entrevista eliane brum

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“POR FAVOR, NÃO ME DEIXE MORRER” A garota Sonia, de apenas 11 anos, implora à repórter Eliane Brum para que salve sua vida. Assim como quase todas as pessoas de sua família, bolivianos do povoado de Novillero, Sonia é vítima da Doença de Chagas. Antes de partir de volta para o Brasil, Eliane, então, promete a ela: “Eu vou contar a tua história para o mundo.” Por: Lu Cafaggi e Stefânia Firmo Eliane Brum Sonia, de 11 anos, e a sobrinha Érica, de 5. Sonia teve reação alérgica ao tratamento da doença e precisou suspendê- lo. Ainda não há um medicamento pediátrico, por isso as crianças são mais vulneráveis aos seus efeitos. Revista Ponto & Vírgula — ### de #### 1 EDITORIA Fotos: ############

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“Por favor, não me deixe morrer”

A garota Sonia, de apenas 11 anos, implora à repórter Eliane Brum para que salve sua vida. Assim como quase todas as pessoas de sua família, bolivianos do povoado de Novillero, Sonia é vítima da Doença de Chagas. Antes de partir de volta para o Brasil, Eliane, então, promete a

ela: “Eu vou contar a tua história para o mundo.”Por: Lu Cafaggi e Stefânia Firmo

Eliane Brum

Sonia, de 11 anos, e a sobrinha Érica, de 5. Sonia teve reação alérgica ao tratamento da doença e precisou suspendê-lo. Ainda não há um medicamento pediátrico, por isso as crianças são mais vulneráveis aos seus efeitos.

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Naquela noite, Eliane Brum con-ta uma história de terror. Um conto sobre vidas assombradas por cria-turas que, em seu sangue, carregam promessas invisíveis de morte. Ou uma história verdadeira sobre os “vampiros da realidade”.

Três de setembro, centro de Belo Horizonte. É noite de Sempre um Papo, no SESC Palladium, quan-do Eliane fala das histórias que detalhou em reportagem no livro “Dignidade!”. Histórias de Sonia, Maria, Cristina e suas famílias do-entes. E pobres. O título da repor-tagem defende que os vampiros da realidade só matam pobres.

O monstro das histórias conta-das é o barbeiro, vetor da Doença de Chagas, que despenca sobre os corpos adormecidos daqueles mo-radores dos vales da Bolívia. O ruído de suas asas dá o compas-so da rotina daquelas aldeias. Seu sangue – ou o sangue das pessoas, chupado durante a noite – mancha as paredes das casas. Sua presença, em milhares, compete com as vidas daquelas famílias.

Em tantos momentos, os espec-tadores que escutam o relato de Eliane passeiam as mãos ao redor do pescoço, ou disfarçam, enco-lhidas, um comichão no braço. A linguagem de seus corpos tensos denuncia o desconforto que nasce a partir daquele mundo novo que Eliane apresenta.

Novo, sim, mas não porque sua existência era desconhecida. Era novo porque, antes, nunca ha-via parecido tão próximo. Parecia uma realidade inacessível, tão tris-te que só cabia em uma abstração. Um punhado de terra vermelha na dimensão do “infelizmente, não há nada que eu possa fazer por eles”. No entanto, é um mundo vivo, verdadeiro. E é nosso vizinho de mapa.

Mas o mapa não conta de seus personagens, com suas tranças,

Infecção causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e transmitida pelo barbeiro. Seus sintomas variam de inflamaçcão nos órgãos infectados a insuficiência cardíaca. Se não tratada, a doença crônica pode ser fatal.

Projeto cultural de incentivo à leitura, que realiza encontros entre público e grandes nomes da literatura, em auditórios espalhados por mais de trinta cidades brasileiras.

Livro que reúne textos de escritores de diferentes países que acompanharam os Médicos Sem Fronteiras em suas missões no tratamento de doenças negligenciadas pelos governantes. Foi lançado em 2012, no Brasil, pela editora Leya.

Inseto vetor da Doença de Chagas. No povoado que Eliane visita com os Médicos Sem Fronteiras, é conhecido como “vinchuca”, nome que significa, literalmente, “deixar-se cair.”

