eros e psiqué, o mito sob um olhar

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    EROS E PSIQU: O MITO SOB UM OLHAR EXISTENCIAL E HUMANISTA

    Patrick Wagner de Azevedo Mestre em Cognio e Linguagem - UENF [email protected] Resumo: Neste trabalho, procurou-se identificar como o mito de Eros e Psiqu pode ser visto como uma metfora do rito de passagem a que pessoas que ficaram cegas, podem estar sujeitas. Psiqu era uma linda jovem grega, to linda que provocou a ira de Afrodite. Para punir Psiqu, uma mortal to bela quanto ela, Afrodite determina que seu filho Eros faa com que Psiqu se apaixone por uma peonhenta serpente. Ao encontrar Psiqu,Eros se fere de amor e a leva para seu palcio de sonhos. Apenas uma lei deve ser cumprida: Psiqu no pode ver Eros. Eles se amam, mas sem que haja luz. Psiqu desobedece e, com uma lmpada, ilumina o rosto de Eros que, percebendo a traio, vai-se embora. Para recuperar seu amor, Psiqu precisa se submeter a quatro provas que Afrodite lhe prope. A mais difcil dentre as provas a que faz Psiqu ir ao Hades e buscar um pouco de beleza imortal de Percfone dentro de uma caixinha, sem abr-la. Pessoas com privao visual precisam ressignificar as vivncias que se seguiram perda sensorial. A teoria existencial pode contribuir para apontar as ricas possibilidades de reencontro de sentidos ou a criao de novos significados para a existncia a partir de diferentes modalidades sensoriais. Desse modo, esse ensaio busca compreender a mitologia como manancial de significados para as infindveis possibilidades vivenciais humanas. Palavras-chave: Eros, Psiqu, Cegueira, Sentido. Abstract: The present work aims to identify how the myth of Eros and Psyche can be seen as a methafor to the on-going passage rite on which people who got blind can be subjected. Psyche was a gracious young greek lady, so beautiful she evoked Afrodiths anger. In order to punish Psyche, a mere mortal, so beautiful as her, Afrodith orders her son Eros that Psyche falls in love with a poisonous snake.Upon meeting Psyche, Eros is speared with love and take her to his dreams palace. Only one rule should be observed: Psyche cannot see Eros. They make love, but only in the absence of light. Psyche disobeys and, with the use of a light bulb, sheds light upon Eros face, who noticing her treason, goes away. In order to reconcile and have her passionate again, Psyche needs to undergo four tasks imposed by Afrodith. The harder is that one that makes Psyche go to Hades and collect in a little box a bit of the immortal beauty of Persephone, keeping the box closed. People with visual impairments need to resignify those life experiences that took place after that sense lost. The existential theory can contribute to show the rich possibilities of sense reencounters or to the creation of new meanings to the existence, from different sense aspects. Therefor, this essay aims to understand mithology as a source of infinite meanings to the unending human living possibilities. Keywords: Eros, Psyche,Blindness,Senses.

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    1 INTRODUO

    Pretende-se, neste trabalho, apontar para possveis significados que auxiliem na compreenso de vivncias prprias de quem sofreu uma perda sensorial. Assim, a mitologia pode ser considerada como reservatrio universal de sentidos que podem, a qualquer tempo, ser encontrados. Eros e Psiqu representam, neste ensaio, um verdadeiro rito de passagem ao qual indivduos que sofreram privao visual podem ser submetidos. Entende-se rito de passagem como a possibilidade humana de ressignificar experincias vivenciais. De incio, necessrio definir-se de que modo entendemos Eros e Psiqu. O nome Psiqu deriva da palavra psykh e do verbo psykhein que em grego significa soprar, respirar, tanto no sentido de sopro, quanto no de princpio vital (Brando, 1988) Para Homero, em Aroux (1990), Psiqu, ou psykh (de psukho: sopro) uma fora vital expirada pelos homens na hora da morte. A idia de uma psykh como uma entidade autnoma, superior e independente do soma, sede dos pensamentos, das emoes, das fantasias, dos sonhos e dos desejos, s aparecer com Pitgoras. Em Scrates, identificada ao prprio indivduo, a Psiqu passa a representar o aspecto mais essencial, imaterial e indissolvel do homem, a sua alma. Eros uma divindade do Panteo Grego. Inicialmente, Eros representa a fora abstrata do desejo, a fora de atrao que possibilita a reproduo. ele quem assegura a coeso e a perenidade do Universo. Eros tambm pode ser entendido como a personificao do amor e seu nome tem como raiz etimolgica, em grego, o vocbulo eros do verbo rasthai desejar ardentemente. Eros, portanto, significa o desejo dos sentidos em indo-europeu, o elemento (e) rem simboliza comprazer-se, deleitar-se; Em snscrito, o verbo rama - ter prazer em estar num lugar (Brando, 1988). De que modo cegueira, amor e alma se articulam? De quais modos uma limitao sensorial condiciona a vida cognitivo-emocional de um indivduo? Tentemos buscar no mito algumas direes possveis que levem a compreenso de significados para as infindveis possibilidades vivenciais humanas. Alm disso, mais especificamente, considerando-se o aparecimento do mundo de distintas perspectivas sensoriais reencontrar o dasein como ser lanado e como ser para a abertura. 2 CAPTULO I O OLHAR EXISTENCIAL HUMANISTA

    Agora, ingressemos em temas filosficos. Por sinal, toda psicologia existencial est fundada na filosofia. Desse modo, importante comearmos pela fenomenologia. A fenomenologia uma filosofia, desenvolvida especialmente por Husserl e por Heidegger, que tem como proposta fundamental fazer uma reflexo a partir do iderio metafsico que entende que todos os entes possuem uma essncia ou verdade sobre si mesmo, de cunho imutvel e absoluto (Critelli, 2006). Nesse sentido, todas as coisas, todos os seres, estariam sujeitos a uma eterna dicotomia: aparncia e essncia. Assim sendo, cabe ao sujeito do conhecimento encontrar mtodos eficazes que o permitam descobrir e revelar o que realmente a coisa ou ser que se apresenta a sua conscincia.

