esboços da pesquisa sobre tabaco
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Artigo para seminárioTRANSCRIPT
O tabaco e suas variações no contexto ameríndio
Ellen Fernanda N. Araujo – PPGA/UFF
RAM/ Grupo de Trabalho 75
Venho realizando, durante o mestrado, uma pesquisa bibliográfica acerca do tabaco
entre grupos indígenas da América do Sul. Através de um passeio pelo material
etnográfico da região, tenho tido a oportunidade de conhecer esta planta tão antiga,
vastamente distribuída pelo continente1 e muito explorada nas cosmologias de vários
povos. Com essa comunicação, gostaria de compartilhar brevemente questões referentes
a ambivalência do tabaco no plano culinário e algumas das variadas formas e contextos
em que este é empregado pelos indígenas, provocando em seus corpos efeitos diferentes
e contribuindo para processos de fabricação, concepção ou mesmo metamorfoses.
- alimento x anti-alimento -
Uma das primeiras questões que chamam atenção é o fato de que alguns grupos
designam o ato de usar tabaco com o mesmo verbo para comer. Os Bororo denominam
o charuto de alimento (ké). Os Mundurucu contam num mito a história de um menino
que é morto por um visitante de sua aldeia porque recusou tabaco a este. Considerado
alimento, não se podia negá-lo sem sofrer as consequências. (Lévi-Strauss 2004 [1967],
p.52). O xamã Aweti diz ao jovem que está se iniciando, “vou te fazer comer tabaco”
(Figueiredo 2010, p.57). O xamã Warao reclama que seu estômago está doendo quando
não tem tabaco. Os Chimane, em certo ritual, comem pequenas figuras, nas formas de
humanos, jaguares e sapos, feitas com o pó do tabaco (Wilbert 1987, p. 171).
Na vida Hup‟dah, o tabaco recebe diversas associações com elementos
culinários. Os homens dizem: o tabaco é “um óleo que tempera a coca”– os quais são
1 O tabaco é uma planta do gênero Nicotiana o qual abrange setenta e seis espécies, destas mais de 50%
são endêmicas do continente sul-americano. N. tabacum e N. rustica são as duas que contém a maior
proporção do alcaloide nicotina e também as mais difusas e utilizadas pelos povos indígenas. A origem
silvestre dessas duas espécies é a “parte leste dos Andes (Peru e Equador), sudoeste da Bolívia, norte do
Chile e Argentina, Paraguai e Sudeste do Brasil”. (CAYCEDO-OYUELA & KAWA 2015: p.37). Desse
ponto, cada uma destas se dispersou, N. tabacum em direção leste “para as terras baixas da Bolívia,
Peru, Brasil e Pantanal Paraguaio, tanto quanto para as úmidas florestas da Amazônia onde é mais bem
adaptada” e N. rustica “espalhou-se do meio árido do Peru, Equador e terras baixas da Bolívia para o
Norte” (idem p. 33).Estudos genéticos datam uma grande anterioridade do surgimento do tabaco silvestre,
o período varia entre seis milhões a 200 mil anos atrás. Já estudos arqueológicos, apontam para um uso
bem mais recente das espécies dessa planta, algo em torno de 6.000 a 10.000 anos. CAYCEDO-
OYUELA & KAWA (2015) argumentam que essa divergência entre dados genéticos e arqueológicos
implicam concluir que, se os primeiros estão corretos, a maior dispersão das duas espécies mais usadas do
gênero não resulta de um processo de seleção pela domesticação da planta, mas é consequência de
outros fatores ecológicos.
comumente consumidos em rodas de conversa noturnas. Os diversos tipos de tabaco que
conhecem são denominados com nomes de peixes moqueados Antes de o consumirem
eles dizem que é preciso retirar sua parte ruim, sua gordura, através de um benzimento.
