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Page 1: Entrevista - Sérgio Buarque de Holanda _ Corpo e alma do Brasil (Ernani da Silva Bruno)

CORPO E ALMA DO BRASILENTREVISTA DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA*

RESUMONeste depoimento, gravado em junho de 1981 e somente agora publicado, o historiador SérgioBuarque de Holanda (1902-82) faz uma retrospectiva de seu percurso intelectual. Entre osdiversos pontos abordados, ele comenta a gênese e a repercussão de suas obras, conta suasexperiências na Alemanha no final dos anos 1920, retoma suas polêmicas com Gilberto Freyree Oliveira Vianna e dá suas impressões sobre outros intelectuais e historiadores com quemconviveu. Precede o depoimento um comentário introdutório da historiadora Laura de Mello eSouza, que esteve entre os entrevistadores.Palavras-chave: Sérgio Buarque de Holanda; história do Brasil; intelectualidade.

SUMMARYIn this interview, recorded in June 1981 and only now published, the Brazilian historian SergioBuarque de Holanda (1902-82) makes a retrospective of his intellectual trajectory. Among otherpoints, he talks about the genesis and repercussion of his works, tells his experiences in Germanyin the later 1920's, resumes his polemics with Gilberto Freyre and Oliveira Vianna, and revealshis impressions on other intellectuals and historians who he met. Still, the historian Laura de Melloe Souza, who was one of the interviewers, presents an introductory comment.Keywords: Sergio Buarque de Holanda; Brazilian history; intelecluality.

Esta entrevista com Sérgio Buarque de Holanda, colhida em 2 dejunho de 1981 e da qual tive o privilégio de participar, ocorreu duassemanas após uma outra, dada a Richard Graham e publicada na Hispa-nic American Historical Review (vol. 62, nº 1, 1982, pp. 3-17), depoistraduzida na Revista do Brasil (ano 3, nº 6, 1987, pp. 102-09). A nossapermaneceu inédita, guardada nos arquivos do Museu da Imagem e doSom, onde nos encontramos para a conversa com Sérgio, muito informal edivertida, como era do seu feitio. Ambas têm muito em comum: os assuntossão praticamente os mesmos, remetendo, por sua vez, a aspectos da Apre-sentação que Sérgio escrevera dois anos antes para Tentativas de mitologia(São Paulo: Perspectiva, 1979), na qual se estendera com mais vagar,mantendo contudo reserva nas questões pessoais sobre que se permitiriadiscorrer um pouco nas entrevistas.

Não me lembro bem por que motivo estive entre os entrevistadoresnaquela tarde. Ernani da Silva Bruno era um historiador reconhecido por

(*) Novos Estudos agradece àfamília Buarque de Holanda,que autorizou a publicaçãodeste material, ao Museu daImagem e do Som, pelo em-préstimo das fitas, e a BorisKossoy, ex-diretor do MIS eidealizador da série de depoi-mentos de que este fez parte.

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seus excelentes estudos sobre São Paulo e dirigira o MIS; Maria TerezaPetrone era discípula muito próxima a Sérgio e colaborara na História geralda civilização brasileira, por ele dirigida; Bolívar Lamounier já tinha nomecomo cientista político; eu cursava a pós-graduação e redigia minha disser-tação de mestrado, que depois dediquei a Sérgio e se chamou Desclassifi-cados do ouro. Minha presença talvez tenha se devido à generosidade deErnani da Silva Bruno, ou talvez à de Sérgio e de sua esposa, Maria Amélia,que eram amigos íntimos de minha família. O fato é que gravamos uma dasúltimas das entrevistas que Sérgio Buarque de Holanda concedeu, poismorreria em 24 de abril do ano seguinte.

Há pelo menos quatro passagens que merecem destaque, nas quais dizcoisas que, até onde sei, não disse em outros depoimentos. Primeiro, caçoa deGolbery do Couto e Silva, um dos homens mais terríveis da ditadura militar,dizendo que ele acreditava piamente em tudo o que Oliveira Vianna escrevera— e que Sérgio, sempre que podia, criticava sem dó nem piedade. Depois,conta uma história maravilhosa sobre a ingenuidade de Afonso de Taunay,que escapou de ser um grande historiador porque lhe faltava em imaginaçãoo que lhe sobrava em erudição. Dá também um depoimento muito interessantesobre os círculos comunistas na Europa no final dos anos 1920, a pretexto dasdificuldades que enfrentou para obter um visto que lhe permitisse visitar aRússia — o que acabou não acontecendo. E fecha a entrevista com o relatobem-humorado do único caso em que atuou como advogado, episódio que járelatara na entrevista a Graham, mas sem a graça que se encontra aqui.