    Veja-se que h um pressuposto bsico nessa filosofia: existe um mundo objetivo, pr-existente conscincia, esta s deve ter o trabalho de no se iludir e buscar sempre a

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    "Verdade" sobre tudo que se apresenta aos sentidos. Esse modo de pensar, por sinal, permeia toda a cincia natural e tambm influi fortemente nas cincias humanas. A fenomenologia, por outro lado, nos d conta de que pode ser um engano crer-se que exista a referida dicotomia entre aparncia e essncia, ou, entre ente e ser. De acordo com este modo de pensar, o ente uma expresso do ser (Feijoo, 2000). A conseqncia de tal afirmao nos leva a considerar que no se pode supor a existncia prvia do mundo ou a coisa em si, tudo est articulado com a conscincia e a partir de sua intencionalidade que as coisas e os seres aparecem e existem. Assim, podemos dizer que conscincia mundo sentido so elementos indissociveis. A partir de tais consideraes, v-se que no h o mundo em si, portanto a desejada imutabilidade essencial e verdadeira das coisas e dos seres jamais alcanada e o que se tem um fluir de significaes que se constroem a partir das recprocas configuraes de conscincia / mundo ou do ser no mundo. Pode-se dizer que o ser no mundo no funda os significados em nenhum valor ou essncia prvios, ou seja, por detrs das significaes construdas, o que h o nada (Critelli, 2006). Tal constatao produz no ser a angstia, o desespero ou a nusea, conforme estivermos tratando de Heidegger, Kierkegaard ou Sartre. Nesse ponto importante esclarecer que o objetivo do modo de pensar metafsico est em se formatar um conceito ou representao que contenha a essncia imutvel do objeto investigado. V-se que o foco est no conceito ou representao e no na experincia. A experincia, a vivncia, o prprio existir humano e este, a vida, que nos permite perceber o sentido das coisas mesmas (Merleau-Ponty, 1999). O existir necessariamente fluido, mutante, e justamente esta caracterstica que nos vai apresentando as infindveis facetas e possibilidades de desvelamento das coisas e dos seres. O desvelamento de um significado possvel das coisas vai se formando pelos modos que o homem encontra de lidar com elas. Mas, no apenas isso, o significado se forma tambm pela articulao dos modos que o homem engendra de lidar com as coisas e com os outros homens e como estes ltimos tambm lidam com as mesmas coisas (Merleau-Ponty, 1999).

    Aps falarmos um pouco da fenomenologia, voltemos nossa ateno para o existencialismo e para o humanismo. O termo existencialismo vem de uma corrente filosfica que floresceu, sobretudo, no sculo XX, mas que tem suas origens em Kierkegaard, no sculo XIX. O fundamento desta abordagem terica que a existncia precede a essncia (Penha, 2001). O que significa tal afirmao? Significa, sobretudo, que o homem, em particular, no est sujeito a nenhum tipo de essncia. Essncia entendida como um conjunto de caractersticas de personalidade, fisiolgicas, sociais ou de qualquer natureza, que indiquem definitivamente o que o homem. Este no como uma cadeira, por exemplo, que possui uma essncia, um modo de ser definitivo, imutvel que jamais pode ser alterado. O homem se define, se faz e refaz em sua existncia, ou seja, em suas vivncias cotidianas que ele pode definir-se. Em outras palavras, diria que a vida, o seguir da vida e das experincias que indicam ao homem o que ele e, o mais importante, o que ele no e pode vir a ser. O vir a ser aspecto fundamental da teoria existencial humanista. Neste sentido, quanto ao termo humanista, pode -se dizer que o homem o real artfice de si mesmo, ele que pode se definir e ser o projeto de si mesmo. Ser o projeto de si mesmo tem como pr-requisito fundamental a liberdade. S como um ser livre o homem pode recriar-se, ressignificar sua existncia. Do que deve libertar-se o homem? O homem, para o existencialismo humanista, no est sujeito a determinantes biolgicos, sociais, econmicos, culturais ou de qualquer outra ordem. No se duvida que tais circunstncias interferem, por vezes profundamente, na vida do homem, mas este, em ltima instncia, livre para fazer escolhas. Escolhas estas que podem sofrer condicionamentos scio histricos,mas que no deixam de estar a disposio do homem. Existncia, eis outro termo importante para a teoria na qual este trabalho est baseado. A existncia entendida como o sentido da vida (Pompia e

