era uma vez a transposiÇÃo literÁria: um passeio ... · fazem parte do imaginário coletivo e...
TRANSCRIPT
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
ERA UMA VEZ A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA: UM PASSEIO INTERSEMIÓTICO DE BRANCA DE NEVE PELO
AUDIOVISUAL
Sílvia Regina Saraiva Orrù1
Ao percorrermos as etapas do desenvolvimento humano, nos deparamos com o
fascínio e encantamento que a fantasia e a magia despertam no homem em todas as
fases de sua vida. É possível compreendermos que este encantamento é inaugurado
ainda na primeira fase da constituição do sujeito – a infância – onde este atravessado
pela linguagem2
Neste sentido, é possível pensar que o sujeito, ainda na mais tenra idade, agraciado pelo
carinho de seus cuidadores, ao tornar-se ouvinte das “historias infantis” ou “contos de
fadas”, é transportado para este universo de fantasia e magia. Aqui lançamos uma
questão: quem foi o autor deste universo de fantasia?
tem seu sistema perceptivo estimulado, iniciando assim, sua inserção no
mundo das significações.
Os contos de fadas fazem parte do imaginário coletivo e são elementos do folclore
de vários povos, além de lidarem com a sabedoria popular e os conteúdos essenciais da
condição humana. Sua transmissão foi oral, antes mesmo da escrita, portanto missão
difícil precisar ao certo sua origem e seu autor fundante.
A questão autoral nos “contos de fadas” torna-se ainda mais complexa quando a
tecnologia permitiu o registro das mais variadas versões de compilações originadas da
tradição oral, além dos inúmeros suportes: desde a invenção da tipografia por
Gutemberg, até a mídia interativa - produto da era digital.
Considerando que o autor, é aquele indivíduo que cria, ou seja, é alguém capaz de
deixar marcas, traços de seu modo próprio de produzir mensagens em um processo de
signos com o qual lida em um texto, é possível compreender, que o autor, ainda que se
aproprie de um texto existente, interfere neste de modo particular e pessoal em seu
processo de significação, originando uma nova produção. Neste sentido, a nova produção
trata-se de uma transposição, uma vez que tem a possibilidade de multiplicar sua
potencialidade e ir além da idéia original.
Ao longo dos tempos, inúmeras versões dos “contos de fadas” foram sendo
registradas e a produção que inicialmente nasceu de origem partilhada, ou seja,
composta pelos contos populares que constantemente modernizavam a história,
adicionando elementos e, muitas vezes, atenuando detalhes intrigantes, de acordo com
1 Mestranda em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi. 2 Segundo Lacan, para o ser falante sempre haverá o sujeito do inconsciente que testemunha a dependência do falante à ordem simbólica que pré-existe à sua constituição. “A linguagem, como paradigma da ordem simbólica depõe da relação do Sujeito com o saber” (LACAN, 1992, p 23).
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
as exigências sociais e valores de cada época, foi sendo transposta ora de forma fechada,
como no caso das versões da Disney, ora de forma aberta, como pode-se perceber nas
versões interativas.
Uma transposição, segundo Robert Stam (2003, p.20) é “automaticamente
diferente e original devido à mudança do meio de comunicação”. As adaptações literárias
para o cinema são, efetivamente, releituras críticas do hipotexto, implicam produção de
sentido, uma vez que a transposição das formas de um gênero a outro nunca é inocente.
É nessa perspectiva que objetiva-se compreender o processo de transposição da
peça literária – “A Branca de Neve” - para o cinema e deste para a mídia interativa,
entendendo que esse processo ocorre através de uma tradução intersemiótica de um
código para outro e que mantém as idéias originais, entretanto alterando a produção de
sentido. É importante considerar, também, que a inserção da plataforma digital, permite
além da re-significação da peça original, uma mudança de estrutura em seu
funcionamento.
Como base de análise e compreensão deste percurso, selecionamos três objetos
produzidos a partir do conto de fadas “A Branca de Neve” (Little Snow White) dos irmãos
Grimm3
A amostragem escolhida responde a alguns critérios de representatividade. Trata-
se do primeiro conto de fadas a ser transposto para o cinema e também para a mídia
interativa, além de cada um dos objetos serem de gêneros diferentes e por fim a
transposição de cada objeto foi baseada especificamente em seu antecessor cronológico.
: “Branca de Neve” (1916), “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937) e “A
História Interativa da Branca de Neve” (2003).
1 - AS ORIGENS LITERÁRIAS DOS CONTOS DE FADAS
Literatura é a arte da gramática, da retórica e da poética de criar, recriar, compor
e transpor escritos artísticos. A Literatura só se tornou possível a partir da escrita,
embora não tenha surgido com ela. Muitos textos se expandiram de forma oral, como é o
caso dos “contos de fada”, que durante vários e vários séculos, antes que fossem
escritos, foram sendo contados e repassados por gerações.
