escassez de água potável

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- DOMINGO, 24 DE MARÇO DE 2013 DOMINGO, 24 DE MARÇO DE 2013 - Situação é grave no planeta e exige, entre outras coisas, ações de conscientização para evitar desperdício do líquido Rebeka Figueiredo rebeka.fi[email protected] O s dois litros de água que uma pessoa deve beber por dia são apenas uma pe- quena parcela da necessidade real de cada ser humano. A Or- ganização das Nações Unidas (ONU) recomenda 110 litros diários do líquido por habitante para consumo e higiene, mas o gasto médio do brasileiro é qua- se duas vezes maior. Se somarmos também a água usada na produção dos ali- mentos ingeridos por uma pes- soa, o consumo chega a 4.580 litros em um único dia. O cál- culo feito pela Folha Univer- sal , com dados do site Water Footprint, inclui a água neces- sária para produzir uma xícara de café, um pão com manteiga, uma maçã, um almoço com bife, arroz e salada de tomate e alface, uma vitamina de banana e meia pizza margherita. Apesar do aparente excesso Escassez de água potável de água, a disponibilidade não é igual para todos. Segundo es- timativas da ONU, 85% da po- pulação mundial vive nas regiões mais secas do planeta e 783 mi- lhões de pessoas não têm acesso à água potável. A situação ainda pode piorar: até 2025, 1,8 bilhão de pessoas vão enfrentar a escas- sez do recurso e, em 2050, a falta de água será um problema para 7 bilhões dos futuros 9 bilhões de habitantes do planeta. O mau aproveitamento do recurso é uma das principais difi- culdades. No País, por exemplo, o Instituto Trata Brasil estima que cerca de 40% da água re- tirada no país é desperdiçada, através do uso irresponsável e de problemas em encanamentos. Preocupada com o futuro, a ONU estabeleceu a Coope- ração pela Água como o tema de debate do Dia Mundial da Água, comemorado no último dia 22. “Estamos no primeiro ano de mandato dos prefeitos, este é o momento dos cidadãos cobrarem saneamento básico e outras políticas para a água”, resume o presidente do Institu- to, Édison Carlos. Henriqueta Guimarães tem 67 anos e há 3 anos faz cami- nhadas de 600 metros com um carrinho de mão para buscar água potável na residência de um vizinho, uma vez a cada 2 dias . “Meu poço era bom, mas ele foi contaminado pela fossa. Passei a pegar água no poço do vizinho ao lado de casa, até que o dele também ficou im- próprio”, conta a moradora da cidade de Itapetininga, a 170 quilômetros de São Paulo. No bairro Jurumirim, onde Henriqueta mora, não há água ou esgoto encanado, somente poços e fossas construídos pe- los moradores. Ela continua usando o líquido cheio de coliformes fecais do reservatório do vizi- nho para tomar ba- nho e lavar a roupa. Cristina de Oliveira, de 39 anos, dona do mercadinho do bairro, diz que precisa economi- zar muito para garantir água o ano inteiro. “Em dezembro, a estiagem reduziu tanto volume de água no poço que eu nem es- tava lavando o mercado, passava só um pano." Para o aposentado Donizete Brito, de 56 anos, a fal- ta de chuva também prejudica as plantações e a criação de gado. “A partir de setembro e outubro, a água desaparece dos poços e os moradores precisam contar com a ajuda de vizinhos. Quem tem dinheiro contrata caminhão pipa, mas é a minoria”, explica ele. Procurada, a Sabesp disse que estuda implementar os servi- ços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no bairro, mas não informou prazos. “Apenas um terço do esgoto é tratado no Brasil. É uma situ- ação caótica: poluímos inces- santemente a água com dejetos. Além disso, nosso sistema hídrico é muito dependente das chu- vas. Em períodos de estiagem, muitas cidades do Nordeste entram em racionamento, e as mudanças climáticas de- vem agravar a situação”, aler- ta Édison Carlos, pontuando que a Grande São Paulo pode ser comparada às áreas mais secas do mundo em escassez. “A região busca o recurso a 70 quilômetros de distância. Isso mostra que os Estados devem discutir em conjunto a questão da água”, completa. As perdas na rede de distri- buição, o excessivo uso de água na agropecuária e a conscienti- zação da população são outros desafios. “A indústria tem dado exemplo reutilizando a água de esgoto tratada (água de reuso). Agora, a agricultura também precisa estabelecer novas for- mas de uso sustentável”, opina o presidente do Trata Brasil. A presidente Dilma Rousseff anunciou investimentos de R$ 9,8 bilhões para obras de esgo- tamento sanitário e R$ 7 bilhões para obras de abastecimento de água, como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC2). O orçamento vai bene- ficiar 22 Estados. Mais de 70% da água do Brasil está na bacia hidrográ- fica do Rio Amazonas, a área menos habitada do País, PREOCUPADA, ONU ESCOLHEU 2013 COMO O ANO INTERNACIONAL DA COOPERAÇÃO PELA ÁGUA PAULISTA QUE JÁ ENFRENTA ESCASSEZ TORCE PELA CHEGADA DA ÁGUA ENCANADA EM SUA RESIDÊNCIA Nosso sistema hídrico é muito dependente das chuvas. Em períodos de estiagem, muitas cidades e boa parte do Nordeste entram em racionamento, e as mudanças climáticas devem agravar a situação Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil ARTE: EDI E DSO N ROTINA: No interior paulista, Henriqueta Guimarães transporta em um carrinho de mão a água que usa para beber e cozinhar ATENÇÃO CONSTANTE: Cristina de Oliveira monitora o poço para não ficar sem água FOTOS: DEMETRIO KOCH 8 g eral geral 9

