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MESA REDONDA: EPISTEMOLOGIA, COMPLEXIDADE E CIÊNCIAS
DA EDUCAÇÃO
Epistemologia – complexidade e Ciências da Educação
BOAVIDA, João ([email protected])
Universidade de Coimbra
1. Análise de uma evolução
A fundamentação filosófica e epistemológica do conhecimento científico
assentou tradicionalmente na ideia de que as verdades científicas possuíam uma
objectividade indiscutível, conferida pela verificação empírica e pela coerência
intrínseca, de natureza lógica. Muitos dos esforços de fundamentação da ciência, na
linha dos positivistas, acabaram por descobrir as suas limitações, uma vez que
chegaram à conclusão de que não há teorias absolutamente incontestáveis, e de que os
conhecimentos não podem construir-se exclusivamente sobre uma verificação factual,
além de que é um modo de simplificar a realidade, ou seja, é um factor de
empobrecimento da própria realidade e da sua compreensão.
Morin, (1994, 128), considera que «o novo curso científico, há um século, fez
rebentar o quadro de uma racionalidade estreita. Observa-se a irrupção da desordem
nas ciências físicas (termodinâmica, microfísica, teoria do universo): [e] a irrupção de
antinomias lógicas no âmago do conhecimento microfísico e do conhecimento
antropossociológico». O que implica a abertura de uma crise epistemológica, de
consequências ainda difíceis de avaliar, é certo, mas que nos exige reconceptualizações
profundas, inclusive na própria concepção de ciência.
Em função desta nova perspectiva, a história das ciências deixa de ser
concebida como uma evolução contínua, um processo pregressivo, mas antes «como
uma série de revoluções desracionalizantes, provocando, cada uma, nova
racionalização», como diz ainda Morin, (1994, 128). Neste contexto, não se pode deixar
de invocar os conceitos de «paradigma», de Kuhn, (1972, 1989), e de «programa de
investigação científica», de Lakatos, (1998, 1999), para realçar que muitos factores
científicos se encontram condicionados por dinâmicas de variada natureza, como
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sociais, institucionais e ideológicas. Os princípios, os meios e as práticas científicas
estão, pois, dependentes dos contextos históricos, facto que contesta a ideia de que a
ciência paira acima das incertezas humanas e se constitui de uma forma neutra.
Com Popper (2006) transformou-se o conceito de ciência, deixando de significar
certeza e segurança, para se tornar num saber mais conjectural e hipotético, aberto
continuamente à revisão crítica e à revisibilidade. Assim, hoje, quer o universo das
ciências da natureza quer o das ciências sociais e humanas não suportam mais os
termos simplificadores do paradigma positivista, e, portanto, em boa medida, essas
maneiras de ver e fazer a ciências são já inaceitáveis. O que não significa pôr de parte a
simplificação, ou a categorização que toda a ciência implica, mas que teremos que
relativizar essa perspectiva, torná-la menos dominadora e, por outro lado, dinamizá-la
e inseri-la num paradigma de complexidade, mais consentâneo com a realidade mesma
e a necessidade de a compreender.
Mas esta noção é discutível, ou porque «a complexidade está no código e não na
natureza das coisas», como diz Moigne (1999, 185), ou, ao contrário, pela complexidade
das próprias coisas, que dificilmente se aprisionam em códigos. E portanto poderemos
perguntar se será a complexidade uma criação do espírito que quer entender, ou algo
que se encontre nos próprios fenómenos, para os quais os modos habituais de
compreender são fracos. Nicolescu, (2000, 31), considera que «a complexidade das
ciências é, antes de mais, a complexidade das equações e dos modelos. Ela é, portanto,
produto do nosso espírito, que é complexo por natureza. Porém, essa complexidade é a
imagem reflectida da complexidade dos dados experimentais, que se acumulam sem
parar. Está, também, portanto, na natureza das coisas». A realidade complexifica-se à
medida que o espírito humano a investiga, e este torna-se mais profundo e subtil na
medida em que se confronta com uma realidade cada vez mais complexa. Esta visão
parece ser a que mais se aproxima da realidade.
2. Para entender a complexidade
É quando surgem dificuldades empíricas e lógicas, tanto nas ciências físicas
como nas humanas e sociais, que a complexidade se manifesta, e elas aparecem porque
o paradigma da simplificação se revela incapaz de solucionar os problemas entretanto
surgidos. A complexidade aparece, à partida, como «ideia de (…) imperfeição, uma vez
que comporta a incerteza e o reconhecimento do irredutível. (…) A complexidade
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reside precisamente na relação entre o simples e o complexo, porque esta relação é
simultaneamente antagónica e complementar» (Morin, 1996, 102).
