sistema de ensino adotado por uma escola
particular
À esquerda, pode-se observar a formatação do material impresso que mal simula uma
página web: reapresenta de forma linear um conteúdo encontrado na wikipédia sobre
meios de comunicação de massa, um dos tópicos das aulas de inglês. Em algumas
partes do material impresso, em destaque à direita na Figura 5, são indicados links –
que não são links – para apontar outros conteúdos que podem ser acessados pelos
alunos via internet. São, na verdade, exercícios do tipo: múltipla escolha, verdadeiro e
falso, completar lacunas; exercícios que em nada diferem dos clássicos exercícios
encontrados em materiais didáticos impressos: descontextualizados, metalinguísticos
e desinteressantes. G. tem razão: não há nada de novo!
4.3 Relação viva
Retomemos o exemplo apresentado na subseção anterior. Imaginemos que a proposta
do professor de inglês tem como tema “meios de comunicação de massa”. Que tal
aproveitar os recursos multimodais da web para aprender inglês? Que tal propor aos
alunos a produção de podcasts narrando brevemente a história dos principais meios
de comunicação, paara que possam exercitar a fala e comparar suas pronúncias? Ou
propor um fórum para discutir o assunto, para que possam exercitar a escrita/leitura
II Congresso Internacional TIC e Educação
529
do inglês? Ou, ainda, pedir que escolham no youtube vídeos em inglês sobre o assunto
para que produzam os textos das legendas, para exercitarem a escuta e a tradução
inglês/português?
Observamos que todas essas atividades colocam a língua em funcionamento e, assim,
propõem atividades dinâmicas, interativas e contextualizadas. O uso da tecnologia
aqui faz diferença. Sem a mediação coadjuvante (Freire, 2011a) da tecnologia, as
atividades aqui sugeridas seriam outras.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa breve reflexão a respeito das relações entre escola e tecnologia concentrei meus
argumentos na díade uso de tecnologia e conteúdo escolar, o que nos remete à
mediação do professor. Contudo, quero esclarecer que vários fatores devem convergir
para que o trabalho com tecnologia nas escolas ocorra de maneira viva: desde
infraestrutura adequada (computadores, conexão à internet, espaço físico) até a
formação de recursos humanos (professores e gestores, técnicos de apoio) preparados
para implantar, alimentar e sustentar o trabalho nas escolas.
Volto, no entanto, a insistir na qualidade das díades tecnologia/conteúdo e
professor/aluno. As escolas tendem a justificar a inclusão das tecnologias digitais no
trabalho pedagógico pelo crescente interesse dos alunos pela escola: os alunos faltam
menos e participam mais das aulas. Entretanto, como aponta Amiel (2011), essa
“relação simples e direta entre dispositivo e melhorias educacionais proporciona um
elemento confortável para quem analisa, porém os resultados são de pouca utilidade
prática. O interesse do aluno, quase sempre, é pelo dispositivo ao qual ele não tem
acesso em casa. Mas se não for sustentado por práticas educacionais coerentes, o
interesse é efêmero e pouco se relacionará aos objetivos educacionais propostos”
(Amiel, 2011). Uma relação viva passa por outros caminhos.
II Congresso Internacional TIC e Educação
530
REFERÊNCIAS
Amiel, T. (2011). Entre o simples e o complexo: tecnologia e educação no ensino
básico. In: Com Ciência Revista Eletrônica de Jornalismo Científico. Campinas:
Labjor/Unicamp. Retirado de:
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=70&id=876
Araújo, E. (2010). 65% dos pais acham que as redes sociais atrapalham a escola e
deixam os filhos mais burros. Matéria publicada em Crianças&Mídia. Retirado de:
http://elisaaraujo.com.br/criancasemidia/65_pais_redes_sociais_atrapalham_esco
la_deixam_adolescentes_burros/
Bakhtin, M. (1929; 1999). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec.
Cholllet, M. (2011). Twitter ou o triunfo da plasticidade. In: Le Monde Diplomatique
Brasil. Retirado de: http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=1034
Comitê Gestor Comitê Gestor da Internet no Brasil (2010) Apresentação sobre Pesquisa
sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nas Escolas Brasileiras –
TIC Educação. Retirado de: www.cetic.br/educacao/2010/apresentacao-tic-
educacao-2010.pdf
Coudry, M. I. H. (2010) Caminhos da Neurolinguística Discursiva: o velho e o novo. In:
Coudry, M. I. H.; Freire, F. M. P.; Andrade, M. L. F.; Silva, M. A. (Orgs.). Caminhos da
Neurolinguística Discursiva: teorização e práticas com a linguagem. Campinas:
Mercado de Letras.
