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Enxames de genteOs protestos de junho foram o começo de uma nova era na história da humanidade. E uma ciênciaque acabou de nascer explica por quê

por Alexandre Versignassi

Um líder de punhos cerrados, discurso inflamado, berrando para uma multidão. Essa era a imagemdefinidora de qualquer movimento popular. Agora não: "Os protestos parecem sem liderança, fora decontrole ‐ um enxame de pequenas causas sem nenhum princípio organizacional", escreveu o americanoSteven Johnson, um escritor especializado em movimentos sociais. Sim, a essa altura você sabe disso decor e salteado. O que você talvez não saiba é que Johnson não está falando aqui sobre os protestos doBrasil. Nem sobre os da Turquia, o Occupy Wall Street ou a Primavera Árabe. Ele escreveu isso há 14anos. Em 1999, a Organização Mundial de Comércio estava organizando uma série de conferências emSeattle. E as pessoas foram para a rua protestar contra a OMC, sem que houvesse líderes ou partidospolíticos por trás da coisa. Nem uma causa propriamente dita. "Eram pequenos grupos de afinidaderepresentando causas específicas ‐ anarquistas, ambientalistas, sindicatos". A única coisa que unia essesgrupos era a ideia de que o comércio global criava mais problemas do que soluções. A ver: para ossindicatos, as multinacionais tiravam empregos dos EUA ao transferir fábricas para outros países, a fim degastar menos com salários. Para os ambientalistas, elas poluíam. Motivações bem diferentes. Igual o queestá acontecendo agora.

Quem tomou praticamente todas as grandes cidades do Brasil não tinha uma cartilha unificada dereivindicações. Mas, braços dados ou não, os manifestantes eram todos iguais no que realmentecontava: tinham ido para a rua a fim de serem vistos e ouvidos. E, mais importante, não estavamseguindo ordens de líderes. Era cada um por si e a multidão por todos.

Essa é a grande novidade por trás de tudo o que está acontecendo agora. Pela primeira vez, osfigurantes são os protagonistas dos movimentos sociais. Não há líderes. Nem ideologias predominantes.Tudo isso é tão recente que quem explica o fenômeno é uma ciência nova, que mal saiu das fraldas. Umaciência multidisciplinar que começou não com um físico, um matemático ou um biólogo. Mas com umhumorista.

Um humorista húngaro: Frigyes Karinthy. Frigyes era um escritor de contos engraçados, da década de1920, e que hoje seria diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção (sempre esquecia doscompromissos e tinha problemas sérios com prazos). Mas até que era produtivo: em seu 46º livro, umacoleção de 52 contos, tinha um particularmente original. Chamava Correntes, e dizia o seguinte: "Paramostrar que as pessoas de hoje estão mais próximas do que nunca umas das outras, um dos caras daturma sugeriu um teste. Apostou que qualquer um dos 1,5 bilhão de habitantes da Terra [era 1929]estava ligado a ele por uma distância de, no máximo, cinco indivíduos".

Então o personagem imagina um operário da Ford e tenta ver qual é a conexão entre ele próprio, umsujeito de Budapeste, e o trabalhador braçal de Detroit, a meio mundo dali: "Esse operário conhece odiretor da fábrica dele. É um fato. Esse diretor provavelmente conhece o Henry Ford. O Ford é amigo dopresidente da Hearst, a editora de jornais. E o presidente da Hearst, no ano passado, conheceu o ÁrpadPásztor, que é muito amigo meu!". Pronto: cinco "graus de separação" entre o personagem do café emBudapeste e o operário da Ford.

Esse é o primeiro registro escrito daquilo que você provavelmente conhece como "seis graus deseparação". E você conhece como "seis graus", e não "cinco", por causa de um psicólogo de Harvard,

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Stanley Milgram.

Milgram era filho de húngaros. E os livros humorísticos de Frigyes eram tão populares na Hungria docomeço do século 20 quanto os vídeos do Porta dos Fundos são no Brasil do século 21. Talvez Milgramtenha ouvido sobre o conto em algum almoço de domingo quando era pequeno. Talvez a ideia dos "grausde separação" já fosse conhecida na Hungria antes do livro ‐ os jogos mentais, afinal, são para o húngarosmais ou menos o que o samba é para nós: uma questão de identidade nacional (tanto que elesinventaram o cubo mágico...).

De um jeito ou de outro, a ideia chegou até Milgram. E em 1967 ele fez um experimento para testarquantos "graus de separação" haveria entre duas pessoas que não se conhecem. Assim: mandou para 160pessoas pelo correio a foto de um amigo dele, que era corretor da bolsa em Boston. Essas 160 pessoasviviam em Omaha, Nebraska ‐ que fica a 1.500 quilômetros da capital do Massachusetts. Junto com afoto, ia o nome e o endereço do tal corretor mais as instruções do teste: quem recebesse a carta econhecesse pessoalmente o sujeito deveria mandar a carta para ele.

