entrevista dulce chiaverinni por um brasil que veja a saúde, · pdf filedia 31 - ivan...

28
Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 46 • Agosto de 2009 Por um Brasil que veja a saúde, não a doença Entrevista Dulce Chiaverinni Nos anos de 1960, a irresistível atmosfera de afirmação dos direitos femininos incentivou Dulce Helena Chiaverinni a arrumar um emprego para obter independência financeira. Ao ingressar na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fiocruz, não imaginava que mudaria tão radicalmente a sua trajetória de vida. Depois de encantar-se com a avançada pesquisa desenvolvida na ENSP, pôs de lado os números e virou socióloga. Dulce Chiaverinni, hoje professora aposentada da Faculdade de Medicina da UFRJ, tornou-se uma das mais respeitadas especialistas em Saúde Coletiva do Brasil. Nesta entrevista, faz críticas à concepção hegemônica no Brasil e no mundo de carrear a maior parte das verbas da área da saúde para os grandes hospitais, em detrimento da atenção. Uma questão de soberania Em pauta desde a década de 1990, o conceito de soberania alimentar reivindica a autonomia dos países para que formulem políticas agrícolas próprias, e cobra do Estado a responsabilidade pela erradicação da fome. 3a 5 Djanira Orixás, festas, crianças e a força do trabalho. Nas telas de Djanira (1914-1979) irrompe em cores o Brasil e sua gente nos mais diversos momentos. É considerada uma das maiores intérpretes do modernismo brasileiro, após as vanguardas dos anos de 1920 e 1930. Em 22 de maio uma operação policial no Morro do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, resultou na morte de três pessoas. Na imagem espetacular da tevê, um helicóptero da polícia iça e leva para longe os corpos em sacos plásticos negros. No meio do fogo cruzado entre policiais militares e traficantes, mais de quatro mil moradores da comunidade tentam se abrigar em becos e vielas. Cerca de 600 crianças são mantidas nas escolas, local de refúgio quando o lar já não é tão doce assim. Polícia Para quem? 17e 18 A indústria fonográfica em tempos digitais 24a 25 Gravadoras tentam se reorganizar diante do novo contexto da economia da informação. As mudanças incluem uma nova forma de o usuário “consumir” músicas. Com a convergência tecnológica, a indústria se abre a outros setores, como as empresas de telefonia. Novos cenários também se abrem para músicos independentes. Além dos discos e dos shows, estratégias dos artistas incluem a definição de nichos de mercado e a criação de uma rede de relacionamentos pela Internet.

Upload: vuongkhuong

Post on 09-Mar-2018

233 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 46 • Agosto de 2009

Por um Brasil que veja a saúde,

não a doença

EntrevistaDulce Chiaverinni

Nos anos de 1960, a irresistível atmosfera de afirmação dos direitos femininos incentivou Dulce Helena Chiaverinni a

arrumar um emprego para obter independência financeira. Ao ingressar na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fiocruz, não imaginava que mudaria tão radicalmente a sua

trajetória de vida. Depois de encantar-se com a avançada pesquisa desenvolvida na ENSP, pôs de lado os números e

virou socióloga. Dulce Chiaverinni, hoje professora aposentada da Faculdade de Medicina da UFRJ, tornou-se uma das mais respeitadas especialistas em Saúde Coletiva do Brasil. Nesta

entrevista, faz críticas à concepção hegemônica no Brasil e no mundo de carrear a maior parte das verbas da área da saúde

para os grandes hospitais, em detrimento da atenção.

Uma questãode soberania

Em pauta desde a década de 1990, o conceito de

soberania alimentar reivindica a autonomia dos países para que formulem

políticas agrícolas próprias, e cobra do Estado a

responsabilidade pela erradicação da fome.

3a 5 Djanira

Orixás, festas, crianças e a força do trabalho. Nas telas de Djanira (1914-1979) irrompe em cores o Brasil e sua gente nos mais diversos momentos. É considerada uma das maiores intérpretes do modernismo brasileiro, após as vanguardas dos anos de 1920 e 1930.

Em 22 de maio uma operação policial no Morro do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, resultou na morte de três pessoas. Na imagem espetacular da tevê, um helicóptero da polícia iça e leva para longe os corpos em sacos plásticos negros. No meio do fogo cruzado entre policiais militares e traficantes, mais de quatro mil moradores da comunidade tentam se abrigar em becos e vielas. Cerca de 600 crianças são mantidas nas escolas, local de refúgio quando o lar já não é tão doce assim.

Polícia Para quem?

17e 18

A indústria fonográfica em tempos digitais24a 25

Gravadoras tentam se reorganizar diante do novo contexto da economia da informação. As mudanças incluem uma nova forma de o

usuário “consumir” músicas. Com a convergência tecnológica, a indústria se abre a outros setores, como as empresas de telefonia. Novos cenários

também se abrem para músicos independentes. Além dos discos e dos shows, estratégias dos artistas

incluem a definição de nichos de mercado e a criação de uma rede

de relacionamentos pela Internet.

Page 2: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

2 Agosto 2009

Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz

Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Newstec Gráfica e Editora

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550. Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE FEDERAl Do RIo DE JANEIRo.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE)

Edição e pautaAntônio Carlos moreira

e Fortunato mauro

RedaçãoAline Durães, Bruno Franco,

Coryntho Baldez, luciana Crespo, márcio Castilho, Pedro Barreto e

Rodrigo Ricardo

Projeto gráfico Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno, Patrícia Pereze Rodrigo Ricardo

Diagramação Anna Carolina Bayer

Ilustração Jefferson Nepomuceno,

Vitor Vanes e Zope

FotosAmauri Alves-Adufrj-SSind,

Gervásio Baptista-ABr, marco Fernandes e Wilson Dias-ABr

Revisão mônica machado

Instituições interessadas em receber essa publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

UFRJJornal da

o Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de espaço as cartas sofrerão uma seleção e poderão ser

resumidas.

1 - Na edição 45 do Jornal da UFRJ, ju-nho/julho de 2009, página 6, na matéria O velho modelo em cheque, na tabela so-bre cursos/habilitações criados a partir de 2003 na UFRJ as informações corretas sobre as unidades que ministram os no-vos cursos são:Cursos/habilitações cria-dos a partir de 2004 (e não 2003, como publicado)A)Engenharia de Controle e Automação, Engenharia de Petróleo e Engenharia Ambiental, são formal-mente compartilhados entre a Escola Po-litécnica, a Escola de Química, e o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia – Coppe. B)En-genharia de Alimentos e Engenharia de Bioprocessos são ministrados pela Escola de Química.2 - Ainda na edição 45 do Jornal da UFRJ, junho/julho de 2009, página 12, na matéria Universidades em transfor-

Errata

Plano Diretor

mação, no Box UFRJ investe em Mobili-dade e Segurança, erramos ao informar que o sistema de segurança na Cidade Universitária será implantado, pois já está em funcionamento desde 2005. A seguir publicamos o e-mail enviado pelo Prefeito da UFRJ, Hélio de Mattos com as devidas correções.“Lendo a última edição do Jornal da UFRJ vi um erro. Nossa Reitoria investiu R$ 1.200.000,00 em um sistema de mo-nitoramento das principais ruas e aveni-das da Ilha da Cidade Universitaria. Um sistema que funciona durante 24 horas do dia, inclusive aos sábados, domingos e fe-riados. Essa é uma ferramenta muito útil para a ronda ostensiva e somos uma das poucas cidades que possuímos um sistema desses. Foi implantado em 2005. Faz parte do balanço da atual gestão. Portanto não serão implantadas. Existem também 250

postos de vigilância terceirizada, guarne-cendo as principais edificações da UFRJ, fato fundamental para a diminuição de delitos relacionados a danos o patrimô-nio público. Jamais anunciei medidas relacionadas ao controle de acessos as unidades. Existem estudos mas a deci-são fica a cargo de cada administração local. Sempre digo e escrevo que pessoal-mente sou a favor. O controle de acesso que está implantado é o sistema Kap-ta que - implantado em 2006 submete todo veiculo que entra e sai do campus ao controle. São dados que temos hoje e são importantes não somente para a se-gurança como para controle de transito no campus.”3 - Também na edição 45, página 26, na matéria Museus Multidisciplinares, 2º parágrafo, onde se lê Sonia Pereira Gomes, leia-se Sonia Gomes Pereira.

Agenda Agosto

3° Aniversário do

Centro Cultural Prof. Horácio de Macedo

Centro Cultural Professor Horácio Macedo, localizado

no Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN), promove extensa programação em agosto, em comemoração aos seus três anos de existência. O Centro engloba o antigo Auditório Roxinho, palco de importantes manifestações políticas na UFRJ, entre assembléias docentes, estudantis e de técnico-administrativos. O nome do Centro Cultural é uma homenagem ao primeiro reitor eleito pela comunidade acadêmica na década de 80. Confira a programação detalhada em http://www.ccmn.ufrj.br/index.asp.

Dia 31 - Ivan LinsDepois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato mais jazzístico, o show Sau-dades de Casa é composto de músicas do extenso repertório do artista. Entre as canções mais conhecidas estão “Daquilo que eu sei”, “Depois dos temporais”, “Saindo de mim”, “Depende de nós”, “Meu país”, “Come-çar de novo”, e “Madalena”.

Local: Auditório Roxinho Horário: 12h

Cinema ao meio diaDia 10 - EstômagoDia 14 - Nome próprioDia 24 - Se eu fosse você II*

Local: Salão Nobre e Auditório Roxinho*

Horário: 12h

Dia 13 - FrejatO show traz repertório baseado no recém-lançado álbum, Intimidade entre Estranhos, entre elas, “Eu só queria en-tender”, “Eu não quero brigar mais não” e “Dois lados”. Frejat também canta suces-sos de sua carreira: “Amor pra recome-çar”, “Sobre nós dois e o resto do mundo” e “Segredos” são só algumas delas.Local: Auditório do Centro de Tecnologia

Horário: 12h

Dia 27 - Arlindo CruzO sambista de Madureira apresentará o show MTV ao Vivo - Arlindo Cruz. Como Candeia e Martinho, no Fundo de Quintal (grupo do qual Arlindo fez parte), Arlindo também cultiva fun-damentalmente o partido-alto. Autor de sambas gravados por Maria Rita e Marcelo D2.

Local: Auditório Roxinho Horário: 12h

Dia 11 - Rita RibeiroRita Ribeiro pinçou para este show, de voz e violão, músicas de seus quatro discos que se encaixam bem no som do instrumento, como “Contra o tempo”, “Impossível acreditar que perdi você”, “Há mulheres”, “Muzak”, “É D’Oxum” e “Lenha”, entre outras. Rita será acompanhada pelo violonista e guitarrista Israel Dantas.

Local: Auditório Roxinho Horário: 12h

Música

Page 3: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

3Agosto 2009

Uma questãode soberania

Com os preços dos alimentos subindo, os haitianos mais pobres não têm com que pagar um prato de arroz diário e alguns deles adotam medidas desesperadas para encherem a barriga. Char-

lene, de 16 anos, com um filho de um mês, acabou por se entregar a um tradicional remédio haitiano contra as dores da fome: biscoitos feitos com o lodo seco amarelo do planalto central do país.” Dessa forma o jornal bri-tânico The Guardian, em matéria publicada no dia 26 de fevereiro de 2008, narrou um dos períodos mais críticos da fome no Haiti, país da América Central devastado pela carência de alimentos desde meados de 2007.

A realidade de miséria não é mazela exclusiva dos haitianos, no entanto. Um estudo recente da Organização das Nações Unidas (ONU) calculou que um bilhão de pessoas sofre de fome crônica no mundo. Significa dizer que um sexto da população mundial não tem acesso pleno à comida e não dispõe de condições mínimas de sobrevivência. A ONU também estima que cerca de 18 mil crianças morrem, diariamente, em consequência da subnutrição.

No Brasil, a situação reflete a gravidade do quadro mundial: 46,6% das famílias apresentam dificuldades para conseguir alimentos suficientes. Para 13,8% desse total, essas dificuldades são frequentes. Um levantamen-to realizado, em 2004, pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

Em pauta desde a década de 1990, o conceito de soberania alimentar reivindica a autonomia dos países para que formulem políticas agrícolas próprias, e cobra do Estado a responsabilidade pela erradicação da fome.

Aline Durães

(PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que a insegurança alimentar afeta cerca de 40 milhões de brasileiros.

Para os mais desatentos, pode ser difícil compreender porque tantas famí-lias sofrem com a carência de alimentos em um país que, somente em 2008, produziu mais de 130 milhões de toneladas de grãos, superando em 3,5% o índice de produção do ano anterior. O fato é que, como atestava o médico Josué de Castro, desde a década de 1940 a fome é produto de ações do próprio homem e não um fenômeno natural. “É importante deixar claro a todos que a fome não é uma fatalidade, mas uma situação inaceitável numa sociedade com os recursos naturais necessários para erradicá-la”, aponta Anna Maria de Cas-tro, socióloga, filha de Josué e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ.

No mundo, e em particular nos países menos desenvolvidos, persistem o desperdício e a má distribuição dos alimentos. Não raro, um percentual consi-derável de pessoas não tem a renda necessária para comprar comida.

Para alguns setores da sociedade, a solução do problema reside na sobera-nia alimentar. Este conceito, ainda pouco discutido, diz respeito ao direito de cada país escolher, sem a intervenção de organismos internacionais, a forma como os alimentos serão produzidos e consumidos, além do modo como serão traçadas as políticas capazes de atingir essa meta.

5º Congresso Nacional do MST, no ginásio Nilson Nelson, em Brasília, junho de 2007.

Movimentos Sociais

Wilson Dias-ABr

Page 4: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

4 Agosto 2009

Difundida a partir de meados da década de 1990, pela Via Campesina, movimento que coordena organizações camponesas de pequenos e médios agricultores em todo o mundo, a soberania alimentar visa proteger e regular a produção agrícola doméstica, primando por um desen-volvimento sustentável e priorizando a satisfação do mercado interno. “Se conseguirmos garantir o direito de um país traçar políticas que defendam a se-gurança alimentar dos seus cidadãos, pode-remos interferir na fome. O conceito de soberania alimentar não assegura que os Estados possuirão recursos para erradicar a fome, mas, pelo menos, eles vão ter auto-nomia para deliberar sobre como combatê-la”, elucida Jean Marc von der Weid, agrônomo, fundador da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), organização não-governamental criada, em 1984, para promover o desenvolvimento da agricultura brasileira.

O fardo das políticas neoliberaisA principal luta dos entusiastas da soberania ali-

mentar é pelo fim da interferência de políticas in-ternacionais sobre a produção agrícola nacional.

Entidades como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e, em menor escala, o Fundo Monetário Internacional (FMI) “recomendam” aos diversos países políticas pautadas no livre mercado e na não-intervenção do governo na economia.

