episÓdios da transformaÇÃo urbana de … · de seu solo é verde florestal e 10,5% é verde...

20
104 ARQTEXTO 17 EPISÓDIOS DA TRANSFORMAÇÃO URBANA DE BARCELONA EPISODES IN THE URBAN TRANSFORMATION OF BARCELONA Zaida Muxi Tradução espanhol-português/espanhol-inglês: Equipe editorial 1

Upload: trinhlien

Post on 08-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

104 105

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

EPISÓDIOS DA TRANSFORMAÇÃO URBANA DE BARCELONAEPISODES IN THE URBAN TRANSFORMATION OF BARCELONA

Zaida MuxiTradução espanhol-português/espanhol-inglês: Equipe editorial

1

104 105

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

INTRODUÇÃOPara descrever as transformações de Barcelona devidas

a mega-eventos, apresentarei brevemente algumas carac-terísticas territoriais, históricas e urbanas da cidade.

Barcelona é uma cidade relativamente pequena, delimi-tada por dois rios, o Besòs a nordeste e o Llobregat a oeste, o Mediterrâneo a leste e a serra da Collserola a noroeste. Os rios são, ao mesmo tempo, limites e saídas naturais da cidade. A fundação de Barcelona deve-se ao imperador romano Augusto como Colônia de Direito Romano, com o nome de Colonia Iulia Augusta Paterna Fauentia Barcino, por volta do ano 10 a.C. Podemos dizer que Barcelona é um quadrado de cerca de 10 km por 10 km, com uma área de 102,2 km2 e com pouco mais de 1,6 milhões de habi-tantes em janeiro de 2009. É uma cidade muito densa, com 15.872 hab/km2, sobretudo se consideramos que 17,6% de seu solo é verde florestal e 10,5% é verde urbano.

Até meados do século XIX a cidade cresceu dentro do recinto medieval. Motivos de segurança da coroa espa-nhola impediram a demolição das muralhas, assim como a construção extramuros. Além dos limites de segurança, levantavam-se no território adjacente à cidade pequenos povoados que foram anexados a Barcelona a partir da construção do Ensanche de Idelfons Cerdà: Sants, Les Corts, Sant Gervasi de Cassoles, Sarriá, Gràcia, Sant Andreu del Palomar e Sant Martí de Provençals.

Em 1859 foi autorizada a demolição das muralhas. Bar-celona era a cidade mais densa na Europa, com 859 habi-tantes por hectare, enquanto Londres tinha 86, Paris 356 e Madrid 324 habitantes por hectare. Isso deu ao centro histó-rico de Barcelona uma característica morfológica especial, com ruas muito estreitas e fachadas altas: muitos edifícios de origem medieval chegaram a ter 6 ou 7 andares. Outros elementos característicos de Barcelona são as intersecções cobertas com abóbadas, para gerar uma lote aéreo.

Em 1854, a coroa espanhola autorizou a demolição das muralhas da cidade e encarregou ao engenheiro responsá-vel Idefons Cerdà o novo projeto de Ensanche de Barcelo-na. Cerdà, antes de fazer o seu projeto, havia estudado a situação das condições de vida e de insalubridade e falta de higiene dos habitantes da cidade, especialmente das classes trabalhadoras. O projeto do Ensanche de Barcelo-na faz parte do primeiro tratado de urbanismo moderno. Cerdà escreveu três volumes, dos quais o último é o projeto de um Ensanche, sendo os outros o estudo das condições de vida na cidade e o estudo das cidades fundadas e projeta-das (assim como outras expansões de cidades européias).

Pelas condições militares anteriores, o Ensanche de Bar-celona foi projetado em um território quase sem constru-ções que contava apenas com o traçado de vias, algumas casas de campo e fábricas na zona de Poblenou.

INTRODUCTIONTo describe the changes to Barcelona brought about by

mega-events, I should briefly introduce some of the territo-rial, historical and urban features of the city.

Barcelona is a relatively small city, bounded by two rivers, the Besòs to the northeast and the Llobregat to the west, the Mediterranean to the east and the Collserola hills to the northwest. The rivers in turn are the city’s bounda-ries and natural features. Barcelona was founded by the Roman emperor Augustus as a Roman colony under the name of Colonia Iulia Augusta Paterna Fauentia Barcino in about 10 BC. Barcelona could be said to be a square of about 10 km x 10 km with an area of 102.2.km2 and a little more than 1.6 million inhabitants in January 2009. It is a very dense city of 15,872 habitants per km2, conside-ring also that 17.6% of its land is green forest and 10.5% urban green spaces.

Until the mid-19th century the city grew within the me-diaeval walls. For reasons of security the Spanish crown prevented Barcelona from demolishing the walls or from building beyond them. The adjacent land beyond the security boundaries consisted of small settlements which were annexed to the city after construction of Ildefons Cerdà’s Expansion plan: Sants, Les Corts, Sant Gervai de Cassoles, Sarriá, Gràcia, Sant Andreu del Palomar and Sant Martí de Provençals.

Demolition of the walls was authorised in 1859. Barcelona is the most densely populated city in Europe, with 859 inhabitants per hectare, compared to London, which has 86, Paris, 356 and Madrid, 324. This gave Barcelona’s historic city centre a particularly special morphology with very narrow streets and very tall facades: many mediaeval-origin buildings run to six or seven storeys. Another charac-teristic element of the city is the intersections covered with vaulting to generate an elevated lot.

In 1854 the Spanish crown authorised demolition of the city walls and placed the engineer Ildefons Cerdà in charge of the new Barcelona Expansion plan. Before producing his plans, Cerdà had studied the state of the living conditions and insalubrity and the city inhabitants’ lack of hygiene, particularly among the working classes. The Barcelona Expansion plan is part of the first treatise of modern urbanism. Cerdà produced three volumes, of which the final is an expansion plan, with the first two being studies of city living conditions and studies of founded and planned cities (together with other European city expansions).

Under the previous military conditions the Expansion of Barcelona was designed on a site with practically no buildings, with a few sketched roads, country houses and factories in the Poblenou zone.

1 Parque da Ciutadella, Barcelona.1 La Ciutadella Park, Barcelona.

106 107

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

O que Cerdà buscava com o Ensanche de 1859 era uma cidade homogênea, uma cidade moderna de direitos civis, sem hierarquias. Contrário à Haussmann em Paris, cujo projeto realçava elementos arquitetônicos relacionados por eixos, hierarquias e visões de herança barroca, Cerdà buscava uma cidade sem essas hierarquias, que pudesse ser estendida quase ao infinito, com base na confiança na tec-nologia, e em que houvesse pelo menos duas alternativas de circulação. A primeira através das ruas, pelas quais circula-riam os meios de transporte de massa (que ele imaginava que corresponderiam no futuro ao trem), e a segunda atraves-sando o interior das quadras, que propunha ser inteiramente verde, já que pensava que as quadras teriam fechados no máximo três dos seus quatro lados. Isso não aconteceu, e por isso a cidade de hoje é muito mais compacta, mais densa e mais edificada do que projetou Cerdà, resultando talvez em uma cidade pouco verde, mas ainda muito ativa e complexa.

Cerdà manteve traçados existentes e incorporou-os ao seu projeto, como o Paseo de Gracia, que já existia e unia a Barcelona medieval amuralhada ao atual bairro de Gracia, povoado originalmente construído pelos próprios donos da terra, por meio da transformação do parcela-mento agrícola em urbano, ao contrário de outros povoa-dos das áreas planas, como Sant Andreu de Palomares ou Sants, que surgiram ao longo de uma estrada.

O traçado do Paseo de Gracia não é reto como as ruas do Ensanche, o que evidencia sua existência prévia ao Plano Cerdà. Era o lugar por onde as pessoas da cidade saíam a passear no domingo e onde estavam parques, cafés e atrações. Era o lugar para passear durante o dia, já que à noite se fechavam as portas da muralha.