Coudry, M. I. H. (1996) O que é dado em neurolingüística? In: Castro, M. F. P. (org.) O
Método e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Editora da Unicamp. (p. 179-
192).
II Congresso Internacional TIC e Educação
531
Coudry, M. I. H. (1986/88) Diário de Narciso - discurso e afasia. São Paulo: Martins
Fontes.
Coudry, M. I. H.; Freire, F. M. P. (2010) Pressupostos teórico-clínicos da
Neurolinguística Discursiva. In: Coudry, M. I. H.; Freire, F. M. P.; Andrade, M. L. F.;
Silva, M. A. (Orgs.). Caminhos da Neurolinguística Discursiva: teorização e práticas
com a linguagem. Campinas: Mercado de Letras.
Coudry, M. I. H.; Freire, F. M. P. (2005). O trabalho do cérebro e da linguagem: a vida e
a sala de aula. Campinas: Cefiel/IEL/Unicamp. (Coleção Linguagem e Letramento
em foco).
Coudry, M. I. H.; Freire, F. M. P.; Andrade, M. L. F.; Silva, M. A. (Orgs.). (2010).
Caminhos da Neurolinguística Discursiva: teorização e práticas com a linguagem.
Campinas: Mercado de Letras. 399p.
Franchi, C. (1977; 1992). Linguagem – Atividade Constitutiva. Cadernos de Estudos
Lingüísticos. Campinas: (22):9-39.
Freire, F. M. P. (1999; 2006). Enunciação e Discurso: a linguagem de programação Logo
no discurso do afásico. Campinas: Mercado de Letras.
Freire, F. M. P. (2011a). Práticas escolares e tecnologias digitais. Conferência
apresentada por ocasião do VI Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia
Sul-Ocidental. Rio Branco, AC.
Freire, F. M. P. (2011b). Práticas digitais informais e leitura/escrita formais. Anais do
XVI Congreso Internacional de la Asociación de Lingüística y Filología de la América
II Congresso Internacional TIC e Educação
532
Latina (ALFAL). Alcalá de Henares, Madrid. Documento 335, cd-rom. 10p. (ISBN 978-
84-8138-924-4).
Hall, S. (1997) The work of representation. In: Hall, S. (Ed.) Representation: cultural
representation and signifying practices. London: Sage.
Kleiman, A. (1995). Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola.
Kleiman, A. (Org.) Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras. (p.
15-61).
Nakazoni, A. L. G. (2011). Sujeito, escola e tecnologia: uma abordagem
neurolinguística. Texto apresentado para a defesa da dissertação de mestrado.
Campinas, SP: Instituto de Estudos da Linguagem - Unicamp.
Rocha, H. V. (2003). A web e a sistematização de conhecimentos. Comunicação oral na
mesa redonda: Produção e divulgação de conhecimento na Internet, por ocasião do
IX SETA - Seminário de Teses em Andamento, Instituto de Estudos da Linguagem -
Unicamp, Campinas, SP.
Valente, J. A. (1993). Diferentes Usos do Computador na Educação.In: Valente, J. A.
(Org.), Computadores e Conhecimento: repensando a educação. Campinas, SP:
Gráfica da UNICAMP.
Papert, S. (1997) Why school reform is impossible. In: The journal of the learning
sciences. v. 6, n. 4, p. 417-427, 1997. Retirado de:
http://www.jstor.org/stable/1466781
Papert, S. (1993; 1994). A máquina das crianças: Repensando a escola na era da
informática. Porto Alegre: Artes Médicas. 210p.
II Congresso Internacional TIC e Educação
533
Papert, S. (1990). A critique of technocentrism in thinking about the school of the
future. Media Lab Epistemology and Learning, M.I.T. Memo No. 2. Boston, USA.
Retirado de: http://www.papert.org/articles/ACritiqueofTechnocentrism.html
Papert, S. (1980; 1985). Logo: computadores e educação. São Paulo: Editora
Brasiliense. 253 p.
Smith, M. K. (2003). Communities of practice, the encyclopedia of informal education.
Retirado de: www.infed.org/biblio/communities_of_practice.htm.
Vygotsky, L. S. (1988; 2007). A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.