Durante esse encontro Sérgio retomou ainda o problema da dificulda-de que tinha para escrever, e ao qual dedicara páginas na Apresentação aque aludi; frisou mais uma vez a discordância com algumas das idéiasantes defendidas em Raízes do Brasil; e reiterou que seus escritos sobre oImpério — os últimos que deixou, se não se contar as publicações póstumas

— eram, então, os seus preferidos. Mas o que chama a atenção nestedepoimento, mais do que em qualquer outro, é um certo tom maroto eirreverente que Sérgio sempre imprimia às suas conversas e que dá ótimaidéia da figura humana rica, irreverente e original que era esse grandehistoriador. (Laura de Mello e Souza)

Ernani da Silva Bruno — Para iniciar, penso que o Sérgio poderia, alargos traços, dar seus dados biográficos.

Nasci em 11 de julho de 1902, na ladeira de São Joaquim, bairro daLiberdade, número 11. Nunca quis ser menino prodígio, mas desde criançame contam um fato curioso: aprendi a ler sozinho, com 5 anos de idade. Eujá sabia as letras, e um dia, ao ver meu pai lendo o jornal, disse: "O Estado deS. Paulo". Foi a primeira coisa que li. Depois tive sarampo, coqueluche,escarlatina, caxumba, e felizmente sobrevivi a esses percalços da vidajuvenil. Estudei na Escola Modelo Caetano de Campos, onde fiquei doisanos, e depois no Ginásio São Bento, onde fiquei mais seis.

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Então minha família se mudou para o Rio e tive que ir junto. Natural-mente, eu precisava encontrar um lugar para estudar, mas não havia umafaculdade de filosofia que eu pudesse fazer. A primeira que apareceu foi ado Distrito Federal, fundada pelo grande educador Anísio Teixeira em 1935,quando eu já estava formado havia dez anos. Por isso fui estudar direito.Não mudei com muita vontade para o Rio. Já tinha meu grupo em São Pauloe custei a me adaptar, mas logo fiz relações. Fiquei representando no Rio arevista Klaxon, fundada em São Paulo pelo movimento modernista. Aliás, àprópria Semana de Arte Moderna eu não pude comparecer. Não pudeporque tinha exame na faculdade. Eu tinha faltado às provas no anoanterior, o primeiro ano de Direito. A única solução era fazer a segundaépoca, e os testes caíram exatamente em fevereiro de 1922.

A revista durou oito números. Depois que acabou, fundei com meuamigo Prudente de Morais Neto uma revista chamada Estética. Esse nomenão tem nenhum sentido esteticista. A questão é que não tínhamos título, eum dia o Graça Aranha, que tinha acabado de lançar o livro Estética da vidae queria muito promovê-lo, nos disse: "Põe 'Estética', por que não?". Euachava que dava uma impressão forte de esteticismo, mas ele insistiu, disseque a palavra era genérica, podia servir para tudo, E acabou ficando. A re-vista durou só três números, mas três números grossos...

Então fui para a Alemanha, onde fiquei de 1928 a 1931, a convite doChateaubriand, pois naquele tempo eu escrevia para O Jornal. Lá assisti atoda a propaganda nazista, às passeatas que faziam nas ruas, inclusive brigasde nazistas com não-nazistas, lutas corporais mesmo. Lembro que uma vez,num night club, eu estava numa mesa com o Raul Bopp e duas namora-dinhas. De repente vi um cara empurrando outro para fora e todo mundo,de pé, começou a bater palmas, inclusive as duas meninas. Só depois fuiperceber que estavam expulsando um judeu dali. Eu não cheguei a ser con-fundido com judeu: não devo ter muita semelhança.

Então, voltei. Passei pela Universidade do Distrito Federal, pelo Mu-seu Paulista, e finalmente fui convidado a assumir o curso de História doBrasil da USP. Em 1958 me disseram para prestar o concurso, pois docontrário eu seria demitido. O material eu já tinha, e então preparei umatese, rápido, em quatro meses, de onde saiu meu livro Visão do paraíso[1959]. Hoje não sinto mais capacidade de escrever assim tão rápido, aindamais um livro erudito como esse.