Outro elemento característico da cidade é a Barcelone-ta, bairro de pescadores e artesãos que se construiu em um aterro sobre o mar. A Barceloneta foi construída a partir de 1730, após a ocupação das tropas borbônicas em Bar-celona e a destruição do bairro da Ribera para construir a fortaleza da Ciudadela, cujos moradores foram trans-portados a um novo bairro. Sua estrutura atípica deve-se ao fato de que foi planejada por um engenheiro militar, com quarteirões de 8,40m x 84m (10 varas x 100 varas, 10 varas = 8,40m), todos iguais em sua origem de piso térreo mais um segundo pavimento, traçado que transfor-mou-se em feito singular e de grande riqueza. Atualmente, abriga uma variedade de tipologias de construção, ainda que continue a prevalecer o traçado original.

Para Cerdà, o novo centro da cidade seria o cruzamento de três avenidas principais por ele traçadas: a Av. Meridiana, saída para a Av. França; a Av. Diagonal, que liga a estrada de Madrid ao mar; e uma via territorial próxima, a Avenida Gran Via de les Corts Catalanes, paralela ao mar e que conecta com os pequenos povoados marítimos da planície.

What Cerdà was seeking with the 1859 Expansion was a homogenous city, a modern city of civil rights without hierarchies. Unlike what Haussmann achieved in Paris, which was a project that emphasised architectural elements related through axes, hierarchies and views of the baroque heritage, Cerdà was looking for a city without those hierarchies, that could stretch almost to infinity, based on a faith in technology in which there were at least two circulation alternatives, firstly along the streets served by mass transport systems (which he imagined would in the future be the train) and the second crossing through the blocks, intended to be entirely green, envisaging that the blocks would be closed on at the most three of their four sides. That did not happen, and the city of today is therefore much more compact, denser and with more buil-dings than the Cerdà plan, resulting perhaps in a lack of greenness, but also very active and complex.

Cerdà retained the existing lines and incorporated them into his design, such as the Paseo de Gracia which already existed, and linked the mediaeval walled Barcelona with the present Gracia neighbourhood, which was a small town built by the landowners themselves through trans-formation of agricultural land into urban plots, unlike other small towns in flat areas, such as Sant Andreu de Palomares or Sants which grew up along a roadway.

The outline of Paseo de Gracia is not linear like the other streets in the Expansion, which demonstrates its exis-tence prior to the Cerdà Plan. It was a place where city people went out on Sundays, by the parks, cafés and other attractions. It was somewhere for walking during the day, since the city walls closed at night.

Another feature of the city is La Barceloneta, a fishing and artisan district built on a landfill area over the sea. La Barceloneta was built in the 1730s after the Bourbon troops’ occupation of Barcelona and the destruction of the Ribera neighbourhood for construction of the Ciutadella fortress, with the occupants moved to another area. Its very unusual structure is due to planning by a military engineer, with the blocks of 8.40 metres by 84 metres (10 sticks by 100 sticks, with 10 sticks being 8.4 metres) all the same on the ground floor with originally a second floor, which over time has been transformed into a distinctive feature of great richness. Currently formed of a variety of construc-tion typologies, it still retains its original lines.

For Cerdà, the new city centre would be the geome-tric centre formed by the intersection of three principle avenues: the exit to Avenida França, Avenida Meridiana and Avenida Diagonal, which connected the Madrid road and the sea, and a nearby road, the Avenida Gran Via de les Corts Catalanes, parallel to the sea and connecting to small low-lying coastal villages.

106 107

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

Seu plano também previa atravessar a cidade antiga com três eixos, produzindo aberturas higiênicas e de sane-amento no tecido enfermo da cidade, mas elas não chega-ram a ser feitas. Entretanto, no âmbito do urbanismo, ideias desenhadas podem ser construídas muitos anos depois, às vezes sem a devida reflexão sobre a pertinência ou a vi-gência destes traçados com a passagem do tempo.

Cerdá propõe ainda um parque metropolitano na margem do rio Besòs, por ser uma zona deltaica e ala-gadiça, mas a cidade residencial não cresce para o nor-deste; são as fábricas que se aproveitam da situação de terras baixas e de zonas de laguna e nível de lençol freá-tico muito superficial.

EPISÓDIOS PRECURSORES: 1888 E 1929A desmilitarização da cidade levou à transformação

do Forte de la Ciudadela em um parque público. Entre-tanto, a nova cidade se expandia em direção oposta ao parque. O novo parque não era um lugar em que as pessoas gostassem de ir, no entanto era lembrado como um lugar de controle. Com a Exposição Universal de 1888, Barcelona utilizaria pela primeira vez um evento para transformar a cidade, e era preciso mudar a percep-ção das pessoas em relação ao antigo forte. Com a Expo-sição, pretendeu-se colocar este parque no mapa mental dos habitantes, construindo pavilhões efêmeros e conser-vando no parque alguns elementos do forte: a igreja, os quartéis e a casa do comandante, conformando o con-junto barroco mais importante da cidade. Esse é o único conjunto desse tipo na cidade, pois Barcelona era muito importante economicamente desde a Idade Média até a conquista da América em 1492, quando perdeu status por não estar autorizada a comercializar com o Novo Mundo. E não seria antes do século XIX que retomaria essa importância baseada na produção têxtil, levando-a a ser conhecida como a “Manchester catalã”, num processo de industrialização muito particular, pois Barcelona não possuía matéria-prima, apenas a transformava.

Barcelona tem aparecido como protagonista em vários trabalhos literários, em repetidas ocasiões. Eduardo Mendoza, em La Ciudad de los prodigios, explica como já desde as duas primeiras transformações urbanas por grandes eventos, as opiniões dos cidadãos não foram coin-cidentes com o discurso oficial, e que estes faustos não eram bem recebidos por todos, já que alguns setores da cidade foram especialmente favorecidos em detrimento de outros.

A segunda transformação urbana de Barcelona devida a um grande evento ocorre em resposta a outra Exposição. Em 1913, constitui-se a Junta Diretiva da Exposição, sob a direção do prefeito Joan Pich y Pon, para preparar a Exposição da Indústria Elétrica em 1917. É solicitada ao

His plan also envisages opening out the old town with three axes to be able to make hygienic openings and cure the ageing fabric of the walled city, but these he was unable to achieve. In the realm of urbanism, drafted ideas can be built many years later and sometimes without due reflection on the relevance and validity of such plans after a period of time.

He also designs a metropolitan park in a marshy delta zone on the banks of the River Besòs, but the residential city does not grow towards the northeast and it is instead the factories that benefit from the low-lying terrain and low water-bearing stratum.

PRECURSOR EPISODES: 1888 AND 1929Demilitarisation of the city involves transforming the

Ciutadella Fort into a public park. But the new city was expanding away from the park. The new park is not somewhere that people like to go, but rather a site that remains in the memory as a place of control. Barcelona will for the first time use an event to transform the city, the 1888 Universal Exposition, and there is a need to change people’s perceptions about the old fort. With the exposi-tion, the intention is to situate this park in the mental map of the city inhabitants, constructing temporary pavilions and retaining some elements of the fort in the park: the church, the barracks and the commander’s house, forming the most important baroque grouping in the city. This is the city’s only baroque group, because Barcelona was economically very important in the Middle Ages until the conquest of America in 1492, when lack of authorisa-tion for trading with the New World would bing about a decline in its economic importance. Not until the 19th century would begin to reacquire economic importance based on the textile industry, leading it to become known as the “Catalan Manchester”, in an industrialisation that was most unusual because Barcelona had no raw mate-rials and only transformed them.

Barcelona has appeared as a character in various lite-rary works on several occasions. In his novel La Ciudad de los prodigios, Eduardo Mendoza explains how, ever since the first occasions of urban transformation for major events, public opinion has not followed the official line, which was not well received by the population due to some sectors of the city being especially favoured over others.