Ainda lá, um mito conta que o ancestral /Hut Wag/ (cujo nome significa pessoa/semente
de tabaco) o teria recebido do demiurgo enquanto um alimento primordial. Em outra
narrativa mítica, diz-se que o tabaco teria brotado do vômito de um espírito maléfico,
após este ter ingerido peixe moqueado (RAMOS, 2014).
Se estes exemplos podem ser evidências de ideias e práticas em que vemos os
ameríndios associarem o tabaco à nutrição, há outros em que esta planta se revelará
mais enquanto um anti-alimento, ou mesmo um veneno. Lévi-Strauss, ao longo das
mitológicas, e propriamente em Do mel às Cinzas (2004 [1967]) chamou-nos atenção
para o fato de que muitas substâncias “ocupam no pensamento mítico uma posição
ambígua e recíproca entre o alimento e o veneno”. Assim como o mel e as bebidas
fermentadas, o tabaco também seria um destes elementos ambivalentes (p.59).
Um mito Irantxe narra a história do surgimento de dois tabacos, um bom
(nutritivo), e outro ruim (tóxico). Um homem se comportou mal com outro, fazendo
com que este último preparasse uma vingança ao primeiro, prendendo-o no topo de uma
árvore. Nesta situação, o herói recebe ajuda de dois animais, um macaco (que lhe leva
água, mas alega ser muito fraco para ajuda-lo a descer) e um urubu que consegue trazê-
lo ao solo, levando-o em seguida para sua casa. Lá o urubu, que era o dono do tabaco,
lhe presenteia com duas espécies dessa planta, uma boa que o herói deveria aprender a
fumar, e uma ruim que ele deveria oferecer ao seu malfeitor com o objetivo de vingar-
se. Assim fez o herói ao voltar à aldeia. Ao fumar o tabaco ruim o malfeitor ficou tonto
e transformou-se num tamanduá, o qual foi posteriormente abatido pelo herói e
oferecido em refeição ao urubu (Levi Strauss 2004 [1967], p.54).
Em minha busca pelo material etnográfico da região, ainda não encontrei a
descrição de casos nos quais o tabaco fosse utilizado explicitamente como um veneno
com a finalidade de matar humanos inimigos. Porém, acredito que haja possibilidade
deles existirem ou que tenham existido. Penso isso não apenas pelo fato de que, em altas
doses, a narcose de tabaco pode mesmo levar a pessoa à morte, mas também e
principalmente porque, como vimos, o pensamento mítico nos coloca essa
possibilidade.
Assim, diria que a bibliografia tem nos conduzido, mais propriamente, até casos
em que o tabaco é classificado como anti-alimento, uma categoria cujo intervalo de
diferença em relação ao alimento penso ser menor do que entre este e o veneno. Entre
os Barasana, o tabaco é associado, no pensamento e nas práticas, à coca, à cerveja de
mandioca e ao yagé. Juntas estas substâncias compõe um grupo denominado como anti-
alimento, e se opõe a outro grupo, composto por frutas, tubérculos, rãs, formigas e
insetos larvares coletados, diferentes tipos de pães de mandioca e farinhas, molhos
feitos do sumo da mandioca, pimentas, peixes, e carnes que são considerados alimento.
Hugh-Jones (1995) afirma que há fatores sociais e culturais que engendram essa divisão
entre os elementos ingeridos, havendo outros dualismos correspondentes a este tais
como entre o feminino e o masculino, mundo físico e mundo sobrenatural, dia e noite,
práticas informais e formais.
No decorrer da vida cotidiana informal as pessoas não ficam elaborando tais
classificações a cada ato de consumo. Estas se tornam mais nuançadas e são
pronunciadas durante os rituais formalizados e periódicos de canto e dança, nos quais os
Barasana recebem convidados e performam mitos e cantos cujo tema, muitas vezes,
refere-se à origem, à natureza e às associações simbólicas destes elementos culinários.