Existe uma complexidade que tem que ver com a desordem no universo, e
outra ligada às contradições lógicas nas concepções e modelos que pretendemos aplicar
ao real. Podemos então dizer que o complexo resulta do mundo empírico e da sua
incerteza, da incapacidade de estar seguro, de poder formular leis sobre tudo, de
conceber uma ordem absoluta, e, por outro lado, da incapacidade de evitar as
incoerências e as contradições, ao mesmo tempo que estas mesmas condições nos
levam a constantes tentativas de superação.
A razão procura incessantemente uma visão coerente e lógica do universo, mas
vê-se obrigada a lutar por uma racionalidade que vai emergindo do diálogo entre o
espírito e a realidade, frequentemente misteriosa e irracional. Como diz Morin, (1996,
14), a complexidade resulta, pois, «da dificuldade de pensar, porque o pensamento é
um combate contra a lógica, com e contra as palavras, com e contra o conceito». (…) E
acrescenta, num registo já um pouco diferente: «creio que a filosofia tem encontrado
várias vezes a complexidade. Mas hoje este problema é colocado pela enorme
transformação que está a operar-se nas ciências da natureza e do homem, pelo menos
nos seus sectores de ponta».
3. A inteligibilidade complexa
O que é, pois, pensar, tendo em conta a complexidade do real? «Como se pode
conceber o modelo de um fenómeno, que o exprima sem o esgotar, e que dê conta das
suas complexidades possíveis através de uma complexidade inteligível?» (Moigne
(1999, 190). A resposta está numa racionalidade aberta ao próprio irracional, ou seja, à
desordem, às aporias e aos paradoxos, nunca esquecendo a necessidade de uma síntese
compreensiva, ainda que transitória.
Neste sentido, não significa que se ponha de parte a exigência da evidência e da
coerência para a substituir pela ambiguidade e pela contradição; o que se destaca são
os seus limites de validade e a necessidade de os relativizar; promovendo uma atitude
capaz de estabelecer o diálogo entre a certeza e a incerteza. Morin (1994, 254 -255),
propõe uma nova paradigmatização assente em «treze mandamentos», que, noutra
obra, Morin (1995, 106-109) reduz a três macro-princípios (o princípio dialógico - que
permite conceber a realidade composta por contrários que se opõem e completam; o
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princípio da recursão organizacional - que permite que os efeitos de um processo se
transformem simultaneamente em produtores e causas; o princípio hologramático – que
nos impede conceber o todo sem conceber as partes, e vice-versa). Estes princípios
constituem de facto a estrutura do paradigma da complexidade.
Alguns destes princípios têm fundamento no contexto das mais diversas
ciências, e uns têm tido um impacto mais forte do que outros no pensamento
epistemológico. Exemplo disso é o da relação entre sujeito e objecto, na investigação
científica (princípio 8). «Na visão tradicional da ciência onde tudo é determinismo, não
há sujeito, não há consciência, não há autonomia». Mas «o facto de se poder dizer “eu”,
de ser sujeito, implica ocupar um lugar, uma posição (…) no centro do seu mundo, [e
isto] para poder tratá-lo e tratar-se a si mesmo». (Morin, 1995, 95-96). Há no sujeito dois
vectores opostos, mas complementares: o da autonomização (e auto-organização), e o
da dependência, porque para se ser sujeito é necessário ser ao mesmo tempo autónomo
e dependente. O sujeito, como todas as realidades complexas, é um processo a
constituir-se, comunicacional e dialógico.
Mas a palavra objecto não é menos complexa, e deve ser compreendida nas suas
múltiplas relações com os outros objectos, que o fazem ser aquilo que ele é – na sua
história e na sua trajectória. O objecto complexo é um lugar de intersecção de
problemáticas diferentes e a sua abordagem deve ser transdisciplinar. Por outro lado,
como é sabido, de facto não devemos (ou não podemos?) entender o objecto sem o
sujeito.
Esta problemática da complexidade encontra nas ciências humanas e sociais o
seu campo de excelência, pela complexidade acrescida que elas comportam, e vai ao
encontro da problemática das ciências da educação de uma maneira mais acrescida
ainda, dando-lhe um estatuto muito especial. De que modo?
