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1 ESCOLA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO DE SURDOS Professoras conteudistas/pesquisadoras: MÁRCIA LISE LUNARDI e VERA LUCIA MAROSTEGA Acadêmica: PRISCILA DO NASCIMENTO ROCHA Carga Horária: 30h Resumo Esta disciplina tem como objetivo apresentar a estrutura e a organização dos espaços e dos tempos da educação dos sujeitos surdos. Nesse sentido, estabelece uma problematização teórico-prática acerca das modalidades de ensino e da organização curricular envolvida na área da surdez, entendendo o currículo como artefato cultural, como um discurso que é produzido no interior das práticas educativas e que, ao ser produzido, é constituidor de identidades e de subjetividades surdas. Palavras-chave: Currículo, Educação de Surdos, Diferença/Diversidade, Cultura. PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com

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ESCOLA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO DE SURDOS Professoras conteudistas/pesquisadoras: MÁRCIA LISE LUNARDI e VERA LUCIA

MAROSTEGA

Acadêmica: PRISCILA DO NASCIMENTO ROCHA

Carga Horária: 30h

Resumo

Esta disciplina tem como objetivo apresentar a estrutura e a organização dos

espaços e dos tempos da educação dos sujeitos surdos. Nesse sentido, estabelece

uma problematização teórico-prática acerca das modalidades de ensino e da

organização curricular envolvida na área da surdez, entendendo o currículo como

artefato cultural, como um discurso que é produzido no interior das práticas educativas

e que, ao ser produzido, é constituidor de identidades e de subjetividades surdas.

Palavras-chave:

Currículo, Educação de Surdos, Diferença/Diversidade, Cultura.

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Unidade A – ESPAÇOS E TEMPOS DO CURRÍCULO

Esta unidade procura articular as noções de cultura, identidade e diferença com

a discussão curricular1. Para isso, concebe o currículo como um campo contestado,

disputado e conflitivo portanto, um espaço privilegiado com relações de poder. No

entanto, cabe ressaltar que essas relações não se processam simplesmente por meio

formas homogêneas, repressivas, proibitivas; elas também se dão de formas

benéficas, ou seja, heterogêneas, produtivas, provocativas. Analisar o currículo da

educação de surdos a partir do jogo das relações de poder significa trazer esta

discussão para o espaço da escola, ou seja, para um território rico em experiências

culturais. Experiências essas que se estabelecem na negociação diária, que nos

permite compreendê-las como uma reconstrução que acontece no dia-a-dia, e não

como algo imóvel passado de geração para geração. Nesse sentido, o currículo se

relaciona diretamente com as questões de identidade e diferença, pois é visto como

um discurso capaz de nos constituir enquanto sujeitos.

A.1 – Currículo e cultura

A tentativa de relacionar currículo e cultura traz consigo outro elemento que não

pode ser visto fora dessa relação: o poder. O poder “se manifesta em todas as

relações, como uma ação sobre outras ações possíveis” (VEIGA-NETO, 1995, p. 32).

Portanto, identificar a cultura é percebê-la enquanto construída e construidora de

relações de poder.

1 (ASSUNTO) – Curricular: Para saber mais sobre a questão do currículo como um espaço de relações de poder leia o livro: Documentos de Identidade: um indrodução às teorias do currículo, de Tomaz Tadeu da Silva. (Belo Horizonte: Ed Autêntica, 1999).

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Figura1: Currículo espaço privilegiado de relações de poder

O terreno conceitual da cultura é um terreno muito ambíguo. Segundo Paraíso

(1996, p. 130), “diferentes autores/as têm mostrado sua complexidade conceitual

(WILLIANS, 1979 e 1992; HEBDIGE, 1988; CHAUÍ, 1986)”.

Não pretendemos estabelecer uma definição única e fixa de cultura. Para tanto,

compartilhamos da compreensão de Moreira & Silva (1995, p.27), segundo o qual

“cultura é o terreno em que se enfrentam diferentes e conflitantes concepções de vida

social, é aquilo pelo qual se luta e não aquilo que recebemos”. Dessa forma, cultura

passa a ser muito mais que patrimônio acumulado pela humanidade durante a sua

história: é, antes disso, uma relação que se estabelece na negociação diária.

A surdez é um país cuja história é reescrita de geração a geração. Isso

ocorre em parte por causa de condições de suas línguas nativas, em parte

porque mais de 90% das crianças surdas nascem de pais que ouvem e em

parte por causa das opressões curiosas e específicas que constituem a

história dos surdos. As culturas dos sinais, bem como o “conhecimento”

social da surdez, são necessariamente ressuscitadas e refeitas dentro de

cada geração (WRIGLEY, 1996, p.25).

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É a partir desse olhar que se compreende a cultura surda, ou seja, como um

processo de significação construído no contexto cotidiano dos surdos. Nesse sentido,

o currículo é um espaço privilegiado onde se expressam as novas concepções e

também aquilo que entendemos como conhecimento. Para isso, ele pode tanto fazer

com que diferentes culturas tenham voz quanto silenciá-las.

Através da pesquisa2 realizada por Lunardi (1998), pode-se perceber que a

presença do professor surdo no currículo constitui-se num elemento importante para

dar “voz” a essas culturas não viabilizadas no contexto escolar surdo. Observa-se isso

no depoimento de um dos professores surdos entrevistados durante a pesquisa da

autora: Eu acredito que somos representantes da cultura surda, pois tivemos o

acesso à cultura surda com apoio de nossas famílias e nossos pais.

Também buscamos ajuda e elementos culturais com outros surdos

adultos, aprendemos muito rápido a língua de sinais e participamos de

forma efetiva na comunidade surda. Porém sabemos que muitos surdos

não têm essa base nem esse apoio familiar, portanto, cabe a nós

professores surdos ajudarmos no desenvolvimento cultural desses surdos

e também na construção desse currículo. Essa construção deverá vir

baseada nas idéias e experiência dos próprios surdos, na análise e

discussão sobre os elementos que deveriam compor ou não esse

currículo. Acredito ser um trabalho lento, até termos um currículo próprio

para educação de surdos (Pedro) (LUNARDI, 1998, p.79).

No depoimento acima, fica visível que essa relação de possibilitar a cultura

surda na escola e no currículo pode se concretizar, ou seja, o entrevistado sendo

professor surdo, está autorizado a dar visibilidade, a “falar” dessa cultura surda na

escola. No entanto, isso ainda é um trabalho lento, pois não podemos nos esquecer

de que todo esse trabalho acontece na instituição escolar, e uma das características

da escola é trabalhar o currículo a partir da seleção de um conjunto de

2 (ASSUNTO) – Pesquisa: Para conhecer mais sobre a pesquisa realizada por Lunardi leia a Dissertação de Mestrado da autora: LUNARDI, Márcia L. Educação de Surdos e Currículo: um campo de lutas e conflitos. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação, 1998. (Dissertação de Mestrado).

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conhecimentos, comportamentos, valores e práticas daquilo que é considerado como

“correto”, como a “verdadeira” cultura. Segundo Santos & Lopes (1997, p.36):

Isso significa que a cultura de diversos grupos sociais fica marginalizada

do processo de escolarização e, mais do que isso, é vista como algo a ser

eliminado pela escola, devendo ser substituída pela cultura hegemônica,

que está presente em todas as esferas do sistema de ensino. De fato, a

escola assumiu historicamente o papel de homogeneização e assimilação

cultural.

Esses processos de homogeneização cultural legitimados pela escola se dão por

diferentes vias. Na escola de surdos, visualizamos isso através da negação da língua

de sinais como língua natural dos surdos. Um dos traços mais significantes da cultura

surda é o uso da língua de sinais3,que, antes de ser constituída peças relações

entre comunidade surda e comunidade ouvinte, é o que as constitui.

O aluno surdo depende do sentido da visão para comunicar-se e para aprender.

No entanto, isso fica muito limitado quando uma grande proporção de informações

necessárias para o seu desenvolvimento social e cognitivo se materializa por sinais

audíveis e não visíveis. A maioria dos educadores ouvintes desconhece ou conhece

muito pouco a estrutura da língua de sinais, ignorando, no currículo, artefatos

significativos da cultura surda. Nesse contexto, podemos perceber que o que definimos como nosso e o que

vislumbramos como culturalmente diferente baseiam-se em distinções hierárquicas

constituídas nas relações de poder. “A questão sobre qual cultura é trazida para a

escola é uma questão social e política importante; a relação entre cultura e grupos

tem de ser entendida como um problema de poder” (POPKEWITZ, 1992, p.92).

Assim, no currículo da escola de surdos, onde mundos culturais diferentes se

enfrentam, os alunos, juntamente com os professores surdos, reconstroem e

contestam as formas hegemônicas de dominação da sociedade em geral, da escola e

3 (ASSUNTO) – Língua de sinais: Para saber mais sobre a estrutura da língua de sinais leia o terceiro capítulo da obra: Linguagem e Surdez, de Eulália Fernandes (Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 29-44). E o segundo capítulo da obra: Educação de surdos: a aquisição da linguagem, de Ronice M. Quadros (Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. p. 45-66).

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do próprio currículo. Portanto, ao fabricar o currículo, somos não somente interpelados

por ele, mas também, produzidos por ele. O currículo, como um espaço de

significação, também está vinculado à formação de identidades. É para esse ponto

que vamos nos direcionar a seguir.

A.2 – Currículo e identidade

Abordar o currículo como constituidor de identidades significa vê-lo além de seus

aspectos cognitivos, centrados na transmissão de conhecimentos; relacionar currículo

e identidades é vê-lo como um discurso capaz de nos constituir enquanto sujeitos.

Para Silva (1996, p.165):

O currículo não está envolvido num processo de transmissão ou de

revelação, mas num processo de constituição e posicionamento: de

constituição de sujeito de um determinado tipo e de seu múltiplo

posicionamento no interior das diversas divisões sociais.

Portanto, os textos que compõem o currículo corporificam explícita ou

implicitamente visões particulares de conhecimento, de sociedade e de grupo. Sendo

assim, elas legitimam quais conhecimentos e formas de ensinar e aprender são

válidas.