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Page 1: Escassez de água potável

- DOMINGO, 24 DE MARÇO DE 2013DOMINGO, 24 DE MARÇO DE 2013 -

Situação é grave no planeta e exige, entre outras coisas, ações de conscientização para evitar desperdício do líquido

Rebeka Figueiredo

[email protected]

Os dois litros de água que uma pessoa deve beber por dia são apenas uma pe-

quena parcela da necessidade real de cada ser humano. A Or-ganização das Nações Unidas (ONU) recomenda 110 litros diários do líquido por habitante para consumo e higiene, mas o gasto médio do brasileiro é qua-se duas vezes maior.

Se somarmos também a água usada na produção dos ali-mentos ingeridos por uma pes-soa, o consumo chega a 4.580 litros em um único dia. O cál-culo feito pela Folha Univer-sal, com dados do site Water Footprint, inclui a água neces-sária para produzir uma xícara de café, um pão com manteiga, uma maçã, um almoço com bife, arroz e salada de tomate e alface, uma vitamina de banana e meia pizza margherita.

Apesar do aparente excesso

Escassezde água potável

de água, a disponibilidade não é igual para todos. Segundo es-timativas da ONU, 85% da po-pulação mundial vive nas regiões mais secas do planeta e 783 mi-lhões de pessoas não têm acesso à água potável. A situação ainda pode piorar: até 2025, 1,8 bilhão de pessoas vão enfrentar a escas-sez do recurso e, em 2050, a falta de água será um problema para 7 bilhões dos futuros 9 bilhões de habitantes do planeta.

O mau aproveitamento do recurso é uma das principais difi-culdades. No País, por exemplo, o Instituto Trata Brasil estima que cerca de 40% da água re-tirada no país é desperdiçada, através do uso irresponsável e de problemas em encanamentos.

Preocupada com o futuro, a ONU estabeleceu a Coope-ração pela Água como o tema de debate do Dia Mundial da Água, comemorado no último dia 22. “Estamos no primeiro ano de mandato dos prefeitos, este é o momento dos cidadãos cobrarem saneamento básico e

outras políticas para a água”, resume o presidente do Institu-to, Édison Carlos.

Henriqueta Guimarães tem 67 anos e há 3 anos faz cami-nhadas de 600 metros com um carrinho de mão para buscar água potável na residência de um vizinho, uma vez a cada 2 dias . “Meu poço era bom, mas ele foi contaminado pela fossa. Passei a pegar água no poço do vizinho ao lado de casa, até que o dele também ficou im-próprio”, conta a moradora da cidade de Itapetininga, a 170

quilômetros de São Paulo.No bairro Jurumirim, onde

Henriqueta mora, não há água ou esgoto encanado, somente poços e fossas construídos pe-los moradores. Ela continua usando o líquido cheio de coliformes fecais do reservatório do vizi-nho para tomar ba-nho e lavar a roupa.

Já Cristina de Oliveira, de 39 anos, dona do mercadinho do bairro, diz que precisa economi-

zar muito para garantir água o ano inteiro. “Em dezembro, a estiagem reduziu tanto volume de água no poço que eu nem es-tava lavando o mercado, passava só um pano." Para o aposentado Donizete Brito, de 56 anos, a fal-ta de chuva também prejudica as plantações e a criação de gado. “A partir de setembro e outubro, a água desaparece dos poços e os moradores precisam contar

com a ajuda de vizinhos. Quem tem dinheiro contrata caminhão pipa, mas é a minoria”, explica ele. Procurada, a Sabesp disse que estuda implementar os servi-ços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no bairro, mas não informou prazos.