Em relação à divisão de gênero, são os homens que se ocupam do processamento para
consumo dos anti-alimentos como a coca, o tabaco e o yagé (com exceção apenas do
cauim de mandioca que é uma tarefa feminina). Enquanto as mulheres ficam
responsáveis por coletar e preparar a maioria dos alimentos (com exceção do peixe e da
caça) (HUGH-JONES, 1995).
Essa oposição no plano da produção replica-se no do consumo. Isso não quer
dizer, claro, que os homens não se alimentam, mas eles comem bem menos que as
mulheres, fazendo apenas uma refeição principal assim que acordam. No decorrer do
dia, podem fazer pequenos “lanches”, mas também é comum que fiquem se nutrindo
apenas com coca. Durante a noite essa dieta torna-se exclusiva, os homens somente
consomem coca e tabaco, e reúnem-se, de forma serena e séria, em rodas de conversa
em que os mais velhos falam aos mais novos. Pode ser que bebam também um suco
quente e doce à base de mandioca (manicuera) (HUGH-JONES, 1995).
Um fato interessante é que deste período noturno diz-se que é o tempo dos
espíritos e dos ancestrais. E estes seres, assim como os homens ao anoitecer, apenas se
alimentam, de coca e de tabaco. Assim, se a princípio, o tabaco era classificado como
anti-alimento para os humanos, a partir de outra perspectiva, a dos espíritos, ele é
concebido, propriamente, como comida (HUGH-JONES, 1995).
De certo ponto de vista, portanto, o dos espíritos, o tabaco e a coca são
alimentos. Há outros casos em que o tabaco é considerado comida de espíritos. Para
tornar-se xamã, o homem Shipibo deve se submeter a uma dieta rigorosa, nutrindo-se da
água do tabaco (líquido onde a folha é mantida em molho) misturada à seiva de uma
árvore específica (inon atsa xeati - o cauim de mandioca do jaguar) e dos pequenos
microrganismos que surgem nesta mistura. Ele deve beber esse preparado que é bastante
embriagante durante uma semana. Ao final desse período, se obtiver sucesso, o homem
terá adquirido o mariri – uma espécie de espírito auxiliar que viverá sob a forma lavar
em seu peito. A comida, por excelência, desse espírito é o tabaco e quando este quer se
alimentar, passa a morder o homem por dentro, tão forte, que ele precisa beber suco de
tabaco para amansar seu mariri. Além disto, todas as vezes que o homem fuma cigarros
em sua vida cotidiana, o mariri come-o todo e fica sempre pedindo mais (BRABEC DE
MORI 2015, p.94).
- variações nos usos e efeitos -
Ainda em torno do plano culinário2, Lévi-Strauss vai chamar atenção acerca da
ambiguidade nos modos de preparação e consumo do tabaco revelado pelos mitos, que
variam entre os estados seco e úmido. De forma distinta ao mito Irantxe que narra a
origem do tabaco fumado, os Karib contam um mito que dá origem ao sumo de tabaco:
um homem viu um índio com patas de cutia que desaparecia em uma árvore. Era um
espírito da floresta que ele se encarregou de matar, juntando em volta da árvore lenha,
pimenta e sal, ateando fogo em seguida. Em sonho, o Espírito disse ao seu „assassino‟
que voltasse ao lugar em que tinha sido morto depois de três meses. Das cinzas do
Espírito nasceu a planta de tabaco a partir da qual foi possível preparar um licor (pelo
maceramento das folhas) que produz transes. Durante seu primeiro transe o homem
aprendeu os segredos da arte de curar ((Lévi-Strauss 2004 [1967], p.370).
