entrevista pcc

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  • 8/11/2019 Entrevista PCC

    1/36 |CINCIAHOJE |310 |VOL. 52

    Parece difcil definir o PCC. Usa-se faco, grupo, associao,coletivo etc. Como a senhora o definiria? Realmente, di-fcil oferecer algo que pudesse fornecer uma moldura aum fenmeno to complexo. J o caracterizei como umcoletivo, quando tomei de emprstimo esse conceito deoutro autor, para me desvencilhar da ideia de crimeorganizado. Mas a melhor definio a que os prpriosintegrantes oferecem: o PCC um movimento. E issoquer dizer que no obedece a limites espaciais, que noadquire formas definidas. Toda a terminologia usada porseus integrantes remete a essa definio: quando algum(geralmente um correria) ingressa no PCC, diz-se queentrou para a caminhada; as diferenas que o PCC ex-pressa so denominadas ritmo; quando se pretendealcanar um objetivo, procura-se levar a ideia adiante.De fato, em minha pesquisa, deparei-me com um PCCque no se restringia ao conjunto de seus integrantes,que estava presente mesmo onde no havia nenhummembro e que se apresentava de formas variadas a de-pender do ponto de vista adotado. possvel dizer que

    no existe um, mas vrios PCCs possveis e que s se

    entrevista

    KARINA BIONDI

    PCC: PAZ ENTRE OS LADRESEste ano, quando completa o 10 aniversrio de sua hegemonia nas prises paulistas estima-se

    que hoje tenha influncia em cerca de 90% das cerca de 150 delas e de sua refundao, quan-

    do acrescentou o Igualdade ao lema Paz, Justia e Liberdade, o PCC (Primeiro Comando da

    Capital) lanou a ameaa de uma Copa do Mundo do Terror, caso seus membros sejam transfe-

    ridos para o isolamento, como prometem as autoridades de segurana em retaliao a um su-

    posto plano para matar o governador Geraldo Alckmin.

    A CHentrevistou a antroploga Karina Biondi, da Universidade Federal de So Carlos, para

    entender esse fenmeno social complexo, que proibiu nas prises o craque, a agresso, o estupro,

    as mortes sem autorizao, o porte de facas e at palavres. Autora de Junto e misturado: uma

    etnografia do PCC(So Paulo: editora Terceiro Nome, 2010), Biondi h anos pesquisa o assunto,

    que lhe surgiu como tema de mestrado e doutorado depois da priso do marido inocentado,

    aps quase seis anos aguardando julgamento , quando passou a visitar prises paulistas.

    CSSIO LEITE VIEIRA |CINCIA HOJE|RJ

    ARQUIVO

    PESSOAL

  • 8/11/2019 Entrevista PCC

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    efetuam na medida em que acontecem. Por isso, em vezde definir ou pressupor o PCC como fora exterior que

    molda os indivduos que a integram, passei a me esforarpara descrever como esse movimento acontece, comosua existncia alimentada pelas relaes mais sutis,cotidianas, triviais.

    O PCC foi fundado em meados da dcada de 1990. H umadcada, depois de enfrentar faces, obteve sua hegemonianas prises paulistas. O que levou a populao carcerria aaderir majoritariamente ao PCC?O ndice de mortes nasprises era bastante elevado quando do surgimentodo PCC, cuja expanso no se deu sem muito derra-mamento de sangue. Mas, poca, o PCC era ape-nas um dos vrios agrupamentos que disputavam es-pao nos estabelecimentos penais, e a fora fsica noera um diferencial seu. Como se diz, era uma pocado cada um por si, em que vencia o mais forte. Nes-sa situao, aliada fora fsica o que os presos cha-mam disposio , as ideias que propagavam erammuito sedutoras: estabelecer tanto a paz entre os la-dres para dar fim s extorses, violncia sexual,explorao e s mortes por banalidades comuns noambiente prisional quanto a guerra contra a pol-cia cujo objetivo principal seria lutar contra o queos presos chamam opresso carcerria.