Eliane Brum escreve Jornalismo Literário, um modelo que mescla aspectos da literatura com os princípios jornalísticos

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seus silêncios, suas infâncias, colos e acanhamentos. Chega a parecer que o mapa mente, mais esconde do que revela aquela geografia tão particu-lar. Geografia que Eliane desvenda. E que, ao fazer um pacto com a me-nina Sonia – “eu vou contar a tua história” – aproxima dois mundos. Um mundo de cá, de infâncias intei-ras de chances, encantos, encontros, cadernos decorados e joelhos ardi-dos de Merthiolate. E um mundo de infâncias sufocadas por percevejos que entalam nas gargantas. Que é também um mundo de cá, mas um mundo invisível.

Eliane Brum é jornalista, escri-

tora e documentarista. Atualmente, escreve uma coluna semanal para a revista Época. Três semanas após o bate-papo no SESC Palladium, Elia-ne concede à Ponto e Vírgula uma entrevista exclusiva. Pelo telefone, Eliane nos conta do pouco e do mui-to que um repórter traz ao mundo quando compartilha as histórias re-ais que encontra nos parênteses do dia-a-dia. Histórias da vida que nin-guém vê.

Em momento algum, Eliane se re-fere a Sonia, Maria, Cristina ou suas famílias como “aquelas” pessoas, “aquelas” vidas. Um pronome de-monstrativo mais acolhedor indica

o estigma “dessas” pessoas que ficou em sua vida reportadeira.

Por que você decide nos contar as histórias dessas pessoas? Qual a diferença que você acredita que seu trabalho pode trazer ao mun-do?

Eu acredito profundamente no poder da narrativa, no poder da his-tória contada. No poder da história da vida contada como instrumento de transformação da própria vida. E isso é o que dá sentido a minha vida. Tudo o que eu faço é a partir dessa crença. E, quando eu encontro a So-

Cristina e Maria estão entre os milhares de camponeses da região de Narciso Campero, na Bolívia, que convivem com o barbeiro. As duas amigas conheceram-se em uma viagem que fizeram em busca de um marca-passo.

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nia (e eu já fiz várias matérias muito complicadas, várias matérias que eu levei, algumas delas, anos para me recuperar, outras das quais nunca vou me recuperar), eu acho que faço o meu confronto mais profundo com a impotência. Porque, quando ela me pede para salvar a vida dela, o que eu sempre digo para as pesso-as: “eu vou contar a tua história pro mundo” (e eu acho que isso é impor-tante). Quando fui dizer isso para ela (e eu disse), eu sabia que isso não seria suficiente, talvez, para salvar a vida dela. A vida dela. Dela que esta-va me pedindo. Pedindo a mim.

Quando volto para São Paulo, eu fico paralisada pela primeira vez na minha vida. Eu não consigo escrever porque, pela primeira vez, eu achei que escrever era pouco. Que escre-ver não ia salvar a vida da Sonia.

Então eu fiquei duas semanas paralisada e precisei fazer uma re-flexão muito profunda, um mergu-lho profundo dentro de mim, para entender que, se eu não conseguisse romper essa paralisia e contar a his-tória da Sonia para o mundo, eu não ia cumprir a minha parte no pacto com ela.

E contar uma história é pouco. E é muito. É pouco e é muito, ao mes-mo tempo. E acho que isso eu enten-di. Acho que ser jornalista e contar histórias reais é sempre um confron-to cotidiano com a impotência. Só que, até então, isso nunca tinha fica-do tão claro para mim. A gente tem que conviver com esse muito que é também pouco, mas que é o possí-vel. E é grande contar uma história e, por isso, eu escrevo também que, ao compartilhar o pesadelo que vai ser meu para sempre com as pessoas, é uma tentativa de, através da histó-ria contada, conseguir fazer com que as pessoas se mobilizem para fazer a sua parte, para que um dia, no mun-do, crianças como Sonia não preci-sem pedir para serem salvas.

Contar uma história é romper

a barreira da invisibilidade. É aproximar mundos que viviam apartados. Isso é contar uma história real e esse é que é o po-der da reportagem. E eu acredito muito nisso.

Os jornalistas são historiadores do cotidiano. O que a gente produz é documento sobre a nossa época. E isso é humano.