Na prática, isso significa a subserviência dos governos nacionais ao modelo neoli-beral. Os países do Terceiro Mundo, for-çados pela lógica do livre-comércio, são limitados em sua capacidade de definir políticas alimentares próprias: deixam de dar subsídios a pequenos e médios agricultores e não facilitam o aces-so das populações mais pobres aos alimentos. “Esses organismos são criações dos países desen-volvidos com vistas a exer-cer controle econômico e financeiro sobre as

demais nações. Desse modo, embora pontualmente possam ser úteis, no âmbito geral, não oferecem o auxílio na direção e na

quantidade desejadas. Na atual crise mundial, todos se mostra-ram inoperantes e incapazes de oferecer soluções”, ressalta Anna Ma-

ria de Castro.A socióloga explica que, embora os países em desenvolvimento te-

nham conquistado a soberania política, a dependência econômica e cultu-ral frente ao Primeiro Mundo ainda os impede de serem verdadeiramente autônomos. “O centro do capitalismo continuou controlando o mercado internacional, em que as matérias-primas e os bens primários são des-valorizados em comparação com os produtos industrializados. Assim, a dependência dos países pobres permanece numa relação de mercado de-sigual. As antigas colônias conseguiram se libertar politicamente de sua metrópole, mas continuaram desenvolvendo uma economia complemen-tar às economias europeia e norte-americana”, destaca a professora.

Na contramão desse processo, há um recrudescimento do protecionis-mo no mundo desenvolvido. Já no final da década de 1990, os subsídios agrícolas em países de Primeiro Mundo atingiam a vultosa cifra de 361 bilhões de dólares. A União Europeia, por exemplo, investiu, apenas no ano de 1999, mais de 125 bilhões em políticas agrícolas de apoio.

Para Jean Marc, não é tarefa fácil romper com essa relação desvanta-josa. O agrônomo lembra que, em um mundo cada vez mais globalizado, fica difícil se colocar à margem dos acordos internacionais. Ao se esqui-varem de cumprir as determinações dos organismos internacionais, os países poderiam sofrer sanções perigosas à sua economia.

Entraves à soberania alimentarOs movimentos ligados ao campo, bem como estudiosos e intelectuais

engajados na luta pela terra, elegem as empresas privadas — que, muitas vezes, são também transnacionais — como entraves à soberania alimen-tar. Isso porque elas controlam a produção mundial de alimentos, deter-minando o que, quanto, como e onde devem ser produzidos os produtos agrícolas.

Num ritmo crescente, o chamado agronegócio domina todos os pro-cessos da cadeia produtiva, desde a comercialização de sementes e fer-tilizantes até a venda de produtos em grandes lojas varejistas. “Antes, os camponeses tinham as sementes, plantavam e, a partir de observações

empíricas, separavam as melhores, guardavam-nas para repro-duzir nas próximas safras, melhoravam-nas, trocavam-nas entre si. Hoje, existe o monopólio das sementes, a mercanti-

lização delas. O camponês passa a ser apenas mais um consu-

Os movimentos ligados ao campo, bem como

estudiosos e intelectuais engajados na luta pela

terra, elegem as empresas privadas

— que, muitas vezes, são também

transnacionais — como entraves à

soberania alimentar. Isso porque elas controlam

a produção mundial de alimentos, determinando

o que, quanto, como e onde devem ser

produzidos os produtos agrícolas.

Movimentos Sociais

Page 5: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

5Agosto 2009

midor nesse processo”, sublinha Laeticia Jalil, doutoranda do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

O agronegócio produz consequências nefastas aos pequenos e médios camponeses, na medida em que inviabiliza o trabalho e o acesso à terra para um sem-número de agricultores. Sem espaço no campo, muitos par-tem para as cidades em busca de melhores condições de vida. O resultado disso é o inchaço populacional das metrópoles, cada vez menos prepara-das para recepcionar migrações tão intensas.

Além disso, o agrobusiness produz quase exclusivamente para a expor-tação, deixando o mercado interno desamparado. Guiadas pela menta-lidade do lucro excessivo, as empresas não estão inclinadas a solucionar o problema da fome mundial e não possuem grandes preocupações am-bientais. “Estou convencido de que esse sistema vai falir dentro de algum tempo, em função do esgotamento da terra, dos recursos naturais e de recursos não-renováveis. Espero que a gente não tenha que chegar a uma situação crítica para mudar. Se o processo de transformação não for diri-gido pelo Estado, haverá o caos”, alerta Jean Marc.

Como ser soberano?O caminho em direção à soberania alimentar ainda não está traçado.

A discussão é recente e poucos consensos já surgiram. É evidente, entre-tanto, que a luta por mais autonomia frente às políticas alimentares passa por um processo genuíno de redistribuição de terras.

Uma reforma agrária consistente fixaria o homem no meio rural. Estudos apon-tam que, se fosse realizada uma completa redistribuição de terras, cerca de 15 milhões de famílias brasileiras poderiam se assentar no campo, absorvendo a mão-de-obra excedente das cidades.

A reforma agrária promoveria ainda a produção agrícola familiar, diminuiria os conflitos pela terra e, por fim, geraria uma produção de alimentos mais eficaz para a população. “No contexto atual, a reforma agrária não se limita exclusivamente à re-distribuição de terras e recursos naturais. Deveria ser acompanhada por políticas que abordem, de maneira integral, o acesso aos recursos e sua administração, sustentadas nos princípios de diversidade e participação, o que significa entregar aos atores públi-cos e privados, através de mecanismos de diálogo, a liderança no desenvolvimento de seus respectivos territórios”, salienta Anna Maria de Castro.

A soberania alimentar se edifica sobre a agricultura familiar. A ideia é estimular produtores de pequena escala a assumir o comando sobre a produção e a distribui-ção de alimentos. São os pequenos agricultores que devem gerenciar e regula-mentar o acesso aos alimentos e recursos, apoiados por políticas nacionais que protejam o mercado local.

Ao contrário do latifúndio monocultor voltado para a exportação, os pre-ceitos da soberania alimentar pregam a pequena propriedade com produção diversificada e baseada na agroecologia, modelo de produção ecologicamente sustentável que enxerga a agricultura como um sistema vivo e complexo.

Uma luta femininaMadrugada de 8 de março de 2006. Cerca de duas mil integrantes do Movi-

mento de Mulheres Camponesas (MMC) invadiram o horto florestal da Ara-cruz Celulose para destruir viveiros de eucalipto – na Fazenda Barba Negra, em Barra do Ribeiro (RS), maior produtora mundial de celulose branqueada a partir do eucalipto.

Foi esse episódio, engendrado no bojo da luta contra o agronegócio, que conferiu visibilidade ao MMC. Originário do estado de Santa Catarina, o movimento se destaca dos demais por reunir camponesas que, para além da soberania alimentar, reivindicam também maior espaço para as mulheres do campo. “O MMC se identifica como um movimento feminista e camponês. Ele traz a necessidade de incorporar o olhar da mulher na luta pela terra. É composto de camponesas oriundas de movimentos sindicais que começam a perceber que não basta conquistar a terra sem, também, reduzir a opressão sobre a mulher. Elas questionam a divisão sexual do trabalho e vêm mostrar que são detentoras de saberes altamente complexos, que devem ser valoriza-dos”, esclarece Laeticia Jalil.

Em paralelo às ações combativas, essas mulheres são responsáveis por campanhas, como pela Produção de Alimentos Saudáveis, nas quais defen-dem os métodos agroecológicos como a única maneira viável de uma região alcançar a soberania alimentar.

Desde a Segunda Guerra Mundial, o mundo vem experimentando um processo de padronização de hábitos alimentares. Num período de qua-tro anos, a alimentação mundial foi reduzida a, basicamente, cinco ti-pos distintos de grãos – trigo, feijão, soja, arroz, milho. É também contra essa homogeneização e pela diversificação nutricional que as mulheres do MMC militam.

Para Anna Maria de Castro, a atuação de movimentos como o MMC é imprescindível para a adoção de políticas alimentares soberanas e para a erradicação da fome no Brasil. “Como afirmava, com total razão, o saudo-so cientista social Herbert de Souza, nosso Betinho: quem tem fome tem pressa. Devemos seguir lutando para que cada brasileiro possa realizar três refeições em quantidade e qualidade adequadas para suas necessi-dades e devemos induzir o país a produzir alimentos adequados para sua população. Assim, poderemos, no futuro, alcançar o tão desejado estágio social que indique que a fome está afastada da sociedade brasileira”, con-clui Anna Maria.

Cerca de 18 mil militantes participam da marcha em Brasília pelo encerramento do 5º Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em junho de 2007.

Movimentos Sociais

Gervásio Baptista-ABr

Page 6: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

6 Agosto 2009

O CaNudo

e o MarTelo

Culinária, literatura e arte. No caldeirão do Supremo Tribunal Fede-ral (STF) sobraram pitadas para concluir que o diploma de Jorna-lismo é dispensável. Entre os principais ingredientes da decisão, o

alegado conflito entre exercício profissional e liberdade de expressão. Com a extinção do Decreto-Lei nº 972/69, que regulamentava a profissão, agora cabe à mão invisível do mercado definir os “mestres-cucas” que servirão o prato da informação à sociedade.

Juridicamente encerrado, o caso pode ganhar reviravoltas no plano político. No Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado), duas Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) foram protocoladas restabelecendo a exi-gência do diploma. Na academia, as opiniões se dividem, não apenas acerca das novas diretrizes curriculares, mas também da procura dos jovens pela car-reira nos próximos concursos de acesso. Em meio às dúvidas, no contexto da chamada “Era do Conhecimento”, formação e ética seguem apontadas como diferenciais.

No último Concurso de Acesso aos Cursos de Graduação da UFRJ, inscre-veram-se 3.311 candidatos interessados nas 240 vagas da Escola de Comuni-cação (ECO). Lá, os estudantes têm um período de dois anos para escolherem entre Jornalismo, Produção Editorial, Publicidade e Propaganda, Rádio e Tevê. Atual coordenadora do chamado Ciclo Básico da ECO, Cristina Rego Montei-ro acredita, mesmo com o fechamento de muitas faculdades e a menor procura pela profissão, que haverá uma depuração. “Os que buscavam uma chave para circular pelo poder, para galgar outros cargos, irão desistir. Resistirão na car-reira os conscientes do papel social que devem desempenhar e que precisam de qualificação para distanciar-se da cobertura e perceberem qual é o nível de envolvimento deles com determinada situação. O jornalista contextualiza, abre a voz aos envolvidos numa história e mostra o significado do acontecimento”, ressalta a professora, avaliando como retrocesso o resultado do julgamento do STF: “Houve uma perda do ponto de vista democrático que denuncia a hie-rarquia da parte econômica e política na luta do espaço pela construção do sentido.”

Referencial de credibilidade. Embora concor-dando que houve clara confusão dos ministros do STF entre liberdade de ex-pressão e exercício profissional, Cristina frisa que a nova situação segue um processo já em curso. “Nenhuma operadora perguntava a alguém se tinha di-ploma para abrir um site ou blog. Esses meios trazem um tipo de informação que até interessa à grande imprensa pela pulverização, porém, isto não apaga o lugar do jornalismo de qualidade como referencial de credibilidade, exigin-do inclusive uma especialização cada vez maior dos seus profissionais”, distin-gue Cristina, ponderando acerca da dificuldade de saber objetivamente sobre

Rodrigo Ricardo

o futuro. “Tudo está se redesenhando. O lado ruim dessa crise é que muitos levaram um baque, porque dedicaram a vida a determinada estrutura. Agora, a realidade pode se rearranjar”, aposta a docente, ironizando o voto do presi-dente do STF, Gilmar Mendes: “Todo mundo cozinha e não precisa de di-ploma de chefe. Entretanto, nem todo mundo come gororoba. E, certamente, existirá quem continuará a preferir me-lhores comidas. Aquilo que o chefe de cozinha sabe, ele não vai desaprender.”

Pivô de recentes polêmicas na República e relator do julgamento que encerra a obrigatoriedade do di-ploma, o magistrado-mor também é criticado por desconsiderar a opinião dos órgãos de representação classis-tas, além da própria vontade popular.

Segundo pesquisa nacional de 2008, encomendada pela Federação Nacio-nal dos Jornalistas (Fenaj), 74% dos entrevistados defendiam a manuten-ção do diploma. “O ministro Joaquim Barbosa está correto ao afirmar que o colega não vai às ruas e vive somente na mídia”, recorda José Carlos Torves, diretor de Mobilização, Negociação e Direito Autoral da Fenaj.

Trabalho

Page 7: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

7Agosto 2009

Mestre em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul (RS), Torves explica que uma Frente Parla-mentar Mista em Defesa do Diploma está em formação, inclusive duas PEC estão protocoladas no Congresso. Elas acrescentam à Constituição Federal (CF) o artigo 220 A, prevendo o exer-cício da profissão de jornalista como privativo do portador de diploma de curso superior de Comunicação So-cial, com habilitação em Jornalismo, expedido por curso reconhecido pelo Ministério da Educação. “As propos-tas são convergentes e tramitam, tan-to no Senado quanto na Câmara, por uma questão de estratégia. Entretan-to, é preciso pressão política para que o parlamento se movimente”, avalia o diretor da Fenaj.

A conquista de uma Emenda Constitucional depende, segundo de-termina a própria CF, de votação em dois turnos em cada casa do Congres-so, com aprovação de 3/5 dos seus respectivos membros. Processo mais célere é o apresentado pelo deputado federal, Miro Teixeira (PDT/RJ), que estabelece que o portador de curso superior de Jornalismo tem direito ao registro, mas sem restringir o mesmo pleito a outras categorias. Teorica-mente, a iniciativa legislativa do ad-vogado, jornalista e ministro das Co-municações, em 2003, não se choca com a decisão do STF. ”Uma medida positiva e que reforça a luta pela regu-lamentação profissional. A proposta exige formação jornalística para os cargos de assessoria e estabelece que professores de Jornalismo exercem atividades ligadas à imprensa”, avalia Torves. No país há 370 graduações de Jornalismo, responsáveis por cer-ca de 10 mil formandos anuais e que empregam 2,5 mil docentes, segundo dados do Ministério da Educação. “Na Fenaj contamos com 80 mil pro-fissionais registrados, 60% deles são autônomos com uma média salarial de R$ 2,3 mil”, afirma Torves.

Cortina de fumaça. Com a abolição do diploma, o Brasil junta-se a Argentina, Estados Unidos, França, Japão e outros países. Apesar de não concordar com os argumen-tos apresentados pelos ministros do STF, Ivana Bentes, diretora da ECO, analisa a votação como histórica por abrir novos debates sobre o campo da Comunicação pós-mídias digitais. “O fim do diploma tira da invisibilidade a nova força do capitalismo cognitivo. Milhares de jovens free-lancers, mi-dialivristas, constituem hoje os novos produtores simbólicos”, opina a pro-fessora.

Ivana Bentes, formada em Jorna-lismo e especializada em Filosofia, re-conhece a importância do diploma no passado, como instrumento organi-zador de uma categoria profissional,

mas atualmente anacrônico. “Funcionava como embarreiramento, obrigando o enorme reingresso de alunos de outras habilitações para complementarem mais um ano de Jornalismo. Os cursos e a profissão não sofrem ameaças. Pelo contrário, em um campo tão ampliado, a formação superior vem agregar va-lor”, compara Bentes.