Publiquei meu primeiro livro, Raízes do Brasil, em 1936. Ainda estavana Universidade do Distrito Federal. É um livro com o qual eu não concordomuito, mas que tem tido uma grande visibilidade. Está na décima quartaedição e tem sido traduzido em várias línguas — até em japonês. Em japonêso título ficou "O que é o brasileiro". É óbvio que eu não teria dado essetítulo, nem autorizado, mas não me pediram licença. Em italiano teve umproblema parecido. Queriam deixar "Radici del Brasile". Achei estranho:para mim, radice é batata-doce, mandioca, essas coisas. Eu me dava com oeditor italiano, que era professor da Universidade de Roma. Ele dizia quenão tinha problema, que em português também tinha essa ambigüidade,

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mas eu propus Alle radici del Brasile, "Das raízes do Brasil", e acabouficando assim. O livro custou muito a ter uma reedição, que só veio em 1947.Depois dessa, a mais importante foi a quarta edição, da Universidade deBrasília, encomendada pelo Darcy Ribeiro. O prefácio foi feito pelo AntonioCandido, e tenho a impressão de que isso deu sorte, porque a partir dali olivro passou a ter muita reimpressão, às vezes duas por ano. Não sei se tenhomais coisas a dizer...

Laura de Mello e Souza — Seria bom se você falasse da influência daAlemanha na sua formação intelectual e dissesse mais um pouco da suaexperiência ali, nos anos que antecederam o nazismo.

Quanto à influência sobre a minha obra, é óbvio que passando doisanos num país você fica próximo à cultura do lugar. Eu morava em Berlim...Ainda agora estive na Alemanha com minha mulher. Passamos pela Bavierae estava muito complicada a comunicação, o pessoal achou meu alemãomuito difícil. Felizmente, quando chegamos a Berlim ficou tudo ótimo, tudomuito fluente. Os dialetos são muito diferentes. Para um bávaro eu seria um"porco prussiano", pois morava na Prússia mesmo. Naquela época conheciprincipalmente Berlim, Leipzig e Hamburgo. Cheguei a visitar a Polônia:passei um mês e meio por lá. Cheguei a conseguir um visto para ir à Rússia,mas aí já estávamos no fim do ano, e tive medo de chegar a Moscou noinverno. A história para conseguir o visto foi meio complicada, mas vale apena contar.

Eu tinha uma carta de apresentação para o francês Henri Guilbeaux,que era representante do Pravda em Berlim e estava condenado à morte naFrança porque tinha sido pacifista na guerra de 1914. Foi ele quem meapresentou ao Willi Münzenberg, um deputado comunista do Reichstag.Depois vim a saber que esse homem foi encontrado morto na FlorestaNegra. Ele me disse que as coisas na Rússia estavam piores que no tempodos czares, de modo que ia ser complicado conseguir visto. Mas me deu oendereço de um certo Américo Ledo, para quem escrevi.

Alguns dias depois, recebi uma resposta. A carta dizia que ainda erapossível me concederem uma autorização, mas talvez demorasse um pouco.E quem assinava era Astrogildo Pereira. Américo Ledo era o nome de guerradele na Rússia: Américo porque era americano, e Ledo provavelmente porcausa do Gonçalves Ledo. Mas esse não era o único nome com que ele seescondia. Descobri isso um dia em que fui até o consulado do Brasil e soubeque um brasileiro chamado Duarte e Silva estava na Alemanha. Conseguientrar em contato com ele, e quando atendeu ao telefone disse: "Aqui éAstrogildo Pereira". E não era de todo mentira, pois o nome completo deleera Astrogildo Pereira Duarte e Silva. Acabei me encontrando com ele nessaocasião.

Maria Tereza Petrone — O seu interesse pela história começou nessapassagem pela Alemanha?

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Freqüentei alguns cursos de história na Universidade de Berlim comoouvinte, mas eu tinha uma formação literária, em grande parte por causa domodernismo. Então descobri um livro interessante — ainda tenho várioslivros daquele tempo —, um livro do Kant sobre Frederico III. Eu melembrava que o Nietzsche dizia que para ele o grande Frederico era o II, porisso fiquei intrigado e comprei. Mas só o primeiro volume — mais tarde, nosEstados Unidos, encontrei o segundo volume num sebo e consegui com-prar. O fato é que daí me veio a idéia para esses assuntos históricos, parauma abordagem maior. Eu sempre tive certa curiosidade por isso.

