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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

ERA UMA VEZ A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA: UM PASSEIO INTERSEMIÓTICO DE BRANCA DE NEVE PELO

AUDIOVISUAL

Sílvia Regina Saraiva Orrù1

Ao percorrermos as etapas do desenvolvimento humano, nos deparamos com o

fascínio e encantamento que a fantasia e a magia despertam no homem em todas as

fases de sua vida. É possível compreendermos que este encantamento é inaugurado

ainda na primeira fase da constituição do sujeito – a infância – onde este atravessado

pela linguagem2

Neste sentido, é possível pensar que o sujeito, ainda na mais tenra idade, agraciado pelo

carinho de seus cuidadores, ao tornar-se ouvinte das “historias infantis” ou “contos de

fadas”, é transportado para este universo de fantasia e magia. Aqui lançamos uma

questão: quem foi o autor deste universo de fantasia?

tem seu sistema perceptivo estimulado, iniciando assim, sua inserção no

mundo das significações.

Os contos de fadas fazem parte do imaginário coletivo e são elementos do folclore

de vários povos, além de lidarem com a sabedoria popular e os conteúdos essenciais da

condição humana. Sua transmissão foi oral, antes mesmo da escrita, portanto missão

difícil precisar ao certo sua origem e seu autor fundante.

A questão autoral nos “contos de fadas” torna-se ainda mais complexa quando a

tecnologia permitiu o registro das mais variadas versões de compilações originadas da

tradição oral, além dos inúmeros suportes: desde a invenção da tipografia por

Gutemberg, até a mídia interativa - produto da era digital.

Considerando que o autor, é aquele indivíduo que cria, ou seja, é alguém capaz de

deixar marcas, traços de seu modo próprio de produzir mensagens em um processo de

signos com o qual lida em um texto, é possível compreender, que o autor, ainda que se

aproprie de um texto existente, interfere neste de modo particular e pessoal em seu

processo de significação, originando uma nova produção. Neste sentido, a nova produção

trata-se de uma transposição, uma vez que tem a possibilidade de multiplicar sua

potencialidade e ir além da idéia original.

Ao longo dos tempos, inúmeras versões dos “contos de fadas” foram sendo

registradas e a produção que inicialmente nasceu de origem partilhada, ou seja,

composta pelos contos populares que constantemente modernizavam a história,

adicionando elementos e, muitas vezes, atenuando detalhes intrigantes, de acordo com

1 Mestranda em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi. 2 Segundo Lacan, para o ser falante sempre haverá o sujeito do inconsciente que testemunha a dependência do falante à ordem simbólica que pré-existe à sua constituição. “A linguagem, como paradigma da ordem simbólica depõe da relação do Sujeito com o saber” (LACAN, 1992, p 23).

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as exigências sociais e valores de cada época, foi sendo transposta ora de forma fechada,

como no caso das versões da Disney, ora de forma aberta, como pode-se perceber nas

versões interativas.

Uma transposição, segundo Robert Stam (2003, p.20) é “automaticamente

diferente e original devido à mudança do meio de comunicação”. As adaptações literárias

para o cinema são, efetivamente, releituras críticas do hipotexto, implicam produção de

sentido, uma vez que a transposição das formas de um gênero a outro nunca é inocente.

É nessa perspectiva que objetiva-se compreender o processo de transposição da

peça literária – “A Branca de Neve” - para o cinema e deste para a mídia interativa,

entendendo que esse processo ocorre através de uma tradução intersemiótica de um

código para outro e que mantém as idéias originais, entretanto alterando a produção de

sentido. É importante considerar, também, que a inserção da plataforma digital, permite

além da re-significação da peça original, uma mudança de estrutura em seu

funcionamento.

Como base de análise e compreensão deste percurso, selecionamos três objetos

produzidos a partir do conto de fadas “A Branca de Neve” (Little Snow White) dos irmãos

Grimm3

A amostragem escolhida responde a alguns critérios de representatividade. Trata-

se do primeiro conto de fadas a ser transposto para o cinema e também para a mídia

interativa, além de cada um dos objetos serem de gêneros diferentes e por fim a

transposição de cada objeto foi baseada especificamente em seu antecessor cronológico.

: “Branca de Neve” (1916), “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937) e “A

História Interativa da Branca de Neve” (2003).

1 - AS ORIGENS LITERÁRIAS DOS CONTOS DE FADAS

Literatura é a arte da gramática, da retórica e da poética de criar, recriar, compor

e transpor escritos artísticos. A Literatura só se tornou possível a partir da escrita,

embora não tenha surgido com ela. Muitos textos se expandiram de forma oral, como é o

caso dos “contos de fada”, que durante vários e vários séculos, antes que fossem

escritos, foram sendo contados e repassados por gerações.

De acordo com a historiadora Nelly Novaes Coelho (1987), desde

aproximadamente 4.000 a.C. com “O Livro dos Mágicos”, escrito pelos egípcios, até a

Bíblia encontram-se textos com estrutura de conto. O primeiro grande contista da

3 Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786- 1859), linguistas alemães que se dedicaram ao registro de contos de fadas e fábulas infantis no século XIX.

