escarvidÃo e mestiÇagens brasil.pdf

21
ESCRAVIDÃO, MESTIÇAGENS, AMBIENTES, PAISAGENS E ESPAÇOS EDUARDO FRANÇA PAIVA, MARCIA AMANTINO E ISNARA PEREIRA IVO ORGANIZADORES

Upload: wilsonkamilo

Post on 07-Nov-2015

234 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

  • ESCRAVIDO, MESTIAGENS, AMBIENTES, PAISAGENS

    E ESPAOSEDUARDO FRANA PAIVA, MARCIA AMANTINO E

    ISNARA PEREIRA IVO ORGANIZADORES

  • ESCRAVIDO, MESTIAGENS, AMBIENTES, PAISAGENS E ESPAOS

    Coordenao de produo: Ivan AntunesDiagramao: rai_lopes

    Capa: Carlos ClmenImagem da Capa: George Grimm. Vista da cidade de Sabar. leo

    sobre tela, 57,0 x 98,5 cm, c. 1886.Reviso: Ricardo Kobayashi

    Finalizao: Lvia C. L. Pereira

    CONSELHO EDITORIALEduardo Peuela CaizalNorval Baitello Junior

    Maria Odila Leite da Silva DiasCelia Maria Marinho de Azevedo

    Gustavo Bernardo KrauseMaria de Lourdes Sekeff (in memoriam)

    Pedro Roberto JacobiLucrcia DAlessio Ferrara

    1 edio: julho de 2011

    Eduardo Frana Paiva | Marcia Amantino | Isnara Pereira Ivo

    ANNABLUME editora . comunicaoRua M.M.D.C., 217 . Butant

    05510-021 . So Paulo . SP . BrasilTel. e Fax. (011) 3812-6764 Televendas 3031-1754

    www.annablume.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao - CIP

    P166 Paiva, Eduardo Frana, Org.; Amantino, Marcia, Org.; Ivo, Isnara Pereira, Org.Escravido, mestiagens, ambientes, paisagens e espaos. / Organizao de Eduardo

    Frana Paiva, Marcia Amantino e Isnara Pereira Ivo. So Paulo: Annablume, 2011. (ColeoOlhares)

    284 p. ; 16 x 23 cm

    Simpsio Escravido e Mestiagem, Niteri (RJ), 2010.

    ISBN 978-85-391-0258-7

    1. Histria. 2. Histria do Brasil. 3. Histria da Escravido. 4. Histria da Mestiagem.5. Histria Social da Cultura. 6. Escravido. 7. Mestiagem. 8. Espao Urbano. 9. EspaoRural. 10. Brasil Colnia. 11. Brasil Oitocentista. I. Ttulo. II. Srie. III. Paiva, EduardoFrana, Organizador. IV. Amantino, Marcia, Organizadora, Ivo, Isnara Pereira, Organizadora.

    CDU 981CDD 981

    Catalogao elaborada por Wanda Lucia Schmidt CRB-8-1922

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASILSETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES, ANONIMATO E

    MODELOS EUROPEUS NAS CAPITANIAS DE MINAS E DONORTE DO ESTADO DO BRASIL1

    CARLA MARY S. OLIVEIRA

    1. Este trabalho contm as primeiras sistematizaes resultantes do Estgio Ps-Doutoral realizadoentre agosto e dezembro de 2009 junto ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UniversidadeFederal de Minas Gerais, sob superviso da Prof Dra. Adalgisa Arantes Campos, com a pesquisa OBarroco no Brasil: (des)conexes entre Minas Gerais e o litoral do Nordeste, que contou comfinanciamento de bolsa PROCAD-NF/Capes.

    No possvel falar de arte colonial na Amrica portuguesa sem atentar para ofato de que a extenso territorial sob a bandeira lusa espraiava-se por domniosdemasiadamente vastos, numa poca de transportes rudimentares e comunicaodemorada. Dessa realidade derivam algumas consequncias prticas, manifestas nos na vida cotidiana, mas tambm no campo artstico.

    Na verdade, entre fins do sculo XVI e comeos do sculo XIX pode-se dizerque se constroem no Brasil ao menos duas tradies irms, mas detentoras dediferenas bem sutis entre si: aquela que se convencionou chamar de BarrocoMineiro, e outra, litornea, mais circunscrita faixa da zona da mata localizada entreo Recncavo Baiano e a Paraba, que se pode chamar de Barroco Litorneo. Soduas tradies que beberam na mesma fonte ibrica, inicialmente, mas que construramdiscursos visuais de modo distinto, naquilo que se refere abordagem de temascomuns e reinterpretao de modelos europeus sob a tica de influncias locais.

    Primeiramente, no se pode esquecer que a grande contratadora dos serviosdos artfices coloniais, tanto no Novo Mundo portugus como no espanhol, era aIgreja Romana, quer fosse atravs das irmandades leigas, parquias ou dioceses,quer fosse por parte das congregaes missionrias. Assim, detalhe fulcral nesseprocesso a proibio expressa da Coroa portuguesa quanto instalao dascongregaes conventuais e missionrias na Capitania das Minas. Essa determinao,

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA UFPB

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...9 6

    no meu entendimento, que vai marcar a motivao primeira da arte religiosa nasalterosas e no litoral do atual Nordeste: enquanto neste ltimo desenvolve-se umdiscurso visual voltado, desde os primeiros momentos da colonizao, para a catequese tanto do gentio, como dos africanos e mesmo dos colonos europeus, entre os quaisse queria extirpar de vez as prticas judaizantes dos cristos-novos , em Minas eleter um carter devocional, mais afeito s crenas e santos popularizados especialmenteatravs das irmandades leigas, enquanto que a presena de jesutas, franciscanos,beneditinos e carmelitas, com seus conventos e misses na regio litornea do atualNordeste, direcionou o apelo das imagens religiosas sua funo catequizadora.