De acordo com a historiadora Nelly Novaes Coelho (1987), desde
aproximadamente 4.000 a.C. com “O Livro dos Mágicos”, escrito pelos egípcios, até a
Bíblia encontram-se textos com estrutura de conto. O primeiro grande contista da
3 Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786- 1859), linguistas alemães que se dedicaram ao registro de contos de fadas e fábulas infantis no século XIX.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
história é tido como Luciano Samosata4
Com o tempo, todo esse universo maravilhoso, que surgiu com um profundo
sentido de verdade humana, foi sendo re-significado e, no final do século XVII, na
França, Charles Perrault
. Originalmente concebidos como entretenimento
para adultos, os contos fantásticos eram contados em reuniões sociais. Em sua forma
original, seu conteúdo trazia fortes doses de adultério, incesto, canibalismo e mortes
hediondas.
5
Na Alemanha, mais de cem anos após Perrault ter publicado “As histórias da mãe
gansa”, os filósofos e grandes folcloristas, irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm, efetuam um
trabalho de coleta de antigas narrativas populares com o objetivo de caracterizar o que
havia de mais típico do povo alemão, mesmo que muitas narrativas não fossem de
origem germânica. Como principais fontes da tradição oral, contaram com a prodigiosa
memória da velha camponesa Katherina Wieckmann e da grande amiga da família
Jeannette Hassenpflug (descendente de franceses). Assim publicam uma coletânea
intitulada “Contos de fadas para crianças e adultos” (Kinder und Hausmaerchen – 1812-
1822), onde estavam presentes diversos dos mais conhecidos contos que circulam, ainda
hoje, em tradução portuguesa: “Branca de Neve”, “Rapunzel”, “O gato de botas”, “A bela
adormecida”, entre outros. Os Grimm recontam contos que já haviam sido contados por
Perrault.
sente-se atraído pelos relatos maravilhosos guardados pela
memória do povo, e dispõe-se a redescobri-los. Os contos de fadas que, a princípio, não
eram uma literatura para criança, iniciam um processo de transformação com os contos
de Perrault. Assim nasce a “literatura infantil”.
No século XIX, os contos de fadas atingem o auge por meio da imprensa escrita.
Toma força e moderniza. Entretanto somente no século XX se consagram com as
produções cinematográficas de Walt Disney, na América.
2 – LENDO IMAGENS E VIZUALIZANDO PALAVRAS
“Ao acordar, no meio da floresta, a pequena Branca de Neve
lembra-se de sua mãe, a linda rainha, que tanto a desejou.”6
A linguagem escrita e a audiovisual tem muitas diferenças em seu aspecto
estético. Ao ler o breve trecho do conto transcrito acima, é possível perceber as múltiplas
4 Luciano Samosata (125-192) - literata grego considerado o primeiro grande nome da história do conto, escreveu “O cínico”, “O asno”, entre outros. 5 Charles Perrault (1628-1703) – escritor e poeta francês, que estabeleceu bases para o novo gênero literário, o conto de fadas. Considerado o pai da Literatura Infantil. 6 Trecho extraído do conto “Branca de Neve” do livro dos irmãos Grimm (1984, p. 264) - “Contos de fada”.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
dificuldades para representá-lo em imagens. Os Grimm informaram apenas aquilo que
julgaram necessário para esclarecer o sentimento da menina ao encontrar-se sozinha em
um local estranho, no entanto cada leitor, a partir de sua identificação, imagina a cena.
Tarefa difícil em uma produção cinematográfica, traduzir estas palavras e inseri-
las no contexto do filme, redirecionando assim, o esforço imaginativo do espectador.
Algumas perguntas podem ser respondidas em imagens: Como ela acordou? Que roupas
usava? Que tipo de vegetação tem esta floresta? Era dia ou noite? Que tipo de
iluminação tem neste ambiente? No entanto, como representar em imagens a lembrança
da menina ou o desejo de sua mãe?
Apenas parte do que se expressa num texto (e não necessariamente o mais importante) está nas ações e objetos descritos com maior ou menor quantidade de detalhes. Um texto (literário ou cinematográfico) fala por seus procedimentos estilísticos e não pelo eventual caráter fotográfico de sua escrita. Ver um filme não se reduz a uma leitura direta do que vemos na tela no momento da projeção, nem ler um livro se reduz à imediata identificação das palavras impressas no papel. (AVELLAR, 2007, p. 56).
Ainda que estas e outras perguntas sejam respondidas na sequência de um livro,
no cinema não é possível adiar estas respostas; elas devem ser exibidas imediatamente,
afim de dar continuidade à história. Neste sentido pode-se entender que a estrutura do
texto, na literatura e no cinema, é completamente diferente, pois as informações na
literatura podem ser liberadas aos poucos para o leitor, permitindo que a construção
desta cena seja gradativa em seu imaginário, enquanto no cinema, é preciso criar uma
paisagem, uma atmosfera que transborde “impressão de realidade”7
(MACHADO, 1997,
p.47). Além das palavras, as imagens transmitem uma nova forma de pensar o filme,
nos esclarece Avellar:
(...) assim como o chão da literatura é o que não fica parado, o chão do cinema é organizado, nomeado, enquadrado, concentrado, disciplinado, identificado, finito pela palavra. Ao passar os olhos pela literatura (eureka!) o cinema descobriu que a imagem não é só a flor da pele: é também texto. Ela não ilustra o que pensamos com palavras: ela pensa de outra maneira. (AVELLAR, 2007, p. 56).