2 Alguns dados etnográficos e históricos reunidos brevemente por Lévi-Strauss evidenciam que o
paradoxo em torno do tabaco não se resume apenas ao plano culinário. O autor irá chamar atenção para o
fato de que, apesar de ter surgido originalmente na região andina, o tabaco só passou a ser fumado
naquela área após a colonização europeia (antigamente sendo apenas mascado ou cheirado). Além disso,
apesar de sua vasta distribuição pelo continente americano, há grupos que desconhecem ou condenam seu
uso: os Nambikwara seriam fumantes inveterados; porém em um grupo vizinho Tupi-Kawahib, o tabaco
inspira “repulsa tão violenta que eles veem com maus olhos o visitante que ousa fumar em sua presença
chegando até mesmo a agredi-lo fisicamente” (p.53). Cooper (1986, p.103) e Wilbert (1975, p.2-3)
também argumentam que a colonização europeia provocou a generalização e secularização do consumo
de tabaco no continente sul-americano (p.103).
A variação quanto à forma de consumo extrapola estas ilustradas pelos mitos
quais sejam a de fumar o cigarro ou beber o sumo do tabaco. Wilbert (1987) apresenta
amplo inventário de todas as demais maneiras de utilização, distribuídas pelo continente
americano, entre elas as modalidades de cheirar o pó feito a partir das folhas de tabaco
(rapé), lamber, mastigar e até a de inserir via anal (enema).
Neste sentido, Lévi-Strauss vai argumentar que essas diferenças na modalidade
de uso, as quais implicam também uma diferença na quantidade ingerida (conjugadas a
diferenças resultantes da qualidade do produto), produz uma “toda uma série de formas
intermediárias”, transições e variações no dualismo entre alimento e veneno que
atravessam substâncias tais como o tabaco (p.60).
Pois bem, uma das questões que venho perseguindo em minha dissertação é
construir uma maneira de pensar essas variações do tabaco. É claro que um dos
possíveis caminhos para podermos compreendê-las pode ser aquele proposto por uma
abordagem naturalista, que vai atribuir às propriedades naturais do princípio ativo do
tabaco essa capacidade ambivalente. Uma vez que a nicotina é uma substância bifásica,
pode tanto estimular o sistema nervoso central, se em quantidades moderadas, quanto
deprimi-lo, se usado em altas doses. Além disso, já que é utilizado de diferentes
maneiras, provoca distintos modos de absorções pelo corpo. Wilbert (1987) apresenta e
detalha as diferenças na absorção do tabaco.
Busco construir uma análise tentando ir um pouco além dessa abordagem
naturalista. Abordagem esta que, como sabemos, esta apoiada no grande divisor
natureza/cultura característico do mundo moderno (LATOUR, 1994). Muitos trabalhos
etnográficos sobre os ameríndios, desde pelo menos a década de 1970, vêm mostrando
que há uma variedade de regimes em que essa distinção natureza/cultura opera (Lima,
1999), não fazendo sentido, portanto projetá-la ao regime indígena. Como propõe
Viveiros de Castro (1996) é necessário traçar a qualidade dessa distinção, a qual não
seria ontológica para o pensamento dos ameríndios.
Diante disso, viemos nos dando conta de que essa ambivalência do tabaco não
poderia apenas ser atribuída a um dos aspectos dessa planta (ou seja, às suas
características naturais), já que não parece haver nesses mundos indígenas um complexo
de elementos naturais de onde emanariam as causas para os efeitos, e que esteja
separado de complexos culturais ou cosmológicos. Nesse sentido, estamos perseguindo
uma compreensão para a multiplicidade potente do tabaco que busque reconstituir as
diversas relações que ele estabelece com outros elementos e entes pertencentes aos
cosmos.
Tentemos pensar essa proposição a partir de casos etnográficos. Em cada vida
indígena, o tabaco parece ser empregado com vistas a criar um efeito corporal
específico. Os Matsés, por exemplo, o utilizam antes de realizar algum trabalho pesado
(como a derrubado de uma árvore). Estão em busca de fortalecimento. Em contrapartida
os jovens yawalapiti que estão em período de reclusão e irão, ao fim deste, lutar em um
grande ritual xinguano, não devem fumar, pois o tabaco enfraquece-os.