Suas reportagens são classificadas como Jorna-lismo Literário. Você acre-dita que a linguagem que você escolhe para contar suas reportagens – se é que isso é uma escolha – pode fazer com que seu leitor se importe mais com o que está sendo contado do que se você escolhesse uma linguagem jornalística mais tradicional?

Eu não sei se existe uma lingua-gem tradicional no jornalismo. Exis-te bom jornalismo e existe mau jor-nalismo. E, às vezes, tu ficas apenas nos números (e aco que os números são, sim, importantes), mas a gente precisa dar carne para as estatísticas. A gente precisa mostrar os rostos, as vidas, os nomes, os sobrenomes de quem está por trás, de quem está en-coberto por essa estatística. A esta-tística é sempre uma coisa fria.

Então eu acho que a boa repor-tagem é aquela que consegue, o máximo possível, dar conta da com-plexidade daquela realidade. Con-tar como são aquelas vidas. Quais são aqueles detalhes que alimentam

aquelas vidas. Como é que é o am-biente, como é que é o contexto, como é que é a História. Por isso, fazer uma boa reportagem dá mui-to trabalho e as suas informações, como repórter, não são apenas as es-tatísticas, não são apenas as palavras ditas. Mas é toda a complexidade do real que é feita por um monte de coi-sas, inclusive por cheiros, por gestos, por cores... E silêncios, também.

Tem muito mais informação para apurar do que tu ficar apenas em aspas e números. Então, isso, para mim, é bom jornalismo. E é isso que carrega a pessoas pro mundo do ou-tro. Porque o repórter vai até onde o leitor não pode ir. E ele precisa trazer para o leitor toda a complexidade desse mundo, para que o leitor pos-sa sentir, com todas as informações

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que o repórter apurou e possa fazer, então, as suas próprias escolhas a partir de sua própria interpretação do mundo.

Então eu fico muito feliz. O maior elogio que eu posso receber é quan-do o leitor me diz “lendo a tua re-portagem, parecia que eu estava lá”. Então, eu consegui chegar perto des-sa realidade.

O mais criminoso que a gente pode fazer é reduzir a complexidade da realidade. E quando tu enxerga as pessoas, para além dos números, é outro envolvimento que tu tem com

a realidade. Tu te implica, à medida que tu te implica com o outro, com aquilo que é humano.

Às vezes, as pessoas me dizem “ah, tu faz matérias humanas” ou “por que tu escolhe fazer matérias humanas?”. Eu não consigo nem entender essa pergunta. “Como as-sim?” Nós somos contadores da his-tória cotidiana. Os jornalistas são historiadores do cotidiano. O que a gente produz é documento sobre a nossa época, sobre nosso momento histórico. E isso é humano. A Histó-ria é construída por pessoas. Então

toda reportagem é humana. São hu-manos escrevendo sobre outros.

Uma doença não é só uma doen-ça. É como se tu fosses escrever so-bre a Doença de Chagas e escrevesse só sobre uma doença. Daí tu está falseando a realidade, está resumin-do a realidade. Porque uma doença é História, é contexto, é costume, é cultura. E é isso o que eu tento fazer ao contar a história da Maria e da Cristina, ao contar a história de suas famílias. O Chagas não é algo que simplesmente está ali, uma doença que está fora da História, fora do

Pacientes levam suas famílias inteiras para saber os resultados dos exames de Chagas. Aiquile, Bolívia.

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processo histórico. Essa doença só está matando es-

sas pessoas por causa de uma série de questões históricas, por ser uma doença da pobreza, por ser uma do-ença negligenciada. E, por ser uma doença da pobreza, é uma doença que a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar. E porque ela não se interessa em pesquisar, só existe um remédio, que é de 1960 e tem vários efeitos colaterais. Por causa dos efeitos colaterais, muita gente não pode se tratar. E a gente está em 2012 e ainda não se pes-quisou nenhum outro tratamento, nenhuma outra vacina para essa do-ença. Ela é uma doença que poderia ser erradicada, se fosse erradicado o seu vetor, que é o barbeiro. E, para isso, precisaria ter casas, para essas pessoas, que fossem seguras. E por que essa população é invisível?