Para ela, os maus cursos – existentes apenas pela exigência do diploma –, vão acabar: “Eles não vão fazer falta. Sem conteúdo humanístico e meramente técnico para realizar uma formação aligeirada, detinham-se apenas no tradi-cional lide (o que, quem, como, onde, como e porque). Costumo brincar que os nossos estudantes são caçados pelo mercado, interessado num profissional diferenciado. Não vejo porque isto vá mudar”.

Para Ivana, o discurso de “que quem é contra o diploma faz o jogo dos patrões” trata-se de uma “velha ladainha”, mais conservadora que o próprio argumento empresarial que precisa empregar aqueles capazes de entender os novos ambientes pós-digitais, fazer redes e inovar em diferentes campos. “Devemos lutar não por cartórios do século XIX, mas pelos novos movi-mentos sociais de organização em defesa do precariado produtivo, situação que atinge inclusive muitos mestres e pós-doutores. Há certo alarmismo e ingenuidade, pois nada impedia a burla nas redações, onde os maiores salários ficam com os não-diplomados, geralmente cronistas e articulistas”, constata a diretora da ECO, apontando que a ética não vem acompanhada do diploma e, sim, com o profundo exercício da profissão.

As Organizações Globo, maior grupo de comunicação do país, declaram que a decisão do STF ratifica uma prática da empresa, atestando uma situ-ação já vivida nos principais órgãos de comunicação. Para os estudantes, inicialmente atônitos e depois revoltados, o caso mascara outras feridas da desigual sociedade brasileira. “Trata-se de uma cortina de fumaça para encobrir o debate sobre a democratização dos meios de comunicação”, cri-tica Carolina Barreto, representante do Centro Acadêmico da ECO (Cae-co). Em entrevista ao Olhar Virtual, da Coordenadoria de Comunicação da UFRJ, Muniz Sodré, atual presidente da Fundação Biblioteca Nacional e professor titular da ECO, vai além, considerando a extinção do diploma uma vitória da lógica do mercado. “Com diploma, o jornalista tem estatuto clássico enquanto representante de opinião e dos interesses da sociedade; sem ele, haverá contratações com base na prestação de serviços. Desorga-nizar a profissão interessa aos grandes veículos. Significa retirar o estatuto profissional para melhor comandá-lo, é um rebaixamento na condição do jornalista”, opina o docente.

Conferência Nacional da Comunicação

O ano de 2009 tem acompa-

nhado mudanças significativas

nas atividades de Comunicação.

Além do fim da obrigatoriedade

do diploma, o Supremo Tribunal

Federal (STF) também revogou a

antiga Lei de Imprensa,

deixando à legislação ordi-

nária o arbitramento de indeni-

zações e direito de resposta em

caso de calúnias, injúrias e difa-

mações praticadas por jornalis-

tas e veículos de mídia.

Outro fato inédito é a primei-

ra Conferência Nacional de Co-

municação, a ser realizada entre

1º e 3 de dezembro, em Brasília.

O evento, convocado por decre-

to do presidente da República,

Luiz Inácio Lula da Silva, após

as insistentes reivindicações dos

movimentos pela democratiza-

ção da comunicação no Brasil,

sob o argumento de que o

tema deve ser encarado como

um direito fundamental assim

como Saúde e Educação, já

tem suas conferências regionais

em andamento. O debate conta

com uma extensa pauta, entre os

temas: concessões públicas, cul-

tura, mídia e produção de sub-

jetividade, comunicação pública

e formação de redes e fiscali-

zação sobre o uso de meios de

comunicação para proselitismo

religioso e político.

Para Cristina Rego Monteiro, coordenadora do chamado Ciclo Básico da ECO, com o fim da exigência do diplo-ma de jornalismo os que buscavam uma chave para circular pelo poder para galgar outros cargos irão desistir.

Trabalho

Page 8: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

8 Agosto 2009

Segurança Universitária

Cada ocorrên-cia criminosa registrada nos

limites do campus da Cida-de Universitária da UFRJ ganha intensa repercussão nos veículos de comunicação. Desde o assalto a uma agência bancária até o assassinato de um cobrador de ônibus, passando pela rendição de alunos em uma sala de aula. Apesar da sensação de insegurança cria-da na comunidade universitária, a Reitoria e a Prefeitura da UFRJ vêm trabalhando para garantir a tran-quilidade, sem restringir a liberda-de dos usuários do campus.

“Não queremos encher a Cidade Universitária de seguranças arma-dos, pois assim, um dia teremos que nos defender deles”. Com essa frase, Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional (Ippur) da UFRJ, define a concepção do Comitê Técnico do Pla-

UFRJ investe para garantir a tranquilidade na Cidade Universitária.

no Diretor UFRJ 2020 para o quesito segurança. A proposta, ao invés de impedir o acesso ao campus, é aden-sar a frequência ao máximo possí-vel. Nesse sentido está inserida a criação dos chamados “centros de convergência”. O conceito consiste na formação de bairros universi-tários que agreguem, em um mes-mo espaço, residências, comércio e serviços, além de equipamentos de cultura, esporte e lazer. A proposta é povoar o máximo possível para que a presença das próprias pesso-as iniba a ação de criminosos.

Dados estatísticosOs números divulgados pela

Prefeitura Universitária indicam que, em 2008, houve um aumento no total de ocorrências em relação a 2007. Foram 392 contra 267 de dois anos atrás, o que representa um acréscimo de quase 47%. O ano de 2007, aliás, foi o que registrou a menor taxa entre os últimos cinco. Com 553 ocorrências, 2005 foi o que registrou o maior índice, des-

de 2003.

O ano passado registrou ainda um aumento no que se refere a rou-bos. Foram 24 ocorrências contra apenas oito, em 2007. Em compen-sação, houve diminuição no núme-ro de roubos a automóveis, com apenas quatro ocorrências registra-das. O ano de 2005 foi aquele, entre os cinco últimos, a totalizar maior número de roubo de carros, com 13 no total.

Com 87 furtos, o ano de 2008 registrou um aumento de aproxi-madamente 35% em relação a 2007, que teve 65 furtos. Na comparação com 2005, entretanto, 2008 tem um índice 28% menor. Com 111 casos, aquele foi o que totalizou o maior número de furtos nos últimos cin-co anos. Aumentou cerca de 185% em relação a 2003, ano que regis-trou o menor número de furtos: 39 casos.

Se no passado o cam-pus da Cidade Uni-

versitária era re c on he c i d o

local de de-

sova de cadáveres, hoje os números indicam a redução. Em 2004, foram achados 18 corpos; era uma média de três cadáveres achados a cada dois meses. Em 2006, este número caiu para apenas duas ocorrências e, nos anos de 2007 e 2008, foram quatro registros. Hélio de Mattos Alves, prefeito da UFRJ, explica que essa redução se deve à implan-tação do Sistema Integrado de Se-gurança, em 2005, a partir do qual não houve mais casos de abandono de cadáveres na Cidade Universitá-ria. “Os poucos que a Defesa Civil precisa recolher são trazidos para a nossa orla pelas correntes maríti-mas”, afirma o professor.

Câmeras de monitoramentoMedidas efetivas para zerar es-

ses números e dar maior sensação de segurança aos frequentadores da Cidade Universitária já estão em funcionamento. Apenas na implan-tação do sistema de monitoramen-to de ruas e avenidas do campus, os investimentos já ultrapassaram R$ 1,2 milhão. Entre as iniciativas tomadas está a instalação de 19 câ-meras que monitoram o tráfego de entrada e saída dos cerca de 30 mil veículos que circulam diariamente no campus. O sistema funciona du-rante 24 horas, inclusive aos sába-dos, domingos e feriados. As ima-gens são enviadas para uma central de controle que possui o registro das placas de todos os carros cadas-trados em um banco de dados.

Fonte: Divisão de Segurança da Prefeitura Universitária (Diseg).

19 câmeras monitoram o tráfego dos cerca de 30 mil veículos que circulam diariamente no campus.

Plano Diretor

Pedro Barreto

Evolução de Ocorrências na Cidade Universitária

Page 9: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

9Agosto 2009

Em caso de alguma anormalida-de, os operadores podem entrar em contato direto com os vigilantes da Divisão de Segurança (Diseg), po-sicionados nas três guaritas blinda-das localizadas nas saídas do cam-pus, que interceptarão o veículo, ou mesmo acionarão o 17º Batalhão de Polícia Militar. “Somos umas das poucas “cidades” com um sistema desses”, comenta Hélio de Mattos.

Para auxiliar no monitoramento dos veículos no campus, o Depar-tamento de Ciência da Compu-tação do Instituto de Matemática (IM), coordenado pelo professor Antônio Carlos Gay Thomé, de-senvolveu dois softwares. Um deles é o Kapta, que fotografa a placa de todos os carros que circulam na Cidade Universitária. O outro é o Sapros, que permite aos usuários cadastrarem no banco de dados os seus veículos, via Internet. “Até 2020, nós teremos nossa popula-ção aumentada significativamente. Esses sistemas vão nos ajudar não apenas na segurança, mas também no planejamento de quais as áreas mais adensadas, onde deveremos ampliar os estacionamentos e ade-quar às novas necessidades”, anali-sa o prefeito.

VigilânciaO Sistema Integrado de Segu-

rança da UFRJ, apresentado pelo prefeito em sessão do Conselho Universitário (Consuni) em maio último, dá conta de algumas ini-ciativas em operação desde 2005 e outras em implantação. Segundo Hélio de Mattos, são investidos R$ 15 milhões anualmente na manu-tenção dos 250 postos de vigilância instalados nos prédios das unida-des da Cidade Universitária. Os vi-gilantes são contratados através de empresas terceirizadas, em proces-so de licitação pública.

Já as rondas ostensivas, realiza-das no período das 6h às 23h, são feitas por vigilantes do quadro efe-tivo da UFRJ. Desde 2004, os fun-cionários da Divisão de Seguran-ça (Diseg) recebem treinamento e cursos de aperfeiçoamento peri-ódico, além de contar com novos equipamentos de segurança. Entre eles, estão três novas viaturas – in-corporadas no início do ano à frota –, que agora totaliza seis veículos.

Uma dificuldade que a Reitoria e a Prefeitura estão tentando contor-nar é o aumento do atual efetivo de vigilantes. Hoje, a Diseg conta com aproximadamente 70 funcionários distribuídos em plantões (12 ho-mens cada) para fazer a segurança dos 4.650 mil km2 de extensão do campus, das 6h às 23h. “Nosso efe-tivo é muito pequeno para fazer a segurança de uma área que corres-ponde aos bairros de Copacabana e Ipanema juntos”, comen-ta Hélio Mattos. Ainda

segundo ele, há três anos, o reitor enviou uma solicitação ao Ministé-rio do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) para abertura de concurso para a contratação de 100 vigilantes. “Até o momento não ob-tivemos resposta”, atesta o prefeito.

IluminaçãoA iluminação pública é outra

questão que tem recebido atenção frequente da Administração Central da universidade. Os postes de ilu-minação que vêm sendo instalados têm altura de 12m (três metros mais baixos que os antigos), raio de maior alcance e eficiência energética supe-rior. Já foram aplicados mais de R$ 2 milhões em recursos – oriundos de emendas parlamentares, convê-nio com o Centro de Pesquisa da Petrobrás (Cenpes) e do orçamento da universidade – para a ilu-minação da avenida Carlos Chagas e das praças Edson Saad, Giulio Massarani e Samira Mesquita (área que abrange desde o Alojamento Estudantil até o prédio da Reito-ria).

Além dessas, houve investimentos nas avenidas Pedro Calmon – do Pólo de Xistoquímica ao Centro de Tecnolo-gia Mineral (Cetem) – e Rodolpho Paulo Rocco – entre o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCCF) e o Centro de Ciências da Saúde (CCS).

Cerca de R$ 8 milhões foram in-vestidos ainda na preservação de áreas verdes, incluindo a poda e a capina de áreas não ocupadas. Está prevista ainda a realização de etapas futuras do projeto de iluminação, com investimentos da or-dem de R$ 2,5 milhões, provenientes de recursos orçamentários da instituição.

Outras medidasAinda na prevenção, a Prefeitu-

ra Universitária vem trabalhando na

tentativa de melhorar o transporte co-letivo, com a diminuição dos inter-valos dos ônibus internos. O fecha-mento parcial dos portões, entre as 23h e 5h, da manhã é outra inicia-tiva neste sentido. Para controlar sem restringir o acesso das pessoas aos prédios das unidades acadêmi-cas, está sendo incentivado o uso de crachás de identificação de pro-fessores e servidores técnico-admi-nistrativos.

Para repassar e receber infor-mações, sugestões, reclamações e denúncias, a Prefeitura da UFRJ disponibilizou uma linha telefôni-ca da Diseg: 2598-1900 (de fora do campus para dentro) e 1900 (de dentro do campus).

Cabines blindadas auxiliam no controle

de entrada e saída de veículos da

Cidade Universitária.

Rondas ostensivas são realizadas pela Diseg, no período das 6h às 23h.

Plano Diretor

Evolução de Ocorrências na Cidade Universitária

Page 10: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

10 Agosto 2009

Bruno Franco

Fundada em 26 de abril de 1979, então com o nome de Associação dos Docentes da

UFRJ, a Adufrj é uma das 111 seções sindicais da Andes (Associação Nacio-nal dos Docentes do Ensino Superior), atualmente denominado Sindicato Na-cional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, fundado em 1981.

De acordo com José Henrique San-glard, professor do Programa de Enge-nharia Naval e Oceânica (Peno), da Es-cola Politécnica (Poli) da UFRJ, a Adufrj (e não apenas ela, mas todas as associa-ções docentes existentes na época da for-

Adufrj-SSindical

mação da Andes) tem uma im-portância histórica pela organização do movimento docente e pela articu-lação de uma luta integrada, em nível nacional, em defesa da universidade e do ensino público e gratuitos.

Na avaliação de Sanglard, a Adufrj surgiu na época áurea do movimen-to docente, no período de distensão da ditadura e rearticulação dos mo-vimentos sociais, em que as assem-bleias reuniam centenas de pessoas e o processo de discussão era bastante elaborado. “Não era uma luta apenas pela universidade. A entidade era um instrumento de luta política mais ge-ral, que dava voz a várias tendências.” Dentre as principais conquistas do movimento sindical, Sanglard aponta a criação da carreira docente, ainda que a mesma esteja, atualmente, des-figurada por inúmeras alterações feitas em acordos políticos que não puderam ser evitados.

O professor destaca que até a for-mação da carreira, o que valia era a “época dos catedráticos”, e muitos pro-fessores que não possuíam suas cáte-dras tinham de trabalhar como cola-boradores. Eram os horistas. “Há certo paralelo com os professores substitu-tos, de atualmente, embora esses se encontrem referenciados em uma car-reira. Ainda que sua situação também seja precária”, compara Sanglard.

em decisão judicial, após uma década de pro-

cesso – que a Caixa Econômica pagasse aos docentes o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que lhes era devido. “Não cobramos taxa alguma dos professores. Depois, foi reconhecido pela Justiça que a Adufrj representava não apenas os seus sindicalizados, mas os professores da UFRJ de maneira geral”, explica o docente.