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história é tido como Luciano Samosata4

Com o tempo, todo esse universo maravilhoso, que surgiu com um profundo

sentido de verdade humana, foi sendo re-significado e, no final do século XVII, na

França, Charles Perrault

. Originalmente concebidos como entretenimento

para adultos, os contos fantásticos eram contados em reuniões sociais. Em sua forma

original, seu conteúdo trazia fortes doses de adultério, incesto, canibalismo e mortes

hediondas.

5

Na Alemanha, mais de cem anos após Perrault ter publicado “As histórias da mãe

gansa”, os filósofos e grandes folcloristas, irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm, efetuam um

trabalho de coleta de antigas narrativas populares com o objetivo de caracterizar o que

havia de mais típico do povo alemão, mesmo que muitas narrativas não fossem de

origem germânica. Como principais fontes da tradição oral, contaram com a prodigiosa

memória da velha camponesa Katherina Wieckmann e da grande amiga da família

Jeannette Hassenpflug (descendente de franceses). Assim publicam uma coletânea

intitulada “Contos de fadas para crianças e adultos” (Kinder und Hausmaerchen – 1812-

1822), onde estavam presentes diversos dos mais conhecidos contos que circulam, ainda

hoje, em tradução portuguesa: “Branca de Neve”, “Rapunzel”, “O gato de botas”, “A bela

adormecida”, entre outros. Os Grimm recontam contos que já haviam sido contados por

Perrault.

sente-se atraído pelos relatos maravilhosos guardados pela

memória do povo, e dispõe-se a redescobri-los. Os contos de fadas que, a princípio, não

eram uma literatura para criança, iniciam um processo de transformação com os contos

de Perrault. Assim nasce a “literatura infantil”.

No século XIX, os contos de fadas atingem o auge por meio da imprensa escrita.

Toma força e moderniza. Entretanto somente no século XX se consagram com as

produções cinematográficas de Walt Disney, na América.

2 – LENDO IMAGENS E VIZUALIZANDO PALAVRAS

“Ao acordar, no meio da floresta, a pequena Branca de Neve

lembra-se de sua mãe, a linda rainha, que tanto a desejou.”6

A linguagem escrita e a audiovisual tem muitas diferenças em seu aspecto

estético. Ao ler o breve trecho do conto transcrito acima, é possível perceber as múltiplas

4 Luciano Samosata (125-192) - literata grego considerado o primeiro grande nome da história do conto, escreveu “O cínico”, “O asno”, entre outros. 5 Charles Perrault (1628-1703) – escritor e poeta francês, que estabeleceu bases para o novo gênero literário, o conto de fadas. Considerado o pai da Literatura Infantil. 6 Trecho extraído do conto “Branca de Neve” do livro dos irmãos Grimm (1984, p. 264) - “Contos de fada”.

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dificuldades para representá-lo em imagens. Os Grimm informaram apenas aquilo que

julgaram necessário para esclarecer o sentimento da menina ao encontrar-se sozinha em

um local estranho, no entanto cada leitor, a partir de sua identificação, imagina a cena.

Tarefa difícil em uma produção cinematográfica, traduzir estas palavras e inseri-

las no contexto do filme, redirecionando assim, o esforço imaginativo do espectador.

Algumas perguntas podem ser respondidas em imagens: Como ela acordou? Que roupas

usava? Que tipo de vegetação tem esta floresta? Era dia ou noite? Que tipo de

iluminação tem neste ambiente? No entanto, como representar em imagens a lembrança

da menina ou o desejo de sua mãe?

Apenas parte do que se expressa num texto (e não necessariamente o mais importante) está nas ações e objetos descritos com maior ou menor quantidade de detalhes. Um texto (literário ou cinematográfico) fala por seus procedimentos estilísticos e não pelo eventual caráter fotográfico de sua escrita. Ver um filme não se reduz a uma leitura direta do que vemos na tela no momento da projeção, nem ler um livro se reduz à imediata identificação das palavras impressas no papel. (AVELLAR, 2007, p. 56).

Ainda que estas e outras perguntas sejam respondidas na sequência de um livro,

no cinema não é possível adiar estas respostas; elas devem ser exibidas imediatamente,

afim de dar continuidade à história. Neste sentido pode-se entender que a estrutura do

texto, na literatura e no cinema, é completamente diferente, pois as informações na

literatura podem ser liberadas aos poucos para o leitor, permitindo que a construção

desta cena seja gradativa em seu imaginário, enquanto no cinema, é preciso criar uma

paisagem, uma atmosfera que transborde “impressão de realidade”7

(MACHADO, 1997,

p.47). Além das palavras, as imagens transmitem uma nova forma de pensar o filme,

nos esclarece Avellar:

(...) assim como o chão da literatura é o que não fica parado, o chão do cinema é organizado, nomeado, enquadrado, concentrado, disciplinado, identificado, finito pela palavra. Ao passar os olhos pela literatura (eureka!) o cinema descobriu que a imagem não é só a flor da pele: é também texto. Ela não ilustra o que pensamos com palavras: ela pensa de outra maneira. (AVELLAR, 2007, p. 56).