The second change to the city of Barcelona due to a major event takes place as a response to another Exposition. In 1913 the Exposition Administration Counsel is formed under the direction of the mayor, Joan Pich e Pon in preparation for the Electricity Exposition of 1917. Financial assistance was sought from the Spanish govern-ment for development and improvement of the green areas

108 109

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

2 Parque Central de Nou Barris, Barcelona.2 Nou Barris Central Park, Barcelona.

2

108 109

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

governo espanhol ajuda financeira para desenvolver e em-belezar as áreas verdes da cidade, em preparação para a exposição. A eclosão da Primeira Guerra Mundial frustrou a data prevista, e em 1920 retomou-se o projeto. O governo central havia autorizado a utilização do entorno de outro enclave militar para a nova exposição, o Castelo de Mon-tjuïc. O projeto propõe a urbanização civil da montanha coroada pelo forte. Plaza España seria a rótula de conexão com a cidade, da qual partiria o Eixo Monumental coroado pelo grande palácio, que seria convertido décadas mais tarde, depois de 20 anos de obras de reabilitação, no atual Museu Nacional d’Art de Catalunya (MNAC, 2006).

As fachadas decoradas ao longo do eixo ascendente permaneceram como pavilhões da feira de exposições de Barcelona até a atualidade. O projeto para a exposição propunha parques e jardins; pretendia-se criar o Central Park de Barcelona. Contudo, a topografia faz com que, ainda hoje, este seja um espaço de difícil acesso, subu-tilizado apesar da grande quantidade de equipamentos culturais, esportivos e naturais que abriga. Muitos equi-pamentos culturais foram feitos ao longo das décadas posteriores à Exposição, depois de grandes obras de re-abilitação e adequação dos edifícios existentes. Uma ca-racterística da Exposição é o contraste entre modernidade e folclorismo, que se evidencia ao comparar o pavilhão da Espanha, que é um ícone para o povo espanhol e é composto de réplicas de edifícios de diferentes lugares da Espanha, e o Pavilhão Alemão, projetado por Ludwig Mies van der Rohe, e reconstruído em 1986. Outro ele-mento contrastante é a construção do metrô como símbolo da idéia de grande metrópole.

Apesar de todas estas ações, a montanha nua, assim chamada por haver sido uma pedreira, e portanto carecer de árvores em muitas de suas áreas, demoraria anos para ser o parque desejado. Desde os anos 1930 até os anos 1960 seria um local oficialmente abandonado e esqueci-do, onde muitas famílias sem recursos encontrariam lugar onde construir suas casas.

“A proximidade inegável da cidade, da indústria e do porto franco, a existência na montanha de jardins e monu-mentos que nada tinham que ver com a vida que ali transcor-ria, justificavam-se pela vaga notícia de um acontecimento re-moto, a Exposição Universal. Mansões perdidas em meio ao bosque, um estádio olímpico em ruínas, que à luz da lua, de-pois de saltar cercas e muros, resplandecia na pista arenosa para obscurecer-se nas arquibancadas destruídas, como se o lugar fosse um domínio de uma Antiguidade inacessível ou o tecido de um porvir utópico, um resquício de sombra sonha-do por um Platão marginal. As estátuas exerciam um imenso poder de sedução entre os meninos em idade de abandonar

of the city in preparation for the exposition. The outbre-ak of World War I conflicted with the intended date and the project was taken up again in 1920, with the central government having authorised use of the surroundings of another military enclave for the new exposition, Montjuïc Castle. The project proposed civilian development of the mountain crowned by the fort. Plaza de Espanã would be the connecting hub with the city, leading to the Monumental access crowned by the great Palace, which would be converted decades later and after more than 20 years of reconstruction work into the present National Museum of Catalan Art (MNAC, 2006).

The decorated buildings along the ascending access have remained as exposition pavilions in Barcelona to this day. The exposition design created parks and gardens and envisaged the creation of the Barcelona Central Park. However, the topography means that even today this is an area that is difficult to access and underused, despite the high number of cultural, sports and natural attractions housed within it. Many of the cultural facilities were ins-talled during the decades after the exposition, following major refurbishment and adaptation works to the exis-ting buildings. A feature of the exposition is the contrast between modernity and folklore, which can be seen by comparing the Spanish pavilion, which is an icon for the Spanish people consisting of replicas of buildings from different places in Spain, with the German pavilion, de-signed by Ludwig Mies van der Rohe and rebuilt in 1986. Another contrasting feature is the construction of the Metro as a symbol of the idea of a great metropolis.

Despite all this activity, the bare mountain, so-called because it had been a quarry and was therefore lacking trees in many areas, would take many years to become the desired Park, and from the 1930s to the 1960s would be somewhere that was officially abandoned and forgotten, where many poor families would find a space for building their houses.

“The undeniable proximity of the city, industry and the free port favoured more games, associated with the presence of gardens and ruined monuments that had nothing to do with the life being lived on the mountain, and which were justified by the vague notice of the distant event, the Universal Exposition. Mansions lost in the woods, an Olympic Stadium in ruins and, after scaling fences and walls, with its track shi-ning in the moonlight to hide the destroyed stands, as if the place were the domain of an illusory antiquity or the fabric of the utopian future, the remains of a shadow dreamed of by a marginal Plato. The statues invoked the great power of seduction among boys of an age of abandoning wonder and calculating greed, always used to coming up against unreali-

110 111

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

a maravilha e calcular sua ganância, acostumados desde sempre a chocar-se com a irrealidade: subir uma encosta e descobrir um povoado de tendas com toldos roubados nos bares da cidade, cujos letreiros recortados formavam um idio-ma impossível, ou fumar cigarros e cuspir cascas de sementes de girassol sobre Minervas e Apolos de concreto, sem por isso desdenhar sua estética e seu valor. (...) Sigo passeando e assomo a cabeça por um simulacro de frontão nascido em um baile abandonado. (...) Uns quantos golpeiam bolas de tênis carecas que voltam de uma parede, inventam-se regras que remetem à lei do mais forte.” (Francisco Casavella, Los juegos feroces, Barcelona: Ed Mondadori, 2002)

A partir da visita do ditador Franco ao forte de Mon-tjuïc, em 1963, inicia-se a erradicação da população que ali vivia. Definitivamente, Montjuïc continuará como espaço abandonado, deixado de lado pela cidade. Após o evento, o Parque da Ciudadela se transformaria no parque da cidade, apesar do fracasso da exposição, devido ao fato de que sua localização e topografia o fazem muito mais acessível e de fácil apropriação.

Esses dois exemplos explicam como Barcelona usou a celebração de grandes eventos para melhorar a cidade, assumindo que ao ser capital de uma nação que não é estado, necessita de investimentos específicos que podem ser obtidos através deles. Por isso, essas circunstâncias têm sido aproveitadas para fazer crescer a cidade ou para gerar e melhorar certas infraestruturas que somente seriam conseguidas a longo prazo. De qualquer forma, nem sempre os fins justificam os meios, e não foram todas as ocasiões que resultaram em saldo positivo para a cidade. Ou se foram, como o caso de Montjuïc, somente ao custo de um investimento contínuo, de modo que nem sempre se utiliza um evento para o benefício real da população.

Um terceiro evento precursor foi o Congresso Eucarísti-co de 1952, que contou com a visita do Cardeal Tedeschi-ni, representando o Papa Pio XII. Esse evento foi marcado pela remoção de inúmeras de pessoas que viviam em bairros pobres, sobre o traçado ainda não aberto da parte superior da Av. Diagonal, e a posterior urbanização e edi-ficação de casas de luxo no local. As famílias foram relo-cadas para habitações sociais mínimas na área chamada de nove distritos (Nou Barris). A falta de qualidade e de condições de habitabilidade dessas casas fez com que, desde os anos 1980, com a retomada de governos demo-cráticos, estes bairros fossem objetos de atenção especial por parte do governo municipal, por meio de ações de melhoria e criação de espaços públicos, e recuperação de danos estruturais e de isolamento. Em alguns casos, as casas tiveram de ser refeitas. Em homenagem ao evento também se construíram as chamadas Casas do Congresso,

ty: climbing a steep hill and discovering the settlement of tents with awnings stolen from city bars whose cutout letters formed an impossible language, or smoking cigarettes and spitting the shells of sunflower seeds over the concrete Minervas and Apollos, yet not unappreciative of their beauty and value. (…) I continue walking and see a mock pediment turned into an abandoned dance. (…) several tennis balls bounce against a wall inventing rules relating to the survival of the fittest.” (Francisco Casavella. Los juegos feroces. Barcelona: Ed Mon-dadori, 2002.)