Tive contato com alguns escritores alemães, como o poeta TheodorDäubler, e freqüentava o círculo do Stefan George. Conheci o arquitetoAlexander Buddeus, que depois veio para o Brasil trabalhar com LúcioCosta. E estive com Thomas Mann. Ele tinha acabado de ganhar o prêmioNobel, e fui entrevistá-lo para O Jornal. Lembro que quando cheguei aohotel a mulher dele me perguntou se eu era o jornalista iugoslavo. Eu disseque não, que era brasileiro. Então ela exclamou: "Ah, a terra da minhasogra!", e desandou a falar sobre ela. É que a mãe dele era brasileira. Não seise fui o primeiro a falar sobre isso no Brasil, mas acho que sim. Até arrumeinum livro um retrato dela para publicar no jornal. Na época acharam que oBrasil era uma desculpa dela para esconder origens menos confessáveis. Atéera meio judia de sangue, mas não creio que fosse por isso. Então fiz aentrevista. Ele tinha acabado de fazer uma conferência que foi vaiada pelosnazistas, e quase deram nele.

Maria Tereza Petrone — Antes de ir para a Alemanha o senhor estavamais interessado em arte, crítica literária, do que em história?

Não que eu estivesse mais interessado. É preciso lembrar que eu tinha19 anos quando da Semana de 22. Tinha muitos amigos ligados ao moder-nismo, e a essa altura minha carreira não estava determinada. Era naturalque a opção pela história viesse depois. E mesmo assim a influênciacontinuou. Por exemplo: não gosto da linguagem afetada. Gosto da lingua-gem seca, nítida, precisa, que é um traço característico dos autores moder-nistas. Mas não acredito que essa convivência com o modernismo tenha meajudado a escrever bem no sentido gramatical. Às vezes tenho de ir aodicionário para ver como se escreve uma palavra. Quem me ajudou muitofoi João Ribeiro, crítico literário do Jornal do Brasil. Era um grande conhece-dor de gramática, e com freqüência eu ia até ele tirar dúvidas de português.Ele dizia que o mais importante não era a correção, mas a eufonia. Acheiesse conselho tão bom que guardei até hoje.

Outro ponto: o interesse pelo caráter nacional era muito forte dentrodo modernismo. E quando estamos num país estrangeiro vemos nossopróprio país com mais interesse, reparamos na diferença, no choque. Certavez o historiador americano Lewis Hanke me disse que para escrever umlivro sobre um país novo bastaria ter vivido nele por três meses: "Três mesesou mais de dez anos", ele dizia. Seriam dois livros diferentes, claro. Mas a

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idéia é que nesses três meses temos o primeiro choque. Depois o contrastevai se perdendo. Digo isso para mostrar como, do estrangeiro, vemos oBrasil de outra maneira. Na Alemanha procurei ver outras coisas do Brasil,confrontar com o que existe fora.

Outro motivo que retardou meu interesse pela história é mais sim-ples: os jornais pagavam artigos de crítica literária. Ou seja, fazer críticahistórica não adiantava nada. Então comecei a comprar livros, a ler. Fiz umesforço danado. Em 1941 fiz uma viagem aos Estados Unidos a convite doState Department e trouxe uma verdadeira biblioteca para me enfronharnisso. Quando eu estava com falta de dinheiro, era a crítica literária que meajudava. Eu mandava textos para publicar em São Paulo, Rio, Minas, noNorte. Até que dava um dinheirinho...

Na Alemanha eu fazia basicamente trabalhos para ganhar dinheiro,mas comecei a escrever um ensaio que se chamava "Teoria da América".Ficou enorme, e se lido hoje, em conjunto, era um trabalho muito ruim. Mastinha umas partes que achei menos ruins. Publiquei uma parte dessetrabalho numa revista alemã comercial, de amenidades, pois, como disse,trabalhava pelo dinheiro. Aproveitei um pouco desse material para o Raízesdo Brasil, mas obviamente não posso concordar com muito do que foi ditoali. Isso foi por volta dos anos 1930: eu tinha meus 27, 28 anos. Quando oJosé Olympio resolveu lançar a coleção Documentos Brasileiros sugeriramque esse trabalho servisse de primeiro volume, mas precisava aumentarmuito, e a essa altura o título já era outro, "Corpo e alma do Brasil", que hojeé o título de uma coleção dirigida pelo Fernando Henrique Cardoso [paraa editora Difel]. O fato é que abandonei esse título depois que ManuelBandeira me disse que um cronista mundano havia publicado um livrochamado Corpo e alma de Paris. Achei isso razão suficiente para mudaro nome. Então ficou Raízes do Brasil.