A expressão de Hall (1997) “definida historicamente e, não biologicamente”, em

relação a questão das identidades, vem ao encontro de como as identidades surdas4

estão sendo representadas no interior do currículo da escola de surdos. Nos

depoimentos dos professores surdos, percebe-se as questões de identidade

emergindo no contexto curricular.

No entanto, as identidades aqui reclamadas afastam-se da representação

biológica, do déficit, da perda; elas são vistas dentro de uma nova ordem, a

comunicação visual, que se constitui no uso da língua de sinais. Nesse sentido,

podemos entender a surdez conforme nos explica Wrigley (1996, p.29): “a surdez é

uma experiência visual”.

4 (ASSUNTO) - Identidades surdas: Para saber mais sobre a produção das identidades surdas ver: PERLIN, Gládis - Identidades Surdas. In: SKLIAR, Carlos. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. p.51-74.

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Nesse sentido, é possível ver a relação entre currículo e produção de identidade 5sob múltiplas formas. Isso significa que as identidades que se compõem

no grupo são negociadas entre seus componentes e a experiência que cada um

possui. Esse conjunto de elementos culturais constitui as identidades e, como afirma

Perlin (1998, p.21), “a constituição da identidade dependerá, entre outras coisas, de

como o sujeito é interpelado pelo meio em que vive”.

Um dos traços mais significativos de identidade surda é a comunicação visual; é

ele que constitui a diferença. Portanto, as diferenças precisam ser entendidas a partir

dos processos de significação, da mesma forma que ocorre com as identidades, ou

seja, tanto as identidades quanto as diferenças não são produzidas “naturalmente”,

são produzidas nas relações sociais diárias.

Figura 2:Currículo como produtor de identidades

5 (ASSUNTO) - Produção de identidade: Para saber mais sobre a produção das identidades culturais ver HALL,Stuart. A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 1997.

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Ao entender o currículo como constituidor de identidades sociais e culturais,

também entendemos que o currículo é um artefato; portanto, é representação, ou

seja, é algo feito, elaborado, produzido por determinadas pessoas, circunstâncias, em

tempo e lugar determinados, com objetivos específicos. Nas palavras de Silva (1996,

p.172): Na medida em que os significados expressos na representação não são

fixos, estáveis, definitivamente estabelecidos, mas flutuantes,

indetermináveis, o currículo pode se transformar numa luta de

representação, na qual eles podem ser refeitos, redefinidos, questionados,

contestados.

Com base na citação acima, è possível visualizar que o currículo é um campo de

contestação, é um espaço onde os professores surdos podem vir a negociar a sua

presença, ou seja, onde podem tornar vivas a sua cultura, a sua identidade, a sua

representação.

O currículo concebido como um campo não-fixo, não-estático, instável permite

aos professores surdos pulverizar, o espaço escolar, contestando as políticas

educacionais hegemônicas. A representação dos surdos enquanto sujeitos diferentes

constitui-se num processo político ancorado nos movimentos sociais dos surdos.

Esses movimentos, contribuem para dar visibilidade às diferentes formas pelas quais

os grupos sociais e culturais são construídos e representados.

O espaço escolar na vida dos surdos é um locus privilegiado de construção de

identidades. Talvez isso possa ser justificado pelo fato de aproximadamente 90% das

crianças surdas nascerem em famílias ouvintes; com isso, a construção da identidade

surda como uma identidade “nativa” é perturbada, ou, na melhor das hipóteses,

afastada. Segundo Wrigley (1996, p.84):

Perturba as noções do que significa ser nativo, bem como as noções de

para que – ou onde – se pode ser nativo. Ser nativo é um produto de

soberania. A surdez, o rótulo ligado a uma ampla visão coletiva daquelas

formas de ser adotado por povos que são surdos, está profundamente

entrelaçado contra a redução maniqueísta da Surdez e a uma patologia

pelo modelo soberano.

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Portanto, a escola de surdos pode ser considerada essa “aldeia nativa”

necessária para que as identidades surdas se tornem visíveis. Para isso, o currículo

imbricado nas relações sociais e, com elas, na relação de poder, constitui-se em

estratégia de “intervenção cultural”, num processo de transformação. Essa

transformação não é entendida no seu sentido utópico, mas como sendo aquela

produzida nas relações de poder cotidianas.

Nesse sentido, a presença do professor surdo na escola representa muito mais

que um modelo de linguagem e identidade: ele é um articulador do senso de

cidadania, que se estabelece num processo de relação social. Essa relação acontece

entre professores surdos e alunos surdos porque essa troca social de conhecimentos

se reproduz por meio da língua de sinais.

Falar em currículo surdo na escola de surdo é falar em multiculturalismo. Como

expressa Silva (1995), trabalhar com a idéia de multiculturalismo significa conviver

com diferentes e diversas culturas e suas representações na educação e no currículo.

A.3 – Currículo e diferença

Pensar um currículo que aborde a questão da diferença é trazer para o centro da

discussão a possibilidade de uma educação multicultural para surdos. Este elemento

pode ser compreendido pelo debate entre os conceitos de diversidade e diferença.

Considera-se essa discussão relevante pela maneira como eles vêm sendo

abordados no interior das políticas educacionais e dos currículos.

No contexto da escola de surdos, pode-se observar que diferença e diversidade

são vistas como sinônimas, como fazendo parte de um mesmo campo conceitual.

Porém, esta forma simplista de ver as diferenças dentro da escola mascara outros

interesses, que adotam o termo da diversidade para encobrir a ideologia de

assimilação que sustenta a posição ouvintista. Nesta visão, fala-se de um pluralismo

cultural, referindo-se a um consenso cultural e normativo. Para Scott (1995, p.2),

“diversidade refere-se a uma pluralidade de identidades, e é vista como uma condição

de existência humana e não como um efeito de uma enunciação da diferença que

constitui as hierarquias e assimetrias de poder”.

Entendendo a diversidade “como uma condição de existência” fica útil e fácil

reconhecê-la; no entanto, o que os grupos ditos culturalmente diferentes esperam

dessa questão – a exemplo de outras como identidade, história, política de diferença –

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é obscurecido, tornando-se alvo fácil de estratégias conservadoras. A escola e o

currículo são as presas prediletas desse processo de homogeneização cultural. Tanto

a escola como o currículo têm contribuído para a legitimação de um núcleo cultural

comum desconsiderando o conceito de “fronteira”, deslegitimando e excluindo os

valores e as práticas de outros grupos sociais.

Em um recente trabalho, Lehrer, Gercia & Rovins (1997) mostraram uma nova

face da educação de surdos nos Estados Unidos. Segundo os autores,

aproximadamente 40% de jovens inscritos em programas para estudantes surdos

eram de origens racial, lingüística e étnica que diferiam da maioria cultural branca de

língua inglesa. Devido a essa nova realidade encontrada na escola para surdos, o

termo “minoria surda” até então adotado, foi substituído pelo termo “surdos

multiculturais”. Neste sentido, é importante discutir o que é entendido como educação

multicultural6 no contexto acima exposto.

Para os autores mencionados acima, a educação multicultural possibilita

benefícios abrangentes para estudantes de todos os níveis e deve reconhecer as inte-

relações entre cultura surda e comunidade surda, linguagem, família e comunidade

escolar. Portanto, esses autores, a educação multicultural e a visão cultural das

crianças surdas não são mutuamente exclusivas, e sim parte da mesma visão de

mundo. Nesse sentido, fala-se de um ambiente multicultural escolar, que se refere à

análise dos currículos, às abordagens educativas, como também ao material e aos

recursos à disposição dos alunos.

6 (GLOSSÁRIO) – Multicultural: Multicultural é um termo qualitativo que descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, são mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original” (Hall, 2003).

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Figura 3: Espaço do currículo como produtor das diferenças

Nessa atmosfera multicultural de educação e análise curricular é preciso

resgatar em nível de política cultural as políticas negadas e silenciadas no espaço

escolar. Desse modo, não devemos apenas fazer referencia a elas enquanto culturas

isoladas, em determinados momentos e datas específicas, como por exemplo, “o dia

do índio”, “o dia da consciência negra”, constituindo um currículo reduzido a

determinadas lições e unidades didáticas, criando aquilo que Santomé (1995), chama

de “currículos turísticos”.

Portanto, a possibilidade de construção de um currículo multicultural na escola

de surdos não pode ficar externa às relações de poder existente entre cultura surda e

cultura ouvinte. Do mesmo modo, o currículo não pode ser concebido como uma

simples conveniência entre essas culturas.

O multiculturalismo, visto como uma alternativa curricular para surdos, necessita

trabalhar com a representatividade desse currículo e não simplesmente oportunizar

aos surdos que suas histórias e seus materiais culturais sejam visualizados nesse

currículo. Esse currículo deve abordar a questão da surdez como uma diferença

política, e não como uma diversidade cultural.

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Dar espaço aos professores surdos significa discutir, reflexionar acerca dos

conteúdos da cultura surda e da comunidade que eles representam, com o objetivo de

dar sentido e significado à identidade surda. Neste desafio político-pedagógico, a

cultura surda pode manifestar toda a sua dimensão dentro do enfoque multicultural.

Isso significa que um currículo multicultural deve produzir espaços de

encorajamento e de resistência para que os múltiplos olhares dos sujeitos surdos

sejam reconhecidos no cotidiano escolar. Portanto, cabe também aos professores

surdos estarem alertas às histórias e às culturas inscritas na sua sala de aula para

que não apenas seus próprios olhares sejam contemplados, mas que os olhares de

seus alunos sejam identificadores de subjetividades. Para tanto, as especificidades

surdas de raça, classe e gênero precisam compor os projetos e as práticas de um

currículo multicultural.

Atividade da Unidade A: A partir das leituras feitas neste CD e das indicações das leituras

complementares, elabore uma análise articulando a noção de currículo com as

questões de identidade, diferença e cultura.

Referências da Unidade A: HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,

1997.