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    Sapienza, 2004). Sim, o sentido da vida. Enquanto a medicina trata da manuteno da prpria vida, a psicologia existencial busca auxiliar o indivduo a encontrar o sentido de sua vida. Para humanistas como Victor Frank (1991), o sentido o mais importante a ser buscado em nossa existncia, pois ele pode fazer com que possamos enfrentar todos os percalos de uma vida, por vezes, cheia de dificuldades. importante ter-se em mente que o humanismo existencial prope que o homem construtor do mundo (Augras,1986). A partir de uma abordagem heideggeriana, constata-se que o ser -no -mundo (dasein) um todo indivisvel e que esto sempre interagindo e se configurando mutuamente. O mundo no pr-dado de modo definitivo, ele est em aberto, como o ser, e essa constatao aponta para o por vir, elemento ainda em termos de possibilidade, e que conforme a direo simblica adotada pelo dasein, o mundo estar sendo, junto com o ser, reconstrudo e ressignificado. Assim, fica explcito que a significao o modo que se apresenta ao ser para construir o mundo. A cegueira, em especial, pode ser vista como uma perda gigantesca e definitiva que limita o dasein por toda sua existncia, ou, pode ser significada como campo de novas vivncias e at mesmo de novas oportunidades. Obviamente, que o dasein, como ser para a abertura, pode significar de inmeras outras maneiras suas vivncias. A teoria existencial permite a abertura do ser e do mundo a incrveis possibilidades de significao, fato que elimina o aprisionamento do que tomado como normal, do adequado, do ajustamento e da previsibilidade montona de uma existncia previamente determinada e configurada por entidades extra-humanas como a fisiologia, o social, o divino. Inmeros significados podem ser descobertos, recriados, reinventados, levando a crer que o homem pode no ser prisioneiro de significados disponveis que, por muitas vezes, esto engendrados com o poder constitudo e com a autoridade de grupos dominantes. Contudo, difcil ao dasein enfrentar significados disponveis e consolidados em sua poca. Para tal enfrentamento, por vezes, faz-se necessrio um rito de passagem, em que velhas crenas, dogmas, ou seja, significados disponveis, so questionados e outros significados assumem seu lugar. O sofrimento pode ser absolutamente necessrio para que tal mudana se efetive e a histria seja construda. Nesse ponto, relevante tratar-se de um tema que auxilia a compreenso do sentido do que pretendemos explicitar: o papel do outro. O outro, para a teoria existencial humanista, pertence ao campo de possibilidades do ser. Desse modo, o dasein quando identifica-se, confronta seus limites, est diante do que ele no . O ser e o nada se articulam no dasein ( Augras,1986). O dasein apresenta-se como frtil campo de possibilidades de identificao, e a abertura para a alteridade inserta no prprio mago do ser que propicia a reorientao do dasein para novos significados de si e do mundo. 3 CAPTULO II O MITO Primeira Parte Numa certa cidade havia um rei que tinha trs lindas filhas. As duas primeiras eram de fato muito bonitas, mas a terceira, caula, era muito mais que bonita. Era to bela que sua aparncia fsica desafiava a beleza imortal da deusa Afrodite. Muitos acreditavam ser Psiqu a personificao da prpria Afrodite enquanto jovem. Em decorrncia, os templos de Afrodite comearam a esvaziar, enquanto Psiqu tornava-se objeto de adorao pblica. Venerada por todos que a tinham visto, Psiqu tornou-se um estorvo e uma rival para Afrodite. Totalmente insatisfeita com a situao criada pela estonteante beleza da mortal, Afrodite articula uma cruel vingana que depende da colaborao de um

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    promscuo e corruptor da moral pblica, seu amado e tambm belssimo filho, Eros. Lanando mo de seus sobrenaturais poderes, de flechas envenenadas de paixo, ele faria Psiqu se apaixonar loucamente pelo mais horrendo e asqueroso de todos os seres, uma serpente peonhenta que vivia enroscada em seus mil anis no alto de uma montanha. O pai de Psiqu, j prevendo que a fama e o prestgio de sua filha despertariam a fria de Afrodite, dirige-se ao Orculo de Apolo em Mileto, onde informado acerca dos planos de vingana de Afrodite. Obediente profecia, Psiqu dirige-se ao alto do penhasco para encontrar-se com o noivo / monstro. No meio do caminho encontra-se com Eros que a espera para desempenhar a misso que fora incumbido por sua me, a de atingir Psiqu com suas flechas envenenadas e certeiras de paixo. Entretanto, no momento em que a v, Eros desnorteia-se com sua incrvel beleza e acaba ferindo-se acidentalmente em suas prprias flechas. No mesmo instante, sente-se tomado por uma intensa e irremedivel paixo pela bela mortal. Eros, com a ajuda do vento Zfiro, a rapta para o seu suntuoso castelo de sonhos. O castelo, feito de ouro, prata e pedras preciosas, era cercado por belssimos bosques e lagos. Naquela majestosa construo onrica, protegidos do mundo, Eros e Psiqu estabelecem os mais profundos e luxuriantes contatos amorosos. Na verdade, o nico sentimento bem vindo naquele lugar envolvido por espessas brumas era o prazer. As brumas que todas as noites caam sobre o castelo, impediam que Psiqu visse e identificasse o mais desejvel de todos os seres, o amante / marido. Desde a sua chegada, Eros determinou que ela no o veria. Durante os dias, Psiqu era acompanhada por inmeras Vozes que a atendiam em todos os seus desejos, salvo revelar a identidade de seu amante noturno. Todas as noites, impreterivelmente, surgindo do nada, ele adentrava em seu espaoso e rico quarto para uma sesso de prazeres noturnos e, ao amanhecer, aos primeiros raios de sol, desaparecia como havia chegado, pela janela. Inicialmente, Psiqu no questionou aquela presena de hora marcada e a aguardava ansiosamente ao cair da tarde. Os voluptuosos carinhos, abraos e beijos eram tantos e to intensos que ela se sentia plenamente realizada. Contudo, como em todo Paraso,como diz Brando (1988), no falta uma serpente, o tempo e a rotina fazem Psiqu se queixar da falta da famlia e, principalmente, de suas irms. Eros, inicialmente contrrio a tal visita, acaba cedendo aos intensos e incessantes apelos de sua amada e consente que as irms venham ao encontro dela no seu castelo de sonhos. Logo na primeira visita, tomadas pela inveja, elas questionam Psiqu a respeito da identidade de seu amante e protetor. Psiqu, que desconhece totalmente a identidade do seu parceiro sexual, percebe os sentimentos que desperta em suas irms e tenta ludibri-las com mentiras, caindo em contradio. As invejosas irms, no suportando a viso da opulncia e do prazer que cercava sua irm caula, maldosamente incutem em Psiqu o veneno da dvida. Enfatizando o fato de Psiqu nunca ter visto o seu amante, a questionam sobre a possibilidade de ser ele a tal serpente prometida, um monstro peonhento. Lembrando-se da fala do marido que lhe havia advertido, que no ousasse v-lo ou desvendar a sua identidade, pois tal fato ocasionaria no s o seu desaparecimento, mas tambm que o fruto de seu relacionamento (Psiqu estava grvida) no mais seria um imortal, Psiqu desespera-se. Questes a atormentam: o velamento, a cegueira noturna que lhe era imposta, seria para ocultar o fato de ser o seu amante o tal monstro? Mas, e o prazer? E todo gozo at ento sentido? Seria um monstro capaz de proporcionar tanto e to intenso deleite? Por fim, as irms propem-lhe um plano maquiavlico que Psique ingenuamente aceita. noite, quando Eros, exausto de tanto am-la, se entregasse nos braos de Morfeu, Psiqu, previamente armada com uma lamparina para iluminar-lhe o rosto e uma faca para defender-se, caso ele a atacasse, desvendaria, finalmente, a identidade do amante. Depois de muito sofrimento e dvidas, Psique, atormentada pelos apelos de suas maldosas irms, resolve pr o plano em execuo. Entretanto, no instante em que ilumina o rosto do amado, Psiqu depara-se