A seção sindical realizou uma assem-bléia e nela foi decidido que mesmo os não sindicalizados – e que manifestavam profundas divergências com a Adufrj – também gozariam da representatividade e participariam do processo. “Essa foi uma decisão importante e traduz bem o espírito que gostaríamos que fosse da uni-versidade e não apenas do sindicato. Esta é uma instituição pública e deve funcionar para o público e não para o privado. Ain-da que, infelizmente, essa não seja mais a ideologia dominante nos corredores da universidade” afirma Simões.

Greves desgastantesA luta da categoria docente pela con-

quista da carreira e para proteger os direi-tos nela afiançados contra os ataques do neoliberalismo não foi uma tarefa amena. “Durante esse processo tivemos de fazer um número muito grande de greves e adotar uma forma radical de protesto, o que gerou um desgaste muito grande. Não apenas por cansaço, pois havia uma sobrecarga grande para compensar o final do período”, relembra Sanglard.

De acordo o ex-dirigente da Adufrj, isso criou muitas barreiras – entre os próprios professores, levando muitos a se afastar e deixar de acreditar nessa for-ma de mobilização – e também com os

estudantes. “Criou-se um processo no qual as pessoas têm

medo de participar e acabar tendo greve. O movimento ficou, assim, marginaliza-do”, avalia Sanglard.

A Adufrj continua contando com a confiança da comunidade acadêmica, mas, segundo Sanglard, é um apoio pas-sivo. “A participação está muito pequena. Isso é muito ruim, porque diminui a ca-pacidade tanto de resistência, quanto de proposição”, lamenta o ex-presidente da seção sindical.

Como o recurso à greve ficou des-gastado, o professor acredita que o mo-vimento sindical deve inovar, mas sem descaracterizar sua prática, pensando novas formas de organização e comu-nicação para os associados: “Acho que estamos subutilizando o potencial que temos hoje de organização, pela pró-pria Internet, como blogs e micro-blogs (Twitter). Em algum momento é claro que deverá haver reuniões presenciais, mas devemos ter maneiras outras de fazer contatos rápidos e preparar reu-niões.”

De acordo com Sanglard, uma grande e antiga reclamação é que as as-sembléias demoram horas. “Isso ocorre justamente porque elas deixaram de ser instância deliberativa, que pressupõem discussão prévia. A discussão não pode reunir uma centena de pessoas e partir do zero”, critica o professor.

Para fazer frente a esse problema, Sanglard propõe que a discussão em um primeiro momento, nas unidades, seja feita por via eletrônica, para que um esboço de propostas possa ser leva-do à assembléia e esta se torne mais ágil: “Envolveria um número maior de pesso-as na discussão, pois elas não têm tempo nem disposição. Perderam o hábito. Pre-cisamos de uma maneira diferente para estimular uma participação maior.”

Até 1987, havia dois ti-pos de universidades: fundacionais

e autárquicas, cada uma com uma car-reira que lhe era própria e salários dife-rentes e maiores que os da carreira uni-ficada. “A estrutura básica dessa carreira perdura até hoje. Mais recentemente, houve alterações profundas com o sur-gimento da categoria de livre associado. Foi uma maneira de promover um rea-juste salarial por progressão funcional, acordo que o governo pactuou com o Proifes (Fórum de Professores das Ins-tituições Federais de Ensino Superior)”, explica Sanglard.

Solidariedade com os companheirosJosé Simões, professor do Instituto de

Física (IF), viveu dois momentos mar-cantes quando presidiu a Adufrj. Um deles ocorreu durante a conturbada gre-ve de 2001, quando o governo cortou o salário dos grevistas, mas manteve o dos dirigentes, de cargos comissionados.

Na ocasião, muitos professores, com cargos comissionados, procuraram a seção sindical e colocaram seus salários no Fundo de Solidariedade da entidade, sabendo que muitos colegas passavam por difícil situação econômica. “Nesse momento, a Adufrj simbolizou a troca da competitividade pela solidariedade. Mesmo colegas que não participavam do dia a dia do sindicato entenderam que aquilo era uma afronta à universida-de e aquele gesto nos permitiu socorrer pessoas”, relembra Simões.

Outro momento especial para Si-mões foi quando a Adufrj conseguiu –

Movimento Sindical

Page 11: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

11Agosto 2009

Bruno Franco

Como a história da Adufrj não pode, obviamente, ser descolada do que se pas-sou no mundo nessas últimas três déca-das, José Simões, afirma que “vivemos a época em que tudo virou mercado-ria, inclusive a educação é hoje tratada na Organização Mundial de Comércio (OMC). Isso retrata o deslocamento do que é educação. E o Brasil e a UFRJ entraram nisso, é claro. Foi inevitável.”

Para ele, assistimos há anos à pri-vatização da universidade. “A uni-versidade pública perdeu espaço e se tornou cada vez mais uma instituição privada. Ela é privada por deman-da externa. Hoje boa parte de nossos alunos se considera empreendedor e pequeno capitalista. Sua intenção aqui é ganhar uma posição no mercado”, cri-tica Simões.

Da mesma forma, os professores – não todos, mas de maneira crescente – usam a universidade de maneira priva-da. Criou-se assim um “fenômeno”, que é a evasão de professores das salas de aula da graduação. “Eles vão fazer pesquisas, prestar assessorias ou montar suas pró-prias empresas dentro da universidade. Já não são mais professores da universi-dade, apenas ocupam um lugar aqui que lhes abre oportunidades no mundo dos negócios”, revela Simões.

Em meio ao processo de cooptação ideológica do neoliberalismo, Simões destaca que muitas ideias e princípios se diluíram, mas os da Adufrj continuaram firmes na defesa da universidade pú-blica. “Hoje, infelizmente, somos das poucas instituições que defendem isso. Continuamos dizendo que nossa função básica é educar, que conhecimento não

é mercadoria, não é propriedade par-ticular. Devemos estar aqui para botar

isso a serviço da população e não a serviço de uma meia dúzia que quer belos salários e bolsos cheios. A Adu-frj não concorda com os projetos de

privatização que existem por aqui”, as-segura o professor.

Para Sanglard, o próprio sistema de bolsas da pós-graduação gera uma dis-torção, pois os professores recebem bol-sas para desempenharem uma atividade que deveria ser normal. O docente da Poli alerta também para o crescente nú-mero de cursos na universidade. “Alguns acham que a gratuidade deve se restrin-gir à graduação e à pós-graduação strictu sensu. É uma forma de privatização mais difícil de ver. As pessoas têm dificulda-de em perceber que é um modo indireto de direcionar sua força de trabalho para atender interesses privados”, avalia San-glard.

Com tudo isso, o ensino de gradua-ção fica relegado, no final, a um segundo plano. Sem negar a importância da Pes-quisa e da Extensão, Sanglard considera que o Ensino deveria ser o foco da uni-

versidade. “Esses recursos (oriundos de convênios) são uma forma de seduzir, de encantar nossos professores, até pela montagem de estruturas, laboratórios, salas de aula, bibliotecas. Você acaba ten-do subprodutos disso que são uma ma-neira de justificar o direcionamento do trabalho, pois estaria suprindo as carências orçamentárias da institui-ção, porque sem esses convênios não teríamos a estrutura atual. Isso leva à dependência crônica de algumas unidades, como a Coppe, por exem-plo”, analisa o professor.

Pela tessitura de convênios de prestação de serviços, acredita Sanglard, criam-se clubes fecha-dos, estruturas paralelas que usam as instalações e o nome da UFRJ. “O uso indiscriminado de parcerias desse tipo levará a problemas sérios de restrição de autonomia”, alerta o docente.

Em todo caso, como orgulhosamente afirma Simões, “nosso sindicato, modes-to e com dificuldades, botou uma ban-deira aqui dentro e as pessoas sabem: a Adufrj não entrou nessa”.

Fasubra X CUT

Trabalhadores do Brasil

desuni-vosNo XX Congresso Nacional da Fasubra-Sindical, realizado em Poços de Caldas (MG), a entidade decidiu desfiliar-se da Central Única dos Trabalhadores (CUT). A decisão deixa os servidores técnico-administrativos das Instituições de Ensino Superior apartados de grande parte das demais categorias profissionais e com menor peso em negociações junto ao Governo Federal.

Em uma disputa política entre coletivos ligados à Central Única dos Tra-

balhadores (CUT) e coletivos vin-culados a organizações de oposição à principal central sindical do país, os quase mil delegados presentes ao maior congresso da Federação de Sindicatos de Trabalhadores nas Universidades Brasileiras (Fasu-bra-Sindical) votaram e decidiram pela desfiliação da federação junto à CUT.

Iaci Azevedo, uma das coorde-nadoras do Sindicato dos Traba-lhadores em Educação da UFRJ (Sintufrj) relata que no dia consa-grado às mesas de trabalhos (quan-do são discutidas as demandas na-cionais, resultando na elaboração e aprovação de um plano de lutas) delegados não “cutistas” e alguns membros da própria direção da Fasubra não quiseram discutir tais demandas. “O grupo não ‘cutista’ apenas se preocupou com a desfi-liação, a proposta de eleição direta (não mais em congressos e sim nos

Page 12: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

12 Agosto 2009Movimento Sindical

próprios sindicatos) e a extinção da cláusula de barreira”, afirma a sin-dicalista.

O Sintufrj faz parte da Fasubra-Sindical, a representação nacional dos sindicatos de base de técnico-administrativos das Instituições de Ensino Superior (IES), e mantém sua autonomia, continuando filia-do à CUT.

No entendimento de Iaci Azeve-do, a desfiliação é uma perda para a categoria, até pela maneira como foi feita. “A Fasubra não se filiou a nenhuma outra central sindical, até porque a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) não é uma cen-tral. Ainda que exista uma proposta para que se torne uma”. Na verdade a Conlutas é uma central sindical, a julgar o Artigo 1º de seus estatutos: de “natureza jurídica de central sin-dical”. A dirigente do Sintufrj refor-ça que a CUT não será alijada como foi pretendido por seus adversários, uma vez que “ela é a Central dos Tra-balhadores, e nós somos trabalhado-res e ela seguirá nos apoiando”.

Hay gobierno, soy contraSegundo Jeferson Salazar, tam-

bém coordenador-geral do Sintufrj, as forças políticas que se uniram para patrocinar a desfiliação não têm acordo entre elas sobre qual central deveria ser criada. “Há Conlutas de um lado, Intersindical de outro e a Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), que é a única delas que se configura como uma central. Constituída em uma dissidência da CUT, a partir do Par-tido Comunista do Brasil (PC do B)”, explica o dirigente sindical.

Salazar destaca ainda que não houve transparência no processo deliberativo acerca da desfiliação. “Os ataques se focaram em possíveis falhas da CUT, mas na verdade visa-vam à desfiliação para antecipar um embate político, uma disputa interna, intestina, sobre a qual central a Fasu-bra se alinharia no futuro”, ava-lia o servidor da UFRJ.

O coordena-dor acredita que houve oportu-nismo em face da proximida-de das eleições p r e s i d e n c i a i s de 2010, e que a CTB “aposta no seu crescimen-to como central sindical, incluin-do a absorção de dissidentes da CUT, e as demais ali-mentam um projeto político que não passa pelas lutas dos trabalhadores, mas pela questão das eleições do ano que vem”.

Iaci Azevedo relata que os partidá-rios da desfiliação argumentam que a CUT é uma central “pelega”, e que é governista. Salazar refuta esses argu-mentos indicando que a central se no-tabiliza tanto pelas disputas internas, quanto pelo respeito às correntes de opinião minoritárias “que têm espa-ço de representação, oportunidade de crescimento e a composição das dire-torias respeita a eleição proporcional.”

No congresso, algumas deliberações já eram consensuais, como a fundação da própria Fasubra, apenas ratificada, uma vez que o debate já fora feito nas

bases. “A criação das pastas de gênero e da questão racial foi importante e tam-bém já era consensual. Veio para traçar políticas mais claras e ter repercussões maiores. Não houve debate de outras questões, como o estabelecimento de um plano de lutas”, lamenta Salazar.

O eixo das atividades do XX Con-gresso Nacional da Fasubra-Sindical

(C onfasubra) , realizado em Poços de Caldas (MG), de 10 a 16 de maio deste ano, foi mesmo a desfiliação jun-to à CUT. Ago-ra, os coletivos cutistas somente poderão tentar reverter essa de-cisão no próxi-mo Confasubra, que será realiza-do em 2011.

No momen-to, lutas como plano de capacitação e mecanismo de avaliação previstos no plano de carreira prosseguirão. Mas os sindicatos filiados à Fasubra precisarão fazer uma reunião extra-ordinária para elaborar o plano de lutas. “Até lá não haverá coordenação em muitos campos. Além disso, há o custo financeiro e operacional de agendar um novo debate nacional, quando o plano já deveria ter sido feito no congresso”, explica Salazar.

Histórica aliada dos trabalhadoresFundada em 28 de agosto de 1983,

em São Bernardo do Campo (SP), a CUT foi, na opinião de Jeferson Salazar – membro do coletivo CUT Socialista e Democrática (CSD) –, uma das grandes conquistas da clas-

se trabalhadora brasileira. “Ela rom-peu com o sindicalismo que havia até então, que era dependente do Esta-do, construindo a independência dos trabalhadores em relação ao poder”, destaca o sindicalista.

Surgida no contexto da redemo-cratização do país, gestada por diver-sos movimentos sociais, a CUT teve papel determinante no movimento das “Diretas Já”. “Isso gerou a força que temos hoje. A CUT sozinha ain-da é maior que todas as outras cen-trais juntas”, avalia Jefferson Salazar.

Para o coordenador do Sintufrj, a crítica feita à CUT pelo apoio ao governo Lula, inclusive com a par-ticipação de dirigentes cutistas na estrutura do governo federal, é “sur-real. “Quando temos companheiros que são reconhecidos e chamados a participar para construir a transfor-mação da sociedade, vemos pessoas criticando como se devêssemos estar na oposição. Na oposição sempre es-tivemos. Ninguém pode ter a ilusão de que será pela luta sindical que transformaremos esse modelo de sociedade capitalista em uma socie-dade socialista”, opina Jefferson, para quem essa luta é importante, pois pa-vimenta caminhos de transformação da sociedade.

Salazar ressalta que o governo Lula não constitui um campo de esquerda, mas sim, uma frente. “Os partidos da base aliada, somados, têm até mais força que o próprio Partido dos Trabalhadores (PT). Não se pode achar que somente porque elegemos um presidente, temos todos os instrumentos para fazer a trans-formação social. Quem acha que vai governar sozinho e fazer governo san-gue-puro não consegue nem terminar mandato”, alerta o sindicalista.

“Ninguém pode ter a ilusão de que será

pela luta sindical que transformaremos esse modelo de

sociedade capitalista em uma sociedade

socialista.”