LEHRER, Marilyn, GARCIA, Bárbara Gerner, ROVINS, Michele. Criando uma

atmosfera escolar multicultural para crianças surdas e suas famílias. Original: Creating multicultural school climate for deaf children and their families.

Gallaudet University Pre-College National Mission Programs, 1997.

LUNARDI, Márcia L. Educação de Surdos e Currículo: um campo de lutas e

conflitos. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-

Graduação em Educação, 1998. (Dissertação de Mestrado).

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MOREIRA, Antônio Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo, cultura e sociedade.

São Paulo: Editora Cortez, 1995.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Lutas entre culturas no currículo em ação da formação

docente. In: Educação e Realidade, Porto Alegre, v.21, n.1, p. 137-157, jan./jun.,

1996.

PERLIN, Gládis T. Identidades surdas. In: Skliar, C. (Org.) A Surdez: um olhar sobre

as diferenças. Porto Alegre: Ed. Mediação,1998, p.51-73.

POPKEWITZ, Thomas S. Cultura, pedagogia e poder. In: Teoria e Educação. Porto

Alegre, n°5, p. 91-106, 1992.

SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo:In: SILVA,

Tomaz Tadeu da (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos

culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. p.159-178.

SANTOS, Lucíola Licínio de C.P.; LOPES, José de Souza Miguel. Globalização,

multiculturalismo e currículo. In: MOREIRA, Antônio Flávio (Org.). Currículo: questões

de atuais. Campinas: Papirus, 1997, p.29-38.

SCOTT, Joan W. Multiculturalismo e a política da identidade. In: RAJCHMAN, John

(Org). The identity in question. Nova York: Routledge, 1995, p. 3-12.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidades Terminais: as transformações na política da

pedagogia e na pedagogia da política. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

___________________. Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa

paisagem pós-moderna. In: MOREIRA, Antônio Flávio & SILVA, Tomaz Tadeu da.

(Orgs.) Territórios Contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais.

Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 184-201.

SKLIAR, Carlos. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação,

1998-p.51-74.

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14

VEIGA-NETO, Alfredo J. Michael Foucault e educação: há algo de novo sob o sol? in:

(Org.) Crítica Pós-Estruturalista e Educação. Porto Alegre: Sulina, 1995, p.9-56.

WRIGLEY, Owen. A Política da surdez. Original: The politics of deafness.

Washington, D.C.: Gallaudet University Press, 1996.

Sites relacionados à unidade

http://www.feneis.com.br/Educacao/artigos_pesquisas/I_Semin%E1rio_Caxiasdosul.d

oc

http://www.ines.org.br/paginas/revista/debate3.htm

http://www.faders.rs.gov.br/documentos/documento_acessibilidade_direitos_humanos

_surdos.doc

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Unidade B – A ESCOLA DE SURDOS COMO ESPAÇO E TEMPO DO ENSINAR E APRENDER A escola se constitui em um dos espaços privilegiados de produção das

identidades surdas. Portanto, nessa unidade, vamos percorrer território escolar

tentando entender como os discursos que ali circulam produzem diferentes formas de

ver e de representar a surdez e os surdos. Para isso, abordaremos as diferentes

perspectivas educacionais que compõem o cenário da educação de surdos, partindo

de uma tradição oralista, passando pelas influências da comunicação total, até

chegarmos a numa educação voltada para a diferença surda, que no caso desta, é

vista à partir dos debates acerca da educação bilíngüe7. Ao revisitarmos essas

concepções torna-se imprescindível o exercício da problematização no sentido de

desnaturalizá-las de um olhar ouvintista e etnocêntrico8. Assim sendo, faz-se

necessário entender que o bilingüismo na educação dos surdos deve ir além das

capacidades desses sujeitos para adquirir-aprender duas ou mais línguas. Do mesmo

modo, não devemos fazer uma comparação forçada entre as habilidades que

demonstram os surdos e as que demonstram o ouvintes em determinadas situações

em que lhes é solicitado o uso de suas línguas. A aplicação do termo bilingüismo na

área da educação dos surdos deveria aludir à sua acepção pedagógica, ou seja, à

idéia de uma educação bilíngüe.

B.1 – A educação dos surdos nos discursos do oralismo e da comunicação total

7 (ASSUNTO) - Educação bilíngüe: Para saber mais sobre a discussão da educação bilíngüe no contexto da educaçãod e surdos leia o livro: SKLIAR, Carlos (Org). Atualidade da educação bilíngüe para surdos: interfaces entre pedagogia e lingüística. Porto Alegre: Ed. Mediação, 1999.

8 (GLOSSÁRIO) - Ouvintista e etnocêntrico: Um olhar ouvintista faz menção a forma como os ouvintes a partir do jogo das relações de poder representam a surdez. Esse olhar está ancorado naquilo que Skliar (1998) chama de ouvintismo que, segundo ele, “trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a aprtir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte” (SLKIAR, 1998, p.15).

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A discussão, a historização de um currículo acerca da educação de surdos

revela uma problemática que assola instituições, escolas, professores, pesquisadores.

Nesses ambientes, pouco se discute ou praticamente inexiste um debate em torno do

que seja e para que sirva o currículo empregado na educação de surdos; na melhor

das hipóteses, questiona-se qual o melhor currículo a ser utilizado.

Observamos nas escolas de surdos uma multiplicidade de programas

curriculares, que vão sendo testados na busca de um aperfeiçoamento curricular.

Dentre os muitos currículos existentes, é possível citarmos alguns: o currículo

adaptado da escola regular, o currículo da escola regular,o currículo especial,

currículo mínimo e o currículo oral.

Na tentativa de caracterizar melhor a situação que se insere atualmente o

discurso curricular para então entendê-la, torna-se necessário discorrer, ainda que de

maneira breve, sobre a influência histórica na educação de surdos. Com isso, não

pretendemos fazer uma descrição cronológica dos fatos, mas apresentar alguns

recortes significativos da história que possam explicar a atual situação da educação e

do currículo predominantes nas escolas de surdos.

Uma das controvérsias que têm permeado e marcado a história da educação

dos surdos é o debate acerca do ensino ou não da língua oral a estes sujeitos, ou

seja, o oralismo versus o gestualismo9. Este grande debate, como vem sendo

chamado,estende-se já há duzentos anos.

Por volta do início do século XVII, quando se iniciavam as estudos educacionais

acerca da surdez, havia um acordo entre os pedagogos, a respeito da conveniência

de os surdos aprender a língua oral, ou seja, a língua que falavam os ouvintes e a

língua da sociedade onde os surdos viviam. Porém essa “unanimidade” começou a

ser abalada em meados do século XVIII, o que separaria definitivamente “oralistas” e

“gestualistas” daí em diante.

Segundo Sanchez (1990), os oralistas exigiram dos surdos sua reabilitação

através da superação da surdez; para isso, deveriam falar e comportar-se como se

não fossem surdos.

9 (ASSUNTO) - Oralismo/gestualismo: Para saber mais sobre o debate entre gestualismo e oralismo leia: SOARES, Maria Aparecida Leite. A educação do Surdo no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados: Bragança Paulista, SP: EDUSF, 1999.

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No entanto, os gestualistas foram capazes de perceber que os surdos

desenvolviam uma linguagem, possuíam uma língua que, mesmo que diferente, era

eficaz para a sua comunicação e lhes permitia acesso ao conhecimento, incluindo o

da língua oral, e à cultura. A luta, o impasse entre essas duas tendências - a do

“gestualismo” e a do oralismo – persistiu do século XIX até a segunda metade do

século XX.

Nas primeiras décadas do século XIX, as propostas educacionais abordadas na

educação dos surdos sofrem as influências das idéias de Abbé de L’Epée 10(1712-

1789). A partir de suas idéias, instaurou-se, na educação de surdos, mais uma

metodologia educacional, a qual foi denominada de método francês, sendo seu

principal representante o próprio L’Epée.

Segundo a história oficial, contada pelos ouvintes, foi L’Epée o primeiro a

reconhecer que os surdos, mesmo sem usarem a palavra falada, eram capazes de

comunicar-se entre si por meio de um sistema de gestos, não simplesmente mímicos,

mas com valores lingüísticos que cumpriam com as funções de uma língua. L’Epée,

além de “descobrir” os surdos, foi também o fundador da primeira escola pública para

surdos, em Paris, em 1786. Segundo Skliar (1997b, p.25):

Indubitavelmente, grande parte do êxito de Abbé L’Epée (1712-1789),

durante a segunda metade do século XVIII, se deve não só ao zelo com

que encarou seu método, como também, ao esforço para difundi-lo. A ele

se deve a fundação e a criação da primeira escola pública para surdos e

seu método se constitui numa mudança significativa na educação de

surdos: a passagem da reeducação individual para a educação coletiva.

No entanto, a metodologia criada por L’Epée não estava preocupada em

desenvolver a língua natural dos surdos; pelo contrário, seu objetivo era alcançar o

10 (AUTOR) - Abbé de L’Epée: L’Epée foi o criador de um método empregado na educação de surdos, denominado de “sinais metódicos”. A justificativa para a criação desse método se deu pelo fato de que L’Epée acreditava que a Língua de Sinais utilizada pelos surdos era incompleta, devendo ser melhorada e universalizada. Seu método consistia em conservar o “núcleo central dos gestos”, utilizados por seus alunos, adicionando porém a estes gestos outros sinais para designar objetos, qualidades, fatos ou situações. No entanto, como seu principal objetivo era o ensino da língua francesa, não se deu por satisfeito, criou uma série de sinais que não existiam na codificação gestual, referentes a preposições, artigos, tempo e pessoa verbal, entre outros (SKLIAR, 1997b).

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18

domínio da língua francesa, considerada superior, utilizando-se, para isso a língua

gestual. Por outro lado, a quantidade cada vez maior de sinais metódicos utilizados

na língua de sinais, para torná-la mais parecida com a língua escrita converteu-a em

um instrumento pouco eficaz, dificultando seu emprego no contexto escolar e no

desenvolvimento da comunicação e da aprendizagem.