Meu segundo livro, Monções [1945], saiu de um concurso de Históriado Brasil. Tem uma segunda edição que saiu agora em que me escuso dealgumas coisas que tinha dito no volume anterior. Gostaria ainda de reveresse material. Consegui uma bolsa da Fundação Gulbenkian e fiquei trêsmeses em Portugal, estive também no Mato Grosso, fui até Assunção, noParaguai, e tenho todo esse arquivo anotado. Enfim, o material é muitogrande, só que não tenho tempo, estou fazendo outras coisas.

Laura de Mello e Souza — Isso seria para uma reedição de Monções?

Até pensei em fazer com outro título, Monções e povoado. Seria omesmo livro, só que muito ampliado. Pena que não haja tempo, poisestou reelaborando os sete volumes da História geral da civilização bra-sileira [1960-72], que eu dirigi. Quando cheguei a meados do Impérioquis largar, porque me dava muito trabalho. Falei com o diretor da Difel,mas ele insistiu para que eu ao menos terminasse o Império. A Repúblicaele entregaria para outra pessoa. E foi assim. É um trabalho muito de-morado.

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Laura de Mello e Souza — No momento você está trabalhando com oquê?

Com o Império. Mas não sou muito rápido para escrever. É por issoque digo: sou mau escritor porque tenho dificuldade para escrever. Não souum escritor nato.

Laura de Mello e Souza — Mas você não escreveu Visão do paraísoem quatro meses?

Eu tinha começado a juntar material para um trabalho sobre o barrocono Brasil. Era para ser uma introdução, mas quando surgiu a possibilidadede fazer o concurso, mudei o enfoque. Uma edição desse livro ia sair naVenezuela, por iniciativa do Ángel Rama, e aproveitei as notas que ia fazerpara a terceira edição brasileira. Fiz muita nota para essa edição. Inclusiveencontrei um texto inédito, em Roma, do [padre jesuíta] Simão de Vasconce-los. Quando eu morava na Itália, não sabia desse documento. Só tinha vistouma citação, feita por Serafim Leite. Esse texto, em que se dizia que o paraísoestava no Brasil, foi submetido a uma mesa censória em Lisboa. Depois demuita discussão, um teólogo fez uma exposição dizendo que aquilo eracontra a fé cristã. E essa exposição transcreve inteirinho o trecho condena-do. Pedi a meu filho Chico, que ficou exilado em Roma por um ano, quelocalizasse isso na biblioteca Vittorio Emmanuelle, onde estava o fundojesuítico. Para essa terceira edição brasileira, não quiseram fazer todas asmudanças que eu propus: disseram que ia sair muito caro. Mas pelo menosesse texto consegui incluir como anexo e eles recompuseram o prefácio,onde eu dizia que não tinha conseguido localizar esse documento, com umanota remetendo ao anexo. De modo que a edição venezuelana, se sair, vaisair mais completa [Visión del paraiso. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1987].

Laura de Mello e Souza — Quando começou a escrever Visão doparaíso você já tinha o material?

José Olympio queria que a primeira edição saísse rápido. Mas tãorápido que eles imprimiram muitos erros. Papa Pio II, por exemplo, saiu PioXII. Tinha tanto erro que era impossível fazer uma errata: ficaria do tamanhodo livro. Consegui fazer algumas correções, tirar as partes mais graves, e saiuuma primeira edição. Mas modifiquei muito da primeira para a segunda.Estive nos Estados Unidos por volta de 1965 para dar um curso, e nasbibliotecas americanas encontrei um material enorme. Com isso a segundaedição se ampliou bastante, e o livro ficou com aquele aparato erudito quetem hoje. Não sei como pude fazer com essa rapidez. Hoje não seria capaz.

Ernani da Silva Bruno — O senhor poderia falar um pouco mais sobrea sua afirmação de que reescrever Raízes do Brasil seria fazer um livrodiferente?