Page 13: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

13Agosto 2009

Entr

evis

taEntrevista

Dulce Chiaverinni

Entrevista

Nos anos de 1960, a irresistível atmosfera de afirmação dos direitos femininos incentivou-a a arrumar um emprego para obter a cobiçada independência financeira. Ao ingressar na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para trabalhar como técnica em Estatística, Dulce Chiaverinni – a primeira Pró-reitora de Extensão da UFRJ – não imaginava que mudaria tão radicalmente a sua trajetória de vida, indo muito além da ambição juvenil inicial. Depois de encantar-se com a avançada pesquisa desenvolvida na instituição, pôs de lado os números e virou socióloga. Queria lidar com gente e entender melhor a realidade social, especialmente na área da saúde. Em pouco tempo, Dulce Chiaverinni – hoje professora aposentada da Faculdade de Medicina da UFRJ – tornou-se uma das mais respeitadas especialistas em Saúde Coletiva do Brasil. Não por acaso, teve papel histórico na difusão do Programa Saúde da Família, adotado, atualmente, em municípios de todo o país.

Page 14: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

14 Agosto 2009

Jornal da UFRJ: Inicialmente, gos-taria que a senhora falasse um pou-co da sua trajetória de socióloga que acabou ligada à questão da Saúde Pública?

Dulce Chiaverinni: Na verdade, vim muito cedo para a Escola Na-cional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz. Trabalhava como técnica de Estatística, mas comecei a per-ceber que essa atividade não me dava prazer. E trabalhar não pode ser um sacrifício, é preciso estar feliz. Na ENSP, conheci alguns so-ciólogos que me influenciaram bas-tante. Aliás, se existem lugares que marcaram a minha vida esses são a Escola Nacional de Saúde Pública e a UFRJ.

Jornal da UFRJ: E como a senhora chegou à ENSP?

Por um Brasil que veja a saúde,

não a doença

Coryntho Baldez

Dulce Chiaverinni: Eu era muito jovem e naquela época, meados da década de 1960, se discutia muito a questão da liberação feminina, da in-dependência econômica das mulhe-res. Os meus pais não queriam que eu trabalhasse, mas sim que estudas-se. Eu achava que tinha de trabalhar, era uma postura mais ideológica. Cheguei à ENSP pelos caminhos do compadrio brasileiro. Quem dirigia a instituição era um amigo do meu avô, professor Edmar Blóis, que me arru-mou um emprego.

Jornal da UFRJ: Naquela época de contestação, a senhora tinha algum tipo de militância?

Dulce Chiaverinni: Sim, participei de movimento estudantil e também inte-grava o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nessa época, comecei a traba-

lhar durante o dia e fazia o curso de Ci-ências Sociais, à noite, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Jornal da UFRJ: E a sua docência na UFRJ, quando começou?

Dulce Chiaverinni: Bom, depois de me formar, comecei a ter envolvimen-to em pesquisas na Escola Nacional de Saúde Pública. Havia uma pes-quisa multicêntrica intensa, uma parte na área de Epidemiologia e a outra na de Ciências Sociais. Depois, apareceu uma chance de eu trabalhar como professora na UFRJ, no Departamento de Me-dicina Preventiva da Faculdade de Medicina. Ele concentrava, na verdade, docentes da área de Doen-ças Infecciosas e Parasitárias, mas co-meçava a crescer na área preventiva social. Esse início da minha ativida-

de como auxiliar de ensino na UFRJ aconteceu em 1977.

Jornal da UFRJ: E qual era o conteúdo da sua disciplina?

Dulce Chiaverinni: Era mais ligado às Ciências Sociais, como Economia de Saúde, Políticas de Saúde e Antro-pologia da Saúde.

Jornal da UFRJ: E o projeto pioneiro que levou professores e alunos para a rede de assistência de saúde do muni-cípio?

Dulce Chiaverinni: No Departamen-to de Medicina Preventiva tivemos oportunidade de elaborar e participar de um grande projeto, de quase um milhão de dólares, que era financia-do pela Fundação Kellogg, instituição norte-americana com a qual a UFRJ

Como professora da Faculdade de Medicina da UFRJ, a partir de 1975, foi uma das coordenadoras de um projeto inovador que levou docentes e estudantes para a rede de assistência pública. Em meados de 1980, na gestão do ex-reitor

Horácio Macedo, assumiu a recém-criada Pró-reitoria de Extensão (PR-5) e enfrentou com êxito o conservadorismo acadêmico da instituição, criando

inúmeros projetos no Complexo da Maré.Atualmente, Chiaverinni é assessora da Escola de Governo e Saúde da ENSP e presidente da União Universidade, Unidade e Integração Docente-Assistencial (Rede Uniida). Nesta entrevista, faz críticas à concepção hegemônica no Brasil

e no mundo de carrear a maior parte das verbas da área da saúde para os grandes hospitais, em detrimento da atenção básica, e defende um perfil de

profissional “que enxergue a saúde, não a doença”.

Entrevista

Page 15: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

15Agosto 2009

firmou um convênio. Isso aconteceu em meados da década de 1980. Era um projeto intitulado Docente–As-sistencial, com atividades e ações que propiciavam a união da academia com os serviços de saúde. Naquela época, o Sistema de Único de Saúde (SUS), que hoje é uma realidade, ainda enga-tinhava. Eu era uma das coordenado-ras desse projeto, que já tinha um viés multidisciplinar. Dele participavam, além da Medicina (FM), a Faculdade de Enfermagem (EEAN), o Institu-to de Psiquiatria (Ipub) e o Hospital Universitário (HUCFF), entre outras unidades da UFRJ.

Jornal da UFRJ: Na prática, como esse projeto funcionava?

Dulce Chiaverinni: Tínhamos ações de ensino e pesquisa, com a presen-ça de alunos e professores na rede de saúde pública. A ideia era levar o docente para a assistência, ou seja, para fora dos muros dos hospitais universitários. A minha atividade no Programa Saúde da Família teve sua origem naquele momento. Sempre nos preocupamos em ter o estudante vivenciando uma prática efetiva para que soubesse lidar com a realidade que encontraria após a sua formação.

Jornal da UFRJ: Essas ações aconte-ciam em postos de saúde da rede pú-blica?

Dulce Chiaverinni: Tudo começou quando o antigo Banco Nacional da Habitação (BNH) construiu a Vila do João e entregou a coordenação do posto de saúde da comunidade para o Hospital Universitário. Por um perí-odo, eu fiquei à frente dessa coorde-nação. Quando vieram os recursos da Fundação Kellogg e o projeto Docente–Assistencial, a nossa prioridade foi ade-quar as instalações do posto à neces-sidade de utilização por parte dos alu-nos. Construímos, por exemplo, um consultório odontológico adaptado para que diversos alunos pudessem trabalhar simultaneamente. Fizemos uma reforma bastante extensa. De-pois a UFRJ teve que entregar a admi-nistração do posto para o município, por conta da violência na área.

Jornal da UFRJ: Foi na época desse projeto que a senhora recebeu o con-vite do ex-reitor Horácio Macedo para se tornar a primeira pró-reitora de Ex-tensão da UFRJ?

Dulce Chiaverinni: Tinha um con-tato com o Horácio Macedo porque éramos companheiros do movimento docente, que tinha inúmeras bandei-ras de luta. Entre elas, a eleição dire-ta para reitor e a criação da Extensão Universitária. Quando o Horácio Ma-cedo ganhou a eleição, me convidou para assumir a Pró-reitoria de Exten-são. Essa minha experiência, sobre a qual, aliás, não falo há muito tempo,

foi bastante prazerosa. Primeiro, tra-balhar com Horácio foi um privilégio. Era uma pessoa, ao mesmo tempo, de uma ternura e força enormes. Ele ensinava, sem ensinar. Ensinava, pela prática, sendo o que era. Construir uma Extensão Universitária, com um reitor que dava carta branca para isso, foi maravilhoso.

Jornal da UFRJ: E como foi o início desse processo?

Dulce Chiaverinni: Começamos a construir uma proposta ouvindo todos os segmentos. Chamando as pessoas das unidades para conversar. Houve uma série de debates e tam-bém polêmicas em torno da visão da Extensão. Naquela época, além do Horácio Macedo, foram eleitos dire-tamente os reitores da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Eu e os pró-reitores de Extensão dessas duas universidades começamos a fa-zer reuniões com os que ocupavam o mesmo cargo em outras instituições federais para articular a organização de um conselho de pró-reitores de Extensão. Esse debate nacional acerca

do que era Extensão e as suas ativi-dades prioritárias também acontecia na UFRJ. Organizamos um colegiado que não tinha a menor formalidade, mas com representações dos vários centros. A partir daí, começamos a discutir um projeto de Extensão para a UFRJ.

Jornal da UFRJ: E encontraram mui-tos obstáculos? O preconceito com a atividade era grande?

Dulce Chiaverinni: Sem dúvida. Havia também muitas discussões bizantinas. Um exemplo era o deba-te sobre se a assistência médica é ou não atividade de Extensão. Tudo era muito novo e tínhamos que conceitu-ar, aprovar, colocar no papel as nossas diretrizes. Um programa de Extensão marcante que pusemos em prática, naquela época, foi o campus vicinal Maré, que foi aprovado pelo Conse-lho Universitário (Consuni).

Jornal da UFRJ: Como funcionava esse programa?

Dulce Chiaverinni: Era o campus preferencial, não único, de atividades

de Extensão da UFRJ. Se defendíamos o compromisso da universidade pú-blica com o bem-estar e a qualidade de vida da população, por que não pôr em prática esse princípio em uma comunidade que é nossa vizinha, por onde passamos todos os dias e estabe-lecemos inúmeras relações? Com esse entendimento, formamos, então, um conselho com os representantes das 13 comunidades da Maré à época.

Jornal da UFRJ: O Conselho de Exten-são é uma luta antiga e finalmente está para ser aprovado no Consuni. Essa conquista tem um significado especial para a senhora?

Dulce Chiaverinni: Com certeza. Fa-zíamos essa discussão na minha épo-ca. Se existia um Conselho de Gra-duação e um Conselho de Pós-gra-duação e Pesquisa, não havia razão para não se criar um Conselho de Extensão. É uma atividade-fim da universidade, integrada às demais e, portanto, deve ter seu colegiado institucional próprio. De qualquer forma, conseguimos deflagrar esse processo há 25 anos e fico muito fe-liz de hoje o Conselho de Extensão poder ser criado.

Jornal da UFRJ: E qual a sua ava-liação das atividades de Extensão na UFRJ ao longo desse tempo?

Dulce Chiaverinni: Considero que ela sofreu avanços e retrocessos. Em um país como o nosso, a academia não deve se preocupar apenas com a boa qualidade do ensino e do desen-volvimento da ciência. É necessário investir também em atividades que contribuam para melhorar a qualida-de de vida da população e para uma formação mais ampla dos estudantes. As universidades públicas, em geral, podem e devem fazer isso sem ne-nhum grande sacrifício.Jornal da UFRJ: E como a senhora vê o atual momento da Extensão na UFRJ?

Dulce Chiaverinni: Muito bem. Eu partilho da visão de universidade da atual gestão e confio plenamente no trabalho das pessoas que estão à frente da Pró-reitoria de Extensão. Superou-se aquela fase em que a Extensão era considerada um “bal-cão” de projetos de empresas, nos quais os estudantes se envolviam como estagiários. Isso para mim não é Extensão, mas prestação de serviços. Não que eu minimize tal tipo de atividade, mas não se trata de Extensão. Mas hoje se conseguiu retomar o caminho que considero o mais adequado.

Jornal da UFRJ: A senhora foi fun-dadora e diretora do Núcleo de Estu-dos de Saúde Coletiva da UFRJ, que se transformou em Instituto. O que moti-vou a criação desse núcleo?

Entrevista

Page 16: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

16 Agosto 2009

Dulce Chiaverinni: A criação do Núcleo acompanhou um movimento nacional e a UFRJ estava até atrasa-da em relação a outras instituições. A verdade é que as universidades mais tradicionais, como a UFRJ e a Universidade de São Paulo (USP), têm dificuldade de fazer mudan-ças, ao contrário daquelas mais novas. Portanto, esses núcleos de Saúde Coletiva já estavam sendo criados em várias universidades. A intenção era que eles fossem espa-ços com autonomia de produção e também militância na área de Saú-de Pública, recebendo mais recur-sos e tendo acesso direto ao Conse-lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Jornal da UFRJ: Nos anos de 1980, no bojo do movimento social pela Reforma Sanitária, havia uma luta por mudanças na formação dos profissionais de saúde. Na essência, que modificações eram pretendidas naquele momento?

Dulce Chiaverinni: A crítica que fazíamos era dirigida para a for-mação do profissional de saúde nos limites do hospital. Isso im-pede a sua visão acerca da reali-dade do processo saúde-doença. O que acontece, então? Esse pro-fissional vê tão somente a doença e, muitas vezes, vê apenas o órgão doente. Ele não tem a concepção de todo o processo de produção da saúde, qual a sua relação com o meio social e o meio ambiente. A discussão se dava em torno da necessidade de formação do aluno no centro de saúde da comunida-de, onde ele pudesse conviver com questões primárias, com a promo-ção e a prevenção da saúde. Enfim, que enxergasse a saúde antes da doença ou a compreendesse como um processo único e integrado. A ideia era que a formação fosse me-nos biomédica. Jornal da UFRJ: Como se constituiu a União Universidade Unidade e In-tegração Docente-Assistencial (Rede Uniida), esse movimento que prega-va uma mudança de paradigma na formação do profissional da saúde?

Dulce Chiaverinni: Ele começou como Rede IDA. Isto porque os projetos se chamavam Integra-ção Docente–Assistencial. A Rede Uniida surgiu quando se percebeu que existia mais um componente nesse processo, que era a comu-nidade organizada. Eu fui uma das fundadoras e assumi recente-mente a presidência da Rede, que hoje é uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). Foi a partir do projeto Docente–Assistencial que aconte-cia na UFRJ e em outras univer-sidades do Brasil, nas décadas de

1970 e 1980, que inventamos essa Rede. Hoje, essa denominação de rede é comum em função do desen-volvimento das novas tecnologias. A nossa ideia era exatamente tra-balhar de uma forma que os ‘nós’ de ligação fossem autônomos, mas que em alguns momentos tivessem um pensamento integrado. Naque-la época, isso era uma novidade.

Jornal da UFRJ: Quais as grandes bandeiras de todo esse movimento na área de saúde que acabaram sen-do incorporadas à Constituição de 1988?

Dulce Chiaverinni: A questão da integralidade dos serviços, a visão da saúde e da doença enquanto processo e a univer-salidade dos servi-ços de saúde, entre outras. Esses são al-guns dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Jornal da UFRJ: E como a senhora ava-lia o SUS, depois de 25 anos?

Dulce Chiaverinni: A minha avaliação é que houve avan-ços imensos. É claro, no entanto, que há necessidade de me-lhorias. Na política de Saúde da Família, que prioriza a aten-ção básica, foram obtidas algumas conquistas. Mas ainda não se mudou a concepção hegemônica, no Brasil e no mundo, de carrear praticamente todos os recursos da área da Saúde para os grandes hospitais e para tratamen-tos que poderiam ser menos custo-sos com uma maior cobertura na área da atenção básica.

