epilepsia abdominal na infÂncia

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EPILEPSIA ABDOMINAL NA INFÂNCIA RUBENS MOURA RIBEIRO * JORGE ARMBRUST FIGUEIREDO ** VALERIANA MOURA RIBEIRO * A síndrome clínica caracterizada por manifestações paroxísticas de loca- lização abdominal acompanhada, ou não, de distúrbios de consciência, conti- nua sendo diagnosticada com pouca freqüência. Embora, em 1907, Gowers 9 tenha descrito um complexo sintomático caracterizado por desconfôrto abdominal e náuseas, em pacientes com crises convulsivas, foi sòmente em 1941, com Klingman e col. 14 que esta entidade pôde ser reconhecida em bases clínicas mais definidas. A origem cerebral das manifestações abdo- minais paroxísticas foi demonstrada por Cushing 3 e ulteriormente confir- mada por Penfield e Jasper 21 , que estabelecaram a correlação diencefálica dessas manifestações clínicas. As alterações eletrencefalográficas permitiram a Gibbs 6 descrever, em 1951, certo tipo de disritmia cerebral considerada específica da epilepsia abdominal. Assim, é possível formular o diagnóstico da epilepsia abdominal, carac- terizado essencialmente pelo início paroxístico com sintomatologia abdominal e distúrbio de consciência, resposta favorável à terapêutica anticonvulsivante e alterações eletrencefalográficas 1, 11, 15, 16, 17, 18, 20, 22, 23, 24 . O presente estudo foi feito com o intuito de analisar as manifestações clínicas e eletrencefalográficas de crianças portadoras de epilepsia abdomi- nal. Pretendemos chamar a atenção para o valor da eletrencefalografia no diagnóstico das síndromes abdominais paroxísticas em crianças, principal- mente pela pouca importância que geralmente se dá às suas queixas ou pelas dificuldades de seu reconhecimento. Queremos salientar também que as anormalidades eletrencefalográficas são bastante freqüentes nesses pacientes e que, portanto, não devemos pou- par esforços por encontrá-las. MATERIAL E MÉTODO O material consta de 21 pacientes cujos dados de identificação figuram no qua- dro 1: 11 eram do sexo feminino e 10 do sexo masculino; as idades variaram entre 4 e 14 anos (para a seleção das idades foi utilizado o critério estabelecido por Stuart 26 ). Trabalho da Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto, da Univ. de São Paulo: * Assistente; ** Professor.

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Page 1: EPILEPSIA ABDOMINAL NA INFÂNCIA

EPILEPSIA ABDOMINAL NA INFÂNCIA

RUBENS MOURA RIBEIRO *

JORGE ARMBRUST FIGUEIREDO **

VALERIANA MOURA RIBEIRO *

A síndrome clínica caracterizada por manifestações paroxísticas de loca­lização abdominal acompanhada, ou não, de distúrbios de consciência, conti­nua sendo diagnosticada com pouca freqüência. Embora, em 1907, Gowers 9

já tenha descrito um complexo sintomático caracterizado por desconfôrto abdominal e náuseas, em pacientes com crises convulsivas, foi sòmente em 1941, com Klingman e col. 1 4 que esta entidade pôde ser reconhecida em bases clínicas mais definidas. A origem cerebral das manifestações abdo­minais paroxísticas foi demonstrada por Cushing3 e ulteriormente confir­mada por Penfield e Jasper 2 1, que estabelecaram a correlação diencefálica dessas manifestações clínicas. As alterações eletrencefalográficas permitiram a Gibbs 6 descrever, em 1951, certo tipo de disritmia cerebral considerada específica da epilepsia abdominal.

Assim, é possível formular o diagnóstico da epilepsia abdominal, carac­terizado essencialmente pelo início paroxístico com sintomatologia abdominal e distúrbio de consciência, resposta favorável à terapêutica anticonvulsivante e alterações eletrencefalográficas 1, 11, 15, 16, 17, 18, 20, 22, 23, 24.