Following the dictator Franco’s visit to Montjuïc Fort in 1963, actions were taken to remove the population living there. In short, Montjuïc will continue to be a space that is abandoned and left to one side by the city. The Ciudadela Park would be transformed into the city Park after the event despite the failure of the exposition, due to its location and topography making it much more accessible and appropriate.

These two examples explain how Barcelona has used the celebration of major events to improve the city, on the assumption that specific investments were needed as the capital of a nation which is not a state, which could be achieved through major events. It has therefore made use of these circumstances to allow the city to grow or to improve and construct some elements of infrastructure which could only be obtained over the long term. Whatever the case, the ends do not always justify the means, and not every occasion resulted in a positive effect for the city. Or there is the meaningful case of Montjuïc, having been the basis of continuous investment without an event always being used for the real benefit of the population.

A third precursor event would be the Eucharistic Congress of 1952 with a visit from Cardinal Tedeschini representing Pope Pius XII. This event meant the removal of a large number of people living in poorer neighbou-rhoods designed for the as yet unopened upper part of the Avenida Diagonal and the later urbanisation and construction of luxury housing along the avenue. Those families were transferred to minimal social housing in the area known as nine districts (Nou Barris). The poor quality and minimal habitation conditions of these houses meant that after the restoration of democratic government in the 1980s these neighbourhoods became the subject of special attention on the part of the municipal government, through actions for improvements and creation of public space, and work on structural inadequacies and insula-tion. In some cases, the houses needed to be rebuilt. Better quality homes known as Congress Houses were also built in homage to the event, intended for families close to the regime of the dictator Franco, despite the name creating

110 111

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

3 Espaço público em volta do Edifício Forum, Barcelona.3 Public space around the Forum Building, Bar-celona.

3

112 113

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

4 Zona do Parque do Forum, Barcelona.4 Forum Park Zone, Barcelona.

4

112 113

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

de melhor qualidade, para famílias próximas do regime do ditador Franco, apesar de seu nome levar ao equívoco de acreditar que seriam para as famílias reassentadas.

Em 1975, morre o ditador Franco, após 36 anos de governo: de 1936 a 1939, anteriores à Guerra Civil, e de 1939 a 1935 sob a ditadura. Após a Guerra Civil, a Espanha estava totalmente arrasada e economicamen-te devastada. A partir de 1959, a economia espanhola começou a melhorar, ao abrir-se ao comércio exterior e passar a receber dinheiro de fora, tanto enviadas pelos emigrantes ou vindas de turistas do Norte da Europa. Mas não havia democracia, e a cidade era um espaço de con-trole, especulação e segregação.

Barcelona tem uma história de receptividade à imigra-ção. Como cidade industrial, recebeu no final do século XIX e início do século XX população proveniente do campo catalão, e a partir da Guerra Civil, população proveniente sobretudo de Andaluzia, Extremadura, Murcia e Galicia, que eram as regiões historicamente mais desiguais da Espanha, e com forte incidência de produção agrícola.

EPISÓDIO DA ILUSÃO: OS JOGOS OLÍMPICOS DE 1992 Em 1979, Barcelona estava muito longe de ser a cidade

turística e atrativa que é hoje, e tinha muitas deficiências, principalmente nos bairros: zonas de urbanização precá-ria, com moradias construídas pelos próprios moradores e carentes de serviços; zonas residenciais especulativas quase sem urbanização; falta de equipamentos para o dia a dia, de espaços públicos e de transporte coletivo. Os movimentos sociais urbanos, por meio de associações de bairro formadas em 1960 e autorizadas em 1964 pela di-tadura, cumpririam um papel fundamental na melhoria dos bairros. Muitas das melhorias nas condições de vida são devidas às reivindicações e lutas dos moradores, embora raramente se reconheçam as suas contribuições (mais infor-mações em http://www.memoriaveinal.org/). Entre estas conquistas emblemáticas está a criação de parques urbanos em grandes terrenos liberados pelo processo de desindus-trialização da cidade, entre os quais podemos citar o Parc de la Espanya Industrial e o Parc de l’Escorxador.

As reivindicações de moradores eram baseadas na vida cotidiana, na experiência diária da cidade, e a pre-sença das mulheres nesse movimento foi fundamental e de muita importância. São as mulheres que têm de viver e tornar possível o desenvolvimento da vida familiar em am-bientes com escassez de serviços básicos. Elas conhecem, por experiência própria, as dificuldades da vida no dia a dia: falta de comércio, ruas inseguras e sem as mínimas condições de infraestrutura, falta de creches e locais para brincar. Todas essas falhas afetam, particularmente, a ca-pacidade de emancipação das mulheres. Sem um entorno

the mistaken belief that they had been built for the resettled families.

The dictator Franco died in 1975, after 3 years of power leading the Civil War from 1936 to 1939 and 36 years of dictatorship from 1939 to 1975. After the Civil War, Spain was completely depressed and economically devastated. From 1959 the Spanish economy began to improve, by opening out to foreign trade and beginning to receive money from abroad, either sent back from emi-grants or coming in with tourists from Northern Europe. But there was no democracy and the city was an area of control, speculation and segregation.

Barcelona has a history of being receptive to immi-grants, welcoming populations from the Catalan countrysi-de in the late 19th and early 20th centuries, and after the Civil War with incomers arriving mainly from Andalusia, Extremadura, Murcia and Galicia, which were historically the most unequal regions in Spain and with a strong em-phasis on agricultural production.

THE EPISODE OF ILLUSION: THE 1992 OLYMPIC GAMESIn 1979, Barcelona was still far from being the attrac-

tive tourist city that it is today, with many deficiencies, particularly in the suburbs. Poor urban areas with houses built by their occupants and lacking in services; specula-tive residential areas with almost no urbanisation; a lack of everyday facilities, public spaces and public transport. Urban social movements, through the neighbourhood as-sociation formed in 1960 and authorised by the dictator-ship in 1964, would play a fundamental role in improving the suburbs. Many improvements to living conditions in the suburbs are due to the complaints and struggles of their inhabitants, although these contributions are rarely recog-nised (further information can be found at: HTTP://www. memoriaveinal.org/). Some of their significant achieve-ments involved the creation of urban parks on large areas of land that had fallen into disuse through the process of the deindustrialisation of the city, such as the Parc de la Espanya Industrial and the Parc de l’Escorxador.

Residents’ complaints were based on everyday life, on the daily experience of the city, and the presence of women in this movement was fundamental and of great importance. It is women who have to live and make family life possible in environments with a paucity of basic servi-ces. They know about the difficulties of day-to-day living from their own experience: the lack of shops, unsafe streets without the minimal basic infrastructure, lack of nursery care and play areas. All these shortcomings particularly affect women’s capacity for emancipation. Without sur-roundings with a sufficient quality of services, facilities, transport and public space, it is the women who suffer,

114 115

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

de qualidade suficiente em serviços, equipamentos, trans-porte e espaço público, são as mulheres as prejudicadas, no seu papel de gênero feminino, encarregadas de cuidar dos outros e de conciliar tempos diferentes. As mulheres são, portanto, agentes ativos de primeira ordem na trans-formação democrática de Barcelona.

Outro parque importante desta primeira etapa demo-crática é o estabelecido em terrenos vagos de área de manobras de trem e em parte de seus caminhos, o Parque da Estació del Nord (1991), que resulta da colaboração dos arquitetos locais Andreu Arriola e Carme Fiol com a artista americana Beverly Pepper. O parque conecta zonas da cidade até então isoladas, e sobre parte de sua área foi construído o novo edifício para o Arquivo da Coroa de Aragão. Com o tempo, o parque formaria com o centro de multiequipamientos Fort Pienc (Josep Llinàs, 2003) uma nova centralidade de bairro muito interessante.

Como parte do processo de democratização, a cidade descentraliza seu governo, dividindo-se em 10 distritos de aproximadamente 150.000 habitantes cada. A idéia da descentralização era aproximar o governo local dos cida-dãos, mas o projeto político de maior importância de voto direto dos representantes distritais nunca foi realizado.