    A senhora diria que a paz entre os ladres foi fruto de umou mais fundadores que perceberam que as energias, forase vontades da populao carcerria ento, em situaocatica, na base do cada um por si, que vena o mais forte poderiam ser canalizadas contra um inimigo comum: oEstado e sua polcia? Mais do que ser fruto dos funda-dores, efeito de uma srie de acontecimentos: asrepercusses do massacre do Carandiru; o crescimen-to vertiginoso da populao carcerria no estado deSo Paulo; a transferncia desse enorme contingen-te para longe dos olhos da maioria da populao pau-lista; o recrudescimento das prticas penais cujoponto alto foi, posteriormente, a criao do RegimeDisciplinar Diferenciado. O sucesso da ideia de pazentre os ladres, por sua vez, no pode ser dissocia-da das reaes do Estado como transferncias e iso-lamento dos que eram considerados lderes e doque, na antropologia, costumamos chamar polticado cotidiano ou pequena poltica, ou seja, as maistriviais relaes travadas cotidianamente. Foram elasas determinantes para a atual dinmica do PCC.

    H 10 anos, ocorreu a refundao do PCC, quando MarcosWillians Herbas Camacho (Marcola) acrescentou a Igualdade

    ao Paz, Justia e Liberdade. Como se deu essa transio? >>>

    Naquela poca, a liderana do PCC era centralizadanos fundadores, que estavam no topo de uma hierar-

    quia do tipo piramidal com postos de generais e solda-dos e davam a palavra final para qualquer deciso.Mas, segundo os presos, o poder subiu cabea dosfundadores, que passaram a oprimir os demais pre-sos. O descontentamento de muitos integrantes fren-te a essas prticas levou a uma tomada de poder e ex-cluso dos antigos lderes-fundadores, que, considera-dos malandres aqueles que exploram outros pre-sos , foram repudiados e mandados para o seguro doseguro. Marcola, que sempre negou o papel de lder,distribuiu a liderana e acabou com o modelo pirami-dal. A adio da igualdade ao lema s veio reforaresse movimento de dissoluo da hierarquia pirami-dal. No sei se possvel atribuir essa adio exclusi-vamente a Marcola.

    Tanto irmos (membros do PCC) quanto companheiros (nomembros) parecem seguir um cdigo que lembra uma ticada vida carcerria. O mais intrigante que essa tica nocarrega em si nem leis rgidas, nem punies e, por vezes, seguida mesmo em prises sem membros do PCC. Era assimantes de Marcola instituir que todos agora so de igual? importante dizer que a igualdade no algo que seinstala por decreto. Os efeitos de sua incorporaoao lema do PCC no foram vistos de imediato nasprticas cotidianas e at hoje no se do homogenea-mente em todas as prises. A igualdade no algo quese estabelece sem tenses; um ideal que, para se man-ter como tal, precisa ser incessantemente buscado.Essa busca faz com que, por exemplo, nenhuma decisoseja tomada de forma isolada, levando todos os assun-tos a serem amplamente discutidos. Alm disso, nos desobriga obedincia ningum obrigado anada, dizem com frequncia , mas tambm servecomo ferramenta para coibir relaes de mando eobedincia afinal, quem manda ou quem obede-ce se mostram desiguais e passam a ser malvistos.

    Assim, se Marcola tivesse institudo a igualdade,

    O PCC UM MOVIMENTO. E ISSO

    QUER DIZER QUE NO OBEDECEA LIMITES ESPACIAIS, QUE NO ADQUIRE

    FORMAS DEFINIDAS. TODA A TERMINOLOGIA

    USADA POR SEUS INTEGRANTES REMETE

    A ESSA DEFINIO

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    ele estaria tomando uma atitude isolada, que revelauma desigualdade. Antes da igualdade, a estruturavertical obrigatoriamente colocava relaes de man-do e obedincia, com leis e punies mais rgidas

    que posteriormente foram consideradas opressesoriundas do prprio PCC.

    O lema Paz, Justia e Liberdade parece ter sido inspirado noComando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro. Qual a relaoentre PCC e CV? No incio, os comandos no s com-partilhavam o mesmo lema, mas tambm tinhamuma aliana. Um integrante do PCC era tratado co-mo irmo em cadeias do CV e vice-versa. H cercade 10 anos, essa aliana foi suspensa o que no impe-de parcerias ou comercializao de produtos entreseus integrantes. Na mesma poca, a incorporao

    da igualdade ao lema do PCC colocou uma diferen-a fundamental entre os comandos, especificamenteao que se refere ideia de estrutura hierrquica quemencionei antes.