O presente estudo foi feito com o intuito de analisar as manifestações clínicas e eletrencefalográficas de crianças portadoras de epilepsia abdomi­nal. Pretendemos chamar a atenção para o valor da eletrencefalografia no diagnóstico das síndromes abdominais paroxísticas em crianças, principal­mente pela pouca importância que geralmente se dá às suas queixas ou pelas dificuldades de seu reconhecimento.

Queremos salientar também que as anormalidades eletrencefalográficas são bastante freqüentes nesses pacientes e que, portanto, não devemos pou­par esforços por encontrá-las.

M A T E R I A L E M É T O D O

O mate r ia l consta de 21 pacientes cujos dados de ident i f icação f iguram no qua­dro 1: 11 e r am do sexo feminino e 10 do sexo mascul ino; as idades v a r i a r a m entre 4 e 14 anos (para a seleção das idades foi u t i l izado o cr i tér io estabelecido por S t u a r t 2 6 ) .

T raba lho da Clínica N e u r o l ó g i c a da Faculdade de Medicina de Ribe i rão Prê to , da Univ . de São P a u l o : * Assis tente; ** Professor .

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A s queixas clínicas referidas pelos pacientes puderam ser sumarizadas nas se­

guintes manifestações de cará ter pa rox í s t i co : mal-es tar indefinido (11 casos) , mo-,

v imen tos no e s tômago ( 4 ) , dores no e s tômago ( 3 ) , sensações diversas no e s tômago

( 2 ) , sensação intestinal ( 1 ) .

N a medida do possível , todos os pacientes fo ram submetidos a exames subsidiá­

rios de rotina, inclusive e x a m e rad io lóg ico do abdome, no sentido de ser exc lu ído

processo que pudesse in ter fer i r com o d iagnóst ico neuro lóg ico . E m todos os casos

houve resposta f a v o r á v e l à medicação an t iconvuls ivante , regis t rada em contrôles

cl ínicos sucessivos.

Os registros e le t rencefa lográf icos fo r am fei tos e m apare lho Grass de 8 canais, colocando os eletrodos conforme técnica usual internacional , com der ivações mono e bipolares. Ut i l i zamos a t i vação pela hiperpnéia e m 17 pacientes e pelo sono es­pontâneo ou induzido por barbitúricos em 8 casos.

R E S U L T A D O S C L Í N I C O S E E L E T R E N C E F A L O G R Á F I C O S

Da análise das manifestações cl ínicas ve r i f i camos que apenas 4 pacientes (casos 6, 9, 17 e 18) não ev idenc ia ram a l t e ração de consciência durante ou após a crise clínica. Após as manifestações iniciais, 8 pacientes r e l a t a ram crise convuls iva mo­tora la tera l izada (casos 3, 9, 10, 11, 14, 16, 20 e 2 1 ) ; 4 apresentaram crises psico-motoras (casos 2, 7, 8 e 1 7 ) ; 3 t i v e r a m crises do t ipo grande mal (casos 4, 12 e 1 5 ) ; 2 t i ve ram crises do t ipo ausência (casos 1 e 5 ) .

Os t raçados e le t rencefa lográf icos foram normais em 5 pacientes (casos 3, 4,~10, 12 e 16) e reg i s t ra ram a lguma forma de a l t e ração nos 16 restantes ( 7 6 , 2 % ) , sendo que, j á durante o t raçado de repouso, 7 pacientes ev idenc ia ram E E G anormal (casos 6, 7, 8, 11, 13, 14 e 15) . O e x a m e durante o sono foi fei to em 8 pacientes (casos

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1, 2, 3, 5, 9, 11, 13 e 16 ) , estando a l terado em 5 (casos 1, 2, 5, 11 e 1 3 ) . A hiperp-

néia, u t i l izada e m 17 pacientes (casos 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 12 14, 15, 16, 17, 18,

19, 20 e 2 1 ) , ev idenciou a l te ração em 12 (casos 2, 5, 6, 8, 14, 15, 16, 17, 18, 19,

20 e 2 1 ) .

Os resultados e le t rencefa lográf icos (quadro 1 ) podem ser resumidos da seguinte

manei ra : disr i tmia por onda sharp (10 casos, ou seja 6 6 , 6 % ) ; disr i tmia 14 e 6 p / seg .