Processos de melhoria de bairros,tomaras toda a cidade. Muitos dos esforçoes de melhoria urbana ocorre-ram no centro da cidade, Ciutat Vella. Desde que se iniciou a construção da cidade moderna em 1863, o centro da cidade passou por um processo de degradação e aban-dono que as políticas públicas democráticas, a partir de 1980, procuraram travar e inverter. O primeiro grande projeto na área, localizado no bairro do Raval, foi deno-minado do Liceu ao Seminário (Clotet & Tusquets), e pro-curou criar um eixo cultural por meio da recuperação de edifícios existentes e a construção de novos equipamentos, apoiado por uma rede de ruas para pedestres. Este projeto levaria anos para ser concluído. Os equipamento seriam inspirados por uma escala maior do que a de bairro, como grandes equipamentos metropolitanos, tais como o Centro de Estudos e recursos Culturais Pati Maning, o MACBA, o CCCB, diversos edifícios universitários públicos e priva-dos, e o FAD, que deram ao bairro visibilidade especial. Para reverter o processo de deterioração, foi necessário um grande investimento financeiro, a fim de não consolidar o gueto social e econômico, coisa que podia ter acontecido, dadas as condições do tecido urbano: a urbanização, os lotes e os tipos e condições das edificações.

Em paralelo, vão sendo realizadas pequenas, porém profundas, atuações na zona histórica, especialmente no denso tecido urbano, a partir da abertura de pequenos espaços públicos, obtidos por um processo de desapro-priação e reassentamento de moradores.

in their role as the female sex, since they are the ones charged with looking after others and reconciling different times. Women are therefore key active agents in the demo-cratic transformation of Barcelona.

Another important park in this initial phase of demo-cracy is established on empty land near the train yard and part of the track, the Parque da Estació del Nord (1991), which is made in collaboration between local architects Arriola and Carme Fiol and the American artist Beverly Pepper. This park connects city zones which were previou-sly separate, and part of the site was used for building the new Archive of the Crown of Aragon. Over time, the park will connect with the multi-facility centre of Fort Pienc (Josep Llinàs, 2003), a new and most interesting neigh-bourhood centre.

As part of the process of democratisation, the city de-centralised its government, dividing it into 10 districts of approximately 150,000 inhabitants each. The idea of de-centralisation was to move local government closer to the citizens, but the more important political project of direct voting for district representatives was never achieved.

Neighbourhood improvement processes took place throughout the city. Many of the efforts for urban impro-vements occurred in the city centre, Ciutat Vella. Since the beginning of the construction of the modern city in 1863, the city centre could be said to have experienced a process of decay and neglect which democratic public po-licies sought to halt and reverse after 1980. The first major project in the area, located in the Raval neighbourhood, would be called the Liceo Al Seminario (Clotet & Tusquets), which aimed to create a cultural axis through restoration of existing buildings and the construction of new facilities, supported by a network of pedestrian streets. Completion of this project would take many years. The proposed faci-lities would be inspired by a scale larger than the neigh-bourhood, as major metropolitan or global facilities such as the Pati Maning Cultural resources and Study Centre, MACBA, CCCB, various public and private university buil-dings, and the FAD, which would bring particular visibility to the district. Reversal of the process of decay required major financial investment to prevent the consolidation of a social and economic ghetto, which might have happened due to the conditions of the urban fabric: the urbanization, the sites and the types and conditions of the buildings.

Alongside this, small but profound activities took place in the historic zone, especially in the excessively dense urban fabric, by opening out small public spaces obtained through a process of expropriation and resettlement of the inhabitants.

The idea of opening out to improve hygiene, airing and daylight in the Ciutat Vella had already been present

114 115

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

5 Praça Francesc Layret, Barcelona.5 Francesc Layret Square, Barcelona

5

116 117

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

A ideia de abrir para higienizar, arejar e insolar a Ciutat Vella já estava presente no projeto de Cerdà para o Ensanche, e continuaria nas diferentes propostas de me-lhorias para esta área da cidade que foram feitas ao longo do século, até a chegada da democracia da década de 1980. Entre essas propostas, cabe ressaltar a que realizou o GATCPAC, que por meio de um estudo das condiçõs de insalubridade e falta de sol em algumas áreas, havia pro-posto a abertura de espaços com a demolição das casas existentes. Como visto, algumas das aberturas de ruas, tais como a abertura da Rambla del Raval, ou da Av. da Cate-dral e sua continuação na Av. Francesc Cambó, já estavam pensadas e desenhadas no plano de Cerdà. Seu desenho final não foi exatamente o original, mas os planos urbanos elaborados conformam uma memória urbana ainda não construída que se torna realidade com os governos de-mocráticos. Deve-se notar que essas aberturas não são só marcadas no papel, mas são na prática processos que permitiram ou exigiram a expropriação para prosseguir.

O processo de priorizar as pessoas tornando peato-nais as ruas centrais e comerciais segue hoje como um duplo processo. Um aspecto é a prioridade invertida nas vias não-estruturais ou de menor hierarquia na cidade, isto é, ainda que circulem veículos, os pedestrem têm a prefe-rência; o outro é a transformação de algumas diagonais do plano de Leon Jaussely para Barcelona (1903-1907) em halls urbanos, como é o caso da Av. Mistral e da Av. Gaudí, que liga a Sagrada Família de Gaudí ao Hospital de Sant Pau i Santa Creu de Domenech i Montaner.

Em 1987, Barcelona foi escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de 1992, o que mudou completamente as possibi-lidades de ação sobre a cidade e a escala das intervenções. Os investimentos para os Jogos Olímpicos, com a implicação de diferentes níveis de governo, foram uma oportunidade para grandes projetos de infraestrutura, tais como a estação de tratamento de água, novos sistemas de esgoto, nova infra-estrutura de eletricidade e cabo de fibra óptica. São projetos menos visíveis e menos espetaculares, porém imprescindí-veis, e difíceis de executar com os orçamentos correntes, pois exigem grandes investimentos. Assim, foi possível realizar estas melhorias invisíveis, e ao mesmo tempo, investir naquilo que sim, se vê, como as instalações desportivas, a recupera-ção e criação de praias e passeios marítimos, as avenidas perimetrais, etc. Sem esta oportunidade, essas melhorias de-morariam muitos anos para serem realizadas. A estratégia urbana para os Jogos Olímpicos baseou-se na identificação prévia das áreas de nova centralidade. Sobre esse estudo que previa doze áreas, o projeto olímpico operou em quatro, com o objetivo do equilíbrio territorial, fortalecendo e equi-pando os bairros que se encontravam em franca desvanta-gem em comparação com os demais bairros da cidade.

in Cerdà’s Expansion plan and would continue through various improvement proposals for this area of the city throughout the century until the arrival of democracy in the 1980s. A highlight of these proposals was the one carried out by GATCPAC, which had studied poor health and lack of sun in some areas and proposed the opening out of spaces in the demolition areas. As we have seen, some of the street openings, such us the Rambla del Raval, or Av. da Catedral and its continuation in Av. Francesc Cambo had already been considered and envisaged in the Cerdà plan. The final design was not exactly the same as the original, but the urban planning which took place formed an as-yet un-built urban memory which would become a reality with democratic governments. It should be noted that these openings were not just recalled on paper, but were in practice processes that allowed or required expro-priation to proceed.

The process of prioritising people by pedestrianising the central and commercial streets continues today in a dual process. One of these is the inverted priority in the non-structural or less important city streets, which states that although used by vehicles, pedestrians have priority; and the other is the transformation of urban halls in some of the diagonals in Leon Jaussely’s plan for Barcelona (1903-1907), such as the Avenida Mistral and Avenida Gaudí, connecting Gaudí’s Sagrada Família with Domenech i Montaner’s Hospital de Sant Pau i la Santa Creu.