Então uma doença não é só uma doença. Uma doença é uma doen-ça dentro de um processo histórico cultural. E esse é meu desafio como repórter.

Assim como, quando eu falo de vampiros, eu não estou fazendo uma graça. Não estou fazendo uma brin-cadeira com o barbeiro que é um inseto que suga o sangue. Eles são vampiros por causa de toda uma apreensão que toda essa população tem da realidade. A “vinchuca” (que é como eles chamam barbeiro em

quéchua, e eles só falam quéchua) é onipresente para eles. É algo que molda, que marca a cultura, marca a vida deles, marca a história deles. Porque a vinchuca sempre esteve lá. E eles não sabem que existe um outro mundo sem vinchuca. Então, é por isso que são vampiros, por-que tem essa presença que molda a vida. Determina a vida e determina a morte.

Nosso trabalho de repórter é aproximar os mundos. Até eu ter contato com a história dessas pes-soas, até eu ter que fazer esse gesto interno de me mobilizar para ir até o mundo deles, Chagas, para mim, era só uma doença transmitida pelo barbeiro. Era muito pouco. E não: é uma tragédia, uma história de ter-ror real que está acontecendo agora, neste momento, bem aqui do nosso lado. Portanto, qualquer pessoa de-cente tem que estar implicada nisso. E você sentiu medo ao ir pra lá, sabendo que é um ambien-te de risco?

Não senti medo, não. Tem ma-térias em que eu sinto medo, como quando envolve uma violência, em regiões de conflito armado. Aí eu sinto medo. Mas, nesse caso, não.

Os Médicos Sem Fronteiras só permitiram que eu ficasse uma sema-na. Em geral, é o tempo que eles per-

Língua indígena da América do Sul, ainda hoje falada por cerca de dez milhões de pessoas de diversos grupos étnicos. O quéchua era falado na região central dos Andes desde bem antes da época do Império Inca.

ONG que oferece ajuda médico-humanitária em regiões do mundo inteiro que convivem com conflitos armados, desastres naturais, epidemias, fome, exclusão social ou doenças negligenciadas. Locais onde o sistema de saúde sequer existe ou não funciona adequadamente.

Aos nove anos, Eliane escreveu seu primeiro romance. No dia em que matou um filhote de barata, sentiu tanta culpa que tentou imortalizá-lo em uma novela (“Autobiografia de uma barata”), escrita em um caderno.

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mitem quando aceitam jornalistas, por razões de segurança. Eu gostaria de ter ficado mais. Achei que seria importante ficar um pouco mais, mas era o possível. Fiquei uma semana. E eu também gostaria de ter ficado nas aldeias, mas é também uma regra de-les. Tinha de ficar na casa deles, onde havia mais condições de segurança. Quando e como você se des-cobriu repórter? Quando e como essa repórter escolheu se aproximar das pessoas anônimas e da vida cotidiana dessas pessoas?

Eu acho que já era repórter antes de saber que era repórter. Sempre fui uma escutadeira e eu acredito que meu principal instrumento para a reportagem é a escuta (que é uma coisa muito difícil). Então, desde pe-quena, eu gostava de escutar a histó-ria das pessoas, em vez de brincar.

Boa parte da minha família é de origem rural. São pequenos campo-neses. Alguns sem terra, alguns com um pouco de terra. Eu morava na cidade, em Ijuí (Rio Grande do Sul) que é uma cidade muito pequena, mas a gente ia, nos fins-de-semana, ficar com os parentes do meu pai. E eu gostava. Botava um banquinho e ficava escutando, num canto, a his-tória dos adultos, em vez de brin-car. E eles esqueciam, até, da minha presença ali, porque eu ficava num cantinho. Acho que, até hoje, eu sou essa criança que fica num canto, num banquinho, escutando a histó-ria dos outros.

Nunca fui faladeira. Para mim, está sendo uma experiência muito nova essa de fazer palestras e dar entrevistas, que é uma coisa que é importante. É uma forma de tu com-partilhar conhecimento, de também transmitir, continuar contando as histórias que contam nas reporta-gens, nos livros, enfim. Mas eu não sou uma faladeira, eu sou uma escu-tadeira. Quando eu tenho que falar

muito, eu preciso depois ficar em casa, trancada, quieta por bastante tempo, para me recuperar dessa ex-posição. Eu me sinto, assim, muito desnuda, falando. Mas acho super importante, então, por isso, eu faço.