Diante desses fatos, a língua de sinais foi sendo banida pelos professores em

suas salas de aula e, em conseqüência disso, empregou-se novamente a língua oral

na aprendizagem dos alunos surdos. Com certeza, os professores se sentiram mais à

vontade com o emprego da língua oral, que, sem sombra de dúvidas, era-lhes mais

fácil.

Figura 4: Centralidade da língua oral na educação de surdos

Baseados no contexto descrito, poderíamos justificar a causa do oralismo

triunfante que assolou e assola e educação de surdos? Seriam somente os fatores de

ordem pedagógica os responsáveis pela legitimação da comunicação oral na vida dos

surdos? Que força poderosa seria essa, capaz de desestruturar tudo o que se havia

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19

conquistado em relação à surdez e sacrificar toda possibilidade de educação de

surdo, caso essa não passasse pelo domínio da língua oral? (SANCHES, 1990).

Para responder a essas perguntas, é preciso voltar a um dos momentos

históricos que marcaram por definitivo a vida dos surdos. Esse fato ocorreu no ano de

1880, em Milão, quando militantes da corrente oralista reuniram aproximadamente

duzentas pessoas de diferentes países interessadas na educação de surdos para

discutirem e legitimarem as suas posições a respeito da surdez e da educação de

surdos.

No Congresso de Milão11, um ponto de extrema importância foi debatido, visto

que provocava - e ainda provoca - diferentes opiniões entre os professores de surdos:

o método a ser adotado na educação dos surdos, ou seja, o oral ou o gestual.

Segundo Skliar (1997b, p.45):

E desde essa perspectiva, esse Congresso foi exaltado como o ponto de

partida da dominação oral. Ali os professores surdos foram excluídos do

voto, o oralismo saiu triunfante e o uso da língua de sinais foi oficialmente

proibido nas escolas.

Portanto, esse congresso consagra o oralismo como ideologia dominante na

educação e na vida dos surdos, pois, devido ao seu conteúdo ideológico, o discurso

oralista vai além da instituição escolar. Também seria muito primário imaginar que o

oralismo decorreu apenas de “um decreto escrito em um momento preciso da história”

(SKLIAR, 1998, p.16). Portanto, o que aconteceu no referido congresso foi apenas a

legitimação oficial do oralismo, que já vinha sendo aceito em quase todo o mundo.

A sua propagação foi rápida e eficiente, pois contou com a aprovação e

cumplicidade da medicina e dos familiares dos surdos, ou seja , uma filosofia que

segundo Skliar (1998, p.17) “representa hoje, os ideais do progresso da ciência e da

tecnologia – o surdo que fala, o surdo que escuta”.

Considera-se importante ressaltar que o oralismo não significa apenas um

conjunto de práticas que tem como objetivo fazer os surdos falarem e tornarem-se

11 (ASSUNTO) - Congresso de Milão: Para conhecer melhor sobre os pressupostos legais, filosóficos, religiosos e lingüísticos que serviram como base ao Congresso de Milão leia: SLKIAR, Carlos.La educación de los sordos: uma reconstrución histórica, cognitiva y pedagógica. Mendonza; Ed. Ediunc, 1997b.

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20

como os ouvintes; associado a isso, há um conjunto de pressupostos que, segundo

Skliar (1998, p.17), são:

os filosóficos – o oral como abstração, o gestual como sinônimo de

obscuridade de pensamento; os religiosos – a importância da confissão

oral, e os políticos – a necessidade de abolição dos dialetos, já dominantes

no século XVIII e XIX.

Talvez as observações de Arde Neisser (apud WRIGLEY, 1998, p. 52-53),

acerca do oralismo, possam exemplificar com maior clareza o mapa social desse

período:

O oralismo foi uma idéia do século XIX, com seu entusiasmo pelas

máquinas, sua confiança no futuro da tecnologia, foi reforçado pela ética

protestante do trabalho árduo, prática incansável e força de caráter para

vencer todas as aflições da vida. Floresceu na organização dos costumes

vitorianos (e ciência vitoriana) e refletiu um profundo antagonismo anglo-

saxão frente todas as línguas que não fossem o inglês (o bilingüismo era

considerado ruim para o cérebro). O oralismo foi consolidado durante este

período na história quando a língua dos galeses foi banida das escolas no

País de Gales; quando Vitória como a Imperadora da Índia tornou o inglês

a língua administrativa do subcontinente; e quando a grande imigração

começou, trazendo culturas e línguas estrangeiras para os Estados

Unidos. Os laços entre falantes do inglês eram fortes e houve um

movimento para padronizar a língua. O modelo para a aristocracia

vitoriana era imóvel, e uma grande parte do “ensino de como falar inglês”

era dirigido para a eliminação dos gestos. Gesticular era algo que os

italianos, judeus e franceses faziam; refletia a pobreza de suas culturas e a

imaturidade de suas personalidades. A linguagem dos sinais tornou-se um

código de palavras com fortes tonalidades [sic] racial [sic]. Era vista como

um sistema estrangeiro, ainda por cima com a invenção de um padre

francês medieval.

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21

Nesta longa citação, pode-se visualizar qual foi o lugar destinado aos surdos e o

que eles representavam para a sociedade ouvinte dessa época. Com as propostas

educacionais de L’Epée e de seus sucessores, os surdos foram sendo agrupados em

instituições, denominadas de asilos, e, mais tarde, em escolas. É evidente que esta

institucionalização vinha ao encontro dos interesses sociais, pois, por meio da

“clausura” dos surdos nessas instituições, a sociedade controlava os “diferentes” e

protegia-se do contato com aqueles que eram considerados “doentes”.

Porém, de uma forma ainda que acidental, a cultura dos surdos manteve-se

como produto dessas instituições, apesar de bastante indesejada e nem um pouco

planejada por aqueles que as fundaram. Frente a esse novo quadro, era preciso

controlar essas manifestações culturais, que tinham como objetivo “suprir e negar o

significado e o sentido da diferença” (WRIGLEY, 1996, p.52). Portanto, o mais

rentável não era separá-los da sociedade “dos que ouvem”, mas isolá-los dos seus

companheiros. Vale ressaltar que um dos representantes dessa posição foi Alexander

Graham Bell, que, apoiado na teoria de Darwin, concluiu que “se as leis da

hereditariedade que se aplicariam para os animais também se aplicariam aos

humanos, o casamento entre surdos congênitos através de um número sucessivo de

gerações, deveria resultar na formação de uma variedade surda da raça humana”

(BELL, 1983 apud VEINBERG, 1996). Esta atitude de segregação, como também a

necessidade de se isolar os surdos foram destacadas por Wrigley (1996, p.53):

A segregação e treinamento social das crianças surdas foram vistos como

coisas socialmente desejáveis pelos iluminados entre os que ouvem. A

sociedade era protegida do contato com o seu contaminador, e os surdos

recebiam a oportunidade de melhorar a si mesmos. A educação dos

surdos por muito tempo esteve centrada quase que exclusivamente no

treinamento comportamental para produzir surdos aceitáveis para a

sociedade dos que ouvem, embora essas metas institucionais raramente

sejam citadas de forma explícita.

Com isso, poderíamos concluir, através de uma visão mais tradicional, que esse

processo de segregação foi positivo para os surdos, uma vez que, apesar de terem

sido excluídos e isolados da sociedade como um grupo à parte, a sua cultura e a sua

identidade foram facilitadas em função desse armazenamento físico entre os surdos.

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No entanto, à partir de uma abordagem moderna, vemos que o isolamento e a

exclusão dos sujeitos foram conseguidos pela dispersão – pela convencionalização.

O debate que se travou a respeito do melhor método a ser aplicado na educação

de surdos, conforme visto acima, permanece até hoje, motivo de disputa entre os

ouvintes, que, na realidade, perseguem o mesmo objetivo: “a criação de uma

identidade dos surdos aceitável e conveniente para os interesses sociais e

administrativos dos que ouvem” (WRIGLEY, 1996, p.51).

Essa breve contextualização histórica em torno do surdo e da surdez talvez

retrate o que WRIGLEY tem chamado de “história padrão dos surdos”, uma vez que

os relatos dessa história foram transmitidos pelos que ouvem. Dentro desse contexto,

verifica-se certa seletividade histórica, pois “apenas certos eventos e significados são

escolhidos para ênfase ou celebração, enquanto outros são negligenciados ou

excluídos”(WRIGLEY, 1996, p.57).

A educação de surdos, incluindo as práticas e políticas educacionais, encontra-

se inserida no discurso oficial da educação especial, que mascara a surdez, no intuito

de normalizar os surdos em ouvintes. Portanto, o currículo presente nas instituições

especiais não se afasta desse objetivo, ainda que camuflado por algumas alternativas

metodológicas constantes nas discussões teóricas e nas práticas pedagógicas

presentes nas escolas de surdos.

Uma dessas alternativas, a Comunicação Total12, vem provocando grandes

debates entre pesquisadores, teóricos, professores e a comunidade surda. Diversos

autores e lingüistas colocam em discussão o conceito e a prática dessa metodologia.

Segundo Britto (1993, p.31), a Comunicação Total perdeu o seu sentido original de

reconhecer a língua de sinais como direito fundamental da criança surda, mas, como

mostra sua prática, “ela deixou de representar uma filosofia educacional oposta ao

Oralismo para se constituir apenas numa técnica manual do Oralismo”.

12 (ASSUNTO) - Comunicação total: Sobre a Comunicação Total na educação de surdos acesso o texto da obra de BRITTO, Lucinda F. Integração Social e Educação de Surdos. Rio de Janeiro: Babel Editora, 1993.

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Figura 5: Comunicação Total: técnica que utiliza vários recursos na educação de

surdos

A concepção de Comunicação Total também foi abordada por Wrigley (1996,

p.6) em seu livro The politics of deafness. Segundo este autor, “Comunicação Total é

qualquer coisa menos total e raramente comunica”. Ainda conforme Wrigley:

Comunicação Total, tanto como idéia quanto metodologia, foi inicialmente

proposta como uma abordagem à educação e comunicação, combinando

tanto fala como os sinais num programa individualmente adaptado para as

potencialidades e deficiências de determinada criança surda. Na aplicação

prática, entretanto, a comunicação total veio significar a mistura da fala e

língua de sinais mais convenientes a cada professor, muitas vezes sem

considerar as potencialidades ou as necessidades de qualquer criança. O

uso da língua de sinais nesses ambientes mostrou-se ser, na melhor das

hipóteses, apenas “fala apoiada pelo sinal”, que é inadequada para ser

compreendida por uma criança como uma mensagem completa

(WRIGLEY, 1996, p.16).