    Num universo em que as coisas do esprito e da f se imbricavam profundamentes coisas da vida cotidiana e suas oscilaes polticas, no causa espcie constatarque tanto o poder religioso quanto o poder civil utilizavam mutuamente as cerimniaspblicas2 um do outro, e vice-versa bem como as manifestaes artsticas comoelementos simblicos de reafirmao tanto das relaes de fora que tensionavam asociedade colonial como tambm do status quo vigente.

    Como to bem destaca Serge Gruzinski ao referir-se Nova Espanha, o tempocolonial parece ordenar-se em torno de uma trama de acontecimentos cujo centroseria ocupado pela imagem religiosa.3 Tal raciocnio pode ser estendido Amricaportuguesa sem problema algum: justamente em torno do campo religioso e de suasefemrides e representaes que se constituem os marcos temporais e elementosimagticos que ordenam e organizam o mundo colonial, quer seja em Vila Rica, SoJos do Rio das Mortes4 ou Sabarabuu5, quer seja em Olinda, Recife ou Salvador.

    Contudo, em meio a tanta pompa e circunstncia de entradas, procisses,novenas, rezas e demais rituais cristos, havia que se definir e consolidarcomportamentos e entendimentos do estar no mundo conformes estrutura socialvigente, e em linhas gerais a Igreja Romana tridentina acreditava poder faz-lo pormeio do prprio espao sacro do templo cristo. Como isso se dava nos intervalosentre as festas? Como se reforavam condutas e se incutia a F tanto ao devotoardoroso como ao gentio selvagem, ao africano desterrado ou, mais ainda talvez, aohebreu falsamente convertido? No preciso tergiversar tanto para perceber que ouso de imagens decorativas no interior das igrejas catlicas passou, desde fins dosculo XVI, a ter um papel preponderante nesse processo que se desenrolava nasAmricas, tanto na portuguesa como na espanhola. E foi a que se instalou a brecha

    2. RIBEIRO, Ana Isabel. The use of religion in the ceremonies and rituals of political power (Portugal,16th to 18th Centuries). In: CARVALHO, Joaquim (ed.). Religion, ritual and mythology: aspects ofidentity formation in Europe. Pisa: Edizioni Plus; Pisa University Press, 2006, p. 265-274. Disponvelem: . Acesso em: 25 out. 2008, p. 266.

    3. GRUZINSKI, Serge. A guerra das imagens: de Cristovo Colombo a Blade Runner (1492-2019).Traduo de Rosa Freire dAguiar. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 184.

    4. Atualmente, Tiradentes.5. Atualmente, Sabar.

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 9 7

    por meio da qual se mostraram, aqui e acol, as estratgias de apropriao eressignificao que se cristalizaram na arte religiosa colonial dos sculos XVII e XVIIIno Brasil, estratgias essas que historiadores como Gruzinski chamam de hibridizaoou mestiagem.

    O que no difcil de constatar, para mim, que apesar das tentativas deregulao do uso das imagens religiosas atravs de decretos6 e tratados7, a IgrejaRomana tridentina no conseguiu exercer, de fato, total controle sobre as representaesartsticas produzidas no Novo Mundo. Poder-se-ia explicar tal fato pela escassezde artfices e artistas com formao profissional satisfatria, ou seja, que seguissemestritamente os cnones europeus, mas tal entendimento das coisas consideraria apenasum dentre vrios dos fatores que parecem ter condicionado a produo dessas imagensreligiosas nas Amricas.

    IRMANDADES, PINTURA E IMAGENS MESTIAS NA CAPITANIA DAS MINAS

    A meu ver, a condio especial da Capitania das Minas no que se refere ausncia das ordens religiosas conventuais e missionrias por determinao rgiacriou um espao propcio a leituras particulares dos cnones visuais da Contra Reforma.Antes de tudo, no era prioridade da administrao colonial converter o gentio ou osafricanos escravizados empregados na minerao. Havia que se garantir, primeiramente,o controle sobre a extrao, beneficiamento e circulao do ouro e dos diamantes. Oresto vinha depois, era adendo s premncias da vigilncia sobre a fonte de riquezaque mais enchia os olhos da Coroa lusa.

    Assim, abriu-se espao nas alterosas para o cultivo de devoes especficas deuma populao que no teria a mesma assistncia espiritual disponvel no litoral dasCapitanias do Norte do Estado do Brasil e que, por isso, acabaria por encontrar formasde se organizar no campo religioso a partir de uma instituio de origens medievais, adas irmandades leigas.