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    com Eros, o mais belo de todos os deuses. Trmula de medo, arrependimento e, num mpeto de paixo, Psique beija incessantemente o amado. Louca de paixo e esquecida de que traz nas mos, uma lamparina incandescente, deixa escorrer algumas gotas de leo fervente pelo ombro de Eros. Acordado com a dor da queimadura, ele constata a traio. Sem dizer uma s palavra, Eros desprende-se dos abraos de Psiqu e desaparece pela janela. 4 CAPTULO III UMA LEITURA DA PRIMEIRA PARTE DO MITO Nessa primeira fase, so ntidas as mudanas de Psiqu em sua interao com o mundo. Inicialmente, Psiqu apenas um objeto de contemplao para ser visto e adorado como uma deusa grega. Psiqu no era especialmente amada, tocada, nem ouvida, mas, sobretudo, vista, contemplada. Evidencia-se aqui a preponderncia dos processos representacionais visuais nos contatos scio/interacionais daquela poca. Tanto pode ser este o sentido do mito que, neste momento, o pior que podia acontecer a Psiqu era estar destinada a casar-se com um "ser horrendo". Afrodite, consciente dos padres representacionais de seu tempo, escolhe a dedo o castigo de Psiqu: uni-la ao mais feio e horripilante de todos os seres. Embora o castigo no tenha sado exatamente como pretendido, pois Psiqu no se uniu a serpente peonhenta, a punio ao visual permaneceu, uma vez que ela estava proibida de ver o ser amado. Psiqu raptada por Eros do mundo externo e isolada em um castelo de sonhos onde ningum mais a v. Ali, ela , durante o dia, guiada apenas por Vozes e, noite, quando o seu castelo de sonhos envolvido por espessas brumas, s experimenta sensaes tteis. Assim, cega para o mundo, sem ver e no mais se sentir vista, Psiqu aprende a receber e a dar prazer privilegiando outros sentidos. Nesta fase do mito, toda a relao se estabelece noite, com Eros, que no se deixa ver, por meio de representaes e sensaes tteis e auditivas. So inmeros os abraos, beijos, carcias e orgasmos. O carter at ento abstrato, etreo, virtual e contemplativo de Psiqu substitudo por um carter bem mais concreto, palpvel, carnal e sensual. Entretanto, sombras de um passado marcadamente visual ressurgem na presena invejosa de suas irms. A inveja um sentimento predominantemente visual (Azevedo, 2004). Trata-se de uma desmedida, um excesso de informao que s pode ser fornecido pelo carter simultneo da visualidade. Inveja-se, principalmente, atravs do olhar. As irms chegam e avaliam por meio de olhadelas desmedidas a riqueza existencial da irm caula. No suportam o sentimento que a sua supervalorizada viso desperta em suas doentias mentes. Invejam. Elas no entendem nada do que vem, porque comparam. Comparam o produto de sua supervalorizada experincia visual com suas demais vivncias sensoriais e, perplexas, notam que Psique tem prazer e feliz sem as representaes visuais de seu antigo mundo. Mundo este de onde, pensam elas, s se extrai gozo da luz. Imersas na desmedida visual ou na inveja, elas no economizam esforos para destruir a viso daquilo que tanto mal lhes faz, o pretenso bem estar da irm caula. Sem perda de tempo, dedicam-se a convencer Psiqu dos riscos que corre na presente situao. Segundo as irms, Psiqu deveria abandonar o mais depressa possvel o castelo de sonhos, o amante noturno, e voltar antiga vida. Afinal, no podia existir prazer, amor e gozo num mundo de trevas. Desprovida da viso, Psiqu no poderia estar certa da identidade do seu amante. Tudo que no era visual era, no mnimo, muito arriscado e