In 1987 Barcelona was chosen to host the 1992 Olympic Games, which completely changed the possi-bilities for actions in the city and the scale of the inter-ventions. The investments for the Olympic Games, with participation from different levels of government, provided an opportunity for major infrastructure projects, such us a water treatment plant, new drainage systems, new electri-cal infrastructure and fibre-optic cables. These projects are less visible and less spectacular, but essential, and hard to carry out within current budgets due to their need for major investment. So it becomes possible to achieve these invisi-ble improvements and at the same time to invest in what can be seen, such as the sports facilities, the regeneration – the creation of beaches and avenues, ring roads, etc. Without this opportunity, such improvements would take many years to achieve. The urban strategy for the Olympic Games was based on prior identification of the new central areas which envisaged 12 areas, with the Olympic project occupying four, in pursuit of a regional balance, streng-thening and providing equipment for neighbourhoods that were disadvantaged in relation to other parts of the city.

But the actions carried out, particularly in the Olympic village, show signs of certain negative trends which will be exacerbated in projects in the early 21st century:

116 117

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

No entanto, as ações realizadas, principalmente na Vila Olímpica, marcaram determinadas tendências negativas que serão exacerbadas nos projetos do início do século XXI: privatização do espaço público, destruição do patri-mônio industrial e uma certa opacidade nas decisões sobre a cidade. Algumas dessas ações foram justificadas pela pressa para completar até a data de inauguração,o que revelou uma falta de atenção a certos elementos da cidade.

Esta negligência é evidente na questão da desvaloriza-ção do patrimônio industrial, quando se destruíram edifícios e conjuntos de extrema importância para compreender a evolução da indústria na Catalunha, como as edificações de Elias Rogent, com a justificativa da obsolescência das estruturas existentes e modernidade tardia, e portanto, in-questionável, do que viria. De certa forma, a recuperação da memória da classe trabalhadora por meio dos espaços de sua opressão e sua luta, como são as fábricas, é incômo-da para o poder, pois não é uma memória que possa ser adoçada. Se a destruição foi justificada pela pressa e pelos prazos limites para os Jogos, para não desperdiçar a opor-tunidade para a cidade, os próximos anos demonstrariam a pouca importância dada às instalações e armazéns fabris, espaços de grande potencialidade, tanto urbana como social. Mesmo empregando a pura lógica do mercado, a sua manutenção teria agregado valor de elemento de dife-renciação no marketing urbano. Entretanto, o que prevale-ceu foi a manutenção de elementos isolados, principalmen-te torres e chaminés, impedindo a leitura de sistema e de relação com o território, já que as fábricas estavam situadas em relação à disponibilidade de água, às comunicações viárias históricas e às ferrovias. A preservação das torres e chaminés traz o máximo benefício quantitativo, em termos de elementos protegidos de especulação do solo.

Barcelona começa o projeto para os Jogos Olímpicos em 1986, quando a crítica pós-moderna está confrontando os resultados dos edifcícios de áreas repetitivas e mono-funcionais do movimento moderno, sem nenhuma carac-terização do espaço público nem equipamentos, que se transformaram em não-cidade, em não-bairro. Portanto, no projeto da Vila Olímpica levanta-se um debate urbano in-teressante, que trata da construção ex-novo de um bairro no qual se quer alcançar tanto a diversidade urbana como a cidade morfologicamente legível, nos termos da evolu-ção da cidade européia. A diversidade urbana procurada estaria marcada pela variação das edificações e diversi-dade de usos, ainda que o resultado obtido esteja longe de seus objetivos, criando um bairro contruído muito uni-formemente, apesar das diferenças formais, com grande homogeneidade social, de descontinuidade com o entorno, e cuja densidade é demasiado baixa para sustentar um bairro com vida contínua e atividades econômicas. Tam-

privatisation of public space, destruction of industrial heri-tage and a degree of opacity in decision-making about the city. Some of these actions were justified by the haste for completion by the opening date, but in fact they reveal a lack of attention to certain elements of the city.

This negligence can be seen in relation to the deva-luation of industrial heritage, the destruction of buildin-gs and premises of great importance for understanding the industrial evolution of Catalonia, including the Elies Rogent building, justified by the obsolescence of the existing structures and the late modernity and therefore unquestionable quality of things to come. To a certain extent the restoration of the memory of the working class through the spaces of their oppression and struggle, such as the factories, is inconvenient for the authorities, since it is a memory that cannot be sweetened. If destruction was justified by haste and timescales for the Games, so as to not pass up an opportunity for the city, the following years would demonstrate the lack of importance given to these premises and factory warehouses as places of great urban and social potential. But if employ pure market logic, maintenance would add value as distincti-ve elements in the urban marketplace. What prevailed, however, was maintenance of some items, principally towers and chimneys, which hindered a reading of the system and its relationship with the site, as the factories had been situated in relation to opportunities for water, historic roadway and railway communication systems. Retention of the towers and chimneys brings maximum quantitative benefit in terms of protected items and profit from speculation on the ground.

Barcelona begins planning for the Olympic Games in 1986, when post-modern criticism is faced with the results from the modern-movement area of repeated sin-gle-use buildings, with no characterisation of the public space or facilities, transformed into non-city and non--neighbourhood. The Olympic Village project therefore raises an interesting urban debate concerning the ex-novo construction of a neighbourhood that aimed to achieve both urban diversity and a city that was morphologically legible in terms of the evolution of the European city. The sought-after urban diversity would be marked by building variation and diversity of use, although the results obtai-ned fall short of their objectives, creating a neighbourhood constructed very uniformly, despite formal differences, with great social uniformity, discontinuity with the surroundings and low density, to form a neighbourhood with continuous life and economic activity. Neither does the decision to centralise consumer activities in a commercial centre that absorbs shopping life favour positive urban activity in the public space, leaving street trade without meaning. As the

118 119

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

6, 7 Imagens que evidenciam que um espaço privado não é um espaço público. A Villa Olim-pica de Barcelona com cartazes que anunciam a proibição de ingressar nestes espaços privados de “aparência” pública.6, 7 Images showing that a private space is not a public space. Barcelona Olympic Village with posters forbidding entry to these “seemingly” public private spaces.

6 7

118 119

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

pouco favorece a atividade urbana a decisão de centra-lizar as atividades de consumo em um centro comercial, que absorve a vida do comércio sem rebater-se de maneira positiva sobre o espaço público, deixando sem sentido o comércio de rua. Como também não é positiva a criação de espaços privados de usos públicos, a intenção era rein-terpretar a proposta de Cerdà, em que os interiores das quadras mais tranqüilas e verdes funcionariam como rotas alternativas às ruas. Ao longo do tempo, demonstra-se que não é possível esse uso aberto do espaço privado; hoje esses espaços estão cercados e vigiados, e por meio de cartazes, somos informados de que está proibida a pas-sagem por espaços privados. Ainda que existam alguns comércios no piso térreo e generosas calçadas para ca-minhar, há pouca gente utilizando o espaço público. O espaço público que se usa é a praia, que de alguma forma é alheia ao bairro, ou em todo caso, é dele tão própria como espaço público quanto do resto da cidade.

Para alcançar as metas estabelecidas pelos Jogos Olímpicos, Barcelona é precursora nos países de herança jurídica do direito romano em adaptar a esta a criação de empresas mistas, público-privadas, uma ferramenta de gestão que elimina a burocracia e a lentidão. Em princípio, parece uma boa idéia, mas muitas vezes estas acabam sendo estruturas complexas, de maior opacidade, que difi-cultam os controles públicos, e cuja vocação democrática é questionável. Em todo caso, uma das garantias deste modelo de gestão deveria ser que sempre o privado se somasse ao público, e que os projetos pelos quais se gera esta ferramenta de gestão justifiquem sua criação por seu interesse público, pela necessária transversalidade e pela rapidez de execução, estabelecendo objetivos e prazos claros, assim como sistemas democráticos de controle através de comissões com participação da cidadania. Em outras palavras, é imprescindível o investimento público.

Um dos efeitos da prevalência dos interesses privados sobre os públicos está nos processos de privatização do espaço público que é mais difuso na área residencial da Vila Olímpica, mas será evidente anos mais tarde no projeto da Diagonal Mar e na criação do recinto para celebrar o evento seguinte: o Fórum das Culturas.