Tentemos entender, a partir de uma compreensão mais geral da cosmologia
desses grupos como o tabaco pode produzir tais efeitos contraditórios. Comecemos
pelos Matsés. O consumo cotidiano do tabaco está ligado, entre eles, à concepção que
atribuem a seus corpos, a de que são constituídos através de um processo contínuo no
curso da vida durante o qual os homens precisam crescer e se fortalecer por meio do
consumo diário de algumas substâncias capazes de tornarem seus corpos fortes e
maduros, ou também “amargos e duros”. De acordo com a descrição de Matos (2014),
“[a] mais cotidiana das práticas de preparação do corpo masculino é o uso do rapé”, o
qual serve rotineiramente à para “fortalece-lo e amadurece-lo” (p.86). Outras
substâncias “amargas” como a picada da formiga tucandeira (Paraponera clavata),
urtiga, “escoriações com ferrão de escorpião”, e veneno de sapo (Phyllomedusa bicolor)
também são utilizadas com esse propósito (p.87). Além disso, quando aspirado, o rapé
tem a capacidade de ser um vetor de sinan, que “enquanto uma qualidade masculina se
traduz em coragem, habilidade no manejo do arco e flecha, conhecimento a respeito das
técnicas de caça” (p.91). Os homens mais velhos que possuem mais sinan que os mais
novos, são capazes de transmiti-lo através do sopro rapé. A partir dessa concepção
pode-se entender a preferência que estes têm de receber o pó de tabaco daqueles. Porém,
todos podem se auto distribuir sinan através do uso individual do rapé ou do veneno de
sapo (outra substância amarga considerada vetora) (MATOS,
Passemos agora ao caso yawalapiti. Ao cair da noite, os homens adultos
geralmente fumam na praça da aldeia. O tabaco (assim como a pimenta, dos quais
dizem ser kahiúli – dolorosos e ardidos) é uma substância apropriada à dieta dos xamãs,
e considerada a predileta dos espíritos os quais apreciam o seu perfume örö. Porém há
um tipo de espírito cujo cheiro do tabaco aborrece, é o ataya wököti – justamente o
espírito antropomorfo que é patrono dos eméticos (ataya). Por isso os homens jovens
que passam por longos períodos reclusos, ingerindo muitas substâncias vomitivas, e que
praticam as lutas nos rituais xinguanos não podem fumar, pois o tabaco os enfraquece,
já que seu cheiro tem o poder de espantar os espíritos auxiliares que atuam junto aos
reclusos (Viveiros de Castro 2012, p.59).
- fabricação e metamorfose dos corpos -
Outra problemática que parece depreender dos dados etnográficos sobre o tabaco
são as variadas relações desta planta com os processos de constituição e transformação
dos corpos ameríndios. Na década de 1970, os antropólogos americanistas colocaram-se
a tarefa de desenvolver um idioma próprio para descrever as sociedades ameríndias,
argumentando sobre a insuficiência do vocabulário desenvolvido até então,
principalmente forjado a partir do estudo das sociedades africanas e melanésias (Kaplan,
1977).
Neste intuito, uma das proposições que mais contribuíram para colocar a
disciplina nessa direção mais autoral e criativa foi elaborada por Seeger et. al (1979) e
sugeria que um dos aspectos originais dos ameríndios eram suas elaborações sobre a
noção de pessoa, a qual vinha a se constituir como “entidade simbólica” central mais
importante que a noção de grupo. O argumento se baseava na percepção de que as
etnografias que vinham sendo publicadas eram repletas de descrições sobre “teorias de
concepção, teorias de doenças, papel dos fluídos corporais no simbolismo geral da
sociedade, proibições alimentares, ornamentação corporal” e que “estas ideologias da
corporalidade” eram acionadas para dar conta da estrutura social destes grupos, já que
os conceitos importados de outras sociedades como o “de linhagem, aliança, grupos
corporados” se mostravam insuficientes (SEEGER et. al. 1979, p.3). A ideia é que
vários aspectos da vida social e da cosmologia destes grupos podiam ser mais bem
percebidos colocando-se atenção nos processos de elaboração do corpo a que estes
grupos dedicavam tempo e conceitualizações.