    Na verdade, a falta de um direcionamento unvoco gestado pelas ordensmissionrias abriu a possibilidade de que devoes muito especficas se tornassem,muitas vezes, o centro gravitacional da vida social de diversos lugarejos, povoados evilas mineiras. A profuso de irmandades leigas refletiu-se no somente na quantidadeelevada de igrejas e capelas eretas em locais como Vila Rica, So Jos do Rio das

    6. CONCLIO de Trento. Decreto sobre a invocao, a venerao e as Relquias dos Santos, e sobre asimagens sagradas (1563). In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (dir.). A pintura: textos essenciais. Vol.2: a teologia da imagem e o estatuto da pintura. Coordenao da traduo de Magnlia Costa. SoPaulo: Editora 34, 2004, p. 65-69.

    7. PALEOTTI, Gabriele. Discorso intorno alle imagini sacre e profane. Firenze: Fondazione Memofonte,2008 [1581]. Disponvel em: . Acesso em: 12 out. 2008.

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...9 8

    Mortes, Sabarabuu e o Arraial do Tejuco8, por exemplo, que representavam os centrosnevrlgicos da atividade mineradora, bem como em localidades menores, como VilaNova da Rainha9, Morro Grande10 ou Catas Altas. Em todas essas povoaes, o interiordas igrejas era, muitas vezes, milimetricamente retalhado entre as irmandades, coisaque se pode compreender melhor ao constatar a profuso de altares laterais e retbuloseretos por tais associaes leigas.

    Depois de discutir detalhes de algumas pinturas feitas por Manoel da CostaAtade (1762-1830), artista branco de inquestionvel projeo no universo do BarrocoMineiro, focarei minha anlise sobre as imagens feitas por outros artfices menoresem algumas igrejas bem especficas, ligadas delimitao e afirmao do lugar socialde negros e pardos na sociedade colonial mineira: a Igreja de Santa Efignia dosPretos11, em Ouro Preto; a Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos12, emTiradentes; e a Capela de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos, em Santa Rita Duro.13

    Nesses templos a iconografia que decora o forro de suas naves est repleta depersonagens mestios e negros que, na linha de raciocnio que aqui construo, podemfornecer pistas interessantes para o entendimento desse universo de hibridizao culturalque se construiu no Brasil colonial.

    8. Atualmente, Diamantina.9. Atualmente, Caet.

    10. Atualmente, Baro de Cocais.11. Anteriormente denominada Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos da Capella da Cruz do Alto do Padre

    Faria, provavelmente teve sua construo iniciada depois de 1733, ano de criao da irmandade que,inicialmente, se abrigou na matriz, com as obras e aprimoramentos da decorao interna se estendendoat o final do XVIII. BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Trad. de Glria LciaNunes. Rio de Janeiro: Record, 1983 [1956], vol. 2, p. 84-86. MOURO, Paulo Krger Corra. Asigrejas setecentistas de Minas. 2. ed. revista e aumentada. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986, p. 109-110.

    12. Segundo a tradio oral local sua construo teria sido iniciada por volta de 1708, ano de fundao dairmandade que a erigiu, o que a faria a igreja mais antiga de Tiradentes. Reza tambm a tradio oralque foi construda por escravos, noite, detalhe pitoresco que esclareceria o desalinho de algumasparedes e do arco cruzeiro e tambm erros na quadratura da pintura do forro da capela-mor e dascenas em caixoto do forro da nave. Para o IPHAN sua construo teria se dado entre 1740 e 1770,e as pinturas do forro da capela-mor seriam annimas e ainda do sculo XVIII, enquanto as da naveseriam j do primeiro quartel do XIX, com autoria atribuda ao mulato Manoel Victor de Jesus, quepertencia Irmandade do Rosrio. IPHAN Arquivo Noronha Santos. Livros do tombo. StioEletrnico Institucional. Braslia: IPHAN/ MinC, s.d. Disponvel em: .Acesso em: 31 mar. 2010.

    13. Anteriormente, Arraial do Inficcionado.

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 9 9

    ATADE E AS MARIAS MESTIAS

    No novidade dizer que, talvez, a imagem mais conhecida dentre aquelaspintadas por Manoel da Costa Atade a da Virgem Maria que flutua em apoteose emmeio a um concerto angelical, no momento de sua ascenso aos cus, no forro daIgreja da Ordem Terceira de So Francisco da Penitncia, em Ouro Preto.14 Frutotardio do Barroco no Brasil, o fato de ter sido executada j na primeira dcada dosculo XIX nos mostra como impossvel demarcar com datas estanques odesenvolvimento desse estilo artstico no mundo colonial portugus e, menos ainda,afirmar que h grandes diferenas entre o repertrio barroco e o rococ, ao menos naAmrica portuguesa. Ali, naquele forro abobadado, est cristalizado no s o amlgamaentre ambos os estilos mas, de forma mais contundente, tambm transparecevisualmente o hibridismo do discurso visual construdo durante o sculo XVIII naCapitania das Minas.

    A Virgem Maria de Ouro Preto pintada por Atade tambm destacada naliteratura especializada por ser evidentemente mulata, possivelmente inspirada nostraos fisionmicos de sua esposa15, o que justificaria a estranha caracterstica dapintura, considerando-se que o artista era branco. Talvez cause menos espanto saberque no se trata da nica Nossa Senhora mestia pintada por ele: a pouco mais de 35km dali, em Ouro Branco, h outra Madona de traos bem semelhantes e pele tambmamorenada, pintada provavelmente mesma poca que a de Ouro Preto.