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É praticamente impossível fazer uma edição modificada. A Gallimardme pediu que fizesse uma edição nova, com um capítulo adicional, atuali-zando a discussão, mas não tive coragem. Teria que mudar e desdizer muitacoisa. Por exemplo: acho muito estática aquela definição do início, em quefalo do personalismo, do individualismo. Não posso concordar com issohoje. O mesmo vale para aqueles trechos sobre o ladrilhador, o semeador:acho aquilo ensaístico demais, precisaria refazer. O fato é que o livro foiconcebido de uma maneira, e se fosse conceber de outra teria que fazer umlivro inteiramente novo. Mas acredito que ele ainda tem valor: o livro foipublicado em 1936, uma época muito dura para o Brasil, quase tão duraquanto a atual. E nele afirmo que uma revolução no Brasil não pode ser umarevolução de superfície: teria de ser uma revolução que levasse em contatodos os elementos mais aptos que estão por baixo. Essa é uma afirmaçãoque já na época era difícil fazer.

O fato é que não pensei mais nesse assunto. Tanto que as novasedições têm saído sem mudança. Só agora, que se tem falado muito naquelaquestão do homem cordial — eu tenho sido muito criticado por isso —,resolvi pedir que na próxima edição eles incluíssem uma parte da minhapolêmica com o Cassiano Ricardo. Cassiano implicava com o termo "cordi-al". Para ele, o correto seria "homem bom". Mas minha idéia não era fazernenhuma avaliação ética. A cordialidade vem do coração. É possível atéodiar cordialmente. Posso dizer, por exemplo, que fulano é uma excelentís-sima besta. "Cordial" não tem necessariamente um sentido positivo. Já abondade é totalmente diferente. Cassiano fala até numa "bondade maquia-vélica", mas não se trata de bondade e muito menos de maquiavelismo.Antonio Candido sugeriu que eu excluísse a polêmica, pois publicá-la seriadar crédito demais ao Cassiano. Pode ser, mas a minha parte achei que deviapublicar. Ao menos assim me defendo um pouco.

Ernani da Silva Bruno — Nos artigos reunidos em Tentativas demitologia [1979] reaparecem também suas polêmicas com Oliveira Viannae Gilberto Freyre. O que o senhor poderia nos contar a respeito?

A questão com Gilberto Freyre tem a ver com a afirmação de que noBrasil a mulher morena teria sido idealizada. Eu não acredito nisso. Até ondesei, o ideal clássico de beleza nunca foi a morena, mas a loira — e isso desdea Odisséia. O único moreno que tem lá é Ulisses, mas ele era um levantino,um sujeito esperto, lábil. Já a deusa Minerva tinha "olhos de pervinca", ePalas Atena também: vemos ali que tinha os olhos azuis. Esse era o idealclássico, platônico. Em Cervantes, a morena é traiçoeira, traidora, e a loirarepresenta a beleza ideal. Mas no Brasil, segundo Gilberto Freyre, seriadiferente. Como aqui os povoadores eram mais brancos do que os domi-nados — os dominadores eram mouros e o povo, moreno —, eles, osportugueses, teriam começado a idealizar a mulher morena. Confesso queprocurei nos cancioneiros, na literatura, e não encontrei nada: a loira sempreprevalece. Não que eu seja pessoalmente favorável, mas esse é o resultado

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que começa a surgir. E depois é preciso lembrar que esse ideal nem sempreera de caráter realista. Basta ver num Tomás Antônio Gonzaga, por exem-plo: a Marília ora aparece morena, ora loira. Quer dizer, num caso ele seinspirou num autor italiano moderno, e no outro em Anacreonte, que falavanuma loira.

Outra coisa sobre o Gilberto: ele fica muito preso ao Nordeste brasilei-ro. Para ele é como se o Brasil fosse o Nordeste, quando o país na realidadetem regiões muito diferentes umas das outras. Essa é mais uma crítica quefaço a ele.

Ernani da Silva Bruno — Mas as críticas que o senhor faz ao OliveiraVianna são bem mais contundentes, não?

Sim, mas muito em função do racismo. É engraçado, pois vem de umhomem que não podia ser racista, por um motivo muito simples: ele eraescurinho. E tinha tal obsessão pela branquitude que dizia que por força devontade ficou branco... Só estive com ele uma vez. Era uma pessoa muitoamável.

Ernani da Silva Bruno — Nesse artigo sobre Oliveira Vianna o senhoracentua um ponto importante, em geral não notado, que é a fragilidade dabibliografia e das fontes que ele usa...

Sim, são quase todos autores do século passado. Mesmo a documen-tação é muito frágil. Nos anos 1930, no momento de Raízes do Brasil, eranecessário criticá-lo. Criticar o racismo, por exemplo. Basta lembrar que jáestávamos na época do fascismo. Além disso, ele foi um dos autores das leistrabalhistas daquele tempo, de inspiração italiana. E muita gente acreditounele. Ainda hoje, o Golbery acredita piamente em tudo o que o OliveiraVianna escreveu...