Jornal da UFRJ: Que tipo de medi-da poderia ter grande impacto na melhoria do SUS?

Dulce Chiaverinni: Precisamos avançar muito, por exemplo, na qualificação das pessoas. Um exem-plo é o Programa de Saúde da Fa-mília, que hoje é bastante extensi-vo, tem milhares de equipes no país todo. Mas existe uma enorme difi-culdade de conseguir médicos para fazer parte dele. Temos pessoas mal treinadas e pouco qualificadas para esse programa porque, infelizmen-te, a universidade ainda não forma profissionais com o perfil adequa-do para desenvolverem esse tipo de atividade. Hoje, por exemplo, eu coordeno, na Universidade Esta-dual do Rio de Janeiro (UERJ), um curso de especialização em Saúde da Família. Qualificar profissio-

nais que atuem nessa área é fun-damental para resolvermos muitos problemas ligados à saúde coletiva. Não adianta o profissional entender profundamente de alguns aspectos cardiológicos ligados à atenção ter-ciária e não saber como tratar uma hipertensão arterial. Para mudar essa realidade, a universidade pú-blica tem um papel fundamental.

Jornal da UFRJ: Mas boa parte dos estudantes parece querer sair da fa-culdade e abrir seu próprio consul-tório para ganhar dinheiro, fugindo dos baixos salários da rede pública.

Dulce Chiaverinni: É uma ilusão esse caminho. Na minha época, o convênio de grupo vinha cadastrar

o médico, ofere-cendo R$ 30,00 por consulta e ele se negava porque cobrava R$ 200,00 ou R$ 300,00. Hoje, basicamente todos os médicos vivem à base de convênios. O pro-fissional que hoje ganha dinheiro com apenas um consultório inde-pendente e ”vai muito bem, obri-gado” não existe mais. Claro que há algumas especia-lidades que ainda dão bons rendi-mentos, como a Cirurgia Plástica,

por exemplo.

Jornal da UFRJ: E a sua experiên-cia na coordenação do Programa de Saúde da Família no Rio de Ja-neiro?

Dulce Chiaverinni: Em 1999, fui chamada pelo então secretário es-tadual de Saúde, Gilson Cantarino, para ser assessora técnica da Secre-taria e uma das minhas atribuições foi coordenar o Programa de Saúde da Família. Na época, apenas 3% da população do estado era aten-dida em casa pelos profissionais da saúde. Uma das nossas prioridades foi incentivar os municípios a im-plantarem o PSF e quando saí da Secretaria, em 2002, a cobertura no Estado já chegava a 30%.

Jornal da UFRJ: Como a senho-ra avalia os modelos de gestão da saúde que existem no estado e nas prefeituras, que adotam processos de terceirização de mão-de-obra, pagando mais a profissionais con-tratados do que a concursados?

Dulce Chiaverinni: Considero isso um absurdo completo. Primeiro, não entendo como esse processo foi

tão rapidamente absorvido na área da saúde. Ele começa nas empresas que fazem serviços de limpeza e termina no médico e no enfermei-ro. Precisamos abrir novos concur-sos públicos, privilegiar a carreira e qualificar pessoal. A terceirização, embora não impeça a qualificação, acaba por prejudicá-la. Foi até bom você levantar a questão porque essa modalidade de contratação também ocorre no Programa Saúde da Fa-mília, que já tem uma dificuldade grande de qualificar pessoal e sofre com a mobilidade de profissionais.

Jornal da UFRJ: E o problema de transferir a própria gestão da saúde para Organizações Não Governa-mentais (ONG). Isso também não é uma forma de privatização disfarça-da desse serviço público essencial?

Dulce Chiaverinni: O município de São Paulo, por exemplo, não faz a ges-tão do PSF. Ele entregou tudo para as ONGs e para a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que adminis-tra a maior parte do Programa. Não sei se é uma privatização disfarçada, mas não tenho dúvida de que é uma prática nociva na área da saúde.

Jornal da UFRJ: Hoje, as diretrizes curriculares dos nossos cursos estão ou não adequadas à realidade brasi-leira?

Dulce Chiaverinni: Existem muitas propostas interessantes, mas ainda no papel. Houve mudanças nas dire-trizes curriculares na área da saúde e também está havendo uma mobiliza-ção para adequá-las e colocá-las em prática, mas a resistência é grande. O Ministério da Saúde tem políticas que favorecem a integração entre o ensino e as redes de atendimento, como o Pró-Saúde, que destina re-cursos para as instituições aplicarem em programas de estágio em atenção básica no SUS. Há ainda um fórum de entidades de ensino da saúde e outras formas de atuação para que essas diretrizes sejam aplicadas.

Jornal da UFRJ: De que tipo de pro-fissional da saúde o Brasil precisa?

Dulce Chiaverinni: De um profis-sional que tenha a real noção do que é o processo de saúde-doença. Ele precisa compreender que a doença não é apenas algo físico ou biológi-co, que precise ser tratada dentro dos hospitais. Esse profissional deve perceber a importância da preven-ção e da promoção da saúde. Deve também estabelecer vínculos com os seus pacientes e entender a realidade da comunidade onde atua, reconhe-cendo inclusive a importância de outras instituições, como a escola e a igreja. O Brasil precisa de um profissional que veja a saúde, não a doença.

“Eu partilho da visão de universidade da

atual gestão e confio plenamente no

trabalho das pessoas que estão à frente da Próreitoria de

Extensão. Superou-se aquela fase em

que a Extensão era considerada um

‘balcão’ de projetos de empresas, nos

quais os estudantes se envolviam como

estagiários.”

Entrevista

Page 17: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

17Agosto 2009

Em 22 de maio uma operação policial no morro do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, resultou na morte de três pessoas. Na imagem espetacular da tevê, um helicóptero da polícia iça e leva para

longe os corpos em sacos plásticos negros. No meio do fogo cruzado entre policiais militares e traficantes, mais de quatro mil moradores da comunidade tentam se abrigar em becos e vielas. Cerca

de 600 crianças são mantidas nas escolas, local de refúgio quando o lar já não é tão doce assim.

Segurança

Notícias como a da ope-ração policial no Morro do Pavão-Pavãozinho

são cada vez mais comuns nos jornais cariocas. Somadas a elas, declarações como a do governador Sérgio Cabral Filho de que “as camadas pobres da população converteram-se numa fá-brica de reposição de mão-de-obra para o exército da criminalidade” reverberam e ganham matizes de verdades incontestáveis. Na tentati-va de reassumir o controle das co-munidades dominadas por grupos criminosos, Cabral e seu secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, estão aplicando o que tem sido chamado de “ação pacificadora” em favelas como Santa Marta, Cha-péu Mangueira, Babilônia e Cida-de de Deus. A operação consiste na ocupação desses locais por tropas da Polícia Militar, na tentativa de inibir a ação de grupos criminosos.

Pedro Barreto

Polícia Para quem?

Page 18: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

18 Agosto 2009

Não obstante as boas intenções ale-gadas, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ), presidente da CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), critica a manutenção de uma lógica belicista como forma de controle. “É claro que a atual política é melhor do que a anterior. Mas a favela continua sendo um caso de polícia. Apenas trocaram a arma do traficante pela do policial”, comparou o parlamentar, que recebeu recentemente moção de solidariedade do Conselho Universitário da UFRJ. A causa foi a des-coberta, por parte da Secretaria de Segu-rança Pública do Estado, de um plano de assassinato que estaria sendo tramado contra ele por facções de milicianos.

“Hoje, no Rio de Janeiro, no mínimo um terço da população vive sob regras que não são estabelecidas pela lógica do Estado”, apontou Freixo, em recente de-bate no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ. Na ocasião, o deputado apresentou algumas con-clusões do relatório da CPI que pediu o indiciamento de 225 pessoas e propôs 58 medidas para a extinção de grupos armados, compostos por agentes do Es-tado que detêm o controle de 171 comu-nidades no Rio. Também chamada de “polícia mineira” e até de “autodefesa co-munitária” pelo ex-prefeito César Maia, as milícias consolidaram seu comando através do poderio bélico, do monopólio do comércio de gás, tevê a cabo e trans-porte alternativo e até pela representação política na Câmara dos Vereadores e na Alerj.

O parlamentar contestou também a ausência de um debate profundo com a sociedade e, especificamente, com os moradores das comunidades ocupadas. “A favela tem que ter policiamento, mas sob a lógica de proteção e autonomia,

não a lógica de controle”, avalia Freixo. Para ele, a polícia é o único braço ar-mado presente nessas comunidades. “O Complexo da Maré tem 200 mil mora-dores e tem apenas uma escola pública. Quais são as ações do Estado na área de Cultura, Saúde, Educação e Esporte nas favelas?”, questiona o deputado.

MurosParalelamente ao policiamento os-

tensivo nas favelas por parte do Governo do Estado, a Prefeitura Municipal come-ça a aplicar o chamado “Choque de Or-dem”. Constitui-se, entre outras medidas, na construção de muros em algumas co-munidades, como a Rocinha, tida como a maior favela da América Latina, com população estimada em 60 mil pessoas, embora dados extraoficiais indiquem o dobro deste número. O objetivo alega-do é estabelecer limites ecológicos para

conter a expansão de novas edificações. Apesar da propalada boa vontade do governo do Estado e da Prefeitura, a opinião dos moradores não é unânime. Recente plebiscito naquela comunidade apontou a ampla rejeição pela constru-ção da barreira físico-territorial. A pres-são teve como efeito a redução do muro de três metros para 60 centímetros.

A associação com construções seme-lhantes como na fronteira entre México-EUA, Israel-Palestina, Berlim Ocidental-Berlim Oriental é imediata. “Esta é mais uma indicação de como o Governo está perdido nessa história. Ele propõe um novo modelo de ocupação que aponta para um novo diálogo com a sociedade, mas assume que existem duas cidades e constrói um muro. Claro que vão dizer que o motivo é a imposição de ecolimi-tes, mas o efeito simbólico é muito forte, porque ele começa exatamente nas fa-

velas da Zona Sul”, afirma Itamar Silva, jornalista e coordenador de projetos do Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas (Ibase).

Já Leonarda Musumecci, professora do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, avalia necessária a imposição dos cha-mados ecolimites. “Realmente é muito antipático porque existe uma conotação de isolamento, de transformação dos es-paços habitados em guetos. Mas existe um problema ecológico que não pode ser ignorado. Sejam moradias de clas-se média ou da favela, elas não podem destruir a mata. O que se deve discutir é como fazer isso. Esses limites precisam ser vistos por satélite, o que não é pos-sível com as cercas vivas. Os muros têm essa função, mas eles poderiam ser feitos de uma forma menos agressiva, sem essa cara de campo de concentração”, opina a docente.

Para Gabriela Lema, professora da Escola de Serviço Social (ESS), o uso do discurso ecológico serve como forma de implementar um modelo segregador. “Dificilmente os muros vão resolver a questão ambiental. A preservação não deve acontecer somente nas favelas. Há moradias de classe média que também estão ocupando áreas de proteção. Deve-se desenvolver uma política de conscien-tização ecológica em toda a cidade”, de-fende a professora, que já participou de estudo sobre política urbana na Rocinha e hoje atua na Favela da Maré.

Mídia“A favela nunca foi reduto de margi-

nal/ Ela só tem gente humilde e margi-nalizada/ Mas essa verdade não sai no jornal”, já cantava Bezerra da Silva, no samba “Eu sou favela”. Apesar de per-nambucano de nascimento, o artista conhecia bem a realidade da miséria no

Pm: 200 anos mantendo a ordem

Treze de maio é conhecido no Brasil como o dia da Abolição da Escravatura. No entanto, este dia também marca o surgimento de uma corporação de laços estreitos com o regime escravocrata: a Polícia Militar do Rio de Janeiro. Em 1809, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, a instituição foi criada para proteger a nobreza e preservar as atividades econômicas da capital do Império, que tinha no trabalho da população negra e espoliada sua principal fonte de mão-de-obra.

Marcos Bretas, professor de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, explica o surgimento e a tradição de uma polícia violenta e arbitrária: “Ela foi trazida nos moldes da de Lisboa, como uma solução para o policiamento urbano, para lidar com uma população muito diferente. Os policiais saem das camadas populares livres, em grande parte compostas por negros e mulatos. Este grupo vai ser recrutado pra fazer policiamento ostensivo, com presença na rua e fará isso com um modelo muito precário, extremamente violento.”

Com o fim da escravidão, os negros ganharam a liberdade, mas permaneceram marginalizados socialmente. Até hoje, 90% da população carcerária do país é composta por negros, pobres, analfabetos e pessoas excluídas socialmente, segundo estatísticas da Anistia Internacional.

Segurança

Crianças brincam no campo de futebol do Morro Santa Marta, primeira favela a receber policiamento permanente do Governo do Estado.Crianças brincam no campo de futebol do Morro Santa Marta, primeira favela a receber policiamento permanente do Governo do Estado.Crianças brincam no campo de futebol do Morro Santa Marta, primeira favela a receber policiamento permanente do Governo do Estado.

Page 19: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

19Agosto 2009

Favela, organismo Pensante

O Ministério da Justiça vai realizar, entre os 27 e 30 de agosto, em Brasília, a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg). O objetivo é reunir diversos segmentos da sociedade e consolidar uma política nacional para o setor. Segundo o texto-base, “a função primordial é oferecer elementos para essa interlocução e criar uma base comum de informações e conhecimentos, a partir da qual os debates possam acontecer.”

Para antecipar o debate e levar propostas ao evento, foi promovido em junho último, no Rio de Janeiro, o “Seminário Temático Impasses da Política Criminal Contemporânea”, que reuniu juristas e especialistas da área. Entre eles, o procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Fernando Galvão que criticou a aplicação de “uma política criminal restrita a uma política penal”.

Segundo ele, “o discurso punitivo atende aos propósitos de um modelo neoliberal, que tem na pena um rito sagrado de soluções”. O procurador citou a Emenda Constitucional número 45, que reforma o Poder Judiciário. Para Galvão, “o projeto, que atende a uma série de exigências do Banco Mundial, foi aplaudido pela imprensa brasileira”. O magistrado deu como exemplo a criação, em 2004, da ‘súmula vinculante’, jurisprudência que torna obrigatória a aplicação pelos juízes de todos os tribunais do país de decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal.

Propostas inovadoras e que prometem suscitar um amplo debate foram apresentadas no encontro, como a de Vera Regina de Andrade, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-doutora em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de Buenos Aires (Argentina), de abolir a pena de prisão para casos de furto. “Em Santa Catarina, 70% dos casos de presos é por causa de furtos, roubo e drogas”, expôs a pesquisadora.

Rio de Janeiro; viveu como mendigo nas ruas de Copacabana, antes de se mudar para a Favela do Cantagalo. O que talvez o bom malandro quisesse dizer em seus versos é como a imprensa retrata as fave-las, sempre em destaque nos jornais de grande circulação como local de conflito armado. “Embora os meios de comuni-cação digam que todos são vítimas, cada vítima preferencial tem uma cor e faz parte de uma faixa de renda. Isto signi-fica que há menos privilégios para as de baixa renda do que para as da classe alta”, argumenta Paulo Vaz, professor da Esco-la de Comunicação (ECO).