    14. CAMPOS, Adalgisa Arantes. A pintura de Manoel da Costa Atade: notas sobre suas fontes, aspectosiconogrficos e estilsticos. In: __________ (org.). Manoel da Costa Atade: aspectos histricos,estilsticos, iconogrficos e tcnicos. Belo Horizonte: C/Arte, 2007, p. 222-226.

    15. FROTA, Llia Coelho. Vida e trabalho de Manuel da Costa Atade. In: __________ & MORAES, Pedrode. Atade: vida e obra de Manuel da Costa Atade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 29 e segs.

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...1 0 0

    Fig. 1 Manoel da Costa Atade. Nossa Senhora daPorcincula, 1801-1812. Tmpera sobre madeira,detalhe do forro da nave da Igreja da Ordem Terceirade So Francisco da Penitncia, Ouro Preto, MinasGerais. Foto: Carla Mary S. Oliveira, 2009.

    Fig. 2 Manoel da Costa Atade. A Virgem entregao Menino Jesus a Santo Antnio de Pdua, c.1810. Tmpera sobre madeira, detalhe do forro danave da Igreja Matriz de Santo Antnio, Ouro Branco,Minas Gerais. Foto: Carla Mary S. Oliveira, 2009.

    Dentre os inmeros trabalhos que executou em sua profcua trajetria artstica,desenvolvida ao lado de sua atuao como militar de carreira nas tropas de Minas, talvezessas duas imagens da Virgem Maria sintetizem essa reinterpretao do tema marianosob o prisma local, mas a mestiagem demonstrada por elas tambm est presente emoutros detalhes dos mesmos forros, onde h anjinhos cantores e msicos tambm detraos mestios, assim como em diversas outras obras do mestre pintor. Assim como aVirgem mulata inspirada na companheira, tais anjos e querubins amorenados seriaminspirados em seus quatro filhos.16 Em linhas gerais, afirmar que tais imagens significama insero da mestiagem no imaginrio visual dessa sociedade colonial de formaintencional pode ser demasiado, ao menos no caso especfico de Atade, que parecemuito mais estar exercendo a prtica to comum de representar seus entes queridos nasencomendas que recebia. No parece haver, em tais pinturas, especialmente as dasVirgens mestias, um projeto consciente de reinterpretao dos cnones tridentinos.

    Em Mariana, alis, h outro forro feito por Atade em que talvez essa mestiagemseja, realmente, intencional. Trata-se da pintura existente na capela-mor da Igreja deNossa Senhora do Rosrio, onde as carnaes das personagens parecem bem maisescuras do que aquelas presentes em outras obras do pintor.

    16. FROTA, Llia Coelho. Vida e trabalho de Manuel da Costa Atade, p. 29 e segs.

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 1 0 1

    Fig. 3 Manoel da Costa Atade. Assuno da Virgem Maria, 1823. leo sobre madeira, detalhe doforro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosrio, Mariana, Minas Gerais. Foto: Carla MaryS. Oliveira, 2009.

    Tal pintura e o espao que ela adorna remetem, na verdade, a um universo bemespecfico, o das irmandades de homens negros e pardos na Capitania das Minasonde, ao que parece, realmente se pode falar de um projeto intencional de reinterpretaodo discurso visual europeu.

    AS IRMANDADES DE NEGROS E PARDOS DE MINAS E ASIMAGENS DA MESTIAGEM

    Em Ouro Preto, no alto do Morro da Cruz, est a Igreja de Santa Efignia,dominando toda a paisagem da cidade. Ereta pela Irmandade de Nossa Senhora doRosrio dos Pretos da Freguesia de Antnio Dias, que antes se abrigava na Matriz deNossa Senhora da Conceio, a pintura do forro de sua capela-mor traz uma dascenas mais inusitadas de reinterpretao de motivos tridentinos que j encontrei: lesto quatro personagens, a repetio da usual representao dos doutores da igreja.No entanto, um deles, mais especificamente o que fica acima do arco do retbulo-mor, destoa desse tipo de representao, por dois motivos simples: a personagem traz

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...1 0 2

    ao lado o bculo papal e de pele negra. Pintura ousada e annima, por meio dela possvel perceber-se o quanto o espao fsico dominado pelas irmandades leigas emMinas propcio a esse tipo de reinterpretao de motivos por parte dos artistascontratados para decorar forros e outras dependncias de suas igrejas e capelas.

    A pintura do forro da nave de autoria conhecida: foi feita pelo bracarenseManoel Jos Rebelo e Sousa, em 1768, e traz como motivo central a ascenso daVirgem. Sua paleta escura, caracterstica da pintura de outros bracarenses que atuaramem Minas, como Jos Soares de Arajo.17 A diferena de traos fisionmicos entre asimagens pintadas na nave e na capela-mor leva a crer que o autor do papa negro sejaoutro artfice, o que torna a cena ainda mais intrigante.

    17. Autor das pinturas do forro da capela-mor e da nave da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhorado Carmo, em Diamantina, executadas, respectivamente, em 1766 e entre 1782 e 1793.