(4 casos, ou seja 1 9 % ) ; pa rox i smo p /onda delta (2 casos, ou seja 9 , 5 % ) .

A incidência topográf ica das a l terações obedeceu a seguinte dis t r ibuição: foco

subcortical no lobo tempora l esquerdo (10 ca sos ) ; foco subcortical no lobo tempora l

direi to ( 4 ) ; foco cor t ica l tempora l médio esquerdo ( 1 ) ; foco cor t ical t empora l médio

dire i to ( 1 ) .

Disr i tmia 14 e 6 por segundo evidenciada em 4 pacientes de 5 que apresenta­

v a m E E G al te rado durante o sono ( f i g s . 1, 2, 3 e 4 ) .

C O M E N T Á R I O S

A contribuição fornecida pelos estudos experimentais e pela clínica de­monstra a presença de centros de contrôle das funções autônomas no rinen-céfalo e córtex cerebral 5, sendo que a estimulação do giro hipocampal e do núcleo amigdalóide provoca alterações na função gastrintestinal 4 , 7. Não há dúvida sôbre a importância que essas estruturas subcorticais têm para o contrôle das manifestações ligadas ao aparelho digestivo 8, seja pelos resul­tados experimentais registrados mediante eletrocorticografia, seja pela cor­relação da clínica com a eletrencefalografia 1 2 . Caracterizam-se êsses acha­dos pela alta incidência de atividade epileptógena de projeção nos lobos tem­porais, indicando a estreita correlação entre as estruturas inferiores e a corticalidade; êstes estímulos no córtex cerebral ativariam centros respon­sáveis pela regulação do tono e da atividade motora do trato gastrintesti­nal 25, 28.

A variabilidade de sintomatologia clínica evidenciada pelos nossos pa­cientes permite admitir a origem subcortical dessas manifestações, como de­monstraram Green e Shimamoto 1 0 quando estudaram a origem hipocampal da epilepsia abdominal. Por outro lado, nossos resultados eletrencefalográ­ficos sugerem a interferência de mecanismos integradores do sistema ner­voso central, seja pela alta incidência das descargas de origem subcortical, seja pela presença das disritmias 14 e 6 por segundo.

Representa, portanto, o EEG um método seguro para o diagnóstico di­ferencial entre uma síndrome clínica puramente abdominal daquela decor­rente de patologia cerebral. Neste último caso o registro eletrencefalogrᬠfico evidencia em elevada percentagem alterações paroxísticas, na vigência ou não da manifestação abdominal 2 7.

Apesar de Chao e col.2 e Kellaway e col. 1 3 admitirem a remissão dos sintomas clínicos da epilepsia abdominal, com ou sem tratamento, ao con­trário do que se espera da evolução das manifestações convulsivas em geral, justifica-se a nosso ver a utilização de uma rotina cuidadosa com intuito de se analisar pelo menos o significado clínico dessas manifestações.

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R E S U M O

São analisados do ponto de vista clínico e eletrencefalográfico, 21 casos relativos a crianças com epilepsia abdominal. Os autores chamam a atenção para as dificuldades que freqüentemente surgem para estabelecer êsse diag­nóstico em crianças e, principalmente, para correlacioná-lo à uma patologia cerebral. Representa o EEG um exame subsidiário de valor como auxiliar no diagnóstico, principalmente quando são registradas as disritmias 14 e 6 por segundo. É considerada também a importância das estruturas subcor-ticais e suas ligações com o lobo temporal na regulação da atividade do trato gastrintestinal.

S U M M A R Y

Abdominal epilepsy in children.

The clinical and electroencephalographic finding of 21 children with abdominal epilepsy are analised. There is inquestionably an overlopping be­tween the clinical syndrome of abdominal epilepsy and cerebral pathology. The EEG is usually abnormal and often shows the "14 and 6 per second dysrhythmia" which is an indication of abdominal epilepsy. In basis of experimental and clinical evidence it seems probable that the state of activity of the gastro-intestinal tract is under cerebral cortex and lower centers influence.

R E F E R Ê N C I A S

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Clínica Neurológica, Faculdade de Medicina — Ribeirão Prêto, São Paulo — Brasil.