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    perigoso. Ela, ento, que nunca tinha pensado na possibilidade do amante ser o monstro que lhe fora designado por Afrodite, passa a conviver com esta dvida. Assim, a vivncia desvalorizada em favor da representao, em favor de velhos conceitos e preconceitos. A fala das irms a remete a uma espcie de mundo paralelo, bem diferente daquele que tinha acesso atravs das demais modalidades sensoriais. Fora alertada sobre algo que sua pele e seus ouvidos eram incapazes de detectar. Na verdade, pode-se interpretar este fato como se Psiqu houvesse sucumbido a tentao de seu antigo padro sensorial / representacional. Tomada de assalto pelo antigo mundo cognitivo visualmente marcado, ela fortalece-se para trair o seu verdadeiro amor. Mas, no momento em que v a divina face de Eros, ela se d conta de que traiu no s o amante, mas a si mesma, menosprezando os seus demais sentidos. E, mais do que isso, promoveu uma terrvel desordem e confuso na incipiente reorganizao cognitiva representacional que j estava em curso. A predominncia visual de sua antiga vida no era melhor do que a que experimentou desde o momento em que Eros a toma nos braos e a conduz para o seu palcio de sonhos. Aquela era uma vida fria e distante, sem amor, sem palavras, sem tato, braos e abraos, sem pele e sem afeto. Eros vai embora, porque de alguma forma almejava prazeres mais carnais, tteis e sensuais do que os, at ento, concedidos aos deuses gregos. Eros queria, talvez, amar e ser amado como s os mortais sabiam fazer. 5 CAPTULO IV O MITO Segunda Parte Tendo perdido Eros, uma nova etapa surge na vida de Psiqu. Imersa numa tristeza sem fim, a desolada e abandonada Psiqu decide dar cabo da prpria vida, jogando-se num rio. Entretanto, o rio devolve-a para a margem. Cambaleante e sem rumo certo, ela encontra Pan. Este lhe aconselha procurar Eros. Ainda sem saber o que fazer, Psiqu vai procura de Afrodite. Ao deparar-se com a deusa, pede-lhe ajuda para recuperar o amor de Eros. Sem piedade, Afrodite derrama sobre Psiqu todos os tipos de improprios e ofensas, ordenando que uma de suas escravas, Hbito, a agarre pelos cabelos e a torture. Entregue a duas outras escravas, Inquietao e Tristeza, Psiqu mais uma vez torturada. Em seguida, Afrodite declara-lhe que para recuperar Eros ter que superar algumas provas. Certa de que Psiqu no conseguir realizar as provas propostas, Afrodite ordena-lhe separar espcie por espcie uma infinidade de gros previamente misturados: trigo, cevada, aveia, gro de bico, sementes de papoula, lentilhas etc. (Brando,1988) Todo o trabalho deveria ser feito numa s noite. Psiqu, consciente da impossibilidade de realizar tal tarefa, nem tenta. Contudo, notando o desalento da jovem, as formigas se renem em um verdadeiro peloto de trabalho e realizam a tarefa proposta. No dia seguinte, Afrodite surpreende-se com o cumprimento da prova. Mas acredita ter sido Eros o responsvel. A segunda tarefa proposta era a de colher a l dourada que crescia no dorso de selvagens e indomveis carneiros. Ciente da ferocidade e da letal mordida dos tais carneiros, a desesperada Psiqu nem tenta e, mais uma vez, joga-se no rio para morrer. Desta vez salva por um canio que lhe pede para no poluir o seu rio. Este tambm revela a Psiqu a razo da fria dos carneiros, o Sol. Durante o dia, eles se mantinham em guarda e ningum podia se aproximar, pois suas mordidas eram letais. Mas, noite, quando eles permaneciam mansos, deixavam, ao andar, tufos de l presos s rvores onde, apenas sacudindo-as,

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    Psiqu poderia recolher-lhos. Mais uma vez Afrodite creditou ao filho os mritos pela realizao da tarefa.

    O terceiro trabalho consistia em buscar um pouco da gua de uma fonte situada no alto de uma montanha. A tal fonte era protegida por dois drages. Dois rios do Hades, Cocito e Estige, nasciam dessa fonte. Psiqu, mais uma vez sentindo-se incapaz de cumprir a tarefa, nem a iniciou. Entretanto, a guia de Zeus, grata por Eros ter-lhe auxiliado no rapto de Ganimedes, decide ajudar Psiqu e, voando veloz sem se deixar atingir pelos afiados dentes dos drages, apanha a gua da fonte no jarro de cristal que Psiqu lhe dera para tal fim. De posse da gua, a jovem dirige-se Afrodite, que dessa vez credita o mrito da empreitada bruxaria e magia. A ltima tarefa deveras estranha. Psiqu deve ir at o Hades e pedir a Persfone um pouco de sua imortal beleza. Afrodite lhe havia dado uma caixinha na qual Persfone deveria deposit-la. Certa da impossibilidade de realizar tal tarefa, Psiqu dirige-se para uma torre a fim de atirar-se de l. Imaginou que morrendo poderia chegar mais rapidamente ao Hades. A certeza de que Afrodite, mais do que tudo, gostaria de v-la morta, era o que no lhe faltava. Contudo, a torre demove-a de tal propsito e a aconselha a respeito da melhor maneira de superar mais essa tarefa. Psiqu deveria dirigir-se at o cabo Tnaro no Peloponsio, de onde seguiria para o Palcio do Orco. Devia levar consigo, alm da caixinha, dois bolos na boca e um bolo de cevada e mel em cada uma de suas mos. Os bolos seriam para pagar Caronte, na ida e na volta; os bolos seriam para aplacar a fome e a fria de Cerbero, o co que vigiava a entrada do Hades, na ida e na volta. A torre adverte-a tambm a respeito de um carroceiro coxo que conduz um burro, tambm coxo, e carrega lenha. Ele pediria a Psiqu que apanhasse algumas lenhas que haviam cado de sua carroa. Psiqu no deveria lhe dar ouvidos e seguir em frente. Durante a travessia do Estige, um velho afogando-se lhe pediria socorro estendendo-lhe as mos. Tambm no deveria atend-lo. Mulheres tecendo solicitariam sua ajuda e, mais uma vez, no devia ceder e muito menos ajud las. Durante o encontro com Persfone, esta lhe convidaria a sentar-se e lhe ofereceria um jantar. Psiqu se sentaria no cho e comeria apenas um pedao de po preto. Por fim, e o mais importante, Psiqu jamais deveria abrir a caixinha que trazia consigo. Tudo foi feito como o combinado, nenhuma tentao tirou a moa de seu principal objetivo. Mas, como a pior e mais grave tentao vem de dentro, Psiqu deixa-se seduzir pela ltima e insuspeita armadilha de Afrodite: abre a caixinha. E por que o faz? Imaginou que com um pouco de beleza imortal, Eros no resistiria sua viso e voltaria para ela. Entretanto, ao abrir a caixinha, Psiqu cai num profundo sono letrgico. Enquanto isso, "deitado em bero esplndido", e j recuperado de seu ferimento no ombro, Eros acompanha distncia o esforo de sua amada em t-lo de volta. Ao perceber que a amada havia cado na derradeira armadilha de sua me, sai em seu socorro. Chegando onde Psiqu se encontra, devolve o sono letrgico para a caixinha e, beijando-a carinhosamente, solicita a Zeus que advogue sua causa junto Afrodite. O deus dos deuses aceita o pedido de Eros. Psiqu , ento, levada ao Olimpo onde, aps beber a bebida dos deuses, a ambrosia, torna-se -como o seu Eros -imortal. Como toda histria, no final os dois se casam, so felizes para sempre e tm uma filha a qual denominam Volpia ou o Prazer.