As áreas de nova centralidade anteriormente citadas foram resultado de um estudo profundo e análise minu-ciosa da cidade, realizado pela prefeitura de Barcelona, em meados da década de 1980, por uma equipe lidera-da por Joan Busquets, na qual trabalharam Josep Maria Llop, Rosa Barba e Josep Maria Pascual como principais técnicos. Para este trabalho, toda a cidade foi desenhada em detalhe, com todo o parcelamento, todos os edifícios, as árvores... ou seja, a cidade foi desenhada integralmen-te, como uma ferramenta para interpretar e entender quais

creation of private spaces for public use is not positive either, the intention was to reinterpret Cerdà’s proposal in which the inner parts of the more peaceful green squares would operate as alternative routes to the streets. With the passing of time, open use of the private space has been shown not to be possible; the spaces are today fenced off and invigilated, with posters telling us that it is forbid-den to cross private spaces. But while there are still some ground-floor shops and generous pavements for walking, few people use the public space. The public space that is used is the beach, which is some distance from the nei-ghbourhood or is in any case as appropriate as a public space as the rest of the city.

To achieve the targets established by the Olympic Games, Barcelona is the first city in countries with a Roman heritage to adapt to this creation of mixed, public-private companies as an administrative instrument that removes bureaucracy and slow activity. This seems to be a good idea in principle, but often leads to complex, more opaque structures which complicate public control and have a questionable democratic vocation. In any case, one of the guarantees of this administrative model should be that the private is always added to the public, that the projects that generate this administrative tool justify their creation due to their public interest, the need for transversality and speed of execution, establishing objectives and timescales, together with Democratic control systems through citizen participation on committees. In other words, public invest-ment is essential.

One effect of private interest prevailing over public in-terest lies in the processes of privatisation of the public space, which is more diffuse in the residential area of the Olympic village, but which will become more evident in following years with the Diagonal Mar project and the creation of a place for organising the Forum of Cultures.

The new central areas mentioned above result from detailed study and analysis of the city carried out by Barcelona City Council in the mid-1980s with the team led by Joan Busquets which included Josep Maria Llop, Rosa Barba and Josep Maria Pascual as the main technicians. This work involved drawing up the city into its details, all the subdivisions, all the buildings, trees… in other words the city drawn up as an instrument for interpreting and understand what those twelve new central areas are. The common features are that they are all large empty areas left by the previous industrial period, which have become areas of opportunity through being well positioned in re-lation to transport and areas where urban density can be created. This study will guide future actions allowing the city to be considered together as a strategy and not as for-malisation, with the specific definition of each area given

120 121

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

8 O espaço privado não é um espaço público. 8 The private space is not a public space.

8

120 121

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

eram estas doze áreas de nova centralidade. As caracterís-ticas comuns são as grandes áreas vazias, deixadas pelo período produtivo anterior, que se tornam áreas de oportu-nidade porque bem situadas em relação ao transporte, e nas quais é possível gerar densidade urbana. Este estudo orientou as ações futuras permitindo pensar a cidade em conjunto, como uma estratégia e não como formalização. A definição específica de cada área será dada com planos de setor específicos, cujos objetivos e programas estarão em relação ao entorno e ao momento de atuação.

Em resumo, a estratégia urbana para os Jogos Olím-picos se baseou neste estudo prévio e com o objetivo de reequilibrar a cidade, não procurou concentrar os inves-timentos nas áreas já abastadas ou interessantes para o investimento privado, mas melhorar a qualidade de vida dos bairros. De alguma forma, este foi também o espírito de outra das grandes infraestruturas resultantes, que foi a construção das Rondas de Barcelona. O projeto destas vias urbanas rápidas se baseou na premissa de criar um espaço público que tornasse compatível o trânsito rápido de veículos com conexões urbanas a ambos os lados, onde parques, espaços esportivos e equipamentos públi-cos foram criados. O traçado dessas Rondas adapta-se ao tecido e topografia circundante, oferecendo soluções diversas e procurando entretecer e não cortar.

Para filtrar o espírito olímpico da sociedade, no mesmo período foram construídos inúmeros equipamen-tos esportivos de bairro, que ajudaram a criar uma nova relação entre a sociedade e a prática esportiva, antes um privilégio exclusivo de classe. Os Jogos Olímpicos apro-ximaram o esporte da sociedade em seu conjunto, e não apenas na observação, mas também na prática.

Enfim, o efeito mais visível das ações foi o início do pro-cesso de recuperação ou criação da nova orla marítima, com praias e parques como espaços públicos exemplares, ligados ao processo de reorganização da frente litorânea, que começa na Vila Olímpica, trazendo uma mudança social, urbana e econômica nos bairros de Poble Nou.

Conforme estudos de Antonia Casellas, a política de desenvolvimento urbano de barcelona pode ser separada em três períodos, de acordo com a importância da lide-rança pública. Entre 1979 e 1986 há uma clara liderança pública na organização da cidade, com recursos financei-ros limitados; de 1986 a 1992 há maior investimento, e segue a liderança pública; e de 1992 a 1997, com a crise pós-olímpica, formam-se várias empresas público-privadas, como a Barcelona Regional, que funcionam com menos transparência. A partir de 1997, aparecem novos projetos que serão mais privados do que públicos, e que obedecem aos fluxos de capital financeiro da cidade global, como é o caso de toda a área denominada de Diagonal Mar.

specific sector plans whose aims and objectives relate to the surroundings and the time of implementation.

To sum up, the urban strategy for the Olympic Games was based on this prior study and, being aimed at reba-lancing the city, did not seek to concentrate investments in areas that were already affluent or interesting for private investment, but rather to improve the quality of life in the suburbs. It was in some way the different spirit of major in-frastructure work resulting from this opportunity that led to the construction of the Rondas de Barcelona. The plan for this rapid urban transport system was based on a premise of creating a public space that was compatible with the rapid movement of transport with urban connections on both sides of the platforms where parks, sports spaces and public facilities were created. The design of the Rondas, the ring roads, was adapted to the surrounding topogra-phy and fabric, offering various solutions aimed at inclu-sion rather than cutting off.

To instil the Olympic spirit into society numerous neigh-bourhood sports facilities were built at around the same time, helping to create a new relationship between society and sports practice, which had previously been an exclu-sive privilege of class. The Olympic Games brought sport closer to society as a whole, not just for observation but also in practice.

Indeed the most visible effect of these actions was the start of a process of restoration or creation of new sea boundaries with beaches and parks as outstanding public spaces linked to the process of reorganisation of the sho-reline which begins with the Olympic village, bringing social, urban and economic changes to the Poble Nou neighbourhoods.

According to studies by Antonia Casellas, Barcelona’s recent urban development policy can be separated into three periods according to the importance or otherwise of public leadership. Between 1979 and 1986 there is clear public leadership in the urban organisation of the city with limited financial resources; from 1986 to 1992 there is more investment and continued public leadership; from 1992 to 1997, with the post-Olympic crisis, a series of public-private companies are created, such as Barcelona Regional, which function less transparently. And after 1997 a new series of projects appears which will be more private than public and which obey the flow of financial capital of a global city, such as the whole area known as Diagonal Mar.

The urban transformations resulting from the Olympic Games produced a new map of the urban land in the city. Prior to this event land-value zoning was clearly defined, with the axis of the Paseo Sant Joan defining two areas. After 1995 this axis is no longer the boundary, middle

122 123

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

As transformações urbanas devidas aos Jogos Olím-picos produziram um novo mapa do solo urbano na cidade. Antes deste evento, o zoneamento do valor do solo urbano estava claramente definido, com o eixo marcado pelo Paseo Sant Joan definindo duas áreas. A partir de 1995, este eixo não é mais o limite, e aparecem valores de renda urbana média e alta em áreas que até o momento tinham valores de solo baixo, como acontece com o bairro da Vila Olímpica.

Recapitulando, as estratégias para os Jogos Olímpi-cos tiveram de positivo o reequilíbrio territorial através de infraestrutura e equipamentos, tais como a infraestrutura das avenidas perimetrais, dos deságües e dos equipamen-tos esportivos, que foram feitos em toda a cidade, ainda que tenha faltado investimento em transporte público e em habitação social. Como efeitos negativos que marcam a linha de atuação do futuro, observa-se a privatização do espaço público, a destruição de bens industriais e pouca construção de habitação social.