    Fig. 4 Annimo. Papa negro, annimo, ltimo quartel do sculo XVIII. Tmpera sobre madeira,detalhe do forro da capela-mor, Igreja de Santa Efignia, Ouro Preto, Minas Gerais. Foto: Carla MaryS. Oliveira, 2009.

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 1 0 3

    Figs. 5 e 6 Manoel Jos Rebelo e Sousa. Doutores da Igreja, 1768. Tmpera sobre madeira,detalhes do forro da nave, Igreja de Santa Efignia, Ouro Preto, Minas Gerais. Fotos: Carla Mary S.Oliveira, 2009.

    A Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos de Tiradentes, por sua vez,tambm abriga pinturas de diferentes autorias: o forro da capela-mor traz uma cena daVirgem Maria ladeada por So Francisco e So Domingos, ao centro de uma estruturaem interessante pintura em quadratura, e permanece annimo; o forro da nave, pintadoem caixotes, com os quinze mistrios do Rosrio e as trs invocaes da Ladainha:Janua Coeli, Federis Arca e Domus Aurea18 foi obra de Manoel Victor de Jesus, mulatoirmanado no Rosrio19 e na Confraria de So Francisco esta aberta exclusivamenteaos pardos e de quem se tem registros de atuao profissional na Vila de So Josentre 1781 e 1824.20 A, mais uma vez, percebe-se a insero de um mestio na cenaartstica local, ascendendo a uma posio de destaque, haja vista que Jesus responsvelnada menos que pela decorao da caixa e da msula do famoso rgo da Matriz deSanto Antnio, alm de diversas outras pinturas na maior igreja local.

    No entanto, interessante notar que nas pinturas que executou na Igreja deNossa Senhora do Rosrio, mantida pela associao leiga qual estava irmanado, noh qualquer referncia sua condio mestia, pelo contrrio: nas cenas de devoomariana dos caixotes da nave os modelos europeus so seguidos sem ressignificaoalguma, ao menos naquelas em que ainda possvel identificar as personagens, j quegrande parte do conjunto est seriamente danificada pelas infiltraes e goteiras, comvrias reas j totalmente descoloridas.

    18. SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Manoel Victor de Jesus, pintor mineiro do ciclo rococ.Barroco, Belo Horizonte, n. 12, 1982/1983, p. 235.

    19. IPHAN Arquivo Noronha Santos. Livros do tombo.20. SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Manoel Victor de Jesus, pintor mineiro do ciclo rococ,

    p. 232.

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...1 0 4

    Figs. 7 e 8 Manoel Victor de Jesus. Cenas marianas, s.d. leo e tmpera sobre madeira, detalhesdo forro da nave, Igreja de Nossa Senhora do Rosrio, Tiradentes, Minas Gerais. Fotos: Carla MaryS. Oliveira, 2009.

    Por fim, a Igreja de Nossa Senhora do Rosrio de Santa Rita Duro, distrito deMariana, destaca-se por sua beleza e leveza das pinturas que a ornam, feitas entremais ou menos 1780 e 1792.21 O autor de sua decorao, incluindo os forros dacapela-mor, da nave, dos corredores laterais, do nrtex e tambm a pintura dos balcese colunas laterais, Joo Batista de Figueiredo, teria sido mestre de Atade. Os registrosde sua atividade profissional iniciam-se em 1773 e vo at ao menos 1792.22 No sesabe se era branco ou pardo, mas seu pai chegou s Minas vindo da Colnia doSacramento e sua me nasceu em Cachoeira do Campo, a cerca de 100 Km de CatasAltas, sua terra natal.23 De todas as suas pinturas na Igreja do Rosrio destacam-se ossantos negros que acompanham os quatro doutores da Igreja Jernimo, Gregrio,Ambrsio e Agostinho no forro da capela-mor, no s pela qualidade da pintura,mas por serem alados ao nvel daqueles que ainda so considerados os grandesintelectuais da f crist. A mestiagem, se a est presente, no s por tratar-se de umespao de uma irmandade leiga de negros, refere-se afirmao de uma condio deigualdade entre aqueles santos negros e os doutores da f. Se feita por um branco ouum pardo, pouco interessa aqui: o que importa o forte sentido simblico que taisimagens carregam. Trata-se de um discurso visual de afirmao, numa sociedadecolonial que em tudo negava as qualidades de mestios e negros.

    21. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O rococ religioso no Brasil e seus antecedentes europeus.So Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 277.

    22. ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. A pintura colonial em Minas Gerais. Revista do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional, Rio de Janeiro, MEC, n. 18, 1978, p. 31-34. Disponvel em:. Acesso em: 06 mar. 2009.

    23. ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. A pintura colonial em Minas Gerais, p. 31

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 1 0 5

    Figs. 9 e 10 Joo Batista de Figueiredo. Santos Negros, c. 1780-1790. leo e tmpera sobremadeira, detalhes do forro da capela-mor, Igreja de Nossa Senhora do Rosrio, Distrito de Santa RitaDuro, Mariana, Minas Gerais. Fotos: Carla Mary S. Oliveira, 2009

    A CONSTRUO DE UMA IDENTIDADE VISUAL MESTIA NONORDESTE BRASILEIRO

    O imprio colonial luso era vasto. Vasto e miscigenado, no se pode esquecer.Quanto maior a distncia da Corte lisboeta alis, ela mesma miscigenada j em suaorigem medieval, marcada pela convivncia entre mouros, judeus e etnias ibricasremanescentes do domnio romano maior a dificuldade de controle, maior a frouxidona aplicao das normas tridentinas, maior a liberdade para adaptaes e releituraslocais no campo das imagens religiosas, apesar da intrnseca relao entre o Estado ea Igreja nos territrios sob jurisdio da Coroa portuguesa, cristalizada na instituiodo padroado. Nesse sentido, acredito que as congregaes missionrias tiveram umpapel destacado na tentativa de exercer tal controle, coisa que, at certo ponto, maisvisvel no litoral nordestino.