Para deixar ainda mais complexa esta tarefa, é possível citar o momento em que

os anões encontram Branca de Neve, desacordada, após comer a torta de maçã. No

texto literário os Grimm narram a entrada de cada um dos anões na casa e

individualmente, o desespero e o desejo de acordar a linda princesa; até que chegam à

conclusão de que a menina havia sido morta por um pedaço de torta de maçã

7 Com o estímulo sensorial da sala de projeção, o espectador fica suscetível ao estímulo luminoso que se impõe à sua frente e ao estímulo sonoro que o invade, causando assim, uma atmosfera que o coloca dentro do universo fictício da narrativa, “a ponto de se integrar no seu jogo de conflitos como se fizesse parte deles” (MACHADO, 1997, p. 46).

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envenenada. Para isso foi necessário alguns parágrafos de texto, onde o leitor vai

recebendo pequenas informações e percorrendo lentamente os caminhos da trama.

Entretanto, este trecho poderia ser adaptado para o cinema de forma a eliminar o caráter

surpreendente da cena, se a escolha fosse exibir a entrada simultânea dos anões e a

imediata conclusão da morte da menina.

Ao ler um livro, cada leitor cria suas próprias imagens, sem se preocupar com os

limites impostos pelo processo de produção ou de realidade. Assim torna-se natural que

um espectador ao sair da sala de projeção, possa ter o sentimento decepcionante de que

um filme não tenha atingido sua expectativa e afirme ter apreciado mais o livro que o

filme. Neste sentido, pode-se afirmar que a profecia de Thomas Edison8, um dos

pioneiros do cinema, não se concretizou: “estou trabalhando numa invenção

extraordinária e em pouco tempo as crianças não precisarão ler nenhum livro” 9

Em uma transposição da literatura para o cinema, o filme deve permitir ao

espectador sentir-se como se estivesse folheando as páginas de um livro, acompanhando

personagens e suas aventuras, mas de uma forma completamente autônoma, a partir do

ponto de vista da câmera. O diretor tem por objetivo recriar o mundo fantástico contido

no livro, apropriando-se de um novo código: as imagens. A importância deste processo é

alertada por Eisenstein:

(apud

CUBAN, 1986, p. 9).

Trata-se de achar um equivalente criativo. Uma imagem visível, equivalente à imagem escrita pelo autor em uma maneira não visível (...). Importante é a imagem do pensamento do autor, sua ´imaginidade´. Essa é a coisa mais importante. (EISENSTEIN, 1993, p. 119/120).

Muitos teóricos afirmam que a literatura, por trazer consigo a aura da escritura, é

uma produção sutil e preciosa para a descrição dos sentimentos e emoções humanas. No

entanto, se considerarmos o hibridismo das produções cinematográficas, nos parece

certo afirmar que seu material expressivo permite uma infinidade de possibilidades

semânticas e sintáticas muito mais ricas. Segundo Robert Stam:

O cinema constitui um lócus ideal para a orquestração de múltiplos gêneros, sistemas narrativos e formas de escritura. O mais impressionante é a alta densidade de informação que se encontra à sua disposição. Se o clichê sugere que “uma imagem vale por mil palavras”, quantas vezes mais valem as características centenas de planos (cada um deles formado por centenas, se não milhares, de imagens) em sua simultânea interação com o som fonético, os ruídos, os materiais escritos e a música? (STAM, 2003, p. 26).

8 Thomas Alva Edison (1847-1931) precursor da revolução tecnológica do século XX e inventor do cinetoscópio, além de tantas outras contribuições para o desenvolvimento tecnológico e científico. 9 Tradução do inglês realizada pela autora.

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Quando o filme traduz o espírito e a emoção entrelaçados nas palavras, suas

imagens possuem uma identidade única, embora conectada ao texto, seja

completamente diferente de sua fonte. Esse contexto nos convoca a refletir: há uma

forma correta de contar a história? É possível que a imagem substitua as palavras? A

especificidade do meio é fator determinante para a qualidade de uma obra?

No cinema ou na literatura, histórias como a de “Branca de Neve”, permeada de

narrativas fantásticas, conquistam grandes e diversos públicos, inúmeros admiradores,

além de venderem muitos livros ou estourarem bilheterias. Não é possível prever, nem

tampouco garantir, que um filme tenha maior sucesso que um livro.

Por outro lado, considerando a atração da humanidade por fábulas e a interação

entre literatura e cinema através das transposições, pode-se compreender que filmes

com elementos fantásticos, acabem provocando um grande impacto nas telas de cinema.