Quem não reconhecesse o amigo de Milgram (na prática, todo mundo), deveria mandar a carta para algumamigo que talvez soubesse quem fosse o cara ‐ um conhecido de Boston, por exemplo. O senso comumdiz que um teste desses só podia dar em água. Os colegas de Milgram também. Mas em questão de diaschegou a primeira carta para o corretor, vinda de alguém que ele realmente conhecia. A correspondênciatinha passado só por dois intermediários. Ou seja: alguém de Omaha que recebeu a carta conheciaalguém que conhecida alguém que conhecia o cara de Boston. E chegaram mais cartas. E mais cartas...No final, 42 das 160 alcançaram o amigo de Milgram por essa via. E o número médio de graus de separaçãofoi de 5,5. Basicamente o que Frigyes tinha imaginado. Uau.

Milgram arredondou o número para seis. E a coisa entrou para o folclore moderno como "seis graus deseparação". O psicólogo de Harvard, diga‐se, nunca usou a expressão "graus de separação". Esse foi otítulo de uma peça da Broadway dos anos 90, inspirada pelo estudo de Harvard. A peça, depois, inspirouuma piada. Em 1994, um grupo de estudantes mandou uma carta para o programa de TV do comedianteamericano Jon Stewart dizendo que "qualquer pessoa no mundo está a no máximo seis graus deseparação de Kevin Bacon". É que Bacon teria feito tantos filmes que fatalmente trabalhou com muitagente. Então qualquer um conheceria alguém que conhece alguém (...) que trabalhou com ele. A piadaera ok, mas cientificamente imprecisa: a conclusão de Milgram lá atrás era que a regra valia para qualquerpessoa, claro; não só para o ator de Footloose. Mas foi desse jeito, ilustrada pelo ator da segunda divisãode Hollywood, que o meme ganhou o mundo. O mais importante ali, porém, era outra coisa: a ideia dosseis graus de separação mostrava que os seres humanos, de alguma forma, estão conectados em rede.

Foi o que um matemático da Universidade Cornell percebeu quando ouviu sobre os "graus de separação",numa conversa casual com o pai, no final dos anos 90 ‐ não por coincidência, bem quando o meme KevinBacon estava se espalhando. Duncan imaginou que o conceito por trás dos seis graus de separaçãopoderia trazer a chave para um mistério que ele tentava decifrar havia anos: a sincronicidade entreinsetos.

O assunto é mais legal do que parece, você vai ver.

Para entender de que tipo de "sincronicidade" estamos falando aqui, pense num aplauso de multidão nomeio de um show. Não num aplauso formal, que as pessoas dão por educação quando a música termina,mas num espontâneo mesmo, tipo os que acontecem de vez em quando no meio da música. Épraticamente impossível saber onde a coisa começou. O que a multidão percebe é que, de uma hora paraoutra, está todo mundo aplaudindo.

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Isso acontece com alguns vaga‐lumes também. Uma espécie do sudeste da Ásia tem um ritualindiscernível de mágica: grupos de milhões de vaga‐lumes machos se reúnem em volta das árvores e, deuma hora para a outra, começam a acender e apagar seus rabos exatamente ao mesmo tempo, numasincronia perfeita. O enxame vira uma luz pulsante, visível a quilômetros de distância. Um flashmobartrópode.

Eles fazem isso para avisar as fêmeas que estão ali (e com a corda toda!). A piscada em uníssonofunciona como um letreiro luminoso, que avisa onde é a balada do acasalamento.

A natureza está cheia de exemplos parecidos: as sardinhas tentam enganar os predadores formandocardumes tão densos e sincronizados que, para um tubarão desavisado, a coisa parece mais uma baleia.Até o canto dos grupos de grilos parece seguir as ordens de um maestro. A natureza é terrivelmentesincronizada.

E, quando Duncan Watts ouviu do pai a história dos seis graus, percebeu que ela podia ser útil paraexplicar tudo isso. Ele sabia que a única coisa que um vagalume ou uma sardinha tem noção na vida é ocomportamento dos outros vaga‐lumes e sardinhas imediatamente ao redor dele. "Se o meu vizinhoacender o rabo, vou ligar o meu", pensaria o vaga‐lume, se tivesse um cérebro capaz disso. Ele nãopensa, claro, só imita por instinto.

(Plantão Darwin: os vaga‐lumes que nasceram com esse instinto se reproduziram mais do que os vaga‐lumes comuns, já que atraíam mais fêmeas com seu show de luzes involuntário; e uma hora os insetossincronizados tinham deixado tantos descendentes a mais que viraram a população dominante por lá.Essa é a explicação evolutiva).

Mas o que importa é o seguinte: Watts passou a entender que os vaga‐lumes de uma ponta do enxameestavam a "poucos graus de separação" dos da outra ponta, a milhões de indivíduos de distância. Para ummatemático isso faz toda a diferença: mostra que os vaga‐lumes funcionam em rede.

Numa rede, de computadores, por exemplo, cada uma das máquinas está indiretamente conectada atodas as outras máquinas do mundo. Isso fica bem visível nas redes de torrents. Para quem não sabe:torrents são arquivos que as pessoas trocam pela internet ‐ filmes, por exemplo, geralmente de formailegal. Se você tem um filme no computador e joga ele numa rede de torrents, todas as pessoas doplaneta que derem um comando para baixar o seu filme vão se conectar à sua máquina. O nome técnicodisso é rede peer‐to‐peer (de "par para par"). De par para par porque não existe uma central no meio docaminho. É um computador "falando" direto com o outro.