    Mesmo assim, no so poucas as demonstraes da burla bem-sucedida dessecontrole, quer seja no Recife, quer seja na Paraba, ou mesmo em Salvador, a principalsede administrativa do poder colonial na Amrica portuguesa at meados do XVIII.Nessas paragens litorneas chega a transparecer a construo de uma identidademestia, ou ao menos a tentativa de faz-lo, em algumas imagens que decoram templosimportantes, inserindo no discurso visual tridentino representaes de pardos, negrose at mesmo madonas de tez amorenada. Em alguns casos se sabe a autoria dessaspinturas, e tambm o lugar social ocupado pelos artfices que as produziram, mas emoutros se desconhece completamente os detalhes de encomenda, execuo e pagamentode tais obras.

    Na Igreja de Nossa Senhora da Conceio dos Militares do Recife, por exemplo,os medalhes pintados no forro pelo artfice pardo Joo de Deus e Seplveda

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...1 0 6

    (? c. 1805)24, por volta de 1777, trazem exemplos dessa estratgia de insero docarter mestio em cenas hagiogrficas de clara inspirao tridentina. No medalhocentral, em torno de Nossa Senhora da Conceio, aparecem vrios anjinhos, comode praxe acontecia quando se representava essa invocao da Virgem, mas h l aomenos um deles de pele evidentemente mais escura, ao lado esquerdo da imagem. Emoutro medalho secundrio no mesmo forro, a Virgem aparece numa imagemextremamente incomum, com o ventre descoberto, mostrando seu rebento divinoantes do nascimento, e l tambm aparece um anjo mulato a seu lado, trazendo oemblema dos jesutas. Em ambas as pinturas os traos faciais de Maria aproximam-sedo tipo fsico mestio, com lbios carnudos e cabelos ondulados.

    24. ACIOLI, Vera Lcia Costa. A identidade da beleza: dicionrio de artistas e artfices do sculo XVI aoXIX em Pernambuco. Recife: Fundao Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2008, p. 267-271.

    Fig. 11 Joo de Deus e Seplveda. NossaSenhora da Conceio, c. 1777. Tmpera sobremadeira, medalho central, forro da nave, Igrejade Nossa Senhora da Conceio dos Militares,Recife, Pernambuco. Foto: Carla Mary S. Oliveira,2001.

    Fig. 12 Joo de Deus e Seplveda. NossaSenhora e o Bendito Fruto, c. 1777. Tmperasobre madeira, medalho secundrio, forro danave, Igreja de Nossa Senhora da Conceiodos Militares, Recife, Pernambuco. Foto: CarlaMary S. Oliveira, 2001.

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 1 0 7

    Em outra pintura atribuda ao ainda jovem Seplveda tambm aparecem as mesmascaractersticas na representao da Virgem Maria: cabelos ondulados e lbios grossos.Mais ainda, l est a cabea de um anjinho mais amorenado, ladeando o Cristo ressurreto.A tela passou a decorar o consistrio dos Terceiros franciscanos por volta de 1732,poca em que o artista fizera douramentos na sacristia da mesma igreja. A respeito dapintura em questo, destacava Fernando Pio, ainda no sculo passado:

    H ainda no consistrio de honra [do primeiro andar] enormetela representando a rainha da ordem franciscana: a ImaculadaConceio. (...) Precisamos frisar nesta pintura a concepocuriosa e diferente da expresso betica do artista que a comps:A Virgem uma morena, lbios grossos, cabelos muito pretos,bem diferente da expresso betica das santas e que nos fazemlembrar, pelo seu todo, tipo perfeitamente tropical.25

    25. PIO, Fernando. A Ordem Terceira de So Francisco e suas igrejas. Recife: UFPE, 1975, p. 20.[Grifos meus]

    Fig. 13 Joo de Deus eSeplveda (atribudo). Virgem daOrdem Terceira de So Fran-cisco, c. 1732. leo sobre tela,Igreja da Ordem Terceira de SoFrancisco, Recife, Pernambuco.Foto: Carla Mary S. Oliveira, 2008.