3 – BRANCA DE NEVE VAI AO AUDIOVISUAL

Muitas são as versões literárias do conto “Branca de Neve”, uma vez que sua

origem é controversa e foi mantida através dos tempos pela tradição oral. A versão dos

irmãos Grimm foi a mais conhecida na época e também a mais divulgada. Em outras

versões os anões são substituídos por mineiros ou por ladrões, o espelho pelo sol ou pela

lua, a madrasta dança até morrer ou é morta pelos mineiros. Cada versão traz consigo o

poder de retratar os fenômenos arquétipos de uma cultura, com o objetivo de satisfazer,

ainda que inconscientemente, o imaginário de um povo.

Apesar de tantas versões literárias, a segunda adaptação cinematográfica que

aconteceu em 1916, foi transposta a partir do conto dos irmãos Grimm.

Afim de estabelecer um comparativo entre os três objetos selecionados para este

estudo, escolhemos apenas uma cena em comum e que é descrita no conto original. A

cena a ser analisada, apresenta o momento em que a rainha – bruxa má – entrega o

pedaço de torta de maçã envenenado à Branca de Neve.

3.1 – BRANCA DE NEVE (1916)

Realizado em 1916, pela Famous Plasyer-Lasky Corporation, com produção de

Adolph Zukor e Daniel Frohaman, direção de J. Searle Dawley, “Snow White” pode ser

percebido como um bom exemplo de um cinema, que já havia passado por um período

de transformações, com atuações menos afetadas, personagens mais verossímeis, uso

de intertítulos, e muito mais próximos da literatura.

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O filme tem início com um intertítulo que norteia o espectador com relação ao

contexto da história e como um tradicional conto de fadas, obviamente, começa a ser

contado assim: “era uma vez uma linda rainha que desejava ter uma filha: branca como

a neve, com cabelos pretos como ébano e lábios vermelhos como sangue”.

A rainha teve esta filha e lhe deu o nome de Branca de Neve, uma princesa, que

desde cedo chamava a atenção por sua beleza. Após a morte de sua mãe, seu pai casou-

se novamente, com uma bruxa que havia se transformado em uma linda mulher. Ao

perceber que a beleza de Branca de Neve poderia ofuscar-lhe, a malvada madrasta

ordena a um caçador que mate a menina e como prova de seu feito, traga o coração da

princesa. O caçador leva a menina para a floresta e pede que ela fuja. A fim de enganar

a rainha, ele entrega-lhe o coração de um porco. A rainha dona de um espelho mágico, o

consulta para saber se há alguma mulher mais bela que ela. Para sua surpresa o espelho

lhe responde que Branca de Neve está viva, morando na floresta com sete anões. Irada,

a rainha deseja exterminar Branca de Neve e procura novamente a feiticeira para ajudá-

la a matar a bela princesa. A feiticeira a transforma em uma idosa, vendedora de tortas,

que leva consigo um pedaço de torta de maçã envenenado; ao ser mordida pela menina

a levaria para o sono eterno. Ao final do filme o espectador se surpreenderá, pois a

menina não estava morta, mas apenas engasgada pelo pedaço de torta.

A cena selecionada, para análise, inicia-se aos 54m14 em plano médio

apresentando a parte externa da casa dos anões, com quem Branca de Neve está

morando. À direita do quadro, entra em cena a malvada madrasta transformada em uma

idosa vendedora. Um rápido corte e pode-se ver o interior da casa. Branca de Neve está

sentada próxima a janela, costurando uma toalha. A perversa velhinha abre outra janela

que está à direita da menina e inicia um diálogo, conforme Figura 1.

É possível que soe estranho a quem lê esta descrição, por se tratar de um filme

silencioso. No entanto, a expressão das imagens é suficiente para explicar a ação. A

Figura 1 – A vendedora de tortas

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personagem da velhinha simula balbuciar palavras, frases, sem que seja necessário que

o espectador as ouça compreende o que está acontecendo na trama. Os gestos

fisionômicos e corporais são mais importantes que o som da fala. Afirma Aumont:

A impressão de analogia com o espaço real produzido pela imagem fílmica é, portanto, poderosa o suficiente para chegar normalmente a fazer esquecer não apenas o achatamento da imagem, mas, por exemplo, quando se trata de um filme preto-e-branco, a ausência de cores, ou a ausência de som se o filme for mudo – e também fazer esquecer, não o quadro, que sempre permanece presente, mas o fato de que, além do quadro, não há mais imagem (AUMONT, 1995, p. 24).

Após este breve diálogo, saem de campo tanto a velhinha quanto Branca de Neve.

Um novo corte e agora a câmera exibe outro ângulo do interior da casa, onde a velha

oferece as tortas à Branca de Neve e eis que surge o primeiro intertítulo desta cena. Nele

está descrito uma breve explicação da narrativa e um pequeno diálogo entre as duas

personagens, que tem por função esclarecer ao espectador que será oferecido um pedaço

de torta de maçã envenenada a bela princesa.

Nesta cena é possível perceber que o uso do recurso dos intertítulos apresentando

fragmentos de diálogos, antes dos planos em que serão exibidas as falas, favorecem

bastante a compreensão do espectador com relação à trama.