Bom, os enxames sincronizados de insetos são grandes redes peer‐to‐peer: a informação flui só "entrepares". No caso dos vaga‐lumes, os vizinhos imediatos. Mas, como eles estão conectados em rede, ainformação de quando acender e apagar a luz flui com uma rapidez extrema pelo enxame todo. Daí asincronicidade. Duncan demonstrou matematicamente esse tipo de fluxo (o que não é nada simples). Eessa foi sua descoberta.

O matemático gostou tanto dessa história de redes que acabou deixando os insetos de lado e passou aestudar outro animal que de vez em quando forma enxames: os humanos. Nisso, acabou praticamenteinaugurando um novo ramo da ciência: a chamada "nova ciência das redes". Não podia haver época maispropícia. Com o avanço da internet, coisas que antes eram abstrações matemáticas, como "pontos derede" e "links" já tinham entrado para o léxico popular. E um enxame de cientistas passou a estudarredes ‐ sejam as de computador, sejam as de seres humanos.

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Mas as redes humanas tinham um problema: historicamente, nunca formamos grandes "inteligênciascoletivas", como os vaga‐lumes, grilos e sardinhas. Sempre precisamos de líderes. Se os líderes sãoabsolutistas, nos organizamos naquilo que os cientistas dessa nova disciplina chamam de "redescentralizadas": ou todo mundo obedece um comando central, ou tem a cabeça cortada. Caso da Coreiado Norte, para ficar num exemplo só. O resultado dessas redes é o comportamento padronizado. E oisolamento. Quem está numa rede extremamente centralizada nem tem contato com outras formas depensar ‐ tanto que, se meia dúzia de norte‐coreanos fugidos para o vizinho do sul resolvem abrir a bocapara falar como viviam, vira livro (como o ótimo Nada a Invejar, de Barbara Demick). Em suma: eles estãoconectados em rede, mas é como se cada norte‐coreano estivesse ligado só ao gordinho Kim Jong‐un eàs insanidades que ele prega. Outro tipo de rede é a mais convencional: a que tem vários centros, eonde cada pessoa participa de mais de um. Se você é skatista e advogado, já faz parte de duas redes, ade quem anda de skate e a da OAB, cada uma com seus líderes de ocasião. Se você estuda na USP e émembro do Movimento Passe Livre (MPL), mesma coisa. A "rede de vários centros", enfim, ébasicamente a vida como a conhecemos.

Quer dizer... Não. Não é mais.

O que está acontecendo agora é o afloramento de uma nova rede: uma que une basicamente todomundo. A internet, e, principalmente, as redes sociais, tornaram a disseminação de informação peer‐to‐peer, de pessoa para pessoa, tão fugaz quanto a dos vaga‐lumes baladeiros. Os graus de separação entreas pessoas dentro do Facebook, algo que pode ser medido automaticamente, é de 3,75. O mundo ficoumenor ‐ se algum amigo seu vai morar no exterior, continua participando da sua vida tanto quanto antes,via Whatsapp, Face, Instagram.

Isso acelerou o mundo. Aquele meme do Kevin Bacon chegou ao Brasil três, quatro anos depois de teraparecido na TV americana. Hoje, chegaria em 3 segundos. Uma ideia também não precisa mais "subir nahierarquia" de um sindicato ou de um partido político para chegar a todo mundo. Se ela for boa obastante, vai alcançar milhões de mentes em questão de minutos. É por isso que hoje conseguimosformar "enxames" sem a intermediação de líderes. E os movimentos de junho são a prova empírica disso.

Havia, sim, várias reivindicações, de vários grupos. E, claro, foi o MPL quem deu o pontapé inicial. Mas oque unia as pessoas era outra coisa. "O que aconteceu no Brasil na semana de 17 de junho foi o maiorenxameamento de pessoas de todos os tempos, pelo menos com a característica que teve aqui", diz ofísico Augusto de Franco, um especialista na nova ciência de redes. Por "característica", Augustoexemplifica: "Não existia um objetivo comum, como no Egito, que era derrubar uma ditadura. O quehavia era uma insatisfação geral e difusa contra o `sistema¿. Só que para cada um o `sistema¿ era umacoisa diferente". Em suma: o que levou as pessoas para a rua foi essa rede nova, hiperdescentralizada, eque dissemina os seus e os meus pensamentos à velocidade da luz. Pois é. Se você saiu para protestar,contra o que quer que seja, parabéns. Você participou não só de um momento ímpar na história do País.Foi protagonista do começo de um novo capítulo da história da humanidade. O capítulo que está sendoescrito agora. Na rua.

PARA SABER MAISLinked ‐ A Nova Ciência das RedesAlbert‐Laszlo Barabasi, Fronteira do Conhecimento, 2009

O Seis Graus de SeperaçãoDuncan Watts, Leopard, 2009