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24

O fato de direcionar o enfoque curricular para um campo de lutas e de conflitos

significa provocar um afastamento do campo curricular relacionado com técnicas e

metodologias até então pensadas pelas filosofias do oralismo e da Comunicação

Total.

Entender o currículo como um território contestado13 é entender como

circulam, como se organizam, como se selecionam e legitimam os conhecimentos

dentro de um espaço escolar. Nesse sentido, a Teoria Crítica vem problematizando o

processo pelo qual um conhecimento passa a ser legítimo, como também, quais os

conteúdos que deveriam fazer parte dos currículos, mostrando as intencionalidades

das políticas educacionais. Portanto, Connell (1992, p.72) argumenta que “nenhuma

seleção de conhecimentos ou métodos é aleatória ou neutra com respeito à estrutura

na sociedade na qual ocorre”.

Portanto, um currículo que procura atender a toda uma legião de estudantes

corporifica e negocia relações de hegemonia entre os interesses com os quais está

lidando. Vislumbramos, neste momento, a escola de surdos, com seu discurso

hegemônico de “normalização” dos “sujeitos deficientes”, relacionado-o com os

interesses de uma política educacional com ênfase no Oralismo e na Comunicação

Total.

B.2 – A Produção de sujeitos bilíngües - as políticas de educação bilíngüe para surdos

Entre os primeiros intentos e debates acerca do que seria uma educação

bilíngüe, encontram-se em Sanches (1990) elementos que contribuíram para

aproximar o conceito de educação bilíngüe à situação de outras comunidades

lingüísticas: Uma educação bilíngüe parte do reconhecimento da coexistencia de duas

línguas no entorno da criança, as quais se atribuem todo seu valor como

instrumento de comunicação e como valor de pertencimento, portanto

considera-se obrigatório respeitá-las como tais, independentemente do

prestigio que lhes é atribuído pelo grupo dominante. E que se faça valer o

13 (ASSUNTO) - Território contestado: Para enteder o currículo como um território contexto leia a obra de: MOREIRA, Antônio Flávio e SILVA, Tomaz Tadeu.(Orgs.). Territórios Contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

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25

direito da criança a utilizar em sua aprendizagem a língua que lhe permita

melhor desenvolvimento. Não restringindo o conceito de educação bilíngüe

ao simples fato de utilizar dois idiomas na atividade escolar (SANCHES,

1990, p.146).

Figura 6: Bilingüismo: centralidade do uso da Língua de Sinais

Neste contexto, torna-se evidente o caráter lingüístico dessa perspectiva, ou

seja, a educação bilíngüe deve basear-se na utilização plena da língua de sinais, a fim

de garantir o desenvolvimento intelectual e lingüístico do aluno surdo, otimizando o

aproveitamento do ensino escolar e facilitando a aprendizagem da língua falada nas

suas formas oral e escrita (SANCHES, 1990).

Para Britto (1993), o bilingüismo é uma filosofia educacional para surdos que

defende o aprendizado da língua oral e da língua de sinais, reconhecendo o surdo na

sua diferença e na sua especificidade. Segundo a autora, o bilingüismo, não apenas

respeita a língua de sinais como a língua natural do surdo e valoriza o seu uso além

da comunicação e do trabalho escolar, mas também supõe que a estrutura gramatical

da língua de sinais

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26

seja ensinada na escola como se costuma fazer com o ensino da primeira

língua nos vários níveis escolares. Ou seja, a língua de sinais não serve

apenas de meio para o ensino de várias disciplinas escolares, ela também

é objetivo (BRITTO, 1993, p. 48).

Do mesmo modo para Regina Maria de Souza, o bilingüismo parte do

pressuposto de que o surdo deve ser exposto à língua de sinais o mais cedo possível.

Souza defende, assim, que os conhecimentos lingüísticos construídos pelo surdo em

língua de sinais serão ativados e irão lhe facilitar a aquisição da língua oral. A autora

advoga, portanto, a importância do domínio de duas línguas pelo surdo e reconhece

que, em tal situação, o surdo poderá ter uma identidade bicultural.

Além disso, segundo Souza (1995, p.20), “a passagem para a Educação

Bilíngüe se constitui muito mais numa mudança de ideologia a respeito da surdez do

que na troca de uma metodologia para outra”. Nesse sentido, a autora contribui

significativamente para a atual discussão de um ensino bilíngüe para surdos,

destacando a importância de este ensino estar vinculado a uma perspectiva

pedagógica socializada e não atrelado a práticas clínicas e terapêuticas, pois, neste

contexto de educação, “não há deficiência a ser reabilitada”. Souza ressalta também a

distância que há entre falarmos em educação especial e falarmos em educação

bilíngüe: “o ensino especial, tal como é praticado hoje em dia, pouco tem a ver com

um modelo bilíngüe” (SOUZA, 1995, p.20).

Para SKLIAR (1997), a educação bilíngüe para surdos encontra-se ancorada a

um processo histórico14 e, por estar desenvolvida nesse contexto, encontra e gera

condições, de ser implementada como uma filosofia de educação e não apenas como

uma alternativa metodológica. Segundo o autor:

14 (GLOSSÁRIO) - Processo histórico: Segundo SKLIAR (1997a), estamos assistindo a uma revolução no âmbito da educação dos surdos; percebe-se a adesão cada vez maior da comunidade surda e de uma parte bastante significativa dos professores ouvintes nos debates educacionais. As investigações científicas que participam desse processo de transformação estão oferecendo subsídios teóricos e metodológicos cada vez mais significativos para a temática da surdez; todos estes elementos permitem falar de uma “virada” na educação de surdos.

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27

Não estamos assistindo, simplesmente, uma mudança -uma mais- de um

sistema metodológico por outro; não se descobriu como fazer falar ou ler

aos surdos; no se propõe uma meta de escrita curricular que seja rápida e

eficaz. Não é isto o que interessa à educação bilíngüe para os surdos; não

é ali onde estão suas contradições (SKLIAR, 1997b, p.140).

Portanto, onde estariam as contradições e as dúvidas dessa proposta

educativa? Quais seriam os interesses dessa proposta para a educação de surdos?

Talvez algumas das respostas a essas perguntas não sejam encontradas,

principalmente se forem procuradas com olhos clínicos15, como se fosse possível por

exemplo, ouvir surdos falarem. Do mesmo modo, essas respostas não serão

possíveis se a proposta bilíngüe passar a ser considerada uma “tábua de salvação”,

ou ainda se for vitoriosa a tentativa de rotulá-la como mais um método a ser testado

na educação dos surdos.

Como vemos, torna-se um pouco difícil definirmos o que seria a educação

bilíngüe para surdos; até o momento, valemo-nos da terminologia clássica da

lingüística para defini-la. Mas, como nos coloca SKLIAR, não teríamos que lançar um

outro olhar a esta questão, uma outra maneira de questioná-la?

(...) ao utilizar o termo bilíngüe na educação dos surdos não deveríamos

pensar, somente, nas capacidades desse sujeitos para adquirir/aprender

duas ou mais línguas, nem de estarem obrigados a uma forçada

comparação com as habilidades que demonstram os ouvintes em tais

situações. A aplicação do termo bilingüismo na área da educação dos

surdos deveria aludir a sua acepção pedagógica, ou seja, a idéia de uma

educação bilíngüe (SKLIAR, 1997b, p.142).

Pelo fato de o bilingüismo ser analisado pelo olhar pedagógico não propomos,

que a lingüística pare de estudar a situação bilíngüe em que se encontram os surdos.

Observa-se que esta “situação bilíngüe” não se torna uma condição natural pelo

15 (ASUNTO) - Olhos clínicos: Para compreender melhor a influência da área médica na educação de surdos, mais especificamente na visão clínico-terapêutica da surdez, na qual perpassa todo o discurso do oralismo, sugere-se a obra: A Educação do Surdo no Brasil, Maria Aparecida Leite Soares (Campinas – SP: Autores Associados: Bragança Paulista, SP: EDUSF, 1999)

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simples fato de que os surdos convivem com duas línguas. Muitas vezes, isso é

confundido porque alguns surdos adultos utilizam a língua de sinais com a fala, com a

escrita ou com a leitura, porém estes fatos não explicam e não legitimam uma

situação bilíngüe para todos os surdos.

A questão é que nos encontramos num fogo cruzado, em que diferentes grupos

de ouvintes (pais, professores, direção, fonoaudiólogos...), com extremas diferenças

na maneira de ver e de pensar uma educação bilíngüe para surdos, tentam dar um

significado acerca do que seria uma proposta de educação bilíngüe. Uma parte

desses grupos vê no bilingüismo um suporte material para os surdos terem acesso à

língua oral e, associado a ela, um melhor desempenho na língua escrita; outros

esperam do bilingüismo uma solução que incida no currículo escolar, ou seja, querem

que o conhecimento escolar chegue aos surdos da mesma maneira e do mesmo

modo que chega às crianças ouvintes. Porém, essa maneira de olhar a proposta

bilíngüe não é compactuada por uma parte significativa da comunidade dos surdos.

Segundo Skliar (1997b, p.145):

As comunidades de surdos que estão reflexionando e debatendo sobre

este tema, defendem a proposta do bilingüismo, em primeiro lugar, com o

objetivo que se reconheça o direito a aquisição e o uso da língua de sinais

e, conseqüentemente, para que possam participar no debate educativo,

cultural, legal, de cidadania, etc.

Como podemos ver, há uma série de ambigüidades no que se refere ao termo

“bilíngüe”, quando utilizado referindo-se à educação de surdos. Não há como

descrevermos ou referirmos ao bilingüismo como uma forma harmoniosa de trocas

culturais; este é mais um espaço conflitivo na educação de surdos.