Ao observarmos a Figura 2, sem que qualquer esclarecimento prévio nos fosse

fornecido, não seria possível compreender que a torta oferecida à Branca de Neve estava

envenenada. Seguindo esta linha, mais estranho ainda nos pareceria, que após receber a

torta, a menina, simplesmente cairia no chão como se estivesse morta, conforme

revelado na Figura 3.

Ainda que não tenha sido exibida a cena da menina mordendo a torta de maçã, é

possível que o espectador imaginativo crie estas imagens em sua mente, em uma

confusão entre a percepção e a representação. Complementa Avellar:

Figura 2 – A maçã envenenada

Figura 3 – O sono profundo

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Os letreiros usados nos filmes mudos para contar o que ainda não sabíamos dizer no cinema só com imagens podem ter sido um ponto de partida. Talvez ao escrever na tela as imagens que faltavam, o cinema tenha aprendido a contar histórias, e assim, sem se dar conta disto, tenha se acostumado à idéia de escrever filmes antes de filmá-los e a ver a literatura como um cinema antes do cinema: nos livros estavam estruturas de histórias e de formas de composição que poderiam ser adaptadas para o cinema (AVELLAR, 2007, p. 92).

Se considerarmos especificamente a cena escolhida para análise como um signo10

e o trecho do texto-fonte, dos irmão Grimm, correspondente a ela, como seu objeto

dinâmico11, é possível interpretarmos a cena como um legi-signo indicial12

. Uma vez que

a cena é permeada de elementos fantásticos (bruxa, feitiço, princesa, a entrega da

torta), a relação dela com ela mesma tem força de lei por remeter seu intérprete a um

conto de fadas, mais que isso, não remeteria a qualquer conto de fadas, mas sim, ao

conto específico “Branca de Neve”. Ao consideramos a relação do signo-cena com seu

objeto dinâmico texto-fonte, ela torna-se indicial, uma vez que entre ela e seu objeto há

uma relação existencial, ou seja, vai além de mera semelhança, embora ela envolva

uma, e é a modificação real do signo pelo objeto. A tradução semiótica desta cena fílmica

em relação ao texto literário, o manteve como fonte e origem e pode-se considerar o

trabalho do tradutor apenas no nível indicativo, ainda que resulte em uma nova produção

de sentido para seu intérprete, a partir da inserção das imagens no texto.

3.2 – BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES (1937)

Idealizado por Walt Disney, dirigido por David Hand e produzido pela Walt Disney

Feature, em 1937 é lançado nos Estados Unidos o primeiro longa-metragem de animação

“Branca de Neve e os Sete Anões”. Esta produção, além de ser a mais famosa versão do

conto de fadas, foi um marco para o cinema, pois a partir de então, tudo que surgiu no

gênero animação se baseou nela.

Sua trilha sonora foi gravada por uma orquestra de 80 músicos e a preocupação

com a dublagem foi tão excessiva, que levaram mais de 2 anos até que encontrassem

vozes capazes de traduzir o sentimento e a emoção que a trama exigia. Não foi a toa que

Walt Disney recebeu 7 Oscars13

10 No conceito peirceano um signo é aquilo que representa algo para alguém. O signo intenta representar um objeto. Não conseguimos pensar ou perceber se não houver o signo. É o mediador entre a coisa e uma mente interpretadora.

pela animação, além de um especial pelas inovações ao

gênero cinematográfico e trilha sonora.

11 Objeto dinâmico é a coisa em si. 12 O legi signo indicial na teoria peirceana é quando um signo em relação a ele mesmo, ou seja, em primeiridade, tem força de lei e este mesmo signo em relação a seu objeto dinâmico - em secundidade -, indica o existente. 13 Também recebeu o prêmio especial dos Críticos de Cinema de Nova Iorque e o Grande Troféu de Arte, no Festival de Veneza.

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A história é dramática e tem muito de horror, entretanto Walt Disney percebeu

que poderia dar leveza ao contá-la através de uma animação. Até aquele momento as

animações eram curtas, com no máximo 7 minutos e cenas engraçadas. Todos achavam

que a idéia era tolice e foi motivo de muitas críticas. Tanto a história da animação quanto

de sua produção é extraordinária. Após sua estréia em 21 de dezembro de 1937, Walt

Disney14 recebeu muitos telegramas dos grandes nomes da Indústria Cinematográfica,

afirmando que era um dos filmes mais importantes que já havia sido feito, sendo até

comparado pela crítica com “Nascimento de Uma Nação”15 (1915).Conquistou o publico

deixando-o aberto aos filmes de fantasia, e isso reverberou através dos tempos16

Foram muitos os questionamentos da época: quem iria querer assistir uma hora e

meia de desenhos? Como é que se poderia fazer isso? Os poderosos da indústria diziam

que 6 ou 7 minutos em animação iriam bem, mas um longa jamais, pois até então os

curtas animados se baseavam em gags engraçadas e para um tempo maior de produção

as palhaçadas se esgotariam. Outra crítica apontada foi em relação às cores fortes e

vibrantes, típicas de animações da época, que pela duração do filme machucariam os

olhos do espectador.