Para deixar ainda mais complexa esta tarefa, é possível citar o momento em que
os anões encontram Branca de Neve, desacordada, após comer a torta de maçã. No
texto literário os Grimm narram a entrada de cada um dos anões na casa e
individualmente, o desespero e o desejo de acordar a linda princesa; até que chegam à
conclusão de que a menina havia sido morta por um pedaço de torta de maçã
7 Com o estímulo sensorial da sala de projeção, o espectador fica suscetível ao estímulo luminoso que se impõe à sua frente e ao estímulo sonoro que o invade, causando assim, uma atmosfera que o coloca dentro do universo fictício da narrativa, “a ponto de se integrar no seu jogo de conflitos como se fizesse parte deles” (MACHADO, 1997, p. 46).
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
envenenada. Para isso foi necessário alguns parágrafos de texto, onde o leitor vai
recebendo pequenas informações e percorrendo lentamente os caminhos da trama.
Entretanto, este trecho poderia ser adaptado para o cinema de forma a eliminar o caráter
surpreendente da cena, se a escolha fosse exibir a entrada simultânea dos anões e a
imediata conclusão da morte da menina.
Ao ler um livro, cada leitor cria suas próprias imagens, sem se preocupar com os
limites impostos pelo processo de produção ou de realidade. Assim torna-se natural que
um espectador ao sair da sala de projeção, possa ter o sentimento decepcionante de que
um filme não tenha atingido sua expectativa e afirme ter apreciado mais o livro que o
filme. Neste sentido, pode-se afirmar que a profecia de Thomas Edison8, um dos
pioneiros do cinema, não se concretizou: “estou trabalhando numa invenção
extraordinária e em pouco tempo as crianças não precisarão ler nenhum livro” 9
Em uma transposição da literatura para o cinema, o filme deve permitir ao
espectador sentir-se como se estivesse folheando as páginas de um livro, acompanhando
personagens e suas aventuras, mas de uma forma completamente autônoma, a partir do
ponto de vista da câmera. O diretor tem por objetivo recriar o mundo fantástico contido
no livro, apropriando-se de um novo código: as imagens. A importância deste processo é
alertada por Eisenstein:
(apud
CUBAN, 1986, p. 9).
Trata-se de achar um equivalente criativo. Uma imagem visível, equivalente à imagem escrita pelo autor em uma maneira não visível (...). Importante é a imagem do pensamento do autor, sua ´imaginidade´. Essa é a coisa mais importante. (EISENSTEIN, 1993, p. 119/120).
Muitos teóricos afirmam que a literatura, por trazer consigo a aura da escritura, é
uma produção sutil e preciosa para a descrição dos sentimentos e emoções humanas. No
entanto, se considerarmos o hibridismo das produções cinematográficas, nos parece
certo afirmar que seu material expressivo permite uma infinidade de possibilidades
semânticas e sintáticas muito mais ricas. Segundo Robert Stam:
O cinema constitui um lócus ideal para a orquestração de múltiplos gêneros, sistemas narrativos e formas de escritura. O mais impressionante é a alta densidade de informação que se encontra à sua disposição. Se o clichê sugere que “uma imagem vale por mil palavras”, quantas vezes mais valem as características centenas de planos (cada um deles formado por centenas, se não milhares, de imagens) em sua simultânea interação com o som fonético, os ruídos, os materiais escritos e a música? (STAM, 2003, p. 26).
8 Thomas Alva Edison (1847-1931) precursor da revolução tecnológica do século XX e inventor do cinetoscópio, além de tantas outras contribuições para o desenvolvimento tecnológico e científico. 9 Tradução do inglês realizada pela autora.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Quando o filme traduz o espírito e a emoção entrelaçados nas palavras, suas
imagens possuem uma identidade única, embora conectada ao texto, seja
completamente diferente de sua fonte. Esse contexto nos convoca a refletir: há uma
forma correta de contar a história? É possível que a imagem substitua as palavras? A
especificidade do meio é fator determinante para a qualidade de uma obra?
No cinema ou na literatura, histórias como a de “Branca de Neve”, permeada de
narrativas fantásticas, conquistam grandes e diversos públicos, inúmeros admiradores,
além de venderem muitos livros ou estourarem bilheterias. Não é possível prever, nem
tampouco garantir, que um filme tenha maior sucesso que um livro.
Por outro lado, considerando a atração da humanidade por fábulas e a interação
entre literatura e cinema através das transposições, pode-se compreender que filmes
com elementos fantásticos, acabem provocando um grande impacto nas telas de cinema.