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    6 CAPTULO V UMA LEITURA DA SEGUNDA PARTE DO MITO

    Logo que Eros se vai, com o ombro ferido, a primeira ao de Psiqu lanar-se ao rio e morte. Mas o rio a devolve a terra firme. A impossibilidade de manter consigo o ser amado a abala interiormente. Neste momento, surge uma grande ciso cognitiva e de subjetividade. Qual , afinal, o seu mundo? O antigo, visual, atravs do qual ela se apossava de tudo num piscar de olhos, ou, este outro, de prazeres e relaes to intensas e concretas? A incongruncia experimentada bem mais antiga. Ela deriva-se de um profundo conflito entre o que sensorialmente experimentado e o que lhe informado atravs da fala incisiva, invejosa e devastadora de suas irms. Psiqu sente-se esgarada entre dois mundos, um particular, individual, corporal fsico, sensorial, perceptvel, vivencial e um outro abstrato, virtual, englobante, magntico e conceitual, porm no experiencial. Mundo este construdo sobre verdades no suas. A angstia lhe assalta, pois hora de, por si mesma, escolher sua vida, hora de escolher o que fazer de sua prpria vida, sem seu pai, sem Eros, sem irms. Mas ento, o que fazer? Pan lhe sugere buscar Eros. Talvez esta seja a finalidade maior da prpria existncia. Dar um sentido vida. Psique quer sua harmonia interna de volta. Onde esto seu mundo cognitivo, suas percepes e sua ordem representacional? Ela vai at Afrodite. E por que Afrodite? Afrodite, como nos diz Brando (1988), tambm designada "Me Terra", "A grande me". Neste sentido, interpreta-se que Psiqu passa a interagir com as funes / representaes e valores afetivo / cognitivos mais primitivos, fundamentais e essenciais de sua personalidade. Toda a vez que se vivencia um tumulto nas relaes indivduo-mundo, programas elementares de sobrevivncia so acionados. Durante perodos de convulso interna, de caos perceptivo e cognitivo, sobrepe-se a determinao de auto-conservao e o desejo de restabelecimento da ordem aflora. Em geral, nestas situaes, uma nova ordem se instala, ou no. Da mesma forma como aconteceu com Psiqu frente s suas, aparentemente, insuperveis tarefas, os demais humanos perdem o "cho" e a perspectiva de imediato "afogamento" ocorre. A melhor prova de que a nova ordem s pode ser encontrada dentro do prprio indivduo est no fato de Psiqu ir de encontro Afrodite, a "grande me", " Alma do mundo "(Brando, 1988). Ora, diriam alguns, mas Afrodite odeia Psiqu, s quer ver a sua desgraa. Como, ento, podemos concluir que buscando Afrodite que Psiqu se safar de seu caos representacional? O melhor argumento encontra-se no fato de que todo e qualquer reencontro consigo mesmo envolve muito sofrimento, angstia extrema e dor. No toa que, quando Psiqu chega ao palcio de Afrodite entregue a duas escravas da deusa: Inquietao e Tristeza. Deduz-se da que todo e qualquer encontro com "Afrodite" perpassado por dor e desejo de morte. Entretanto, esta mesma cruel deusa quem oferece a Psiqu a oportunidade de redeno: as quatro tarefas a serem superadas. Contudo, Afrodite apenas oferece, Psiqu quem tem que decidir se seguir em frente ou no. Certamente, Afrodite duvida que Psiqu seja capaz de realizar as tais tarefas, como todo homem em crise duvida de sua capacidade de reorganizar o seu mundo interno em transio. A primeira tarefa consiste em separar, numa s noite, uma infinidade de gros misturados. Psiqu sente tal tarefa como algo intransponvel, como o seria para qualquer indivduo em fase de transio cognitiva. Limitaes sensoriais so geralmente experimentadas como um aniquilamento da velha relao homem-mundo. Entretanto, nem o mundo e nem o homem so mais os mesmos. Mas, as formigas, elemento terra, que segundo Brando (1988) simbolizam o sistema neuro-vegetativo dos homens, vm