No momento em que aprendo a escrever (já escutava, antes de saber ler e escrever), os livros mudam mui-to a minha vida, eu acho que eles me salvam. Eu acho que eu fui salva pe-los livros. Eu era uma criança muito triste e encontrei uma forma de viver outras vidas e outros mundos no mo-mento em que eu começo a ler. E co-mecei a escrever, também, com onze anos de idade. Com onze, não. Com nove anos de idade. Para dar conta da dor do mundo, que era algo que eu sentia muito forte. E a escrita era um jeito de lidar com isso, porque senão eu me sentia sufocada.

Eu sempre me interessava não exatamente pelo que tinham me

pautado para fazer, mas pelo que estava em torno disso, ou pelos personagens

secundários.

Fui escutando e escrevendo. Aca-bei fazendo Jornalismo. Fazia His-tória também, achei que eu ia ser historiadora. Não achava que eu servia para ser jornalista, porque eu me achava muito tímida. Quando já estava no final da faculdade (ia ter-minar a faculdade porque já estava no final, para ter o diploma) tinha certeza de que eu não iria exercer a profissão. Aí encontrei um professor maravilhoso. Sempre conto essa his-

tória. Que se chama Marques Leo-nam, que me mostrou que ser repór-ter era a melhor profissão do mundo e trouxe várias reportagens maravi-lhosas, às quais eu não tinha acesso e que eram muito diferentes daquele jornalismo árido, sem gente, que vi-gorava naquela época, na maioria dos jornais. Aí eu escrevi uma ma-téria para ele, sobre... filas. Todas as filas que a gente entra desde que nasce até morrer. Que era um tema inusitado para aquela época (hoje, já não seria). Porque era o que me inte-ressava. Eu me interessava por essas coisas e esse professor, ao contrário de outros, disse que eu podia. Disse que isso era, sim, interessante.

Essa matéria acabou sendo ins-crita num concurso universitário da região Sul do Brasil. Eu ganhei, o prêmio era um estágio no jornal Zero Hora, em Porto Alegre, e foi assim que eu entrei no jornalismo. Na Zero Hora, acabei sendo con-tratada, depois. Em 1988. Aí eu descobri que isso de ser repórter é mesmo o que eu sou, não aquilo que eu faço. E, desde sempre, eu me in-teressei por essas histórias. Antes de ter consciência disso, quando eu ia cobrir alguma coisa, eu sempre me interessava não exatamente pelo que tinham me pautado para fazer, mas pelo que estava em torno disso, ou pelos personagens secundários. Era essa a matéria que eu acabava tra-zendo.

Por causa disso, em 1999, eu fui fazer “A Vida que ninguém vê”, que era uma coluna de reportagens, des-sa vez, assumidamente sobre pesso-as anônimas, sobre pessoas que, em geral, não são notícia da imprensa. Mas fui escolhida para fazer isso porque eu já fazia isso, naturalmen-te.

A partir de certo momento, isso se transforma em algo muito consciente em mim. Eu começo a refletir sobre o que eu faço. Então, é uma escolha política consciente. É, sim, uma es-

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colha política, porque, como eu fa-lei, eu vejo a nossa profissão como a de historiadores do cotidiano. O que a gente produz é documento sobre o que está acontecendo agora. Isso influencia a vida das pessoas hoje e vai influenciar a compreensão deste momento histórico daqui a cinqüen-ta, cem anos. Então, sempre que eu faço uma matéria, que seja uma nota ou uma matéria de vinte páginas, eu preciso ter a certeza de que, quan-do o historiador, daqui a cem anos, procurar minha matéria num arqui-vo digital, ele vai ser bem informado sobre esta época, sobre este momen-to histórico. Sobre as contradições, sobre as nuances. Ele vai ter essas in-formações. Eu faço o meu trabalho com o peso dessa responsabilidade.