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...1 0 8

    Seplveda aprendera, assim como suas irms, os ofcios da pintura e da msicacom o pai, mestre-pintor, e comeou a atuar de forma autnoma na cena pernambucanaa partir da terceira dcada do XVIII.26 Ascendeu socialmente no somente pelos dotesartsticos, mas tambm pela labuta nos teros militares da capitania e pelos laos quecriou nas irmandades locais, laos to fortes que lhe garantiram encomendassignificativas, como o forro da nave da Igreja de Nossa Senhora do Carmo do Recife,entre 1760 e 1761, e o prestgio de maior dentre os pintores recifenses do setecentos,especialmente quando concluiu sua obra prima, a pintura em quadratura no forroabobadado da nave de So Pedro dos Clrigos, mostrando o santo pontfice in catedraa presidir um conclio, j em 1768.27

    Assim, percebe-se que o pardo atuou e deixou obras significativas nos templosdas principais e mais influentes irmandades recifenses: a dos Terceiros franciscanos,tradicionalmente reduto das elites de sangue e da terra em todo o mundo colonial luso;a dos Terceiros carmelitas, no menos sectria; e a dos clrigos de So Pedro, tambmformada pela nata eclesistica local. Apesar de essas ordens seguirem, usualmente,modelos de representao imagtica importados da Europa, especialmente na formade gravuras avulsas ou mesmo manuais de orao e devoo28 que circulavam entreseus irmanados, tal direcionamento no impediu que Seplveda inclusse em suaspinturas anjos mulatos, mesmo que discretamente: a identidade mestia ia abrindobrechas na trama social colonial e se fazia ver aqui e acol, por meio das representaesartsticas locais, ressignificando as matrizes barrocas europeias.

    Na Bahia, onde a segunda metade do XVIII v firmar-se uma escola de pinturadetentora de caractersticas prprias, com artfices capacitados na tcnica dequadratura em atelis portugueses, tambm se encontram imagens que burlam a normatridentina e deixam transparecer a miscigenao e ressignificao dos modeloseuropeus.

    Talvez o artista mais destacado do perodo naquelas paragens seja Jos Joaquimda Rocha (c. 1757-1837), que tambm executou empreitadas para os franciscanosem Olinda e foi considerado como o fundador da Escola Baiana de pintura do XVIII.O local de seu nascimento ainda uma incgnita: alguns estudiosos chegam a considerar

    26. PEREIRA, Jos Neilton. Alm das formas, a bem dos rostos: faces mestias da produo culturalbarroca recifense (1701-1789). Dissertao (Mestrado em Histria Regional da Cultura). UniversidadeFederal Rural de Pernambuco, Recife, 2009, p. 125-127.

    27. PEREIRA, Andr Luiz Tavares. A constituio do programa iconogrfico das irmandades declrigos seculares no Brasil e em Portugal no sculo XVIII: estudos de caso. 2 vols. Tese (Doutoradoem Histria). Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Estadual de Campinas,Campinas, 2006, p. 98 e 121.

    28. A esse respeito, ver o j clssico artigo de Hanna Levy publicado na Revista do SPHAN. LEVY,Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do Patrimnio Histrico e ArtsticoNacional, Rio de Janeiro, SPHAN, 1944, n. 8, p. 7-66. Disponvel em: .Acesso em: 6 mar. 2009.

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 1 0 9

    a possibilidade de ter nascido no Reino, de onde se pode supor que fosse branco.Uma de suas pinturas mais conhecidas, o teto da Igreja da Ordem Terceira de SoDomingos, em Salvador, mostrando a ascenso de So Domingos aos cus e de clarainspirao pozziana traz tambm, em meio profuso de personagens secundrios,alguns querubins de tez amorenada e cabelos bem cacheados e escuros.

    Fig. 14 Jos Joaquim da Rocha. Ascenso de So Domingos, 1781. leosobre madeira; forro da Igreja da Ordem Terceira de So Domingos, Salvador,Bahia. Foto: Carla Mary S. Oliveira, 2001.

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...1 1 0

    Embora no se possa afirmar com certeza se Rocha era baiano, reinol ouoriginrio de outra capitania da Amrica portuguesa, certamente o ambiente mestioem que vivia na Salvador da segunda metade do XVIII justifica a presena dessespersonagens mulatos em uma de suas grandes empreitadas. J em relao a um deseus mais destacados pupilos, a quem Rocha teria chegado a financiar uma temporadade estudos em Portugal, a coisa toda muda de cena. Quanto a este artfice, as dvidasrelativas origem tnica deixam de existir: Jos Tefilo de Jesus (1758-1847)29 tambmteve atuao destacada na cena artstica baiana entre o ltimo quartel do setecentos ea primeira metade do oitocentos, e sabidamente era pardo e forro. Suas obras, aomenos aquelas cuja autoria conhecida, no apresentam estes traos de mestiagem,talvez pelo firme propsito que tinha de aproximar-se do discurso visual que conhecerana estadia em Lisboa e no aprendizado na Academia de Desenho, sob a direo dePedro Alexandrino de Carvalho, como meio de compensar algumas limitaes tcnicaspessoais, e por isso sua trajetria particular parece ser, de fato, uma significativamostra de como alguns indivduos que, por sua cor, em tese deviam ficar margemdas oportunidades existentes numa sociedade colonial escravista, conseguiam revertersua condio de origem por meio dos talentos pessoais no campo artstico.

    Na Paraba, infelizmente, no so conhecidos os nomes e tampouco a origemdos autores de todas as pinturas que ornam os templos coloniais de sua capital.Pessoalmente, creio que muitas dessas obras so resultados da circulao de artficese artistas entre a cidade da Paraba e as vilas do Recife e de Olinda, especialmente nasegunda metade do XVIII, quando a capitania esteve administrativa e economicamentesubordinada a Pernambuco. O que se pode fazer, ento, tentar identificar nas imagensque sobreviveram at nossos dias os traos de mestiagem presentes nas representaespictricas, especialmente aquelas existentes no Convento de Santo Antnio, conjuntofranciscano que abriga uma coleo significativa de pinturas datadas principalmentede meados do setecentos at comeos do oitocentos.