3 – BRANCA DE NEVE VAI AO AUDIOVISUAL
Muitas são as versões literárias do conto “Branca de Neve”, uma vez que sua
origem é controversa e foi mantida através dos tempos pela tradição oral. A versão dos
irmãos Grimm foi a mais conhecida na época e também a mais divulgada. Em outras
versões os anões são substituídos por mineiros ou por ladrões, o espelho pelo sol ou pela
lua, a madrasta dança até morrer ou é morta pelos mineiros. Cada versão traz consigo o
poder de retratar os fenômenos arquétipos de uma cultura, com o objetivo de satisfazer,
ainda que inconscientemente, o imaginário de um povo.
Apesar de tantas versões literárias, a segunda adaptação cinematográfica que
aconteceu em 1916, foi transposta a partir do conto dos irmãos Grimm.
Afim de estabelecer um comparativo entre os três objetos selecionados para este
estudo, escolhemos apenas uma cena em comum e que é descrita no conto original. A
cena a ser analisada, apresenta o momento em que a rainha – bruxa má – entrega o
pedaço de torta de maçã envenenado à Branca de Neve.
3.1 – BRANCA DE NEVE (1916)
Realizado em 1916, pela Famous Plasyer-Lasky Corporation, com produção de
Adolph Zukor e Daniel Frohaman, direção de J. Searle Dawley, “Snow White” pode ser
percebido como um bom exemplo de um cinema, que já havia passado por um período
de transformações, com atuações menos afetadas, personagens mais verossímeis, uso
de intertítulos, e muito mais próximos da literatura.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
O filme tem início com um intertítulo que norteia o espectador com relação ao
contexto da história e como um tradicional conto de fadas, obviamente, começa a ser
contado assim: “era uma vez uma linda rainha que desejava ter uma filha: branca como
a neve, com cabelos pretos como ébano e lábios vermelhos como sangue”.
A rainha teve esta filha e lhe deu o nome de Branca de Neve, uma princesa, que
desde cedo chamava a atenção por sua beleza. Após a morte de sua mãe, seu pai casou-
se novamente, com uma bruxa que havia se transformado em uma linda mulher. Ao
perceber que a beleza de Branca de Neve poderia ofuscar-lhe, a malvada madrasta
ordena a um caçador que mate a menina e como prova de seu feito, traga o coração da
princesa. O caçador leva a menina para a floresta e pede que ela fuja. A fim de enganar
a rainha, ele entrega-lhe o coração de um porco. A rainha dona de um espelho mágico, o
consulta para saber se há alguma mulher mais bela que ela. Para sua surpresa o espelho
lhe responde que Branca de Neve está viva, morando na floresta com sete anões. Irada,
a rainha deseja exterminar Branca de Neve e procura novamente a feiticeira para ajudá-
la a matar a bela princesa. A feiticeira a transforma em uma idosa, vendedora de tortas,
que leva consigo um pedaço de torta de maçã envenenado; ao ser mordida pela menina
a levaria para o sono eterno. Ao final do filme o espectador se surpreenderá, pois a
menina não estava morta, mas apenas engasgada pelo pedaço de torta.
A cena selecionada, para análise, inicia-se aos 54m14 em plano médio
apresentando a parte externa da casa dos anões, com quem Branca de Neve está
morando. À direita do quadro, entra em cena a malvada madrasta transformada em uma
idosa vendedora. Um rápido corte e pode-se ver o interior da casa. Branca de Neve está
sentada próxima a janela, costurando uma toalha. A perversa velhinha abre outra janela
que está à direita da menina e inicia um diálogo, conforme Figura 1.
É possível que soe estranho a quem lê esta descrição, por se tratar de um filme
silencioso. No entanto, a expressão das imagens é suficiente para explicar a ação. A
Figura 1 – A vendedora de tortas
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
personagem da velhinha simula balbuciar palavras, frases, sem que seja necessário que
o espectador as ouça compreende o que está acontecendo na trama. Os gestos
fisionômicos e corporais são mais importantes que o som da fala. Afirma Aumont:
A impressão de analogia com o espaço real produzido pela imagem fílmica é, portanto, poderosa o suficiente para chegar normalmente a fazer esquecer não apenas o achatamento da imagem, mas, por exemplo, quando se trata de um filme preto-e-branco, a ausência de cores, ou a ausência de som se o filme for mudo – e também fazer esquecer, não o quadro, que sempre permanece presente, mas o fato de que, além do quadro, não há mais imagem (AUMONT, 1995, p. 24).
Após este breve diálogo, saem de campo tanto a velhinha quanto Branca de Neve.
Um novo corte e agora a câmera exibe outro ângulo do interior da casa, onde a velha
oferece as tortas à Branca de Neve e eis que surge o primeiro intertítulo desta cena. Nele
está descrito uma breve explicação da narrativa e um pequeno diálogo entre as duas
personagens, que tem por função esclarecer ao espectador que será oferecido um pedaço
de torta de maçã envenenada a bela princesa.
Nesta cena é possível perceber que o uso do recurso dos intertítulos apresentando
fragmentos de diálogos, antes dos planos em que serão exibidas as falas, favorecem
bastante a compreensão do espectador com relação à trama.