Vaz compara a política do “choque de ordem” à experiência da “tolerância zero”, implementada em Nova Iorque pelo então prefeito Rudolf Giuliani, nos anos 1990. Segundo o professor, ambas foram largamente exaltadas pela im-prensa. “Vários jornais defendem essas ações de tirar mendigo da rua. Os meios de comunicação parecem mais uma vez dar legitimidade a soluções que sejam conservadoras e autoritárias sem levar em conta as consequências sociais para quem sofre, para quem não tem muito poder político”, avalia o pesquisador.

Autor de trabalhos que analisam o papel da imprensa quando o assunto é violência, Paulo Vaz destaca o da mídia na imposição de uma política do medo, “que reforça o Estado e, em particular, o conservador” como “única solução pos-sível para os grupos que se pensam em risco”. Para ele, “toda notícia tem uma ló-gica que diz como aquele crime poderia não ter acontecido. As falhas são sempre de uma polícia corrupta, que não intimi-da o suficiente, ou ‘a prisão não contém os bandidos’ ou ‘o legislativo é muito le-niente para punir as pessoas como deve’. Então as soluções sempre tratam de criar mais leis, mais rigor e cada vez mais fazer com que as pessoas tolerem soluções de força”, comenta Vaz.

Classe médiaMas como as classes média e alta en-

xergam o problema da criminalidade? De que maneira a proximidade entre favela e asfalto é vista pela população economicamente favorecida? “A classe média se move por interesses específicos dela. Somente se preocupa se o seu patri-mônio está protegido. A nossa sociedade está muito apartada e a classe média re-produz esse sentimento. É preciso exer-cer mais a solidariedade. Cuidar para que ninguém sofra violência na cidade”, defende Itamar Silva, que é morador do Morro Santa Marta.

Ele lembra ainda as medidas tomadas pelos governos estaduais, entre as déca-das de 1940 a 1960, de levar a população das favelas da Zona Sul para locais afas-tados da cidade. “As pessoas são sensíveis a notícias sobre violência. Elas ajudam a defender temas como a remoção das favelas, que eu achei que já tivesse desa-parecido”, afirma Itamar. A “limpeza so-cial” a que Silva se refere pôs fim a fave-las como a do Largo da Memória (entre Leblon e Gávea), Parque da Catacumba (Lagoa), Favela do Esqueleto (onde hoje está situada a UERJ) e da Praia do Pin-to (Leblon). Esta última virou cinza, em 1969, por um incêndio até hoje não es-clarecido, durante o governo de Negrão

de Lima. A comunidade da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, foi erguida para abrigar parte da população “removida”.

Leonarda Musumecci relativiza o perfil conservador da classe média. “É difícil generalizar porque ela não é um segmento homogêneo. Existem diversos grupos com visões ideológicas diferen-tes, há a classe média da Zona Sul, a da Tijuca, a da Zona Oeste... A gente nor-malmente associa a classe média a uma visão conservadora, mas não seria justo atribuir esse pensamento ao segmento como um todo”, afirma a docente, mo-radora de Santa Teresa. No entanto, a professora ilustra essa visão conserva-dora com um exemplo recente. “A gen-te percebe uma visão muito utilitária, muito centrada no próprio umbigo em reações ao filme Tropa de elite (José Pa-dilha, 2007), em que o público aplaudia o capitão Nascimento. A violência que está na favela não interessa. Azar do pobre que está morrendo”, exemplifica Musu-mecci.

Para Paulo Vaz, parte significativa da classe média “não se vê como parte do problema e como se a responsabilidade (pela violência generalizada) fosse ape-nas do Estado e dos bandidos. Como se pensasse: ‘Eu não tenho nada a ver com isso. A única coisa que eu tenho a ver com isso é ser vítima, jamais ser solução’”, argumenta o pesquisador, que recorre mais uma vez ao conceito da política do medo para explicar como a classe média se coloca em relação ao problema. “A ausência do Estado é uma visão simplifi-cada e que desresponsabiliza os cidadãos de classe média e os coloca como vítimas e não como corresponsáveis. Esta res-ponsabilidade vem não do fato de con-sumirem drogas, mas por participarem de uma sociedade que é extremamente desigual”, conclui o docente.

conFerência nacional de segurança PúblicaA professora, que também é magistrada, aponta para uma saída pacífica para a problemática da violência: “temos que partir para uma política de não confrontação.”

O documento final do encontro apresenta uma série de proposições para a questão da política criminal no país. Eis os sete princípios apresentados:

1) a política criminal não se reduz à política penal, esta é apenas parte integrante daquela;

2) os Direitos Humanos possuem dupla função para o sistema penal, a de orientar o seu objeto e a de impor limites à sua atuação;

3) a vítima deve ter papel relevante para o desenvolvimento das políticas criminais;

4) a adoção de políticas alternativas ao encarceramento deve ser prioritária;

5) o processo penal é o meio para viabilizar a intervenção estatal nos conflitos mediante o respeito aos princípios democráticos constitucionais, de forma que seus procedimentos não se tornem um fim em si mesmo;

6) as políticas criminais devem ser construídas e avaliadas a partir de dados da realidade;

7) as políticas criminais devem ser desenvolvidas a partir da concepção de que o fenômeno considerado como crime é complexo, multifatorial e conflituoso.

O jornalista Itamar Silva, coorde-nador de projetos do Instituto Brasi-leiro de Análises Sócio-Econômicas (Ibase) está à frente do grupo ECO, entidade de base, sem fins lucrati-vos, situada no Morro Santa Marta. Criado em 1976, o grupo se propõe a um debate acerca da própria fave-la, através da realização de oficinas, para crianças e adolescentes, como de música, poesia, informática e produção de cinema e vídeo.

Itamar destaca uma pesquisa re-cente realizada pela ONG Pró-Saber com jovens do ECO, em que avaliou como os meninos do Santa Marta viam a sua própria comunidade. “Eles destacaram os elementos po-sitivos de morar na favela. Essa de-monstração de orgulho pela comu-nidade é algo muito importante que mostra que o trabalho está dando resultado”, informa o jornalista.

Segurança

reprodução Web

A Favela da Praia do Pinto, situada entre os bairros da Lagoa e Leblon, foi extinta por um incêndio até hoje não esclarecido, em 1969.

Page 20: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

20 Agosto 2009

na co

rteHolofotesEm pouco mais de um ano

como presidente do Supre-mo Tribunal Federal (STF),

o ministro Gilmar Mendes encarnou com desenvoltura o insólito papel de moralizador dos poderes da Repúbli-ca. Extrapolando as suas atribuições, segundo alguns especialistas, dirigiu críticas ao Congresso, à Polícia Fede-ral, ao Ministério Público, a juízes de

Polêmicas no Supremo Tribunal Federal envolvendo ministros acirra debate acerca das atribuições e composição do órgão.

Coryntho Baldez

primeira instância e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Chegou mesmo a passar um “pito” no presidente da República quando veio a público a denúncia, ainda não comprovada, de que uma conversa telefônica sua com o senador Demóstenes Torres (DEM/GO) teria sido grampeada.

Atuando como comentarista de temas políticos e jurídicos explosivos, Gilmar Mendes levantou desconfian-ças sobre a sua imparcialidade para julgar e pôs o Supremo Tribunal Fe-deral nas manchetes da grande mídia. Porém, depois que outro ministro da corte, Joaquim Barbosa, o acusou de possuir “capangas” no Mato Grosso, a situação se inverteu. As mesmas redes televisivas e jornais que davam ampla repercussão às suas manifes-tações silenciaram sobre a acusação.

Justiça

Page 21: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

21Agosto 2009

Emenda propõe mandato para ministros

Um mandato de 11 anos para os ministros do Supremo Tribu-nal Federal, sem recondução ao cargo, é o que está na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 342, apresentada à Mesa Diretora da Câmara Federal pelo deputado Flávio Dino (PCdoB/MA), em 25 de março.

Pela proposta, que tramita na Comissão de Constituição e Jus-tiça e de Cidadania (CCJC), o presidente da República poderá indicar cinco ministros, desde que a escolha seja aprovada por três quintos dos membros do Se-nado. O STF poderá indicar dois nomes, o mesmo número que cada uma das casas do Congres-so: Câmara Federal e Senado. No sistema atual, a escolha é uma atribuição exclusiva do presidente da República.

De acordo com a PEC 342, to-das as escolhas, obrigatoriamente, deverão ser feitas a partir de listas tríplices apresentadas pelos Su-perior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Conselho Nacional de Jus-tiça (CNJ), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e colegiados das faculda-des de Direito, desde que tenham programa de doutorado há 10 anos.

Em sua justificativa, Flávio Dino afirma que, se as princi-pais funções exercidas pela Corte Constitucional são tão claramen-te políticas, é necessário, em res-peito à própria noção de Repú-blica, que haja alternância entre aqueles que as exercem. Segundo ele, a proposta reforça “a idéia de independência e neutralidade po-lítica dos membros dos tribunais constitucionais, pois os afasta da perigosa e traiçoeira expectativa de reeleição.”

Esses sucessivos episódios revelaram as fissuras em um órgão visto pela so-ciedade como um corpo fechado e cor-porativo, além de provocar polêmicas sobre o raio de ação da mais alta corte da Justiça brasileira e o seu modo de funcionamento.

Crise de legitimidadeJosé Ribas Vieira, professor da Fa-

culdade de Direito (FD) da UFRJ, clas-sifica como gravíssimo o conflito entre o presidente do STF e o ministro Joa-quim Barbosa. Segundo ele, o fato ex-põe uma crise de legitimidade do ór-gão máximo do Judiciário brasileiro. “O conflito dos dois ministros revelou para a sociedade brasileira a ruptura. Creio que para alguns segmentos so-ciais havia um espírito de sacralidade do Supremo e isso acabou”, destaca o professor.

Doutor em Direito pela UFRJ, o docente atribui o atual silêncio sobre o episódio a uma tentativa do STF de “superar” a sua crise institucional, mantendo um discurso de unidade e de prestígio da corte. Ele lembra, ain-da, que Gilmar Mendes tentou forçar a Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo) a en-quadrar o juiz Fausto de Sanctis, que pediu por duas vezes a prisão preven-tiva do banqueiro Daniel Dantas. O segundo pedido foi logo depois de o Supremo ter concedido habeas-corpus ao dono do banco Opportunity, acusa-do de corrupção. “A reação dos juízes federais dessa jurisdição e do Ministé-rio Público Federal, na sua totalidade, apontava para o rompimento. Penso que o STF tem consciência da gravida-de do momento e por essa razão opta pelo silêncio, certo low profile institu-cional”, avalia Ribas Vieira, que é es-pecialista em Crítica Jurídica e Direito Constitucional.

Ativismo jurisdicionalRibas Vieira considera urgente re-

pensar a estrutura de funcionamento de muitos órgãos da Justiça, notada-mente dos tribunais superiores fede-rais. Ele lembra a importância, neste momento de expansão dos poderes do STF, do Projeto de Emenda Constitu-cional (PEC) do ex-juiz federal e depu-tado Flavio Dino (ver box), que propõe mandato para os ministros do órgão e novos critérios para a sua composição.

O constitucionalista acusa o Supre-mo de praticar o que chama de ativismo jurisdicional, que representaria uma preocupação do órgão não de efetivar direitos, mas de alargar as suas atri-buições. “A Lei 9.868/99, disciplinando a jurisdição constitucional no Brasil, a Emenda Constitucional nº 45/04, que instituiu a denominada súmula vincu-lante, e a nova composição do Supremo a partir de 2003 acabaram por gerar esse seu papel de protagonismo institu-cional”, analisa o docente.

A súmula vinculante e o instituto de repercussão geral são os principais instrumentos dessa nova configuração

do Supremo como “tribunal de grandes causas” – nas palavras do seu próprio presidente, Gilmar Mendes. A reper-cussão geral permite que o Supremo reúna processos relativos a um mesmo tema e os julgue no atacado. Desde que foi adotada, no começo do ano passa-do, ela foi reconhecida para 137 teses. A súmula vinculante obriga as outras instâncias do Judiciário a seguir as de-cisões do STF – já são 16 o número de súmulas vin-culantes. Esses dados foram di-vulgados pelo próprio Supre-mo, antes do re-cesso, no último dia 2 de julho. O balanço do órgão mostrou, ainda, que o tribunal julgou 29 grandes teses, enquanto o número total de decisões fora des-sa classificação caiu de 62 mil para 53 mil no segundo semes-tre deste ano, em comparação com o mesmo período de 2008.

Sem bolsa e espada

Diego Wer-neck Arguelhes, professor da Es-cola de Direito da Fundação Getú-lio Vargas (FGV), no entanto, afir-ma que o Judici-ário sozinho não pode fazer muito. Segundo ele, em todos os países, quando o poder da justiça extra-pola seus limites, isso não acontece sem a conivência e o encorajamen-to de outros po-deres políticos. Cita a frase fa-mosa dos autores da Constituição norte-americana de que o poder judiciário não tem nem a bol-sa nem a espada para lembrar que os tribunais não decidem orçamento e nem dispõem de polícia ou exército. “O poder judiciário apenas toma decisões baseadas na Lei. Agora, como elas serão cumpridas, o timing da sua implementação, a obedi-ência e o impacto que terão são desdo-bramentos que escapam à sua alçada”, frisa o especialista.

Doutorando em Direito na Uni-versidade de Yale (EUA), Arguelhes estuda a mudança no perfil da corte suprema desde os tempos da ditadura militar. Ele surpreende ao dizer que, no Brasil, certa timidez no uso dos poderes do órgão foi o principal lega-do dos militares no modo de funcio-namento do Supremo. “Era mais fácil fazer essa constatação nos anos 1990.

Mas isso é inte-ressante porque é exatamente o contrário de um poder despóti-co e ilustra bem como o STF, mesmo que seja uma instituição judicial, com procedimentos próprios, é parte de um sistema político maior”, comenta Wer-neck Arguelhes.

Discrição necessária

Para José Reinaldo Lopes, professor de Di-reito da Univer-sidade de São Paulo (USP), o Poder Judici-ário deve agir apenas ao ser provocado pela sociedade. Por isso, sustenta que o presiden-te do Supremo não deveria dar opiniões a res-peito de assun-tos gerais e po-lêmicos, já que o tribunal teve poderes am-pliados e pode ser chamado a julgá-los. Entre os julgamentos recentes consi-derados impor-tantes, estão a definição dos li-mites da reserva Raposa Serra do Sol, a extinção da Lei de Im-prensa, a proi-bição da impor-tação de pneus usados e o fim da exigência de diploma para

jornalista. Em relação a esse último tema, aliás, o ministro Gilmar Mendes já se apressou em defender publica-mente o caminho da desregulamenta-ção para inúmeras outras profissões, já que considerou a obrigatoriedade do diploma necessária para poucas áreas, como Engenharia, Medicina e Direito.