.

Diante destas críticas, Walt Disney não desistiu, entendeu que se houvesse uma

história sólida, com emoção, tragédia, salpicada com cenas engraçadas, lúdicas e ainda

oferecessem espaço para a fantasia, poderia dar certo. É neste contexto que se inicia a

associação entre o cinema e a animação, respeitando e usufruindo de suas

características, além de ser o momento que Walt Disney inicia seu processo de

transposição dos textos-fonte - a obra literária dos irmãos Grimm – para os textos

fílmicos.

A animação “Branca de Neve e os Sete Anões” segue a linha mestra do conto de

fadas, apresentando em sua trama todos os elementos fantásticos descritos no texto-

fonte, no entanto houve pontos da história que foram suprimidos nesta transposição,

possivelmente com o intuito de torná-la mais leve, por se tratarem de momentos de

violência e terror, ou até mesmo para reduzir tempo e custo de produção. No texto-fonte

a malvada madrasta, faz três investidas contra a vida da princesa: na primeira utiliza um

pente enfeitiçado, que após entrar em contato com os cabelos da menina ela morreria;

na segunda a perversa madrasta oferece-lhe uma fita para adornar sua cintura, onde

após o aceite ela amarraria com tanta força que deixaria a princesa sem ar; somente na

14 Informações extraídas das entrevistas contidas no Bônus do DVD “A Branca de Neve e os Sete Anões” – Disney 2005. 15 Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation) - dirigido por D.W. Griffith é um dos filmes mais expressivos da era do cinema silencioso devido suas inovações técnicas. 16 Um grande sucesso até hoje, “Branca de Neve” foi o vídeo infantil mais vendido nos Estados Unidos em 1995, seguido por “Rei Leão”(1994) e “Aladdin”(1992). (REBOUÇAS, 1996, p.181)

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terceira investida, a velha madrasta oferecer-lhe-ia um pedaço de torta de maçã

envenenado.

A cena inicia-se após 1h09 de filme com Branca de Neve no interior da casa dos

anões, com quem está morando, após ter fugido da perversa madrasta. Em plano médio

é mostrado a jovem fazendo uma torta com o auxílio de diversos pequenos animais e

cantarolando uma melodia romântica. A seguir é surpreendida pela velha senhora de

aspecto característico de uma bruxa, que surge na janela à sua frente como pode-se

observar na Figura 4.

Até este momento nenhum diálogo fora estabelecido na cena. Entretanto os

recursos estilísticos utilizados na animação como: a expressão de medo e pânico tão bem

caracterizados na personagem central da trama, acompanhada dos olhares apavorados

dos pequenos animaizinhos, que até então esboçavam sorrisos e a suspensão da trilha

sonora extra diegética, foram suficientes para cumprir com o objetivo de preparar o

espectador para a tragédia que aconteceria ao final da cena.

Inicia-se um diálogo entre as duas personagens, onde ao final será oferecida a

maçã envenenada.

Figura 4 – O susto

Figura 5 – Um olhar inocente para o

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Bruxa: Você está sozinha meu bem?

Branca de Neve: Eu estou sim, mas...

B: E os homenzinhos não estão?

BN: Não, eles não estão.

B: Fazendo torta?

BN: Sim, torta de pêssegos.

B: A torta de maçã é que faz os homens ficarem

com água na boca. Uma torta feita com maçãs como esta!

BN: Parece deliciosa!

B: E, é. Você devia provar querida.

No diálogo transcrito acima, é possível perceber a evidente traição de Disney ao

texto-fonte, uma vez que, além de ignorar as outras duas visitas que a madrasta fez à

Branca de Neve, ressaltou somente este encontro. Talvez de forma inconsciente,

evidenciou a maçã que está em nossa tradição, inseparável do mito de Adão e Eva, como

símbolo do desejo. É o ato de morder a maçã que altera o destino de Branca de Neve,

morre uma menina e no final da trama nasce uma mulher. Neste sentido, pode-se pensar

o veneno como a sexualidade. No conto dos Grimm, não há este diálogo, e nem tão

pouco uma maçã lhe é oferecida, mas sim, como suposta prova de gratidão pelo

banquinho para descansar e o copo de água para matar-lhe a sede – a idosa vendedora –

oferece a menina um pedaço de torta de maçã.

Este diálogo associado aos elementos da animação, que nos parecem ter

dimensões psíquicas, ou seja, emoções internas e motivação de personalidade;

relacionam intimamente as personagens a narrativa e criam um misto de: impressão de

realidade e mundo das fantasias, típicos do hibridismo cinema e animação.

Neste sentido, nos parece certo afirmar que, a transposição desta animação não

tem o desejo de expressar puramente a realidade, mas sim uma sugestão, uma livre

representação, com encanto e magia.