Ao observarmos a Figura 2, sem que qualquer esclarecimento prévio nos fosse
fornecido, não seria possível compreender que a torta oferecida à Branca de Neve estava
envenenada. Seguindo esta linha, mais estranho ainda nos pareceria, que após receber a
torta, a menina, simplesmente cairia no chão como se estivesse morta, conforme
revelado na Figura 3.
Ainda que não tenha sido exibida a cena da menina mordendo a torta de maçã, é
possível que o espectador imaginativo crie estas imagens em sua mente, em uma
confusão entre a percepção e a representação. Complementa Avellar:
Figura 2 – A maçã envenenada
Figura 3 – O sono profundo
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Os letreiros usados nos filmes mudos para contar o que ainda não sabíamos dizer no cinema só com imagens podem ter sido um ponto de partida. Talvez ao escrever na tela as imagens que faltavam, o cinema tenha aprendido a contar histórias, e assim, sem se dar conta disto, tenha se acostumado à idéia de escrever filmes antes de filmá-los e a ver a literatura como um cinema antes do cinema: nos livros estavam estruturas de histórias e de formas de composição que poderiam ser adaptadas para o cinema (AVELLAR, 2007, p. 92).
Se considerarmos especificamente a cena escolhida para análise como um signo10
e o trecho do texto-fonte, dos irmão Grimm, correspondente a ela, como seu objeto
dinâmico11, é possível interpretarmos a cena como um legi-signo indicial12
. Uma vez que
a cena é permeada de elementos fantásticos (bruxa, feitiço, princesa, a entrega da
torta), a relação dela com ela mesma tem força de lei por remeter seu intérprete a um
conto de fadas, mais que isso, não remeteria a qualquer conto de fadas, mas sim, ao
conto específico “Branca de Neve”. Ao consideramos a relação do signo-cena com seu
objeto dinâmico texto-fonte, ela torna-se indicial, uma vez que entre ela e seu objeto há
uma relação existencial, ou seja, vai além de mera semelhança, embora ela envolva
uma, e é a modificação real do signo pelo objeto. A tradução semiótica desta cena fílmica
em relação ao texto literário, o manteve como fonte e origem e pode-se considerar o
trabalho do tradutor apenas no nível indicativo, ainda que resulte em uma nova produção
de sentido para seu intérprete, a partir da inserção das imagens no texto.
3.2 – BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES (1937)
Idealizado por Walt Disney, dirigido por David Hand e produzido pela Walt Disney
Feature, em 1937 é lançado nos Estados Unidos o primeiro longa-metragem de animação
“Branca de Neve e os Sete Anões”. Esta produção, além de ser a mais famosa versão do
conto de fadas, foi um marco para o cinema, pois a partir de então, tudo que surgiu no
gênero animação se baseou nela.
Sua trilha sonora foi gravada por uma orquestra de 80 músicos e a preocupação
com a dublagem foi tão excessiva, que levaram mais de 2 anos até que encontrassem
vozes capazes de traduzir o sentimento e a emoção que a trama exigia. Não foi a toa que
Walt Disney recebeu 7 Oscars13
10 No conceito peirceano um signo é aquilo que representa algo para alguém. O signo intenta representar um objeto. Não conseguimos pensar ou perceber se não houver o signo. É o mediador entre a coisa e uma mente interpretadora.
pela animação, além de um especial pelas inovações ao
gênero cinematográfico e trilha sonora.
11 Objeto dinâmico é a coisa em si. 12 O legi signo indicial na teoria peirceana é quando um signo em relação a ele mesmo, ou seja, em primeiridade, tem força de lei e este mesmo signo em relação a seu objeto dinâmico - em secundidade -, indica o existente. 13 Também recebeu o prêmio especial dos Críticos de Cinema de Nova Iorque e o Grande Troféu de Arte, no Festival de Veneza.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
A história é dramática e tem muito de horror, entretanto Walt Disney percebeu
que poderia dar leveza ao contá-la através de uma animação. Até aquele momento as
animações eram curtas, com no máximo 7 minutos e cenas engraçadas. Todos achavam
que a idéia era tolice e foi motivo de muitas críticas. Tanto a história da animação quanto
de sua produção é extraordinária. Após sua estréia em 21 de dezembro de 1937, Walt
Disney14 recebeu muitos telegramas dos grandes nomes da Indústria Cinematográfica,
afirmando que era um dos filmes mais importantes que já havia sido feito, sendo até
comparado pela crítica com “Nascimento de Uma Nação”15 (1915).Conquistou o publico
deixando-o aberto aos filmes de fantasia, e isso reverberou através dos tempos16
Foram muitos os questionamentos da época: quem iria querer assistir uma hora e
meia de desenhos? Como é que se poderia fazer isso? Os poderosos da indústria diziam
que 6 ou 7 minutos em animação iriam bem, mas um longa jamais, pois até então os
curtas animados se baseavam em gags engraçadas e para um tempo maior de produção
as palhaçadas se esgotariam. Outra crítica apontada foi em relação às cores fortes e
vibrantes, típicas de animações da época, que pela duração do filme machucariam os
olhos do espectador.