Viveiros de Castro (2012 [2002]) argumentou que uma necessidade central dos
Yawalapiti era submeter seus corpos a processos contínuos de fabricação. Tais
processos iniciavam-se na gestação e prosseguiam durante passagens críticas do ciclo
vital, como a puberdade, a couvade, doença, luto, iniciação xamanística. Esta tarefa vital
de submeter os corpos a mudanças periódicas seria auxiliada pelo uso de várias
substâncias. Gostaria de destacar o papel que o tabaco adquire neste propósito, atuando,
assim como os eméticos, nos momentos pós-concepcionais de fabricação, ou melhor, de
mudança dos corpos. Mais especificamente, o tabaco irá atuar num “momento
extraordinário de transição sociocósmica”, na elaboração do corpo xamânico. Para se
tornar xamã um homem yawalapiti tem que ser escolhido pelos espíritos. Essa escolha
se manifesta em uma doença que acomete o jovem, o qual a partir de então será
submetido à reclusão iniciática. No período de duração desta, o homem não deve ter
relações sexuais, nem comer peixe. Sua dieta deve consistir basicamente do fumo
continuado de tabaco (e também do consumo de pimenta), o qual será capaz de
“engordá-lo” (VIVEIROS DE CASTRO 2012).
Os Aweti realizam um processo de iniciação ao xamanismo semelhante ao dos
Yawalapiti, durante os quais os corpos dos homens que foram escolhidos por um
espírito, ou que desejam se tornar xamãs por conta própria, também são submetidos à
ação do tabaco. Antes propriamente da reclusão iniciática, o jovem começa a fumar
tabaco diariamente nas rodas de xamãs que se reúnem ao fim da tarde. Determinado dia,
quando se leva a cabo propriamente a iniciação (a qual inclui outras etapas além das que
tratarei aqui), o jovem recebe de seu iniciador uma quantidade grande de cigarros que
deve fumar durante toda a noite. Bem ao início da manhã seguinte, ele é buscado para
tomar um banho. Extremamente intoxicado com o tabaco que fumou, com os lábios e a
língua queimados, seu corpo “fica leve, an ipotyjka, e por isso tem dificuldade para
andar, mal sente seus pés no chão” (FIGUEIREDO 2010, p.238). Após dormir um
pouco e fazer uma refeição com peixe e pimenta, ele deve fumar outro cigarro e, desta
vez, engolir a fumaça (FIGUEIREDO 2010).
A partir de então deve cumprir abstinência sexual e não pode mais comer doces,
entrando em um período de reclusão em que se diz estar sendo engordado pelo tabaco,
ao engolir sua fumaça quente. O dono da espécie do tabaco (itat‟yta) é “que aparece
como agente de transformação do recluso”. Os Aweti dizem: o tabaco “faz nosso corpo,
é fazedor de gente” (FIGUEIREDO 2010, p.239). Se o recluso deixa de observar as
regras a que está submetido, desagradando com isso o dono do tabaco, poderá sofrer
com a perda de mobilidade e de sua “capacidade de ação no mundo”, podendo até
mesmo morrer. É que a nova pessoa, não pode sobreviver à perda das relações (tanto
com o dono do tabaco, quanto com seu espírito auxiliar que passa a habitar sua
garganta), constituídas no processo de fabricação (FIGUEIREDO 2010).