Trabalhou-se muito para melhorar o espaço público, sem levar em conta que a melhoria do ambiente urbano aumenta o preço do solo e pode-se provocar a expulsão dos antigos habitantes do lugar, que já não conseguem atender ao custo de vida nessas áreas melhoradas. Portan-to, deve-se considerar que ao realizar melhorias é preciso criar instrumentos para impedir que essas pessoas sejam expulsas. Os habitantes diretamente afetados estão prote-gidos, com seus direitos de habitação respeitados, seja de aluguel ou imóvel próprio, mas aqueles que permanecem nos limites, na área de influência indireta de atuação da melhoria, estão desprotegidos, às custas de um mercado que aproveitará os benefícios do investimento público.

EPISÓDIO DESFOCADO: FÓRUM DAS CULTURAS 2004No ano de 1997, a pedido do prefeito Pascual Mara-

gall, cria-se um novo evento universal dedicado ao mul-ticulturalismo, à paz e à sustentabilidade. Na proposta inicial, este evento não necessitava novos espaços, era a própria cidade que se propunha a abrigar em todo o seu território as atividades de debates e exposições para ex-plicar e discutir as questões relativas a esses três eixos. No entanto, a cidade decide utilizar esse evento para desen-cadear um novo processo de renovação urbana, com foco em uma das áreas de centralidade identificadas nos anos 1980. Além disso, a localização do espaço para celebrar o evento vem determinada pela presença de um grupo de investimentos norte-americano, Heines, que havia adquiri-do uma grande área para construir residências de luxo, um centro comercial e um centro terciário. A área não parece ser a mais adequada socialmente e ambientalmen-te para este projeto, e será o espaço do Fórum, com um

and high-income values begin to appear in areas with previously low land values, such as the Olympic Village neighbourhood.

To recap, the strategies for the Olympic Games had the positive effects of territorial rebalance through infras-tructure and facilities of ring roads, drainage and sports facilities, which were carried out across the city, although lacking investment in public transport and social housing, and the negative effects of outlining future actions of priva-tisation of the public space, destruction of industrial assets and little building of social housing.

Much work took place on improving the public space in Barcelona without considering that improvement to the urban environment increases land prices and can lead to the undesirable result of removal of the established inhabi-tants because they can no longer meet the costs of living in these improved areas. One therefore has to consider that when carrying out improvement actions it is important to create instruments to prevent the inhabitants being driven away. Directly affected inhabitants are protected, with their rights of rented or owned residency respected, but those on the edges of the area, with indirect influence on improvement actions, are unprotected from market costs brought by the benefits of public investment.

AN UNFOCUSED EPISODE: THE 2004 FORUM OF CULTURES

In 1997, on the request of the mayor Pascual Maragall, a new universal event was created, dedicated to multicul-turalism, peace and sustainability. In the initial proposal, this event needed no additional spaces, with the city itself proposing to house the activities, debates and exhibitions for discussing and addressing issues related to those three key subjects. Nonetheless, the city decided to use the event to unleash a new process of urban renovation, focused on one of the central areas identified in the 1980s. Moreover, the location of the space for celebrating the event was de-termined by the presence of a North American investment group, Heines, which purchased a large area for building luxury housing, a commercial centre and a tertiary centre. This area did not seem to be the most socially and environ-mentally appropriate, and it would be the Forum space, with strong public investment, which would operate as a bellows between two distinct population areas: the Mina neighbourhood and the new Diagonal Mar speculative project.

If from the outset the Olympic Games aroused the ima-gination of the vast majority of the population, this event was highly questioned and thinly participated in. People did not feel represented, the time between one event and another was very short, and the city needed improvements

122 123

ARQ

TEXT

O 1

7 ARQ

TEXTO 17

forte investimento público, que funcionará como fole entre duas áreas de populações distintas: o bairro da Mina e o novo projeto de especulação da Diagonal Mar.

Se desde o princípio os Jogos Olímpicos despertaram a ilusão da grande maioria da população, este evento foi muito questionado e pouco acolhido. As pessoas não se sentiram representadas, o tempo entre um evento e outro era muito curto, e a cidade necessitava melhorias em escala de bairro; precisava de mais proximidade e tranquilidade, e menos espetáculo. A paisagem humana estava mudando rapidamente. Barcelona tornou-se uma cidade com novos habitantes, que somavam novos requerimentos àqueles da população já estabelecida. Portanto, o Fórum Universal das Culturas não foi compreendido pelo público, foi visto como um espetáculo de consumo, que gerou uma grande despesa da qual em 2010 ainda restam dívidas.

O projeto de 2004 não teve uma estratégia de cidade, teve apenas uma estratégia de alcance pontual, e não conse-guiu, ainda em 2010, situar no cotidiano dos cidadãos este espaço. A prova disso é que a cada primavera começam as propagandas para a população fazer uso do lugar, com investimentos públicos anuais para esta finalidade.

Para avaliar positivamente um aspecto desta transfor-mação urbana, é preciso destacar duas questões: a me-lhoria ambiental do rio Besòs e a permanência obrigató-ria da grande planta de tratamento de água nos limites urbanos da cidade de Barcelona, sem externalizar em outro município a limpeza das águas servidas da cidade. O rio Besòs converteu-se em um grande espaço público linear, que serve como uma ligação entre diferentes muni-cípios: Santa Coloma de Gramanet, Sant Adrià del Besòs, Barcelona e Montcada i Reixach.

A área ocupada diretamente pelas atividades do Fórum 2004 não serve aos bairros circundantes, e se o faz, é de maneira muito pontual e esporádica. Os edifí-cios foram projetados para a glória dos próprios arquite-tos, sem considerar as necessidades reais das pessoas, sem pensar no dia seguinte, e sem contribuir em nada para a vida cotidiana dos cidadãos.

Desses eventos recentes podemos concluir que é neces-sário relacionar as oportunidades com as necessidades e desejos cotidianos da população, que os eventos devem prestar um salto de qualidade real para a vida diária, e não apenas um espetáculo para o papel couché. É impor-tante haver reconhecido, estudado e analisado o território social e urbano antes de fazer propostas, ao mesmo tempo em que é preciso pensar no uso posterior, pois os eventos são ocasiões demasiado únicas para desperdiçá-las em oportunidades pontuais e perdidas para a melhoria real da vida cotidiana das pessoas que vivem nas cidades.

on a neighbourhood scale, greater proximity and tran-quillity and less spectacle. The human landscape was changing swiftly, Barcelona became a city with new inha-bitants, needing new requirements for the already esta-blished population. The Universal Forum of Cultures was therefore not understood by the public, it was seen as a consumer spectacle that generated huge costs and still has debts in 2010.

Instead of a city strategy, the 2004 project strategy was focused on one point, and still in 2010 this space has not managed to establish itself in the everyday life of the citizens, which is demonstrated by the fact that advertising campaigns are run each spring to encourage the popu-lation to make use of it, with annual public funding for precisely that purpose.

Two issues can be singled out for positive assessment of this urban transformation: the environmental improve-ments to the River Besos and the essential establishment of a major water treatment plant on the Barcelona city outskirts. In other words, not outsourcing the treatment of city waters to another municipality. The River Besos has become a great linear public space linking several cities: Santa Coloma de Gramanet, Sant Adrià del Besos, Barcelona and Montcada i Reixach.

The area directly occupied by the 2004 Forum activi-ties does not serve the surrounding neighbourhoods, and its use, if there is any, is very sporadic and occasional. The buildings were designed to the glory of their archi-tects without considering the real needs of people, without thinking about tomorrow and without contributing anything to people’s everyday lives.

These recent events allow us to conclude that such op-portunities need to be related to the everyday needs and wishes of the population, and should provide a real quali-tative leap for daily life and not just a spectacle for glossy magazines. The social and urban site needs to be recogni-sed, studied and analysed before making proposals, while at the same time considering its subsequent use, as these occasions are too unique to allow incidental opportunities to exclude real improvements in the everyday lives of the people living in these cities.