.
Diante destas críticas, Walt Disney não desistiu, entendeu que se houvesse uma
história sólida, com emoção, tragédia, salpicada com cenas engraçadas, lúdicas e ainda
oferecessem espaço para a fantasia, poderia dar certo. É neste contexto que se inicia a
associação entre o cinema e a animação, respeitando e usufruindo de suas
características, além de ser o momento que Walt Disney inicia seu processo de
transposição dos textos-fonte - a obra literária dos irmãos Grimm – para os textos
fílmicos.
A animação “Branca de Neve e os Sete Anões” segue a linha mestra do conto de
fadas, apresentando em sua trama todos os elementos fantásticos descritos no texto-
fonte, no entanto houve pontos da história que foram suprimidos nesta transposição,
possivelmente com o intuito de torná-la mais leve, por se tratarem de momentos de
violência e terror, ou até mesmo para reduzir tempo e custo de produção. No texto-fonte
a malvada madrasta, faz três investidas contra a vida da princesa: na primeira utiliza um
pente enfeitiçado, que após entrar em contato com os cabelos da menina ela morreria;
na segunda a perversa madrasta oferece-lhe uma fita para adornar sua cintura, onde
após o aceite ela amarraria com tanta força que deixaria a princesa sem ar; somente na
14 Informações extraídas das entrevistas contidas no Bônus do DVD “A Branca de Neve e os Sete Anões” – Disney 2005. 15 Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation) - dirigido por D.W. Griffith é um dos filmes mais expressivos da era do cinema silencioso devido suas inovações técnicas. 16 Um grande sucesso até hoje, “Branca de Neve” foi o vídeo infantil mais vendido nos Estados Unidos em 1995, seguido por “Rei Leão”(1994) e “Aladdin”(1992). (REBOUÇAS, 1996, p.181)
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
terceira investida, a velha madrasta oferecer-lhe-ia um pedaço de torta de maçã
envenenado.
A cena inicia-se após 1h09 de filme com Branca de Neve no interior da casa dos
anões, com quem está morando, após ter fugido da perversa madrasta. Em plano médio
é mostrado a jovem fazendo uma torta com o auxílio de diversos pequenos animais e
cantarolando uma melodia romântica. A seguir é surpreendida pela velha senhora de
aspecto característico de uma bruxa, que surge na janela à sua frente como pode-se
observar na Figura 4.
Até este momento nenhum diálogo fora estabelecido na cena. Entretanto os
recursos estilísticos utilizados na animação como: a expressão de medo e pânico tão bem
caracterizados na personagem central da trama, acompanhada dos olhares apavorados
dos pequenos animaizinhos, que até então esboçavam sorrisos e a suspensão da trilha
sonora extra diegética, foram suficientes para cumprir com o objetivo de preparar o
espectador para a tragédia que aconteceria ao final da cena.
Inicia-se um diálogo entre as duas personagens, onde ao final será oferecida a
maçã envenenada.
Figura 4 – O susto
Figura 5 – Um olhar inocente para o
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Bruxa: Você está sozinha meu bem?
Branca de Neve: Eu estou sim, mas...
B: E os homenzinhos não estão?
BN: Não, eles não estão.
B: Fazendo torta?
BN: Sim, torta de pêssegos.
B: A torta de maçã é que faz os homens ficarem
com água na boca. Uma torta feita com maçãs como esta!
BN: Parece deliciosa!
B: E, é. Você devia provar querida.
No diálogo transcrito acima, é possível perceber a evidente traição de Disney ao
texto-fonte, uma vez que, além de ignorar as outras duas visitas que a madrasta fez à
Branca de Neve, ressaltou somente este encontro. Talvez de forma inconsciente,
evidenciou a maçã que está em nossa tradição, inseparável do mito de Adão e Eva, como
símbolo do desejo. É o ato de morder a maçã que altera o destino de Branca de Neve,
morre uma menina e no final da trama nasce uma mulher. Neste sentido, pode-se pensar
o veneno como a sexualidade. No conto dos Grimm, não há este diálogo, e nem tão
pouco uma maçã lhe é oferecida, mas sim, como suposta prova de gratidão pelo
banquinho para descansar e o copo de água para matar-lhe a sede – a idosa vendedora –
oferece a menina um pedaço de torta de maçã.
Este diálogo associado aos elementos da animação, que nos parecem ter
dimensões psíquicas, ou seja, emoções internas e motivação de personalidade;
relacionam intimamente as personagens a narrativa e criam um misto de: impressão de
realidade e mundo das fantasias, típicos do hibridismo cinema e animação.
Neste sentido, nos parece certo afirmar que, a transposição desta animação não
tem o desejo de expressar puramente a realidade, mas sim uma sugestão, uma livre
representação, com encanto e magia.