Se agora os indígenas o utilizam para elaborar seus corpos, mais particularmente
o do xamã, outrora ele pode mesmo gerar os humanos. Um mito yawalapiti conta que o
demiurgo Kwamuty deu vida aos primeiros humanos ao soprar a fumaça de tabaco
sobre toras de pau, “que se encontravam dentro de um gabinete de reclusão, criando
com esse ato as primeiras mulheres. Entre estas a mulher que deu vida aos gêmeos Sol e
Lua, “protótipos e autores da humanidade atual (p.74)” (VIVEIROS DE CASTRO
2012). Tal fato levou Viveiros de Castro a sugerir que o tabaco “parece ser o
equivalente e a contrapartida espiritual do esperma” – substância tida como a
responsável por gerar os humanos atualmente (2012, p.59).
Figueiredo (2010) nos conta do feito dos gêmeos demiurgos aweti, Kwat e Taty
que eram filhos do chefe das onças Itsumaret com Tanumakalu – a mulher-pau criada
por Watsutni (um sujeito que vivia tentando criar gente a partir da madeira). Os irmãos
não chegam a conhecer a mãe, pois esta é assassinada por sua sogra onça antes que
desse à luz aos meninos. Ao descobrirem que a mãe fora morta (informados pela ema
Kujatiriká) eles decidem se vingar. Matam a avô. Em seguida, para por fim à vida do
pai, confeccionam flechas e as transformam em madeiras. O meio mágico da
transformação é a fumaça de tabaco. As flechas-gente invadem a aldeia das onças e
matam-nas. Essas flechas-gente são a origem dos humanos atuais (p.28-30).
Outros mitos vão dizer que o tabaco pode mais. Em alguns episódios, esta
espécie vegetal é utilizada para metamorfosear os corpos humanos. Comentando a
etnografia yawalapiti, Viveiros de Castro (2012) distinguiu a fabricação dos corpos da
metamorfose. Enquanto a primeira elaboração é desejada e, portanto produzida
sistematicamente pelos indígenas, a segunda é um processo ao qual os humanos estão
sujeitos, pela ação de espíritos. Se no caso yawalapiti, as pessoas são acometidas pela
metamorfose geralmente quando estão sós e fora do espaço da aldeia, no contexto
Araweté uma parcela dos humanos foi transformada em animais justo quando estavam
reunidas em ritual. Conta o mito que uma onça monstruosa matou a mãe de um ser
divino, o deus-onça. Querendo vingança a divindade transforma uma parcela dos
humanos, que se embebedavam em uma festa de cauim, em animais, por intermédio do
chocalho e do tabaco (VIVEIROS DE CASTRO 1987 p.224).
Lévi-Strauss (2004a) também nos apresenta a outro mito tupi em que o tabaco é
o meio mágico da transformação dos humanos em animal. Entre os Mundurucu há o
seguinte história: em uma temporada de caça na floresta enquanto os homens caçavam
caititu (o único animal de pelo que conheciam), o demiurgo Karusakaibe caçava
inhambus (uma espécie de ave que “dá um caldo amargo” ). Desejoso de comer a carne
de caititu, o demiurgo manda seu filho ao acampamento de suas irmãs para trocar as
aves que caçara pelos porcos dos cunhados. Certo dia, as tias do menino decidem não
mais lhe dar a carne, atirando-lhe apenas as penas e os pelos do animal. O demiurgo
então prepara uma vingança em resposta à vergonha que o filho passara. Manda que
este cerque o acampamento com uma muralha de penas na forma de uma abóbada e
lança em seu interior fumaça de tabaco. Imediatamente todos que estavam dentro são
transformados em porcos do mato. (LEVI-STRAUSS 2004a, p.111).