Embora esta produção, já nos primeiros segundos de apresentação, nos remeta a

um forte elo entre o cinema e a literatura, através da imagem de um livro se abrindo e

se finde com a imagem do livro se fechando é certo que, o filme conseguiu se destacar

das palavras escritas, convertendo-o em algo diferente e original. Ao que parece, esta

era uma preocupação de Disney, como pode-se perceber na afirmação abaixo:

Acho que colocamos o conto de fadas na moda outra vez. Ou melhor, a nossa própria receita de mitologia teatral. O conto de fadas em filme – criado com a magia da animação – é equivalente às grandes parábolas da Idade Média. Criação é a palavra. Não adaptação. Não versão. Podemos traduzir o antigo conto de fadas a seu equivalente sem perder a encantadora aura e o sabor de sua característica do

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‘era uma vez’. Acho que nossos filmes proporcionaram um novo respeito do adulto pelo conto de fadas. Provamos que o antiqüíssimo entretenimento do conto de fadas não reconhece jovem nem velho. (DISNEY apud SURREL, 2009, p. 35).

3.3 – A HISTÓRIA INTERATIVA DE BRANCA DE NEVE (2003)

A era digital, como sintoma da pós-modernidade, propicia circulação mais fluida e

articulações mais complexas dos gêneros e formas de cultura, produzindo o cruzamento

de suas identidades. Novos objetos são produzidos, a partir da convergência entre

comunicação, interfaces homem-máquina e tecnologias da informação, que tem como

características fundamentais: a) imersão – novos formatos de mídias que envolvem o

espectador em múltiplas linguagens, b) interdisciplinaridade - fusão das novas mídias

com formas artísticas, c) interatividade – possibilidade de novas relações entre

produtores e espectadores possibilitando novas constituições narrativas. Estas

transmutações colocam questões quanto aos novos objetos criados a partir da era

digital:

(...) na era pós-moderna, todas as artes se confraternizam: desenho, fotografia, vídeo, instalação e todos os seus híbridos. Cada fase da história tem seus meios de produção da arte. Vem daí o outro desafio do artista que é enfrentar a resistência ainda bruta dos materiais e meios do seu próprio tempo, encontrando a linguagem que lhe é própria, reinaugurando as linguagens da arte. Os meios do nosso tempo (...) estão nas tecnologias digitais, nas memórias eletrônicas, nas hibridizações dos eco-sistemas com os tecno-sistemas e nas absorções inextricáveis das pesquisas científicas pela criação artística, abrindo ao artista horizontes inéditos para a exploração de territórios da sensorialidade e sensibilidade. (SANTAELLA, 2002, p. 13).

É nesse contexto que um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São

Carlos, realizou em 2003 o vídeo “A História Interativa de Branca de Neve”, produzido

pela própria universidade e dirigido por Ana Vitória Joly. O vídeo serviu como base de

estudo e pesquisa para análise do comportamento do espectador diante de uma

narrativa, tradicionalmente linear, que surge a sua frente lhe permitindo intervir no

direcionamento da trama.

Segundo Ana Vitória Joly (2003) existem muitas possibilidades de intervenção nos

caminhos narrativos desta produção. A partir da escolha do espectador, há percursos em

que o espelho diz ser a rainha a mulher mais bela do mundo; em outro percurso, por

conseguir matar Branca de Neve, a perversa rainha casa-se com o príncipe. Outro

caminho muito diferente do conto dos irmãos Grimm, é aquele em que a rainha pede ao

caçador para matar o príncipe. O caçador o mata e leva seu coração para a rainha; os

anões encontram o príncipe morto e realizam a inserção do coração de um animal em

seu peito. No entanto, o príncipe continua em seu sono eterno. Branca de Neve, ao vê-lo

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em seu leito de morte, o beija e o belo príncipe ressuscita. Enfim, são inúmeros

percursos e desfecho para uma mesma história.

A interface com o objeto é simples e intuitiva, não precisa de instruções de uso,

palavras ou frases curtas que são exibidas como botões, convidam o espectador a

interagir e assim definir a sequência da história.

A emergência do homem pela participação na construção das narrativas,

expressando desejos e decisões, é uma característica inerente ao usuário digital, fruto da

pós-modernidade. Nesse sentido, a imagem do espectador imaginativo é substituída pelo

espectador atuante – multimídia -, cuja presença é decisiva para constituição do objeto

estético.

Não é mais tampouco um leitor contemplativo que segue as sequências de um texto, virando páginas, manuseando volumes, percorrendo com passos lentos a biblioteca, mas um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multidisciplinar, multisequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens, documentação, música, vídeo e etc (SANTAELLA, 2004, p. 33).

Pensar a interatividade e a imersão no audiovisual é tirar o espectador da

passividade, é tratar o filme como campo em expansão não só no teor comunicacional,

mas na sua própria materialidade.

Assim, nos prestar a análise da cena em que a perversa rainha entrega a maçã à

Branca de Neve, se faz completamente dispensável, uma vez que dentre tantas

possibilidades de percurso neste objeto, esta poderá ser excluída da narrativa por opção

do espectador, ou se fizer parte da composição, dependendo do caminho trilhado poderá

não ser o clímax da história.