Dentro desse contexto, acreditamos que a pretensão de uma nova perspectiva

na educação de surdos não é vir a se tornar um modelo, uma proposta dada como

completa e acabada, a ser empacotada e distribuída a todas as escolas de surdos,

como se pudéssemos falar em uma proposta universal de educação bilíngüe. O que

encontramos são diferentes escolas bilíngües, atreladas a fatores sociais, culturais e

políticos diferentes em cada país. Essa multiplicidade de fatores intervém de forma

bastante significativa na estrutura e nos objetivos de uma proposta educativa;

portanto, em cada escola de surdo há um cenário diferente – pintado com os mais

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diversos recortes culturais, lingüísticos, didáticos, curriculares e históricos – capaz de

compor uma pedagogia significativa para a educação de surdos.

No entanto, o que temos visto, nos discursos e nas práticas escolares, é o

contrário do que acreditamos ser uma possível proposta bilíngüe. O discurso que a

constitui é mais uma das metanarrativas16 ancoradas na educação de surdos, ou

seja, a “novidade metodológica”. Uma “novidade” que persiste em manter o velho

discurso relacionado com as questões da língua: língua oral ou língua de sinais

(SKLIAR, 1997a).

Em outras palavras, as metanarrativas presentes nos discursos educacionais

sobre surdez – como a integração, a educação especial, a deficiência auditiva, a

normalização e agora também o bilingüismo – têm servido para que certos grupos de

ouvintes imponham suas visões particulares, disfarçadas de universais, à comunidade

surda.

Em termos curriculares, as metanarrativas ajudam a justificar a exclusão de

outras narrativas que se opõem à narrativa mestra. Neste sentido, torna-se importante

perguntar: - qual é essa narrativa mestra que permeia e define o discurso curricular na

educação de surdos? De quem é essa “grande verdade”, que faz com que algumas

vozes sejam ouvidas e outras não? A quem pertence o conhecimento e o saber

corporificados no currículo? Que elementos compõem um currículo hegemônico na

educação de surdos?

Para responder a todos esses questionamentos, talvez seja interessante,

relacionar a discussão curricular com outros elementos, que legitimam e constroem o

currículo na educação de surdos.

B.3 – Quem são e como aprendem os sujeitos surdos

Atualmente, a relação da surdez com as sociedades culturalmente ouvintes é

construída pelas barreiras da comunicação e da participação. Analogicamente, neste

contexto, a surdez pode ser comparada à pobreza, que reclama pela falta de acesso a

uma educação básica, a condições dignas de vida, a informações adequadas. Estas

16 (GLOSSÁRIO) – Metanarrativas: A expressão metanarrativas a partir de Bayer e Liston (1993),está relacionada com as teorias sociais, morais, políticas ou psicológicas, como também com visões metafísicas ou epistemológicas que buscam uma verdade universal e válida para qualquer suposta realidade.

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30

semelhanças levam os surdos, como outros grupos socialmente desprivilegiados, a se

agruparem na luta por suas necessidades emergentes.

No entanto, os surdos, como qualquer outro grupo social culturalmente diferente,

encontram-se subordinados e subjugados a outros grupos sociais que se delegam o

poder de representar a si e aos outros; são os ouvintes em relação aos surdos, são os

brancos em relação aos negros, são os homens em relação às mulheres, enfim, uma

legião de sujeitos colonizados pelas “verdades” constituídas pelo pensamento

dominante. Nesse sentido, podemos dizer que os privilégios de alguns indivíduos e

nações implicam diretamente a privação e o sofrimento de outros grupos e de outras

nações (APPLE, 1995). Portanto, não podemos deixar de relacionar as políticas de

exclusão e de discriminação com o eixo básico das relações de poder:

Numa era de uma proclamada e inevitável globalização, é importante

retomar uma visão que coloque no centro de nossas preocupações

teóricas e políticas as relações de poder e desigualdade entre diferentes

povos e nações. É importante compreender não apenas as relações de

exploração econômica entre os diferentes países da chamada “ordem

mundial”, mas também as relações de construção simbólica da dominação

e da subordinação na qual certos grupos e nações se constroem como

superiores e constroem a outros como inferiores. Nesse contexto, torna-se

crucial examinar as formas e os regimes de representação e de discursos

pelos quais o “outro” foi e continua sendo social e historicamente

construído como objeto de um olhar imperialista e colonial (SILVA, 1996,

p.204).

Então poderíamos considerar que a surdez e os surdos foram constituídos e

construídos a partir de um olhar colonialista do ouvinte, que, segundo Wrigley (1997,

p.7), basear-se-ia num colonialismo pastoral. Segundo o autor:

como acontece com a dominação ocidental de outras “descobertas”

estrangeiras, a relação dos que ouvem com as culturas dos surdos tem

sido basicamente a de um colonialismo pastoral, neutralizada há tanto

tempo que desapareceu do “normal” consensual.

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31

No atual discurso da educação de surdos, principalmente no que se refere aos

estudos surdos, a colonização dos surdos pelos ouvintes foi conceituada pelo que

Skliar (1998, p.15) chama de ouvintismo:

Trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o

surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Além

disso, é nesse olhar [sic] e nesse narrar-se que acontecem as percepções

do ser deficiente, do não ser ouvinte; percepções que legitimam as

práticas terapêuticas habituais.

Podemos observar, a partir desse conceito, de quem são as normas a serem

seguidas pelos surdos, ou melhor, quem é o padrão de sujeito estabelecido para ser

considerado “normal”. Talvez o termo “whiteness17” possa ser usado nesse contexto

para exemplificar o que entendemos por ouvintismo enquanto norma. A “whiteness”,

palavra que pode ser traduzida como “branquidade”, é definida como a condição e a

qualidade de ser branco, ou seja, é a “norma branca pela qual as pessoas com outra

cor de pele são definidas como o ‘outro’”. “É o outro que é definido como étnico ou

racial” (SILVA, 1995, p. 10). Em outras palavras, a “whiteness” pode ser entendida

como sendo natural e fazendo parte da política cultural do Ocidente, em que o olhar

do branco predomina como normalizante.

Tal situação também é encontrada quando nos referimos àquelas pessoas

consideradas “normais”, caracterizadas por possuírem sua capacidade auditiva

integral. Este olhar regulador pretende representar o surdo nomeando-o por meio de

alguns rótulos como deficiente auditivo, surdo-mudo, descapacitado, pessoa portadora

de necessidades educativas especiais, entre outros “eufemismos politicamente

corretos”.

Esses sujeitos são “os outros”, aqueles e aquelas que são considerados

diferentes. Contudo, se as suas posições fossem alteradas ou trocadas, se

quem é assim representado tivesse o direito de falar de si mesmo,

17 (GLOSSÁRIO) – Whiteness: termo que foi escolhido por SILVA, na tradução de APPLE (1995b), intitulado “Consumindo o “outro” branquidade, educação e batatas fritas baratas”. A expressão Whiteness é.utilizada para designar a idéia de norma, no caso, a normalidade e a supremacia da cultura branca. A referencia deste texto encontra-se na bibliografia deste caderno.

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32

pudesse se autodescrever, então deixaria de ser o “outro”. Ninguém é

essencialmente diferente, ninguém é essencialmente o outro; a diferença é

sempre constituída a partir de um dado lugar que se toma como centro.

(LOURO, 1998, p.36).

Dentro desse contexto, é necessário percebermos que ouvintismo e oralismo

não são considerados sinônimos. O oralismo pode ser considerado uma prática social

interessada no discurso clínico e terapêutico da surdez, corporificando-se como a

ideologia dominante na educação de surdos.

No entanto, observamos que o ouvintismo e o oralismo são inter-relacionados,

porque tanto um quanto o outro têm o poder de legitimar e de centralizar as decisões

que norteiam a educação de surdos, como o currículo, as práticas e os espaços

escolares, a formação de professores, enfim, grande parte da política educacional

para surdos desenvolvida neste país.

Diante disso, é importante perguntar: qual seria este ambiente tão natural e tão

restritivo para que a educação, no caso dos surdos, pudesse se desenvolver?

Poderíamos arriscar responder essa questão perguntando: seria a escola regular, a

escola de ouvintes, um ambiente natural para a comunidade surda? Um ambiente

onde as práticas e discussões privilegiam a língua oral na sua forma escrita e falada e

onde a língua de sinais é vista simplesmente como um meio e não como a língua

específica da comunidade surda?

Questões como essas nos ajudam a perceber o quanto a política curricular

presente nos discursos das políticas públicas favorece e legitima a cultura de

determinados grupos em relação a outros. Já foi comprovado que o contexto próprio

do surdo é a sua comunidade, onde questões como a língua, a cultura e a identidade

desse grupo se mantêm presentes e ativas de geração em geração. Portanto, não

podemos considerar que o “ambiente natural” da comunidade surda seja a escola

regular e tampouco a escola especial.

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33

Figura 7: Processo ensino-aprendizagem da criança surda: interação com a língua

de sinais

A busca desse terreno natural, no qual os surdos deveriam ser escolarizados e

integrados socialmente, só será materializado se, no âmbito da normalidade, a

diferença for negada. O discurso proclamado em favor das igualdades de

oportunidades, produzido, principalmente, pelas políticas públicas, com o argumento

de que o tratamento diferente ou especial estigmatizaria ainda mais os sujeitos

surdos, nada mais é que uma nova estratégia de compreendermos a diferença como

uma oposição, ou seja, identifica igualdade como semelhança e diferença como

desvio (YOUNG, apud WRIGLEY, 1996).

A interpretação de normalização dos estudos surdos se apóia em Davis,

quando ele argumenta que não é possível separar o modo como a normalidade está

sendo produzida no discurso sobre a incapacitação. Vivemos em uma sociedade que

é constituída por normas, que regram e orientam uma forma de vida social

considerada ideal para todos os sujeitos; portanto, torna-se difícil viver sem elas.