Em outros mitos tupis de transformação dos humanos em porcos do mato (cuja
armação é idêntica ao mito mundurucu mencionado) o tabaco também seria, de acordo
com a análise de Lévi-Strauss (2004b), o termo pertinente da transformação, ainda que
nas histórias apareça sob variantes mais fracas. No mito tenetehara, o demiurgo utiliza
fumaça de penas, e no mito kayapó é um talismã de penas e espinhos. Outro mito kariri
viria confirmar essa ordenação dos meios mágicos que o autor propõe. Neste, o
demiurgo atendendo ao pedido de homens gulosos, que lhe pediam insistentemente
caça, leva as crianças para o céu e as transforma em porquinhos. A partir de então, os
homens tem porcos-do-mato para caçar, mas ficam privados da presença do demiurgo
que se aloja no céu deixando na terra o tabaco. Na sequência proposta pelo autor é na
versão kariri que o tabaco aparece manifestando sua forma mais forte: “em vez de mera
substância mágica, torna-se a hipóstase de uma divindade”, numa série em que a
“fumaça do tabaco é a forma fraca do tabaco personificado; a fumaça das penas, a forma
fraca da fumaça de tabaco; e o talismã de penas é a forma fraca da fumaça destas”
(p.19).
Viveiros de Castro (1987) irá argumentar que o tabaco é “um conversor
ontológico de mão dupla” (p.533), efetuando passagens entre a natureza, a cultura, e a
sobrenatureza, já que tabaco também é o meio através dos quais os humanos podem se
transformar em deuses. Do tabaco os Araweté dizem que lhes tira a fome, os afina, os
torna transparentes e leves. E ter um corpo fino, translúcido e leve, entre eles, é a
condição para o contato com as divindades. Mas também é o estado de um corpo “sem
alma, o de um morto-vivo, uma sombra” (p.480), por isso os humanos devem estar
atentos às ações e os sentimentos (como a tristeza e a saudade) que podem torna-lhes
diáfanos. Mas “se a leveza é um perigo constante é porque é um desejo latente; a alma
Araweté é essencialmente leve e anseia por subir” (p.481). Por isso, apesar de todo
perigo, há uma atração pelos Araweté por experiências que dizem os matar, muitas
vezes, durante a vida, como a embriaguez de cauim e a narcose de tabaco. “Eles gostam
de morrer dessas coisas” (p.532). Mas se o tabaco os mata, também vivifica, atuando
também como um “conversor ontológico morte-vida, vida-morte”. É um dos principais
instrumentos que os xamãs utilizam para o tratamento de doentes, além de ser a sua
fumaça aquilo que os deuses utilizam para ressuscitar os mortos no céu (p.533).
Se a pessoa Araweté teme seu estado corporal de leveza provocado (entre outros
motivos) pela intoxicação pelo tabaco, a pessoa Guarani, por exemplo, o deseja. Já que
esta é uma condição para que se atinja aguyjé e possa se deslocar até a um sítio celeste
sem passar pela morte, a “terra sem mal” na descrição de H. Clastres (1978).
Essas variações que vemos surgir na capacidade que o tabaco tem de atuar em
distintos processos de elaboração dos corpos pode ser melhor compreendida se nos
afastarmos da noção de corpo formulada pelo pensamento moderno. Lima (2002) irá
propor que a noção Juruna se distingue da proposição ocidental segundo a qual o corpo
é algo que tem uma “existência própria, física ou objetiva e por isso independente das
relações que mantém com outros corpos”. Para eles, “os corpos não seriam substâncias,
mas relações e posições, ou ainda perspectivas” (p.3). Seguindo a trilha dessa
concepção juruna, os efeitos que o tabaco produz nos humanos, tão variados, de acordo
com os registros etnográficos que aqui brevemente apresentamos, podem ser também
compreendidos se pensarmos em termos de afecção: a capacidade, de acordo com uma
abordagem spinozista, que os corpos tem de afetarem uns aos outros. Dessa forma, a
potencialidade que o tabaco tem de pode produzir efeitos tão diferentes, derivaria não
apenas das variações relativas à maneira do uso ou à quantidade, mas também porque
está associado a entes distintos em cada cosmologia, atualizando relações próprias.
Poderíamos finalizar dizendo, então, que para melhor compreendermos toda a potência
que o tabaco possui nas vidas indígenas, é preciso que busquemos reconstituir os
vetores de sua força a partir de distintos planos, alargando nossas abordagens
naturalistas e substancialistas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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