“Apenas um terço do esgoto é tratado no Brasil. É uma situ-ação caótica: poluímos inces-santemente a água com dejetos. Além disso, nosso sistema hídrico

é muito dependente das chu-vas. Em períodos de estiagem, muitas cidades do Nordeste entram em racionamento, e as mudanças climáticas de-vem agravar a situação”, aler-ta Édison Carlos, pontuando que a Grande São Paulo pode ser comparada às áreas mais secas do mundo em escassez. “A região busca o recurso a 70 quilômetros de distância. Isso mostra que os Estados devem

discutir em conjunto a questão da água”, completa.

As perdas na rede de distri-buição, o excessivo uso de água na agropecuária e a conscienti-zação da população são outros desafios. “A indústria tem dado exemplo reutilizando a água de esgoto tratada (água de reuso). Agora, a agricultura também precisa estabelecer novas for-mas de uso sustentável”, opina o presidente do Trata Brasil.

A presidente Dilma Rousseff anunciou investimentos de R$ 9,8 bilhões para obras de esgo-tamento sanitário e R$ 7 bilhões para obras de abastecimento de água, como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC2). O orçamento vai bene-ficiar 22 Estados.

Mais de 70% da água do Brasil está na bacia hidrográ-fica do Rio Amazonas, a área menos habitada do País,

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Nosso sistema hídrico é muito dependente das chuvas. Em períodos de estiagem, muitas cidades e boa parte do Nordeste entram em racionamento, e as mudanças climáticas devem agravar a situação

Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil

ARTE: EDI EDSON

ROTINA: No interior paulista, Henriqueta Guimarães transporta em um carrinho de mão a água que usa para beber e cozinhar

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Page 2: Escassez de água potável

enquanto o Nordeste e as regi-ões metropolitanas do Sudeste enfrentam escassez. No Ceará, as cidades de Pacoti e Quiteria-nópolis estão racionando água, e outros municípios ainda po-dem adotar a medida, um refle-xo da seca que se prolongou de 2012. O racionamento também atinge a região metropolitana de Recife, em Pernambuco. “O regime de chuvas no Nordeste

dura apenas 4 meses, a solução é criar e administrar reservató-rios de água. O Ceará já apren-deu a conviver com o proble-ma. Gerencia os recursos com tecnologia avançada e previsões meteorológicas de longo pra-zo”, avalia a vice-presidente da ABRH, Jussara Cabral Cruz.

Em outras regiões do País, o problema está nas enchentes. No início de março, dezenas de avenidas ficaram alagadas na capital paulista e, em Cubatão, no litoral, uma enchente no fim de fevereiro deixou mais de mil desalojados, dezenas de casas destruídas e R$ 13 milhões em prejuízos, segundo a prefeitura.

“Nos grandes centros, a ocu-pação e a impermeabilização do solo aumentam a velocidade das águas e o risco de enchentes, piorando a qualidade da água dos rios”, analisa Jussara.

Nas regiões metropolitanas, o abastecimento ainda é preju-dicado pela ocupação de áreas de mananciais por indústrias. Na Amazônia, a atividade mi-neradora provoca a poluição de algumas fontes. Jussara lembra que a Lei de Recursos Hídri-cos brasileira (nº 9.433/1997) é elogiada internacionalmen-te por reunir representantes da sociedade civil organizada, empresas, usuários da água e órgãos públicos, que decidem juntos os planos para as bacias

hidrográficas. “É um planeja-mento contínuo, as soluções estão interligadas. O despejo de efluentes em um rio vai dificul-tar o abastecimento de água em outro lugar”, exemplifica.

Até 2015, 16 dos 29 maiores aglomerados urbanos brasilei-ros vão precisar encontrar no-vos mananciais para garantir o fornecimento, segundo a Agên-cia Nacional de Águas (ANA). “O Brasil já está investindo em tecnologia, infraestrutura e es-tudos de impacto ambiental

para o aproveitamento de novas fontes. É um trabalho de alta complexidade, porque envolve milhões de pessoas”, esclarece Sérgio Ayrimoraes, superinten-dente adjunto de Planejamento de Recursos Hídricos da ANA. “Mas ainda é preciso expan-dir o sistema de abastecimento para que a água chegue a toda população brasileira, principal-mente às áreas periféricas, que

mais sofrem com a eventual fal-ta do recurso”, acrescenta. Para ele, o abastecimento da região semiárida do País, dos grandes centros urbanos e de cidades com menos de 50 mil habitan-tes pode ser resolvido com o desenvolvimento de novas tec-nologias, a cooperação entre municípios, Estados e União, o esforço da iniciativa privada e vontade política.

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esgOTO A CÉu AbeRTO: Córrego poluído em bairro da zona norte de São Paulo; situação caótica na maior cidade do País

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ARTE: EDI EDSON

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