Analisando culturalmente, Davis (apud. SILVA, 1998, p.5) enfatiza que o “ problema”

não são a pessoas com algum tipo de incapacitação , o “problema” é a forma como a

normalidade é construída para criar o problema da pessoa com incapacitação”

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34

Diante do volume de orientações legais acerca das práticas curriculares que se

materializam no espaço escolar, professor e comunidade educativa precisam estar

atentos, percebendo quem, de que lugar e para quem se está falando, ou seja, a

intencionalidade, os interesses de quem está sendo privilegiado e de quem está

sendo excluído.

Atividade da Unidade B: Partindo do pressuposto de que as políticas curriculares se instituem como um

discurso oficial, faça uma análise dos Parâmetros (adaptações) disponíveis no site:

www.mec.gov.br/seesp/, Catálogo de Publicações/Projeto Escola Viva. Para esse

exercício relacione as questões referentes à surdez as estratégias curriculares para

identificar como vem sendo produzidas as questões do currículo para atender a

diferença surda. Após a leitura, será proposto um fórum que constará na agenda da

disciplina.

Referências da Unidade B: APPLE, Michael. A política do conhecimento oficial: faz sentido a idéia de um

currículo nacional? In: MOREIRA, Antônio Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu da. (Orgs)

Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Editora Cortez, 1995, p.59-91.

BELL, Alexandre Graham. Sobre la Formación de uma Variedad Sorda de la Raza

Humana. In: História y cultura de la comunidad sorda. Apostila do Programa de

Formação Pedagógica para a Educação de Crianças surdas no Marco do Modelo

Bilíngüe-Bicultural, Buenos Aires: Universidade de Buenos Aires, 1996.

BEYER, London E.; LISTON, Daniel P. Discurso ou ação moral? Uma crítica ao pós-

modernismo em educação. In: Silva, Tomaz T. D. (Org.). Teoria Educacional Crítica em Tempos Pós-Modernos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p.73-102.

BRITTO, Lucinda F. Integração Social e Educação de Surdos. Rio de Janeiro:

Babel Editora, 1993.

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CONNELL, R.W. Política educacional, hegemonia e estratégias de mudança social. In:

Teoria e Educação. Porto Alegre, n°5, 1992, p.66-80.

LOURO, Guacira Lopes. Segredos e Mentiras do Currículo. Sexualidade e gênero nas

práticas escolares. In: SILVA, Luiz H. D. (Org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 33-47.

SANCHEZ, Carlos M. La incrible y triste historia de la sordera. Caracas: Editorial

Ceprosord, 1990.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A Política e a Epistemologia da Normalização do Corpo. Revista Espaço, Rio de Janeiro, 1998 .

_____________________. Identidades Terminais: as transformações na política da

pedagogia e na pedagogia da política. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

_____________________. Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa

paisagem pós-moderna. In: MOREIRA, Antônio Flávio; _______. (Orgs.). Territórios Contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Rio de Janeiro:

Vozes, 1995, p.184-201.

SKLIAR, Carlos. A Reestruturação curricular e as políticas educacioanais para as

diferenças: o caso dos surdos. In: AZEVEDO, José Clóvis de – SANTOS, Edmilson

Santos da e SILVA, Luiz Heron da (Orgs) Identidade Social e a Construção do Conhecimento. Porto Alegre – RS – Ed. Secretaria Municipal de Educação de Porto

Alegre, 1997a , p.242-281.

______. La educación de los sordos: uma reconstrución histórica, cognitiva y

pedagógica. Mendonza; Ed. Ediunc, 1997b.

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_____. Os Estudos Surdos em Educação: problematizando a normalidade. In:

____(Org.). A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Ed. Mediação,

1998, p.1-32.

Soares, Maria Aparecida Leite. A educação do Surdo no Brasil. Campinas, SP:

Autores Associados: Bragança Paulista, SP: EDUSF, 1999.

WRIGLEY, Owen. A Política da surdez. Original: The Politics of Deafness.

Washington, D.C.: Gallaudet University Press, 1996. (texto traduzido para seminário).

Sites relacionados da unidade

http://www.surdospelsurdos.com/noticiaseducacao.asp

http://www.sj.cefetsc.edu.br/~nepes/docs/midiateca_artigos/historia_educacao_surdos

/texto29.pdf

http://www.tveregional.com.br/colunistas.php?IDc=9&IDa=19

http://www.ines.org.br/ines_livros/13/13_PRINCIPAL.HTM

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32621998000300007

http://www.google.com.br/search?hl=pt-

BR&q=educa%C3%A7%C3%A3o+de+surdos+e+o+oralismo&btnG=Pesquisar&meta=

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32621998000300001

http://www.criancasurdafeliz.hpg.ig.com.br/bilinguismo.htm

http://www.ronice.ced.ufsc.br/publicacoes/edu_surdos.pdf

http://www.lerparaver.com/amigos/leonardo_deficiencia_auditiva.html

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37

Unidade C – SURDEZ E PEDAGOGIA DA DIFERENÇA

Relacionar a surdez com a pedagogia da diferença significa colocar em

suspeição os próprios conceitos de diferença e diversidade18. Nessa unidade,

procuraremos rever esses conceitos, atentando para o fato de que estes, na maioria

das vezes, são abordados como sinônimos, ou seja, com padrões equivalentes de

comparabilidade que permitem continuar traçando a fronteira entre situações

designadas como normais ou como anormais. Nesse contexto, buscaremos

problematizar a forma como a surdez é produzida, sendo então compreendida muito

mais como uma diversidade cultural que como uma diferença política.

Pensar em uma pedagogia que trate das questões do outro, tais como, no caso

desse estudo,das questões que tratem do outro surdo, significa ir além das

benevolentes e solidárias ações de boa vontade voltadas à diferença, que somente

enaltecem e reconhecem o outro. É preciso, em primeiro lugar, perceber que a noção

de “diferença” não substitui, simplesmente, a de diversidade ou a de pluralidade nem,

muito menos, a de deficiência ou a de necessidades especiais. Do mesmo modo,

essas noções também não ocupam o mesmo espaço discursivo. A noção de diferença

tem que ser vista como algo que é múltiplo, que está em ação, que produz, que se

dissemina e prolifera e que se recusa a fundir-se com o idêntico para aproximar-se

daquela idéia do diverso, do estático, do dado, daquilo que reafirma o idêntico no

apagamento das diferenças.

C.1 - Problematização das noções de diferença, deficiência e diversidade

A noção de diferença pode ser abordada a partir de diferentes sentidos, no caso

desse estudo, a associaremos a filosofia da diferença. Burbules & Rice, apontam para

a noção de diferença, cunhada por Derrida. Segundo os autores acima, Derrida

trabalhou com o termo différance para iniciar uma espécie diferente de diferença:

A différance é uma estrutura e um movimento não mais concebidos na

base da oposição presença/ausência. A différance é um jogo sistemático

18 (ASSUNTO) - Diferença e diversidade: Para conhecer mais sobre a discussão que coloca diferença e diversidade em matriz conceitual diferente leia a obra de : BHABHA, Homi K. O local da cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998

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38

da diferença, dos traços de diferença, do espaçamento por meio do qual

os elementos são relacionados entre si. Este espaçamento é

simultaneamente ativo e passivo, feito da produção sem intervalos os

quais os termos plenos não significariam, não funcionariam (apud

BURBULES & RICE, 1993, p.182).

Tentando abordar este conceito sob o domínio das teorias sociais, relacionando-

o assim à surdez, podemos entender que a surdez, enquanto uma diferença, nega a

atribuição puramente externa de ser surdo e alguma característica marcante, por

exemplo, ao fato de não ouvirem. Nesse contexto, a diferença não é entendida como

oposição: diferenças são sempre diferenças, que se constituem num processo ativo

de identificação e de produção de subjetividade.

Figura 8: Diferença surda: respeita a especificidade da experiência visual

Para o entendimento dessa problematização, convém assinalar, nesse

momento, a distinção entre os termos “diferença” e “diversidade”. Segundo o

dicionário Houaiss (2001), “diferença” significa “qualidade do que é diferente; o que

distingue uma coisa de outra; falta de igualdade ou de semelhança; característica do

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que é vário”; e “diversidade” é a “qualidade daquilo que é diverso, diferente, variado;

variedade; conjunto variado; multiplicidade; desacordo, contradição, oposição”.

Analisando essas primeiras noções, parece haver um consenso entre “diferença” e

“diversidade”, ambas fazem parte de um mecanismo comum que coloca na mesma

rede discursiva seus significados, ou seja, “diferença e diversidade permitem-nos

distinguir o outro do um, o outro do mesmo. Quer dizer que o diferente ou diverso é o

contrário do idêntico” (FERRE, 2001, p. 195).

Percebe-se que esse consenso é chave para entender os discursos da

igualdade, da tolerância e da solidariedade produzidos pelas políticas públicas. Mas

será que essas definições tão precisas não mereceriam um outro olhar, ou uma

(re)volta desse olhar? Os apelos ao respeito às diferenças e às diversidades dos

sujeitos, como atributos que marcam aquilo que “distingue uma coisa da outra”, como

uma característica daquilo que está em “desacordo”, em “contradição”, não estariam

novamente marcando os cânones da normalidade? Ou seja, marcando o que deveria

ser corrente, habitual, correto e normal em cada um de nós?

É possível que sim, pois, novamente, o que se vislumbra nessa sinonímia

diferença/diversidade nada mais é do que o estabelecimento de uma medida comum,

de um padrão de comparabilidade que permite continuar traçando a fronteira entre

situações designadas como normais e anormais, mas talvez agora por uma estratégia

mais astuta, mais refinada – a do deslocamento constante dessa fronteira. Em outras

palavras, não basta simplesmente anular ou excluir o anormal, o que é preciso é

tornar visíveis as linhas de fronteira que fazem com que esses sujeitos deslizem pelos

limiares entre a anormalidade e a normalidade, pois, delimitando claramente essas

fronteiras, fica mais fácil capturar e, assim, corrigir os anormais. É justamente o ato de

“obscurecer e eclipsar as linhas fronteiras” que faz com que algumas pessoas se

tornem, perante a norma, um problema. Portanto, dependendo da situação e do

momento, algumas fronteiras devem ser vistas com mais atenção que outras

(BAUMAN, 1998).