4. A identidade das ciências da educação
Se tivermos em conta o quadro das ciências sociais proposto por Piaget, (1971)
(ciências nomotéticas, históricas, jurídicas e filosóficas), é evidente que as ciências da
educação ultrapassam o campo específico de cada um delas, embora precisem da
contribuição de muitas. Sendo assim, qual é a especificidade das ciências da educação
dentro das ciências humanas? Para alguns, (Pérez Gomez, 1978, 152), «o objecto das
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ciências da educação, na sua dimensão descritiva-explicativa, tem um carácter
subordinado, depende das elaborações teóricas das ciências humanas». Por sua vez,
Carvalho (1988, 79), considera que «as ciências da educação estão longe de constituírem
um novo domínio científico, não chegando sequer a ser um agrupamento a inserir no
contexto das ciências humanas». Muitos outros autores se poderiam alinhar segundo esta
ideia. Ora, é exactamente esta perspectiva, a concepção que alimenta esta dependência das
ciências da educação relativamente às ciências humanas, que parece contestável. Não no
sentido de que não lhe pertençam, pois é óbvio que as ciências da educação pertencem às
ciências humanas, mas no sentido de que aquelas, as ciências da educação, são as mais
próximas e legítimas representantes de uma matriz – a Educação - de onde irradiam, e
para onde podem convergir as ciências humanas e sociais enquanto ciências particulares e
diversas.
4.1. Repensando o problema
O campo de investigação das ciências humanas e das ciências da educação não é,
nem pode ser, completamente cientificável. Mas isto não deve impedir que lutemos contra
os obstáculos epistemológicos que o impedem. Até porque não é aceitável, à luz do
paradigma da complexidade que a complexidade do seu objecto exige, uma concepção
que reduza a cientificidade aos critérios do positivismo.
Temos, portanto, que reconhecer um estatuto específico para as ciências da
educação, em virtude da multiplicidade de domínios, uns científicos, (e de diversos tipos
de ciências) e outros não, que concorrem para a educação, e que, na perspectiva educativa,
e em função dela, se articulam, ou terão que se articular. Sendo assim, a perspectiva que
submete as ciências da educação às ciências humanas pode ser contrariada por outra que
coloque todas estes domínios científicos numa dependência em relação à educação,
porque, de facto, é isso que acontece. Pressupõe-se, é necessário, um conceito de educação
com o peso que resulta da natureza e da centralidade que lhe pertencem; isto é, uma
realidade complexa de conceitos e de práticas através dos quais o educando se transforma,
mediante processos espontâneos e sistemáticos, e sempre dentro de um contexto cultural e
social, como de facto acontece.
É claro que as ciências da educação, na medida em que vão solicitar conhecimentos
a essas ciências, dependem delas, ou parecem depender. Mas esta visão será sempre uma
perspectiva exterior e estática, destituída da funcionalidade científica, da dinâmica própria
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da ciência e da sua investigação, e que é a que deriva dos problemas e da necessidade de
os resolver; ou seja, não tem verdadeira dimensão educativa, nem possibilidade de
interpretação educativa. Ora, a verdade é que há uma matriz educativa e pedagógica
muito anterior (obviamente anterior às ciências humanas enquanto tal) onde as
problemáticas das actuais ciências da educação têm já cabimento e onde ganharam todo o
seu sentido. Sentido este que tem de ser visto tanto em função de um ponto de partida,
como de um ponto de chegada, que ultrapassam, e sempre ultrapassaram, o domínio
científico. Por isso é que só num conceito abrangente de educação estes extremos
adquirem verdadeira razão de ser, legitimam o seu estatuto e a sua função e, por outro
lado, só integrando os múltiplos contributos das ciências da educação no conceito e na
função educativa estas se tornarão modernas, eficazes e funcionais.
4.2. A educação como radical comum
Por outro lado, quer as ciências humanas quer as ciências da educação assentam no
radical educação; esta é o pressuposto e o referencial último de toda a cultura, e, portanto,
de todas as ciências, já que todas elas são emanações daquela, apesar das especificidades
metodológicas que exigem, ou venham a exigir. A ligação das ciências da educação à
radicalidade e à centralidade do fenómeno educativo confere, portanto, a estas ciências
uma especificidade que não só impossibilita a sua dissolução no campo das ciências
sociais e humanas, como, menos ainda, as pode reduzir a um produto posterior ou
derivado delas; e isto porquê? Porque as vias de desenvolvimento científico e conceptual,
e as dependências predominantes são inversas às desta perspectiva.