Embora esta produção, já nos primeiros segundos de apresentação, nos remeta a
um forte elo entre o cinema e a literatura, através da imagem de um livro se abrindo e
se finde com a imagem do livro se fechando é certo que, o filme conseguiu se destacar
das palavras escritas, convertendo-o em algo diferente e original. Ao que parece, esta
era uma preocupação de Disney, como pode-se perceber na afirmação abaixo:
Acho que colocamos o conto de fadas na moda outra vez. Ou melhor, a nossa própria receita de mitologia teatral. O conto de fadas em filme – criado com a magia da animação – é equivalente às grandes parábolas da Idade Média. Criação é a palavra. Não adaptação. Não versão. Podemos traduzir o antigo conto de fadas a seu equivalente sem perder a encantadora aura e o sabor de sua característica do
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
‘era uma vez’. Acho que nossos filmes proporcionaram um novo respeito do adulto pelo conto de fadas. Provamos que o antiqüíssimo entretenimento do conto de fadas não reconhece jovem nem velho. (DISNEY apud SURREL, 2009, p. 35).
3.3 – A HISTÓRIA INTERATIVA DE BRANCA DE NEVE (2003)
A era digital, como sintoma da pós-modernidade, propicia circulação mais fluida e
articulações mais complexas dos gêneros e formas de cultura, produzindo o cruzamento
de suas identidades. Novos objetos são produzidos, a partir da convergência entre
comunicação, interfaces homem-máquina e tecnologias da informação, que tem como
características fundamentais: a) imersão – novos formatos de mídias que envolvem o
espectador em múltiplas linguagens, b) interdisciplinaridade - fusão das novas mídias
com formas artísticas, c) interatividade – possibilidade de novas relações entre
produtores e espectadores possibilitando novas constituições narrativas. Estas
transmutações colocam questões quanto aos novos objetos criados a partir da era
digital:
(...) na era pós-moderna, todas as artes se confraternizam: desenho, fotografia, vídeo, instalação e todos os seus híbridos. Cada fase da história tem seus meios de produção da arte. Vem daí o outro desafio do artista que é enfrentar a resistência ainda bruta dos materiais e meios do seu próprio tempo, encontrando a linguagem que lhe é própria, reinaugurando as linguagens da arte. Os meios do nosso tempo (...) estão nas tecnologias digitais, nas memórias eletrônicas, nas hibridizações dos eco-sistemas com os tecno-sistemas e nas absorções inextricáveis das pesquisas científicas pela criação artística, abrindo ao artista horizontes inéditos para a exploração de territórios da sensorialidade e sensibilidade. (SANTAELLA, 2002, p. 13).
É nesse contexto que um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São
Carlos, realizou em 2003 o vídeo “A História Interativa de Branca de Neve”, produzido
pela própria universidade e dirigido por Ana Vitória Joly. O vídeo serviu como base de
estudo e pesquisa para análise do comportamento do espectador diante de uma
narrativa, tradicionalmente linear, que surge a sua frente lhe permitindo intervir no
direcionamento da trama.
Segundo Ana Vitória Joly (2003) existem muitas possibilidades de intervenção nos
caminhos narrativos desta produção. A partir da escolha do espectador, há percursos em
que o espelho diz ser a rainha a mulher mais bela do mundo; em outro percurso, por
conseguir matar Branca de Neve, a perversa rainha casa-se com o príncipe. Outro
caminho muito diferente do conto dos irmãos Grimm, é aquele em que a rainha pede ao
caçador para matar o príncipe. O caçador o mata e leva seu coração para a rainha; os
anões encontram o príncipe morto e realizam a inserção do coração de um animal em
seu peito. No entanto, o príncipe continua em seu sono eterno. Branca de Neve, ao vê-lo
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
em seu leito de morte, o beija e o belo príncipe ressuscita. Enfim, são inúmeros
percursos e desfecho para uma mesma história.
A interface com o objeto é simples e intuitiva, não precisa de instruções de uso,
palavras ou frases curtas que são exibidas como botões, convidam o espectador a
interagir e assim definir a sequência da história.
A emergência do homem pela participação na construção das narrativas,
expressando desejos e decisões, é uma característica inerente ao usuário digital, fruto da
pós-modernidade. Nesse sentido, a imagem do espectador imaginativo é substituída pelo
espectador atuante – multimídia -, cuja presença é decisiva para constituição do objeto
estético.
Não é mais tampouco um leitor contemplativo que segue as sequências de um texto, virando páginas, manuseando volumes, percorrendo com passos lentos a biblioteca, mas um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multidisciplinar, multisequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens, documentação, música, vídeo e etc (SANTAELLA, 2004, p. 33).
Pensar a interatividade e a imersão no audiovisual é tirar o espectador da
passividade, é tratar o filme como campo em expansão não só no teor comunicacional,
mas na sua própria materialidade.
Assim, nos prestar a análise da cena em que a perversa rainha entrega a maçã à
Branca de Neve, se faz completamente dispensável, uma vez que dentre tantas
possibilidades de percurso neste objeto, esta poderá ser excluída da narrativa por opção
do espectador, ou se fizer parte da composição, dependendo do caminho trilhado poderá
não ser o clímax da história.