Bolívar Lamounier — Na década de 1930 foi muito comum no Brasil oacirramento das posições políticas entre os intelectuais. Muitos tenderampara a extrema-esquerda ou mesmo para a extrema-direita, como SanThiago Dantas, Octávio de Faria, Alceu de Amoroso Lima. Por que o senhoracha que ocorreu essa polarização?

Quando o Jacques Maritain chegou ao Brasil, cheio de idéias antifran-quistas, o Alceu, que era muito influenciado por ele, o procurou para pedirque não mencionasse esse problema, pois achava que não fazia sentido oBrasil se posicionar contra a Guerra Civil Espanhola. Isso dá um pouco aidéia de como ele era conservador. Em Tentativas de mitologia critico aabordagem que o Alceu faz do existencialismo. Acho que ele escreveu demodo muito sumário, sem ter visto bem o problema. Aliás, me dou bem comele, como me dou com o Gilberto. Não vou brigar com o sujeito porquediscordo das idéias dele.

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Bolívar Lamounier — O senhor diz no Prefácio de Tentativas demitologia que sua iniciação frustrada no marxismo se deu por causa deuma conversa muito tediosa com Otávio Brandão. Como foi isso?

Fui procurá-lo para entrar no Partido Comunista, mas logo comeceia discutir, pois ele era um sujeito muito dogmático, muito bitolado. Eraalagoano, e imitava o Euclides da Cunha. Vivia citando números, como setodo o mundo tivesse condição de ficar o tempo inteiro checando a vera-cidade do que dizia. Era o contrário do Astrogildo, que foi meu amigo a vidainteira. Então começou a me dar irritação conversar com ele. Daí a afirmaçãode que meu começo no marxismo tenha sido frustrado. Nessa época eutinha uma inclinação para a esquerda, mas ainda não conhecia Marx. Sódepois resolvi ler de fato. Faz pouco tempo, terminei de ler A ideologiaalemã. Marx tem um alemão difícil. Acho que por isso dizem que é melhorler em francês. Alguns autores eu tenho dificuldade para ler.

Maria Tereza Petrone — O senhor leu antes Marx ou Weber emalemão?

Quando estava na Alemanha lia muito o Weber. E sobre marxismo liacoisas mais recentes. Em alemão, naturalmente, porque russo eu nãosabia...

Maria Tereza Petrone — O senhor foi professor em várias universi-dades e foi diretor do Museu Paulista. Qual dessas atividades foi a maisestimulante?

O ensino. Apesar de não gostar muito do grupo dominante, as pessoascom quem eu convivia eram muito agradáveis. No Museu Paulista era umtrabalho muito burocrático: minha letra ficou diferente de tanto assinarpapel. E era um problema sempre que alguma coisa quebrava. O dinheirochegava em junho, e quando vinha janeiro já tinha acabado. Tínhamos depagar do próprio bolso. Já a universidade permite uma liberdade maior, namedida em que a gente fica no grupo que escolhe. Talvez por isso o ensinotenha sido mais estimulante. Principalmente no exterior. Porque lá, quandoo sujeito vai estudar Brasil, é porque já sabe alguma coisa. Aqui muitas vezesé apenas porque precisa do diploma.

Mas mesmo nos Estados Unidos passei por experiências curiosas. Lá acompetição por nota era incrível. Lembro de um aluno que fez um trabalhosobre o modo como o Brasil aparecia na imprensa russa. Ele aprendeurusso, fez uma boa pesquisa e apresentou material inédito, mas não sabianada do Brasil. Por isso dei nota B+. Ele não ficou satisfeito, arrumou umpistolão para vir reclamar comigo. E precisei explicar que se mudasse a notadele teria de mudar as de todos os outros. De modo que esse tipo de coisaacontece muito no estrangeiro também.

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Maria Tereza Petrone — Qual o livro de sua autoria de que o senhormais gosta?

Este que estou fazendo agora, sobre o Império. Mas não sei se vai ficarbom. Ando sentindo uma dificuldade grande para escrever. Uma dificulda-de que eu não sentia antes. Às vezes passo o dia inteiro sem conseguir fazernada.

Maria Tereza Petrone — O que o senhor poderia nos contara respeitode Caminhos e fronteiras [1957]?