Não é, portanto, possível compreender as ciências da educação fora do conceito
mais largo de educação, porque é esta que, de facto, lhes dá sentido e unidade. A relação
entre cultura e educação dá, por outro lado, a esta, uma primazia e uma centralidade
indiscutíveis, e torna impossível a existência de uma sem a outra, o que implica uma
radical mudança de perspectiva, como já se referiu acima. As ciências da educação,
portanto, antes de derivarem das ciências humanas, ou de serem integradas nelas, como
vulgarmenre se pretende, pertencem, por origem e natureza, à educação, uma vez que esta,
além de ser prioritária a todas as manifestações culturais e científicas, facto que não pode
deixar de ter implicações epistemológicas, é o pessuposto e a referência de toda a
investigação educacional. A radicalidade e a ancestralidade do pressuposto educativo (nos
processos de socialização e enculturação) garantem uma certa identidade das ciências que
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concorrem para o processo educativo, visto na sua concepção mais geral. Além disso, a
dinâmica da investigação educacional, as suas problemáticas determinantes, são
educativas e não psicológicas, sociológicas, biológicas, neurológicas ou de qualquer área
científica que possa vir a ser solicitada para a compreensão do fenómeno educativo. Com
frequência se arregimentam as investigações educacionais no campo da psicologia ou da
sociologia ou da história, por exemplo, mas é óbvio que são pespectivas enviesadas de
uma investigação, que darão resultados psicologizantes, sociologizantes ou historicizantes
e não especificamente educativos.
4.3. Ciências humanas e irredutibilidade do campo educativo
A prática educativa, em virtude do seu carácter fundamental, anterior e
constituinte de todas as manifestações da cultura humana, e identificando-se com o
processo de hominização e humanização, levanta problemas, cria hipóteses, exige
princípios explicativos, para os quais, hoje, não podemos evitar um processo de
cientificação como o das ciências da educação. Estas apareceram para que se fosse
tornando objectivamente compreensível o referido processo, e para que se fossem
podendo resolver, com o fundamento científico possível, os problemas educativos da
praxis humana. É curioso, por outro lado, verificar que isto só se tornou possível quando
começou a haver condições científicas, isto é, investigação e conhecimentos suficientes nas
diversas ciências que para o processo concorrem, o que justifica a dimensão científica que
o processo hoje não pode deixar de ter, mas este facto não lhe retira a radicalidade
educativa como base.
Nesta perspectiva, os conceitos e as práticas educativas, em toda a sua
complexidade, recuperam, para si, as ciências da educação, entendendo por isto todas as
contribuições científicas que já assim se consideram, e as que poderão vir a ser necessárias;
impondo-lhes a problemática educativa uma unidade, uma estrutura e uma força que as
transforma numa realidade científica própria e dinâmica. É óbvio que a partir desta
concepção unitária todas as problemáticas educativas se vêem cada vez mais enriquecidas
com os contributos científicos que os diversos processos de cientificação moderna
possibilitaram, e a própria especificidade da investigação educativa vem completar.
E isto segundo uma matriz multidisciplinar e uma co-disciplinaridade
fundamental para a funcionalidade na investigação. De facto, para além dos temas que as
ciências humanas e sociais desenvolvem, e com que podem enriquecer as ciências da
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educação, há muitos outros que escapam a todas elas, «como a selecção e articulação do
saber, a pressão da mudança económica, política, tecnológica, social e cultural, a
autonomia da instituição educativa, novas formas de ensinar e de aprender na sociedade
impregnada pelas novas tecnologias da informação e da comunicação, o sentido da
formação e o papel do professorado», como refere Sanchez Gil et al (1997, 105). Como
estudar estas matérias desinseridas da educação e das problemáticas e funcionalidades
que ela determina?
E por outro lado, tomemos, por exemplo, a investigação que se produz ao nível da
sala de aula -- didácticas, planificação, relação pedagógica, disciplina/indisciplina,
avaliação, metodologias pedagógicas, tecnologias educativas, e os múltiplos problemas
que cada um destes domínios levanta -- a que domínio científico deverão pertencer se não
for às ciências da educação? E, por outro lado ainda, como compreender estas
problemáticas à luz das ciências humanas e sociais como domínio prioritário e delas
derivadas? A partir de que hipóteses metodológicas? E de que domínios a investigar? E
como compreender e interpretar tudo isto fora da educação e do seu referencial? É claro
que estas áreas de investigação dizem também respeito a domínios integráveis nas
Ciências Humanas, mas sê-lo-ão sempre numa segunda ordem de ideias, na medida em
que elas pertencem, antes e necessariamente, aos domínios das ciências da educação,
porque são efectivamente problemas gerados pelas situações educativas e estudados e
investigados em função dessa realidade. É nesta perspectiva que Simões (1989, 17)
considera que, uma vez esclarecido o objecto da educação (que, numa perspectiva de
fundamentação, é prioritário, mas também o é numa perspectiva antropológica e cultural)
«ela seria susceptível de esclarecer o estatuto epistemológico da (s) ciências (s) da
educação».