    O PCC discrimina algum tipo de presidirio, como estuprado-res e pedfilos?Em geral, o PCC no aceita, nas cadeiasem que est presente, estupradores, pedfilos, parrici-das, policiais e outros profissionais ligados seguran-a pblica ou privada, membros de comandos rivaise assassinos de crianas. Todos esses so chamadoscoisa e, impedidos de ficar no convvio com os ou-tros presos, so encaminhados para o seguro ou paracadeias reservadas para abrig-los. Por vezes, noso aceitos nem nos seguros, principalmente quan-do estes esto ocupados por presos que, embora pro-curem permanecer na disciplina do Comando, co-meteram uma falta no convvio.

    Qual a relao do PCC com as comunidades das reas ondeele atua fora dos presdios?A atuao do PCC nas comu-nidades no homognea. Como dizem, cada quebra-da tem um ritmo, e h muitos fatores que fazem esseritmo variar. H lugares em que o PCC faz melhoriasde infraestrutura em reas comuns; em outros, h dis-tribuio de cestas bsicas, brinquedos em datas come-morativas, auxlio para compra de remdios ou parareforma dos imveis. Mas a forma com a qual ele se fazmais presente nas comunidades na manuteno dadisciplina do prprio PCC. Assim como se deu nas ca-deias, os moradores afirmam que a qualidade de vidanas quebradas melhorou bastante depois da chegadado PCC e atribuem a ele a reduo dos homicdios n-tida nas estatsticas oficiais. Se, por um lado, a manu-teno da disciplina do Comando garante sua hegemo-nia no local, por outro, a igualdade permite que os mo-radores cobrem dos irmos uma boa gesto. Assim,

    aqueles que no do uma ateno so criticados, e

    entrevista

    se passa a dizer que a quebrada est largada, ou seja,que o PCC no est fazendo o que deveria fazer pa-ra que a quebrada se mantenha na disciplina.

    Sabe-se que a renda do PCC vem da venda de drogas. Comoele lida com concorrentes nas ruas? Embora existampontos de venda de drogas que so do PCC, nem todoirmo traficante e nem todo traficante irmo.Como o PCC no monopoliza o comrcio de drogas qualquer proibio desse comrcio contrariaria o deigual , a concorrncia meramente econmica: va-lem as prticas de mercado, como preo e qualidadeda mercadoria. Entretanto, se os concorrentes forempessoas de outros comandos, eles nem so vistos co-mo concorrncia mercantil. So coisa, e a disputapassa a ter outra ordem que no a comercial.

    H indcios de que o PCC tenha planos de ter um brao pol-tico, como a mfia? At onde sei, no h planos polticosno PCC. Pelo contrrio, nas ltimas eleies, recolhi re-latos de preferncias partidrias bem divergentes, bemcomo expresses de total desprezo poltica partidria.

    Por sinal, a mfia d apoio financeiro aos familiares de seusmembros presos ou mortos. H algo similar no PCC? J ou-vi relatos sobre assistncia a essas famlias, mas, co-mo tudo no PCC, no uma lei vlida em todas as oca-sies. sempre fruto de debates para definir o certo.

    Recentemente, o PCC disse que faria a Copa do Mundo do Ter-ror, caso alguns de seus membros fossem transferidos para oisolamento. A senhora acha que esse tipo de ao (isolamen-to) enfraquece o PCC? Essas ameaas no seriam apenas for-ma de presso poltica para forar uma negociao entre oPCC e o Estado?Desde o surgimento do PCC, a transfe-rncia e o isolamento de supostos lderes tiveram re-sultado inverso ao esperado: contriburam para a ex-panso do PCC; alimentaram um sentimento de solida-riedade com os presos isolados; reforaram a luta contraa opresso carcerria; e, principalmente, obrigaram oPCC a buscar alternativas para que sua existncia eatuao no dependessem desses lderes. Disso, resultaa atual dinmica do PCC, que no se configura comomonoltico, e cuja atuao no depende de lideranas.Assim, nem sempre a opinio de algum que o poderpblico considera lder aceita pelos demais presos e,assim, nem sempre expressa a posio do PCC comoum todo. Isso, sem dvida, dificulta no s as investi-gaes, mas tambm qualquer ao para repreendersua atuao. No sei dizer se essa ameaa ou no umatentativa de negociao com o Estado. Mas isso colocaem evidncia a falta de canais para dilogo entre presose poder pblico. A recusa de dilogo por parte do Estado

    no faz outra coisa seno gerar episdios violentos.