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    em seu auxlio na realizao da tarefa. O poder de adaptao do organismo ao meio, refazendo representaes motoras e cognitivas, normalmente possvel de ser acessado. A primeira tarefa de Psiqu reflete, portanto, a capacidade inata do sistema nervoso de auto regulao biolgica, relativa a emoes primrias como o medo, por exemplo, e a manuteno da homeostase (Damsio,1996), d tempo e segurana para permitir a personalidade se rearranjar. Por outro lado, apreende-se por esta primeira tarefa que Psiqu devia utilizar no mais a viso, mas uma outra modalidade sensorial, a ttil. Como a tarefa deveria ser executada noite, s atravs do tato ela poderia ser levada a cabo. Assim, interpreta-se neste contexto, que as tarefas impostas por Afrodite a Psique faziam apelo a um rearranjo sensorial e representacional no qual a representao mental-visual estaria excluda. Na segunda tarefa, Psiqu deveria apanhar as ls dos carneiros selvagens. Novamente ela nem tenta. Atira-se no rio e salva por um canio, o qual simboliza o elemento gua. O canio, ao contrrio das formigas que realizam a tarefa proposta, diz a Psiqu como ela deve realizar o trabalho. Neste ponto, nota-se um primeiro estgio de conscincia. Assim, ela descobre que existe uma maneira melhor de agir. Ela no deve buscar a l durante o dia, mas, sim, noite. Pela primeira vez Psiqu parece dar-se conta de que pode, por si s, a partir de suas escolhas, alterar os padres de seu comportamento e de interao com o mundo. Era noite que ela deveria buscar a l. Evidencia-se a necessidade de Psiqu reaprender e reorganizar sua relao sensorial com o mundo. Essa aprendizagem passa pela experimentao de diversos modos de aparecimento do fenmeno. Durante a noite, os carneiros no eram ameaadores. O sol os fazia ferozes, mas a noite os acalmava. Psiqu aprende, ento, que sua vivncia, sua nova vivncia sensorial, pode lhe proporcionar um rico, apesar de distinto, modo de perceber e essencializar o fenmeno (Azevedo, 2004). A terceira tarefa consistia em buscar gua numa fonte no alto de uma montanha. Fonte protegida por dois drages. De fato, Psiqu no consegue subir, mas desta vez, embora pense, no desiste e nem tenta se matar. O cumprimento da tarefa anterior lhe d a intuio de que pode chegar alguma ajuda, como realmente acontece na figura de mais um elemento da natureza, uma guia, o elemento ar. Mais uma vez, Psiqu deve se submeter a reajustes cognitivos -comportamentais. Como a ansiedade e o pnico diminuram, tem se a impresso de que, nesta fase de seu desenvolvimento, Psiqu comea a confiar mais em seus prprios realinhamentos cognitivos, representacionais e emocionais. Na ltima tarefa, Afrodite determina que Psiqu v ao Hades e apanhe, com Persfone, um pouco de sua beleza imortal. Psiqu cria, por si s, uma estratgia de soluo para a tarefa. Dirige-se para o alto de uma torre com a finalidade de se jogar, imaginando que assim chegaria ao Hades mais facilmente. Por que se matar agora? Sobretudo aps os xitos nas tarefas anteriores? Uma interpretao possvel a que aponta para um outro sentido do "jogar-se". Talvez Psiqu no desejasse propriamente a morte, mas um acesso ao Hades. Contudo, a melhor interpretao remete percepo consciente de Psiqu da solido dramtica a que estaria exposta e complexidade da tarefa. Desta vez nenhuma ajuda adviria, e tal idia deveras perturbadora. Esta ltima prova parecia a mais perigosa e definitiva. Enfrentar o Hades era, conscientemente, assumir integral e individualmente uma nova condio representacional e cognitiva (Azevedo e Joffily, 2007), uma vez que no Hades, a terra dos mortos, no existia auxlio possvel. Sozinha com sua conscincia, Psiqu deve levar a cabo a ltima tarefa. Na verdade, j era hora da jovem enfrentar o mundo dos mortos, seus velhos medos, antigos dramas, e de l sair inclume. Essa prova faria com que Psiqu aceitasse como seu, um novo mundo e uma nova ordem cognitiva, onde uma nova hierarquia e organizao sensorial dariam origem a um indito estado representacional. Tratava-se, pois, de um verdadeiro ritual de passagem (Azevedo e Joffily, 2006). A conversa que Psiqu estabelece com a torre evidencia o carter consciente deste seu ltimo empreendimento