O dia em que eu achar que não dou mais conta disso, por algum motivo, eu vou deixar de fazer esse trabalho, porque é muito sério. Quando a gente reduz a realidade, a gente comete um crime. Então, quando a gente está contando o nosso momento histórico e a gente deixa de fora a maior parte das pes-soas, dos homens e das mulheres que constroem este país, este mundo, esta comunidade, a gente está dizen-do para essas pessoas que as vidas delas não importam. Que a morte delas também não importa. E isso tem um efeito enorme sobre a vida dessas pessoas.

Então a minha escolha política é contar a vida da maioria das pesso-as. A vida das pessoas supostamente comuns. E mostrar que não existem vidas comuns. Toda vida é extraor-dinária. Por isso, eu também digo que sou uma repórter de desacon-tecimentos. Porque eu me interes-so mais por aquilo que se repete. E por aquilo que se repete sem que ninguém veja. Então, são desacon-tecimentos desde a vida só suposta-mente comum das pessoas, como é desacontecimento aquilo que se re-pete e que não é visto, como essa ge-

ração de jovens pobres e, a maioria deles, pardos e negros, que morrem antes dos vinte anos. Como até esses conflitos na República Democrática do Congo, como outros conflitos africanos, que, por se repetirem, vi-ram desacontecimentos. Desaconte-cem. E a imprensa, em geral, cobre os acontecimentos, aquilo que, de repente, sai da rotina. Só que tem

rotinas de violência, tem rotinas de vários tipos que precisam ser conta-das. Então a minha escolha é uma escolha política.

Você chegou a mencionar o conteúdo das reportagens que, atualmente, é armaze-nado, publicado e comparti-lhado digitalmente.

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Partindo disso, como você vê o futuro do impresso?

Eu não me preocupo com o futu-ro do impresso, até porque eu não tenho como saber o que vai aconte-cer. Eu me preocuparia se estivesse em risco a reportagem, o futuro da reportagem. E isso eu tenho certeza de que não está em risco. Porque a reportagem, pelo menos da forma

que eu vejo, é a narrativa da His-tória contemporânea, da história cotidiana. E isso não tem como não ser contado. A humanidade existe como narrativa. Nós sabemos que existimos pela narrativa. Que, antes, era oral e, agora, é também escrita. Então, não existe como isso morrer. A reportagem é uma coisa que vai sempre existir.

Agora, se ela é feita em meios di-gitais ou impressos, acho que isso é um problema menor. Claro que tem uma questão de modelo de negócios que está em discussão e que nos afe-ta e que é importante. Modelos de financiamento das reportagens, es-pecialmente. A reportagem é uma coisa cara, acho que sempre vai ser cara. Então todas essas discussões são importantes.

Mas o que me importa mais é ter certeza de que a reportagem jamais vai morrer. A imprensa pode mudar a plataforma. E eu acho que é até meio inevitável que tudo isso seja, cada vez mais, digital. Porque é uma mudança tecnológica muito impor-tante, muito revolucionária. E eu já leio grande parte dos livros, hoje, em e-book. Eu viajo muito, então, pra mim, é maravilhoso poder car-regar quinhentos livros em algo que tem menos de um quilo. E, hoje, eu trabalho, fundamentalmente, na in-ternet e acho que a internet dá pos-sibilidades que antes eu não tinha. Como a de poder dar para os textos o tamanho que os textos merecem ter, o que sempre foi uma grande questão pra mim.

Mas eu acho que a reportagem até vive um grande momento, apesar de todas essas indefinições, todas es-sas dúvidas, essas inseguranças que sempre fazem parte de qualquer mu-dança. É um momento muito rico porque com toda essa quantidade de informações na rede, com tanta gente escrevendo, com tantas vozes narrativas novas que a gente tem, hoje, a gente vai precisar ser muito melhor. A gente vai precisar fazer re-portagens muito melhores para ser lido. Porque tem que ser algo muito bom, hoje, para que o leitor dê o seu tempo para ler a nossa reportagem. Então, a reportagem ganha com isso. Os grandes repórteres e as boas reportagens estão beneficiados por essa competição que hoje é muito maior, por causa da internet.

A fotógrafa e assessora de imprensa dos MSF, Vánia Alves, registrou momentos do dia-a-dia das famílias entrevistadas por Eliane.

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