    O interessante no caso do convento franciscano da Paraba o fato de quealgumas das imagens visivelmente representativas de uma mestiagem latente estoem espaos pouco visveis ou mais reservados, como a sacristia da igreja principal ea casa de oraes dos terceiros. Nesses locais possvel encontrar atlantes e madonasde pele negra ou parda em meio a balaustradas, sacadas e arcos de pinturas dequadratura, demonstrando que seus autores estavam a par do tipo de representaoartstica que cara no gosto local no s nos maiores aglomerados urbanos da colnia,mas tambm da metrpole.

    29. DARAJO, Antonio Luiz. Arte no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Revan, 2000, p. 112-114.

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 1 1 1

    Fig. 15 Annimo. Atlante e Putti Mulatos,2 metade do sculo XVIII. Tmpera sobre madei-ra, detalhe do forro do nrtex da igreja conven-tual, Convento de Santo Antnio da Paraba, JooPessoa. Foto: Carla Mary S. Oliveira, 2009.

    Fig. 16 Annimo. Putti Negros, 2 metade dosculo XVIII. Tmpera sobre madeira, detalhe doforro da sacristia conventual. Tmpera sobremadeira, Convento de Santo Antnio da Paraba,Joo Pessoa. Foto: Carla Mary S. Oliveira, 2009.

    Fig. 17 Annimo. Madona Negra, 2 metade dosculo XVIII. Tmpera sobre madeira, detalhe doforro da sacristia conventual, Convento de SantoAntnio da Paraba, Joo Pessoa. Foto: CarlaMary S. Oliveira, 2009.

    Fig. 18 Annimo. Madona Negra sobre Nuvense Putti Negros, 2 metade do sculo XVIII. Tmperasobre madeira, detalhe do forro da sacristiaconventual, Convento de Santo Antnio da Paraba,Joo Pessoa. Foto: Carla Mary S. Oliveira, 2009.

  • ARTE COLONIAL E MESTIAGENS NO BRASIL SETECENTISTA: IRMANDADES, ARTFICES...1 1 2

    Fig.19 Annimo. Querubim Negro, 2metade do sculo XVIII. Tmpera sobremadeira, detalhe do forro da nave, Casa deOrao dos Terceiros, Convento de SantoAntnio da Paraba, Joo Pessoa. Foto: CarlaMary S. Oliveira, 1999.

    Fig. 20 Annimo. Atlante Negro, 2 metade do sculoXVIII. Tmpera sobre madeira, detalhe do arremate doforro da nave, Casa de Orao dos Terceiros, Conventode Santo Antnio da Paraba, Joo Pessoa. Foto: CarlaMary S. Oliveira, 1999.

    Desse modo, putti, atlantes, querubins e madonas de tez visivelmente negra oumulata adornam espaos frequentados ou somente pelos frades, como a sacristiaconventual, ou pelos Terceiros, como a Casa de Oraes. Em outras palavras, amestiagem estava vista de poucos, mas se fazia mostrar explicitamente tanto aosresponsveis pela conduo dos servios religiosos como pela elite da Capitania. Umparadoxo difcil de explicar, haja vista o controle efetivo que havia por parte dosserficos, especialmente atravs do guardio conventual, sobre o que devia ou nodecorar aquele espao religioso.

    CONSIDERAES FINAIS

    Atentando para o fato de que tanto na Amrica portuguesa como na espanholaigrejas e conventos esto apinhadas de imagens30, h que se procurar compreenderas formas e meios pelos quais tais imagens foram concebidas e produzidas numasociedade colonial assinalada por uma hierarquia extremamente bem marcada, ondehavia pouco espao de manobra para os indivduos construrem sua trajetria pessoala partir da margem e ascendendo a posies de destaque no campo artstico. Aslinhas de fora de tais trajetrias se deixam antever justamente na produo que tais

    30. GRUZINSKI, Serge. A guerra das imagens, p. 190.

  • CARLA MARY S. OLIVEIRA 1 1 3

    indivduos deixaram s geraes seguintes, mesmo que seus nomes tenham sidoesquecidos ou sejam lembrados somente por ns, especialistas encastelados em torresacadmicas abarrotadas de alfarrbios.

    Fica, contudo, a representatividade de tais imagens num meio que,indubitavelmente, as negava. A sociedade colonial reforava sua estrutura e os lugaressociais dos indivduos que a compunham por meio da intrnseca relao entrereligiosidade e as coisas da vida cotidiana, bem como pelos discursos imagticosrepetidos e amplamente utilizados na decorao de igrejas, capelas e conventos. Tenteimostrar aqui, brevemente, como se dava a ruptura desse estado de coisas, como seabriam as frestas e brechas por onde os indivduos mestios se afirmavam ereinventavam dentro de tal sociedade com base em seus dons artsticos. Muito aindah que se pesquisar para aprofundar as anlises que aqui apenas esboo, pois trata-sede campo dos mais fecundos e que promete mais surpresas nas pesquisas sobre aarte colonial brasileira que ainda esto por serem feitas.