Durante um curso que eu estava ministrando, me pediram para falarsobre Monções. Então fiz um resumo, juntei com um material que eu tinhareunido e dei essa aula. Pouco depois me pediram um texto para publicar narevista do Museu Paulista. Eu era contra, pois achava que a publicação tinhade ser para obras raras, documentos e outras coisas que um editor particularnunca publicaria, mas que o Estado poderia bancar. Mas insistiram, e entãomandei o ensaio "Índios e mamelucos: a expansão paulista". Mais tarde,José Olympio, Antonio Candido e Otávio Tarquínio de Souza sugeriram queeu republicasse esse ensaio. Diziam que se juntasse com outros textos iné-ditos dava para fazer um livro. Insistiram bastante, eu concordei e o livrosaiu. Não pegou muito. Deu para sair uma segunda edição, mas foi só.

Maria Tereza Petrone — O senhor conviveu com historiadores e inte-lectuais do calibre de Otávio Tarquínio de Souza e Rodrigo de Mello eFranco, entre vários outros. O que o senhor teria a dizer sobre essas ami-zades?

Conheci inclusive Capistrano de Abreu, porque me dava com PauloPrado, que me apresentou a ele. Conheci também o Rodolfo Garcia. Ele eramais do tipo anotador, mas tinha uma erudição formidável. Aliás, isso melembra uma história que ouvi do Lewis Hanke, aquele historiador ameri-cano de que já falei. Ele dizia que no Brasil havia dois historiadores quesozinhos não eram grande coisa, mas que se fosse possível juntar as qua-lidades deles numa só pessoa surgiria um bom historiador. Ele se referia aoGilberto Freyre, que na opinião dele tinha muita imaginação e poucaerudição, e ao Afonso Taunay, que era o contrário: pouca imaginação emuita erudição. Eu assinava na época uma coluna semanal, e escrevicontando essa história, mas sem dar nome aos bois. Ainda assim, acho queo Taunay desconfiou. Ele ia toda quarta-feira ao Museu — desde que euestava na Direção tinha uma sala para ele lá —, e então me disse: "Mas quedesaforado aquele Hanke! Quem é esse homem que tem muita erudição epouca imaginação?". Eu desconversei um pouco, e depois disse que era oRodolfo Garcia. E o Taunay, satisfeitíssimo, ponderou: "Talvez ele tenhauma certa razão". Engraçado: ele teve a intuição de que aquilo podia cabera ele.

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ENTREVISTA

Paulo Prado era diferente. Era um capitalista. Fez um livro que eu achoruim, que é Retrato do Brasil. Era um ensaísta, um homem muito viajado erico. Muito diferente do Caio Prado, primo dele, mas de outra mentalidade.

Laura de Mello e Souza — De que modo o fato de você ser paulistainterferiu na sua formação intelectual?

Fiquei muito preso a São Paulo porque fiz muitos amigos aqui najuventude. Como disse, fui contra a minha vontade para o Rio de Janeiro.Também me impressionou muito a leitura de autores do século XV, XIV —tenho algumas edições de 1554, data de fundação de São Paulo, que com-prei em Roma. Li muito sobre os viajantes, e eventualmente aparece algumacoisa sobre a cidade. Mas não acho que minha obra esteja tão marcada poresse traço. Visão do paraíso não tem nada especialmente paulista, nemRaízes do Brasil.

Laura de Mello e Souza — Você é formado em direito. Nunca chegoua exercer a profissão de advogado?

Só uma vez, no Espírito Santo. Eu tinha sido convidado para dirigir umjornal em Cachoeiro do Itapemirim, chamado O Progresso. Era um jornal dogoverno, e como comecei a publicar muito artigo da oposição o pessoalficou zangado comigo. Então fiquei ali só seis meses, isso em fins dos anos1920. Mas enquanto morava lá me chamaram para substituir o promotor dacidade de Muniz Freire, porque o sujeito tinha ido embora com medo de sermorto. Então, meio inconsciente, acabei indo. Levei seis horas a cavalo.Lembro que eu ficava para trás: meu cavalo nunca alcançava o do advoga-do de defesa. Passei para mula e não adiantou nada — continuei atrás.Chegando lá, fiz a acusação. Naturalmente, os acusados foram absolvidos.Eram dois criminosos. Eles tinham matado o delegado. Eram dois pretos.Essa foi minha única experiência jurídica.

Recebido para publicação em7 de junho de 2004.

Novos EstudosCEBRAP

N.° 69, julho 2004pp. 3-14

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