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    (Brando,1988). Como a torre um objeto que permite ver-se distncia, prever o que est para acontecer, este elemento evidencia que Psiqu dever assumir conscientemente o controle de sua jornada. Por outro lado, a torre, segundo Brunel (2000), est associada Juno e ao elemento fogo. Segundo este mesmo autor (ibid,2000.), nas tradies hermticas do Tar, este mesmo smbolo -uma torre rachada por raios, simboliza a reconstituio de um ciclo csmico e a completude de um mistrio. Ainda nesta tarefa, muitas restries so impostas a Psiqu. Ela no pode ajudar o carroceiro coxo, o velho que se afoga, as mulheres que tecem e, muito menos, aceitar o convite para se sentar em uma cadeira e jantar com Persfone. No deve apanhar a lenha do carroceiro, uma vez que ela cair novamente. Faz-se necessrio no repetir velhos costumes, velhos significados e velhos modos de interao. Mesmo porque, em sua nova ordem cognitiva e de sentido, eles lhe sero inteis. No deve ajudar o velho, pois velhas imagens e velhos conceitos no so mais coerentes em seu novo mundo. As mulheres que tecem incessantemente, tambm simbolizam a manuteno de padres e hbitos arcaicos. A mais grave de todas as tentaes seria a de aceitar o convite de Persfone e sentar-se para jantar com ela. Isso significaria se identificar com a morte, com tudo que no mais pode ser mudado (Brando, 1988). Neste caso, a tarefa de redimensionar seus valores, idias, impresses, imagens, hbitos, se perderia por completo. No Hades, nada muda; l, tudo morto, tudo como sempre foi e ao instalar-se naquele lugar, naquela condio, ela perderia a oportunidade de reordenar seus modos de interpretar, selecionar, estruturar, enfim, representar um novo mundo a partir de um contexto representacional diferente. Psiqu sai do Hades vitoriosa, sem ceder a nenhuma tentao e sem se desviar de seu objetivo. S que a mais perigosa e ltima das tentaes no est to explcita nem to visvel quanto as anteriores. A tentao sempre presente de atrair o olhar do outro, de reassumir um padro de interao marcadamente visual, faz com que ela abra a caixinha, acreditando assim conquistar um pouco da beleza imortal de Persfone. bom lembrar que nas caixinhas esto guardadas as maiores mazelas. Foi assim com Pandora, e assim tambm com Psique (Brando, 1988). Aqui, vemos como o velho mundo visual e absolutamente magnetizador, totalizante, gestltico, dificilmente desaparece. Ele permanece espreita, envolvendo os homens com seu manto de sono estgio (relativo ao rio Estige do Hades). Sim, sono letrgico, mortal, porque induz ao mais destrutivo de todos os pecados, aquele que faz com que os homens sonhem em retornar, mesmo quando iniciados em um novo estado cognitivo, antiga ordem representacional. Como Psiqu, os iniciados em uma nova ordem cognitiva e de sentido a que se refere este trabalho, carregam uma espcie de caixinha mgica, onde est tudo aquilo que no pode ser visto. Contudo, tentadoramente, o que no pode mais ser visto e experienciado est sempre referido e oferecido no mbito da linguagem e, em alguns casos, na memria. Do sono letrgico, s se sai com a ajuda de Eros. Mas, quem Eros afinal? Neste momento, Eros representa a unio, a coeso em novas bases, o amor por si mesmo e por uma nova ordem cognitiva / sensorial /representacional onde no h mais lugar para insanos medos e desistncias precipitadas. Atravs da coeso de Eros, permanece-se a salvo da tentao de se cair numa definitiva e fatal fragmentao cognitiva, onde duas diferentes ordens representacionais se digladiam, a velha que no mais e a nova que irrefreavelmente tenta se estabelecer. Psiqu vai ao Olimpo, bebe ambrosia e torna-se imortal. Recupera sua harmonia interna e o amor por si mesma. Ao conquistar uma identidade, Psiqu adquire estabilidade cognitiva e emocional. Tendo conquistado Eros, no mais est dividida entre dois estados subjetivos. Assim, a ressignificao se completa. Contudo, permanece em aberto o ser, para o futuro, rico de possibilidades e por isso mesmo, cheio de contradies.

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    7 CONCLUSES

    Pelo exposto, nota-se que o homem possui, talvez, uma infindvel capacidade de metamorfose, de transformao, de recriao. No h dvida, que condies scio-histricas e biolgicas produzem condicionamentos por vezes extremamente densos e difceis de serem alterados. Contudo, sempre resta ao homem algum nvel de liberdade e de mutao. interessante perceber que um texto to antigo quanto Eros e Psiqu contm significados que apontam para dimenses humanas que so inalienveis, ou seja, a liberdade, a escolha, a deciso de seguir, ou no, em busca de seu amor, est sempre dado, est sempre sendo refeita. Tudo isso indica algo fundamental: a noo de tempo. O sentido, a compreenso que o dasein pode ter da vida est intimamente ligada ao tempo. Passado, presente e futuro no esto indissociados, no podem ser vistos como trs categorias separadas ou incomunicveis. O sentido, a compreenso est na percepo conjunta de passado, presente e futuro. Quando o dasein lana-se para o futuro em busca de algo, ou, na realizao de seus projetos, ele consegue ou poder conseguir integrar e compreender seu passado a partir dos elementos de futuro que vo se presentificando.

    Psiqu poderia ter desistido, poderia ter encontrado outro amor, poderia ter vivido solteira, ela poderia ter tido vrios destinos, mas preferiu conduzir-se ao futuro, conduzir-se tambm dor, mas talvez uma dor diferente: a dor da luta, da transformao, da metamorfose. uma dor distinta da dor do que desiste, distinta da dor daquele que no tem mais esperanas, daquele que deixou-se levar e no mais senhor de si mesmo. Ser formador de novos significados promove o dasein a construtor de sua histria e assim, poderia dizer, a construtor do mundo, pois a histria de cada um no est apartada da histria dos homens. Cada modo de existncia novo produz novas possibilidades de vida em comum e de transformao social. Para ser bem preciso: um cego que aceita e se conduz pelos significados j dados sobre a cegueira, ou, que se submete a todos os preconceitos, idias, crenas, mitos que se encontram dispersos no corpo social, no faz histria, no se recria e no auxilia a recriao do mundo. Mundo que poder um dia estar aberto s diferenas, rico de significados que indiquem a abundncia da vida. Vida, de qualquer jeito vida humana, livre, frtil, aberta. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: AROUX, Syvain, dirigido por. Les notions philosophiques - Dictionnaire. Tome. 2. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.Isbn-213041442. AUGRAS, Monique. O Ser da Compreenso:fenomenologia da situao de psicodiagnstico. Petrpolis: Vozes, 1986. AZEVEDO, Patrick W. Sexualidade: Desejo e Cognio. 2004. 255 P. Dissertao (Mestrado) Laboratrio de Cognio e Linguagem do Centro de Cincias do Homem, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Campos dos Goytacazes/RJ. AZEVEDO, Patrick W. e JOFFILY, Sylvia B. Mitologia e Percepo. In: REIMO, Rubens (Org). Distrbios do Sono. So Paulo: Associao Paulista de Medicina. 2006.

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