Nesse sentido, é importante ressaltar que o conceito de diferença deve ser

tomado como uma política de significação. Ao percebê-lo assim, distanciamo-nos da

noção de diversidade que vê a diferença como uma “obviedade cultural”, “uma marca

de pluralidade”. O olhar dedicado às diferenças, pelo véu da diversidade, vê-as

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40

enquanto falhas, haja vista, trabalharem com o intuito de selar as lacunas da diferença

(MCLAREN, 1997).

Não interpretar as diferenças com oposições significa entendê-las não como

uma “’obviedade cultural’, tal como: negro versus branco ou latino versus europeu ou

anglo-americano; em vez disso, as diferenças são construções históricas” (Ebert apud

MCLAREN, 1997, p.79). Portanto, ser surdo não é o oposto de ser ouvinte; não é

nessa lógica binária que discutimos e pensamos uma educação multicultural para os

surdos.

C.2 - Perspectivas de uma pedagogia para a diferença surda

A interface com outras discussões, com outros textos e autores permitiu-nos

lançar um novo olhar para a educação de surdos e, portanto, reinterpretar nossas

narrativas e representações acerca do “ser surdo”. Com a aproximação de temas

sobre identidades e diferenças, é possível perceber que o “ser surdo” ultrapassa as

características de uma identidade hegemônica, essencializada, construída por meio

de alguns traços comuns, únicos e universais. Falar em identidade surda é referir-se a

uma identidade constituída num processo histórico, é vê-la como algo incompleto, que

está sempre em construção.

A possibilidade de trabalhar com as idéias de uma pedagogia para a diferença

nos permite optar pelo caminho em que a surdez é vista como uma diferença política

e como experiência visual, e, assim, pensarmos as identidades surdas a partir do

conceito de diferença, e não a partir do conceito de deficiência. Aqui implica

distanciarmo-nos do conceito de diferença como exclusão, marginalização daqueles

considerados como “outros”, daqueles que parecem estar “fora do lugar”.

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41

Figura 9: Pedagogia da Diferença: espaço de construção da cultura surda.

Uma pedagogia preocupada com as diferenças da comunidade surda 19tem

que priorizar a presença do professor surdo no centro dos debates curriculares. A

presença dos professores surdos no espaço escolar cria uma atmosfera crítica e de

resistência às práticas hegemônicas da cultura ouvinte, como também, desafia os

cenários de hierarquia discursiva ouvintista. Nessa situação, outro elemento

significativo pode ser visualizado: a possibilidade de os professores surdos “falarem”

por si, resgatando, por meio do discurso curricular, narrativas culturais e produção de

identidades até então aprisionadas e subordinadas às posições dominantes do

contexto escolar. Com isso, já poderíamos estar pensando na possibilidade de um

currículo multicultural na educação de surdos, no qual, devido ao contato que se

estabelece entre elas, as culturas surdas e ouvintes poderiam ser traduzidas como

“identidades de fronteira”. Essas identidades são entendidas como:

19 (ASSUNTO) - Diferenças da comunidade surda: Para aprofundar seu conhecimento a respeito da temática da pedagogia da diferença surda, leia: A pedagogia da diferença para o surdo, na obra: Leitura e Escrita no Contexto da Diversidade (LODI, Ana Cláudia, HARRISON Kathryn M. P. e CAMPOS, Sandra R. L. (ORGS). Porto Alegre: Mediação, 2004, p.86-97).

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Espaços intersubjetivos de tradução cultural – espaços lingüísticos

multivalentes de diálogo intercultural, espaços onde pode-se encontrar

uma sobreposição de códigos, uma multiplicidade de posições de sujeito

inscritas culturalmente, um deslocamento dos códigos de referência

normativos e uma montagem polivalente de novos significados culturais

(MCLAREN, 1997, p.147).

A possibilidade de os estudantes surdos viverem num espaço de fronteira é a de

viverem uma experiência anticentradora, na medida em que o espaço escolar seja

constantemente modificado. Neste espaço descentralizado, torna-se possível

questionar, interrogar e historicizar culturas surdas e culturas ouvintes, sem pensar

numa sobreposição ou numa superação de uma sobre a outra. A questão incide em

levantar os interrogantes, que levaram as histórias, culturas e identidades surdas a

assumirem uma relação subordinada na configuração escolar existente.

Talvez o que poderia ser destacado são os dois lados do poder assumidos pelos

professores surdos no contexto da escola. Em determinados momentos, os

professores surdos se acham sem legitimidade para “falar” dos outros surdos e, em

outros momentos, é necessário que isso seja feito, a fim de dar visibilidade à cultura

surda, extremamente obscurecida pela cultura hegemônica. O que acontece é uma

negociação diária, que depende das relações de poder, do momento em que elas

estão sendo utilizadas, alem de, como, por quem, para quem elas estão sendo

utilizadas.

A análise do currículo na escola de surdos a partir dos próprios surdos nos

permite ver como os alunos surdos são diferencialmente sujeitados à inscrição

ideológica do discurso ouvintista. Através dessas análises, percebemos a

preocupação dos professores surdos em abordar um currículo que focalize a questão

de diferença como uma construção cultural e histórica. Isso significa, pensar um

currículo que ultrapasse o conceito de diversidade, o qual nada mais faz que reforçar

o poder do discurso ouvintista legitimado no contexto dos privilégios sociais.

Sabemos o quanto a cultura ouvinte apodera-se do direito de representar os

surdos, tornando-se uma categoria politicamente construída e nutrida pela cultura

surda, assumindo sempre a posição gramatical do “ele”, nunca a do “eu” ou a do “tu”.

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Talvez esta relação possa ser entendida por meio da analogia com a cultura branca,

enquanto uma norma invisível:

Os grupos dominantes sempre vão querer ocupar a posição de poder

gramatical; isto é, assumir o papel externo, objetivo e de julgamento do ele

sugerindo que o uso que eles fazem da língua é livre de preconceito (...)

Por exemplo, oposições binárias [sic] tais como [sic] “brancos em oposição

a não-brancos” sempre ocupam a posição gramatical do ele nunca do eu

ou do tu, e sabemos que, na cultura branca a branquidade irá prevalecer e

continuará sendo parasítica do significado de negritude (MCLAREN, 1997,

p.137).

Neste sentido, ignorar o ouvintismo como uma norma cultural neutra e universal

significa redobrar a sua hegemonia para neutralizá-lo. Portanto, esta neutralidade da

cultura ouvinte passa despercebida pela cultura surda, possibilitando que o “outro”

seja instrumento de manipulação das práticas ouvintistas.

Essas considerações podem ser entendidas e aceitas na idéia de um

multiculturalismo conservador, que se posiciona a favor de uma cultura comum que vê

na “branquidade” ou no “ouvintismo” uma norma na qual outras etnias e outras

culturas são julgadas. No entanto, afasta-se do sentido de um multiculturalismo crítico,

idéia que este texto pretende seguir.

C.3 - O que dizem os surdos acerca de sua educação

A educação de surdos vem avançando nos últimos tempos principalmente no

campo das políticas educacionais20. Um dos principais agentes dessa mudança é a

comunidade de surdos, que vem lutando por meio de associações e da Federação

Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), para que sua educação

contemple a surdez como uma diferença política. No ano de 1999, durante o V

Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngüe para Surdos, organizado pelo

Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos - NUPPES/UFRGS e

FENEIS em Porto Alegre, a comunidade surda reuniu-se e elaborou um documento

20 (ASSUNTO) - Políticas educacionais: Para saber mais sobre as questões das políticas educacionais da área da surdez desenvolvidas no Estado do Rio Grande do Sul visite o site da

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em que apresenta as diretrizes de uma educação voltada para a diferença. Esse

documento é intitulado “A EDUCAÇÃO QUE NÓS SURDOS QUEREMOS”, e se

encontra disponível no site www.feneis.com.br/

Atividade da Unidade C: A preocupação central dessa unidade é provocar um discurso sobre a surdez

como diferença política. A fim de mostrar a “diferença” e “identidade” como conceitos

produzidos culturalmente propomos a seguinte atividade:

a) Em dupla, assista a um dos três filmes indicados abaixo, os quais podem ser

encontrados em locadoras de vídeo.

1-A Música e o Silêncio

2-Filhos do Silêncio

3-Mr. Holland – Adorável Professor

b) Elaborem, juntamente com seu coega, um hipertexto, procurando analisar, a partir

do filme os seguintes aspectos:

-como a diferença é apresentada no filme;

-de que forma as questões da identidade surda aparecem no filme;

-como os movimentos surdos são apresentados no filme.

c) Disponibilize o hipertexto conforme orientações do professor da disciplina.

Referências da Unidade C: BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1998.

Fundação de Atendimento ao Deficiente e ao Superdotado do Rio Grande do Sul (FADERS) http://www.faders.rs.gov.br/documentos/politica_educacional_para_surdos.doc

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45

BURBULES, Nicholas C., RICE; Suzane. Diálogo entre as diferenças: continuando a

conversação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Teoria Educacional Crítica em Tempos Pós-Modernos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, p. 173-204.

FERRE, Núria Perez de Lara. Identidade, diferença e diversidade: manter viva a

pergunta. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Orgs.). Habitantes de Babel:

políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 195-210.

HOUAISS, A. Dicionário eletrônico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2001.

MCLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Editora Cortez, 1997.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, PRÓ-REITORIA DE PÓS-

GRADUAÇÃO E PESQUISA. Estrutura e apresentação de monografias, dissertações e teses. 6ª. Ed. – Santa Maria: Ed. da UFSM, 2005.

Sites relacionados à unidade

http://www.faders.rs.gov.br/documentos/politica_educacional_para_surdos.doc

http://www.ines.org.br/paginas/revista/debate4.htm

http://www.ines.org.br/paginas/revista/espaco18/Atualidade05.pdf

http://www.conteudoescola.com.br/site/content/view/86/40/

http://mccleary.futuro.usp.br/gtls/resumos2002.htm

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