Neste sentido, é possível afirmar que a literatura se fez pilar fundamental para
esta produção, uma vez que as referências são inegáveis, tanto em seu apelo explicito à
história, que já faz parte do imaginário do espectador, quanto pela sua dinâmica não
linear, já presente em livros interativos da década de 70.
Muito embora, este objeto faça referência ao texto-fonte se apropriando de
personagens, elementos fantásticos, parte da narrativa e até mesmo aludindo
semelhança em seu título, pode-se compreender que se trata de uma produção inspirada
na referência literária, entretanto, muito distante da mesma, abrindo espaço para um
processo interpretativo baseado na intensa participação do espectador, uma vez que este
é convocado a dar sua contribuição, produzindo um novo contexto baseado em suas
experiências e seus desejos, abrindo a possibilidade de uma nova produção de sentido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
O que é transposto de um sistema semiótico para outro, como neste caso, da
literatura para o cinema, é o significado do signo. O signo, por representar seu objeto e
ao transmitir um significado, irá além de sua fonte, da idéia original. A isso Peirce
denominou interpretante. Considerando que todo processo de tradução é um ato de
produção de sentido (interpretante), é possível afirmar que, um sujeito ao experimentar
um signo (o texto) que refere-se a um fenômeno do universo maravilhoso, cria um
significado em sua mente. Esse significado é um signo equivalente ao primeiro, contudo,
a partir desta experiência singular, transforma-o em outro signo (filme). Segundo
Santaella:
O homem só conhece o mundo porque, de alguma forma, o representa e só interpreta essa representação numa outra representação, que Peirce denomina interpretante da primeira. Daí que o signo seja uma coisa de cujo conhecimento depende do signo, isto é, aquilo que é representado pelo signo. Daí que, para nós, o signo seja um primeiro, o objeto um segundo e o interpretante um terceiro. Para conhecer e se conhecer o homem se faz signo e só interpreta esses signos traduzindo-os em outros signos (SANTAELLA, 1985, p. 11).
Nas transposições analisadas, independente se bem ou mal sucedidas, nos parece
certo afirmar que a tradução intersemiótica do conto de fadas, dos irmãos Grimm, para
os produtos audiovisuais, ainda que sejam consideradas as características intrínsecas de
cada objeto, o conto já é uma representação de outra representação - a memória
popular -, e o seu primeiro objeto está, assim infinitamente afastado. Se pensarmos,
especificamente na produção de Walt Disney, compreende-se que sua transposição, por
ter capturado de forma tão abrangente o imaginário do espectador, tornou-se símbolo
legítimo dos contos de fadas, ou seja, a transposição entendida como uma tradução
intersemiótica, ilustrou perfeitamente o processo de desenvolvimento de um signo
simbólico longe do objeto inicial, origem de sua significação. Para justificar esta
afirmação, seria suficiente, nos tempos atuais, perguntarmos a um indivíduo,
independente da idade, quem é o autor de Branca de Neve.
De um autor para outro, divergências são constatadas, principalmente nos
seguintes elementos: aparência da filha desejada pela rainha, floresta, sete anões,
caçador, maçã, investidas da madrasta e morte da bruxa (rainha má). Por trás desses
elementos há toda uma ideologia, ou uma simbologia que se mostra tão rica quanto ao
número de interpretações possíveis de serem feitas. Essa aparente traição ao texto-fonte
é uma tentativa de preservar a significação original, não de modo especular, que seria
impossível, mas no sentido de que um interpretante gera signos culturais diferente ao
ser transposto de um ambiente para outro, onde diferentes indivíduos experimentarão
estes novos signos.
Assim a máxima continua: “quem conta um conto aumenta um ponto”.
III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
REFERÊNCIAS
AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. Campinas,SP:
Papirus, 1995.
AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1987.
CUBAN, Larry. Teachers and Machines. New York: Teachers College Press, 1986.
EISENSTEIN, Sergei. Reflexões de um cineasta. Trad. Gustavo A. Doria. Rio de
Janeiro: Zahar, 1969.
GRIMM, Jacob e GRIMM, Wilhelm. Contos de Fadas. Belo Horizonte: Villa Rica Editoras
Reunidas, 1994.
JOLY, Ana Vitória. Programação educativa destinada à TV interativa. São Carlos:
UFSC – Universidade Federal de São Carlos, 2003. 32p. Monografia apresentada no
Departamento de Artes e Comunicação.
LACAN, Jacques. (1969-1970). O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise.
Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
MACHADO, Arlindo. Pré-Cinemas & Pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.
SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. Coleção Primeiros Passos. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
_____________, Lúcia. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson, 2002.
_____________, Lúcia. Comunicação e Semiótica / Lucia Santaella, Winfried Nöth.
São Paulo: Hacker Editores, 2004.
STAM, Robert. Introdução a teoria do cinema. Tradução Fernando Mascarello. São
Paulo: Papirus, 2003.
SURELL, Jason. Os segredos dos roteiros da Disney: dicas e técnicas para levar
magia a todos os seus textos. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Panda Books, 2009.