Neste sentido, é possível afirmar que a literatura se fez pilar fundamental para

esta produção, uma vez que as referências são inegáveis, tanto em seu apelo explicito à

história, que já faz parte do imaginário do espectador, quanto pela sua dinâmica não

linear, já presente em livros interativos da década de 70.

Muito embora, este objeto faça referência ao texto-fonte se apropriando de

personagens, elementos fantásticos, parte da narrativa e até mesmo aludindo

semelhança em seu título, pode-se compreender que se trata de uma produção inspirada

na referência literária, entretanto, muito distante da mesma, abrindo espaço para um

processo interpretativo baseado na intensa participação do espectador, uma vez que este

é convocado a dar sua contribuição, produzindo um novo contexto baseado em suas

experiências e seus desejos, abrindo a possibilidade de uma nova produção de sentido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O que é transposto de um sistema semiótico para outro, como neste caso, da

literatura para o cinema, é o significado do signo. O signo, por representar seu objeto e

ao transmitir um significado, irá além de sua fonte, da idéia original. A isso Peirce

denominou interpretante. Considerando que todo processo de tradução é um ato de

produção de sentido (interpretante), é possível afirmar que, um sujeito ao experimentar

um signo (o texto) que refere-se a um fenômeno do universo maravilhoso, cria um

significado em sua mente. Esse significado é um signo equivalente ao primeiro, contudo,

a partir desta experiência singular, transforma-o em outro signo (filme). Segundo

Santaella:

O homem só conhece o mundo porque, de alguma forma, o representa e só interpreta essa representação numa outra representação, que Peirce denomina interpretante da primeira. Daí que o signo seja uma coisa de cujo conhecimento depende do signo, isto é, aquilo que é representado pelo signo. Daí que, para nós, o signo seja um primeiro, o objeto um segundo e o interpretante um terceiro. Para conhecer e se conhecer o homem se faz signo e só interpreta esses signos traduzindo-os em outros signos (SANTAELLA, 1985, p. 11).

Nas transposições analisadas, independente se bem ou mal sucedidas, nos parece

certo afirmar que a tradução intersemiótica do conto de fadas, dos irmãos Grimm, para

os produtos audiovisuais, ainda que sejam consideradas as características intrínsecas de

cada objeto, o conto já é uma representação de outra representação - a memória

popular -, e o seu primeiro objeto está, assim infinitamente afastado. Se pensarmos,

especificamente na produção de Walt Disney, compreende-se que sua transposição, por

ter capturado de forma tão abrangente o imaginário do espectador, tornou-se símbolo

legítimo dos contos de fadas, ou seja, a transposição entendida como uma tradução

intersemiótica, ilustrou perfeitamente o processo de desenvolvimento de um signo

simbólico longe do objeto inicial, origem de sua significação. Para justificar esta

afirmação, seria suficiente, nos tempos atuais, perguntarmos a um indivíduo,

independente da idade, quem é o autor de Branca de Neve.

De um autor para outro, divergências são constatadas, principalmente nos

seguintes elementos: aparência da filha desejada pela rainha, floresta, sete anões,

caçador, maçã, investidas da madrasta e morte da bruxa (rainha má). Por trás desses

elementos há toda uma ideologia, ou uma simbologia que se mostra tão rica quanto ao

número de interpretações possíveis de serem feitas. Essa aparente traição ao texto-fonte

é uma tentativa de preservar a significação original, não de modo especular, que seria

impossível, mas no sentido de que um interpretante gera signos culturais diferente ao

ser transposto de um ambiente para outro, onde diferentes indivíduos experimentarão

estes novos signos.

Assim a máxima continua: “quem conta um conto aumenta um ponto”.

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REFERÊNCIAS

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COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1987.

CUBAN, Larry. Teachers and Machines. New York: Teachers College Press, 1986.

EISENSTEIN, Sergei. Reflexões de um cineasta. Trad. Gustavo A. Doria. Rio de

Janeiro: Zahar, 1969.

GRIMM, Jacob e GRIMM, Wilhelm. Contos de Fadas. Belo Horizonte: Villa Rica Editoras

Reunidas, 1994.

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UFSC – Universidade Federal de São Carlos, 2003. 32p. Monografia apresentada no

Departamento de Artes e Comunicação.

LACAN, Jacques. (1969-1970). O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise.

Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

MACHADO, Arlindo. Pré-Cinemas & Pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.

SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. Coleção Primeiros Passos. São Paulo:

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_____________, Lúcia. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson, 2002.

_____________, Lúcia. Comunicação e Semiótica / Lucia Santaella, Winfried Nöth.

São Paulo: Hacker Editores, 2004.

STAM, Robert. Introdução a teoria do cinema. Tradução Fernando Mascarello. São

Paulo: Papirus, 2003.

SURELL, Jason. Os segredos dos roteiros da Disney: dicas e técnicas para levar

magia a todos os seus textos. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Panda Books, 2009.