Ao ter em conta, pois, a originalidade e o carácter fundamental da prática
educativa na raiz das culturas e das sociedades, a sua incontornável radicalidade cultural,
somos obrigados a reconceptualizar não só os conceitos de educação e de ciências da
educação, mas também o próprio conceito de ciências sociais e humanas e a relação que se
estabelece entre estes domínios.
É de justiça assinalar que, já em 1946, em Fundamento existencial da pedagogia, num
texto com mais de sessenta anos, portanto, Delfim Santos (1973, 488) considerou que: «a
psicologia não é um instrumento ao serviço da educação, mas sim a educação o
fundamento da psicologia. A relação que a história nos apresenta entre psicologia e
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educação é, pois, inversa daquela que tradicionalmente foi admitida. E ainda a história nos
pode mostrar que são os pedagogos quem orienta a psicologia e não a psicologia os
pedagogos. (…) Podemos afirmar que a finalidade da educação é o desenvolvimento
psicológico do homem. Não é a psicologia que serve a educação, mas a educação a única
possibilidade de o ser humano promover e conhecer o seu progresso psíquico». O mesmo
autor lamentará ainda que «é estranho que, de facto, o problema tenha sido tão
escandalosamente invertido» (Santos, 1973, 450). É óbvio que, hoje, a própria psicologia
ganhou autonomia, e, portanto, a relação entre os domínios alterou-se, mas a perspectiva
histórica mostra bem o valor matricial e referencial da educação, enquanto fundamento, e
o da pedagogia geral clássica, enquanto componente da problemática prática e de
aplicação. A este propósito convém também lembrar que Simões, no texto acima citado,
(1989, 17), considera que o estatuto epistemológico das ciências da educção não é
susceptível de ser esclarecido sem o «específico» pedagógico. Vai na mesma linha a
concepção da educação como verdadeiramente o «alfa e o ómega» das ciências da
educação (Amado e Boavida, 2005, 111 - 128). Conceitos que poderemos interpretar como
aproximações ao conceito de «especificiamente educativo», que Boavida e Amado (2006,
159 - 173), desenvolvem e consideram central para compreender a especificidade
epistemológica desta problemática.
5. Conclusão
Concluímos que as abordagens que as diversas ciências proporcionam à educação,
embora legítimas e até indispensáveis, não têm condições para proporcionar a
inteligibilidade específica e totalizadora que a educação exige. Poder-se-á dizer, como
Canário, (2005, 25), que «a questão que hoje se coloca é a de saber como guardar e
aproveitar a riqueza da diversidade de “olhares” possíveis sobre o social, sem que essa
diversidade seja construída com base numa abordagem analítica que concebe a realidade
social como divisível em fatias», e «que mais do que resolver “conflitos” fronteiriços está
hoje em causa reconceptualizar a abordagem social, multiplicando a possibilidade de
olhares multirreferenciais». O que implica uma aceitação da complexidade como uma
realidade a enfrentar, e não a evitar, e daqui, uma nova concepção científica para dar conta
dela e, portanto, consequentemente, uma nova concepção da realidade.
De facto, a investigação é feita de aspectos, e segundo perspectivas científicas
particulares, mas todos eles são indispensáveis à inteligibilidade, e esta tem que assentar
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na globalidade exigindo a racionalidade própria do paradigma da complexidade. Por
outro lado, é óbvio que, para se obter a inteligibilidade do fenómeno educativo, é
indispensável, hoje, e no estado actual da investigação e da exigência científica, o
contributo das ciências da educação. Considerar que isto é desnecessário, como alguns
ainda fazem, é um puro absurdo obscurantista. Há, digamos assim, um patamar de
inteligibilidade do fenómeno educativo, que é garantido por estas ciências, mediante os
contributos científicos que proporcionam. Compreensão resultante de um nível de
exigência e com um caudal de informação que era impossível há um século atrás, visto
que as ciências que concorrem para o esclarecimento da educação, ou não existiam ou
estavam ainda numa fase rudimentar do seu desenvolvimento.
Ao analisar o fenómeno educativo na perspectiva das ciências da educação teremos
que o compreender num quadro multidisciplinar, que capte a sua complexidade, e que
relacione vertentes para as quais, na perspectiva de uma qualquer disciplina em
particular, não se estaria conceptualmente preparado. O campo educativo aparece assim
como um enorme domínio potencial pela dinâmica de investigação, de interpretação e de
compreensão, interdisciplinar e co-disciplinar, que a investigação educacional põe a
funcionar, e que, pela sua radicalidade e fundamentalidade humana e social, terá que ser
abordada na complexidade que a caracteriza.
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