Essa ampliação de atribuições do Supremo preocupa José Ribas Viei-ra. Segundo ele, em uma reunião administrativa do STF, realizada em maio, os ministros – à exceção de Joaquim Barbosa – aprovaram a mudança do Regimento Interno para autorizar o presidente a ter di-reito a dois votos em caso de empate nas votações. “Com o temor de falta de quórum no julgamento do pedi-do de extradição de Cesare Batisti, o Supremo aprovou esse absurdo institucional”, critica Ribas Vieira. O presidente do órgão defendeu-se afirmando que a proposta foi feita pelo ministro Celso Peluso. Para Ri-bas Vieira, a decisão agrava o perfil de ativismo jurisdicional da corte, que atua a partir do que chama de “princípio de seletividade” em rela-ção às demandas da sociedade bra-sileira.

Controle externo O modelo atual de funciona-

mento do Supremo, para o consti-tucionalista, não é adequado. “Re-cepcionamos do modelo americano. Essa foi a concepção adotada na trajetória republicana. Fracassamos por pressão do lobby de termos um Tribunal Constitucional, aprovado pela Constituição de 1988. Não há dúvida que a sociedade brasileira hoje é mais conflitiva e é necessário uma mudança radical no perfil dos critérios de composição do STF”, defende o professor da FD.

José Ribas concorda com a pro-posta da PEC de estabelecer em lei um mandato para os ministros do órgão, como acontece em países da Europa. E afirma que a universidade brasileira e a sociedade civil devem pressionar por uma mudança radi-cal no STF. “Com a abertura da vaga do ministro Eros Grau em agosto de 2010, manteremos esse modelo de escolha superado, ou procuraremos pelo menos seguir a linha de trans-parência e de debate, como ocorre na indicação de Sonia Sotomayor pelo presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, para a Corte Supre-ma Americana?”, questiona.

Em relação à ideia de controle externo do Judiciário, o professor reconhece que o Conselho Nacional de Justiça – presidido por Gilmar Mendes e instituído pela emenda constitucional 45/04 – não atendeu às reais demandas da sociedade. “Nele, não foram assegurados assen-tos para uma maioria da sociedade civil brasileira. A sua presidência cabe ao presidente do STF. Por essa razão, a Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, com a participação das faculdades de Direito da UFRJ e da Universida-de de Brasília (UnB), está propondo a criação de um centro de estudos do Judiciário, denominado de Observa-tório da Justiça Brasileira”, completa o professor.

Justiça

Page 22: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

22 Agosto 2009

Quempirateiaquem?

Navios de diversos países têm sido sequestrados no litoral da Somália, tornando a região a rota marítima mais perigosa do mundo. No entanto, esses que hoje pirateiam embarcações estrangeiras foram vítimas da

pilhagem em seus mares.

Mundo

Page 23: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

23Agosto 2009

Bruno Franco

Soa como incrível anacronis-mo, mas a pirataria voltou a preocupar as frotas mercan-

tes de diversos países e a exigir uma solução por parte da comunidade internacional. Os piratas contempo-râneos atuam, sobretudo, no nordeste do continente africano, na região co-nhecida como Chifre da África.

Embora casos de pirataria não estejam restritos a essa região, nela ocorreram dezenas de sequestros de barcos e navios somente esse ano (cerca de 80 em 2008), e alguns tive-ram como alvo grandes embarcações carregadas de valiosas mercadorias, como ajuda humanitária ou petróleo (um petroleiro saudita chegou a per-manecer capturado por dois meses).

Como forma de resposta ao pro-blema, navios de guerra de países da União Européia, da Índia e dos Esta-dos Unidos deslocaram-se para o Gol-fo de Áden – que banha o Chifre da África – entre a Somália e o Iêmen.

O governo de Mogadíscio, região da Somália, encontra-se em colapso desde a guerra civil nos anos 1990. Em meio à estagnação econômica, ao desemprego de nove milhões de ha-bitantes, dependendo de ajuda huma-nitária para sobreviver, a Somália não mostrou forças para reagir à prolife-ração de atividades ilegais em seu mar territorial.

Crimes que o noticiário não mostraDe acordo com Ahmedou Ould-

Abdallah, enviado da ONU à So-mália, entrevistado pelo jornalista Johann Hari, do The Independent, resíduos tóxicos de hospitais e indús-trias europeias têm sido despejados nas águas azul-safira do litoral soma-li. Trata-se de chumbo, cádmio e mer-cúrio, dentre outros metais pesados que contaminam o Golfo de Áden, gerando sintomas de contaminação radioativa nas populações litorâneas, como erupções cutâneas e má-forma-ção de bebês. Segundo os relatos de Ould-Abdallah à Hari, as autoridades europeias fazem vista grossa ao cri-me ambiental, e até o momento não houve atividade de descontaminação, prevenção nem, sequer, compensação pelos danos infligidos à população e ao meio-ambiente.

Concomitantemente ao absurdo despejo de lixo tóxico, navios estran-geiros exploram uma importante fonte de trabalho e renda do povo do litoral somali: o pescado. Navios pesqueiros ilegais retiram, anualmente, do Golfo de Áden, mais de 300 milhões de qui-los de atum, camarão e lagosta. Como forma de dissuadir as empresas pes-queiras européias, pescadores somalis passaram a capturar essas embarca-ções. Daí seguiu-se uma escalada de vulto e ousadia nessas operações.

Chamados de piratas pela impren-sa internacional, preferem chamar a si mesmos de Guarda Costeira Voluntá-

ria. Sugule Ali, porta-voz da “guarda”, afirmou, em entrevista ao New York Times, que seus companheiros não se consideram bandidos. “Consideramos bandidos aqueles que, ilegalmente, pescam, despejam lixo e transportam armas em nossos mares. Nós estamos simplesmente patrulhando nossas águas. Pense em nós como uma guar-da costeira”.

Uma nação em colapso desde o seu surgimento

Para Franklin Trein, professor do Programa de Estudos Europeus do Instituto de Filoso-fia e Ciências So-ciais (PEE–IFCS) da UFRJ, a diferença de pontos de vista – que caracterizam as mesmas pessoas como guardas ou piratas – explica-se pela longa história de exploração colo-nialista a qual estão submetidos os so-malis desde o sécu-lo VIII, quando os primeiros árabes da Península Arábica se instalaram nas costas africanas do Golfo de Áden.

Desde então e até o desembarque de uma força mul-tinacional das Na-ções Unidas com 28 mil soldados, no início de 1993, “a qual se seguiu mais uma invasão do território somali por um grupo de elite dos fuzileiros navais norte-americanos, ainda no mesmo ano, os habitantes daquela região não conheceram mais o que é paz e liberdade”, explica Trein.

Segundo ele, de 1976 em diante, a República da Somália (indepen-dente de colonos ingleses e italianos desde 1960) se tornou mais con-turbada. “As disputas entre os clãs locais, apoiados por interesses de todos os lados, dos vizinhos africa-nos – Etiópia e Quênia –, dos árabes – em primeiro lugar a Arábia Saudi-ta –, dos europeus – com destaque

para ingleses e franceses, dos Esta-dos Unidos e da União Soviética, até o seu desaparecimento, não apenas destruíram a infraestrutura do Esta-do somali, como foram responsáveis pela morte de mais de dois milhões de pessoas, entre elas, 500 mil crian-ças”, relata o pesquisador.

Segundo Trein, não há estrutura de poder que controle minimamen-te as forças sociais, mesmo tendo-se em conta a excepcional unidade linguística, religiosa e cultural em todo território. Agravando a desor-dem civil, a região de colonização

britânica declarou sua independên-cia da Somália em 1994, dando ori-gem a um país que tomou o nome de Somalilândia, não obtendo, contudo, re con he c imento internacional.

As populações que viviam da pe-cuária, exportando para a Arábia Sau-dita, com a suspen-são completa do comércio, sofrem atualmente com a fome nos campos secos e desertos. “Por sua vez, aqueles que viviam da pes-ca não têm sequer combustível para seus barcos. O país se transformou em território de bandos salteadores, no qual

não faltam mercenários e aventureiros de todas as partes do mundo, recruta-dos em Nova York, Bruxelas, Moscou, Tóquio, Xangai e Cingapura. Ali se confundem somalis que buscam de-sesperadamente reorganizar alguma coisa que possa dar origem a uma nova sociedade nacional e bandidos de toda ordem, sobreviventes da destruição física, social e moral do colonialismo europeu”, relata o professor.

Quando envolve petróleo, há sem-pre repercussão

O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas

(ONU) já aprovou resoluções (em 1816, 1838, 1846 e 1851) autorizan-do forças multinacionais a patru-lharem o Golfo de Áden. Por outro lado, a diplomacia somali pouco fez para defender seu país das ativida-des estrangeiras ilegais em sua re-gião costeira.

A ausência diplomática ocor-re porque “não há uma autoridade reconhecível, que represente os ver-dadeiros interesses do povo somali. Aqueles que hoje se encontram em Nova York como delegados junto às Nações Unidas são mantidos lá por interesses estrangeiros – leia-se em primeiro lugar norte-americanos – por isto mesmo não se manifestarão jamais acerca do que, de fato, acon-tece na região”, explica Trein.

Como a prática da pirataria já vem de longa data, Trein considera lícito supor que a mesma somen-te tenha obtido repercussão inter-nacional na medida em que tenha interferido na rota de circulação do petróleo explorado no Oriente Médio. “O que aconteceu é que os ataques a pequenas embarcações na região passaram a ter como alvo os grandes cargueiros, uma vez que estes representam um potencial de maior resgate”, avalia o professor, destacando, ainda, que há fortes in-dícios de que o subsolo marinho na região, que está na mesma forma-ção geológica da Península arábica, também seja rico em petróleo.

O sequestro de navios tem se mostrado um lucrativo negócio, com pedidos de resgate que che-gam a 20 milhões de dólares (caso do cargueiro ucraniano Faina), e uma das perversas consequências disso é a afluência de pistoleiros para o litoral somali, aumentando a insegurança nas cidades costeiras do país.

Crise na Somália, problema para o Quênia

O caos social que se agrava na Somália é responsável também pela superlotação do conjunto de três campos de refugiados (Haga-dera, Ifo e Dagahaley) localizados em Dadaab, no Quênia. As insta-lações construídas após a queda do ditador somali Siad Barre, em 1991, têm capacidade para 45 mil e hoje comportam mais de 260 mil pessoas.

A superlotação resulta em lon-gas filas para cadastramento, vaci-nação e recebimento de alimentos, bem como em diversos outros pro-blemas, como o risco de incêndios, devido à contiguidade das cons-truções. A ONU estima que – além da cessão de uma área maior para edificações por parte do governo queniano – sejam necessários 92 milhões de dólares. Mas, os dona-tivos não excedem os tímidos dois milhões de libras esterlinas ofereci-dos pelo Reino Unido.

Contrariamente à tese predominante que apresenta os piratas como selvagens e perigosos ladrões de alto mar, o historiador Marcus Rediker, no livro Villains os all Nations, os apresenta como rebeldes. Os marinheiros ingleses, dos séculos XVII e XVIII, revoltavam-se contra as duras condições de trabalho, com extenuantes jornadas, fome e castigos físicos.

Ao tomarem controle dos navios, os piratas elegiam seus próprios comandantes, tomavam decisões de maneira colegiada e repartiam o butim (despojo do inimigo) das pilhagens que faziam. Além de acolher a bordo escravos foragidos. Segundo Rediker, a pirataria foi “um dos planos mais igualitários para distribuição de recursos que havia em todo o mundo, no século XVIII”.

Em busca de melhor distribuição de renda

Mundo

“Não há uma autoridade

reconhecível, que represente os

verdadeiros interesses do povo somali.

Aqueles que hoje se encontram em Nova York como delegados

junto às Nações Unidas são mantidos

lá por interesses estrangeiros – leia-

se em primeiro lugar norte-americanos –

por isto mesmo não se manifestarão jamais

acerca do que, de fato, acontece na região.”

Page 24: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

24 Agosto 2009

A indústria fonográfica em tempos digitais

Gravadoras tentam se reorganizar diante do novo

contexto da economia da informação. As

mudanças incluem uma nova forma de o usuário

“consumir” músicas. Com a convergência

tecnológica, a indústria se abre a outros setores,

como as empresas de telefonia. Novos cenários

também se abrem para músicos independentes.

Além dos discos e dos shows, estratégias dos

artistas incluem a definição de nichos de mercado

e a criação de uma rede de relacionamentos pela

Internet.

A indústria fono-gráfica vem re-gistrando que-da nas vendas de CDs e DVDs

nos últimos anos e, com ela, a consequente redução no fatura-mento das grandes companhias. O setor tem apontado diferentes causas para a retração do merca-do, por exemplo, o crescente uso das novas tecnologias que permi-tem a troca gratuita de arquivos musicais pela Internet, o fenô-meno da pirataria e a atual crise econômica. Dados mais recentes divulgados pela Associação Bra-sileira dos Produtores de Discos (ABPD) mostram que, em 2007, foram vendidas 31,3 milhões de unidades, contra 37,7 milhões de CDs e DVDs comercializados no

ano anterior, representando uma variação negativa de 17,2% no pe-ríodo. De acordo com a entidade, o setor fonográfico movimentou R$ 312,5 milhões em 2007, uma redução de 31,2% no faturamento líquido das empresas em compa-ração a 2006, quando as vendas totais atingiram R$ 454,2 mi-lhões.

Apesar dos números nada ani-madores dos produtores de dis-cos, diversas pesquisas indicam um aumento do acesso da popu-lação brasileira aos bens culturais graças às novas tecnologias digitais. É o que demonstra o Grupo de Pes-quisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPOPAI) da Universidade de São Paulo (USP). Segundo os pesquisadores, o com-partilhamento de arquivos por meio da Internet, sem finalidade de lucro, permitiu o download de dois

bilhões de faixas musicais em 2006, multiplicando por sete o acesso da população a conteúdos musicais.

Para Leonardo de Marchi, doutorando do Programa de Pós-graduação da Escola de Co-municação (ECO) da UFRJ, tais mudanças mostram que o maior desafio para as gravadoras é se reorganizar diante do novo con-texto da economia da informa-ção. Segundo o pesquisador, que prepara uma tese acerca do setor fonográfico no Brasil, a indústria já percebe uma alteração, sobre-tudo, na forma como os usuários “consomem” música. Ele expli-ca que, a partir da convergência tecnológica, o consumo sonoro se expande por diversos meios de comunicação, abrindo o mer-cado fonográfico a outros setores industriais, como as empresas de telefonia.

“Os formatos do CD e do DVD não acabam em razão da Internet, mas perdem sua posição de único produto. Você começa a ter um conjunto de outras tecnologias para ouvir música. O conteúdo com que a indústria fonográfica trabalha pode ser reproduzido para o celular, para o MP3 (MPEG Audio Layer), para o computador ou para um CD, para colocar no seu carro ou distribuir para os amigos”, afirma Marchi.

Desde o início dos anos 1990, as matrizes brasileiras das grava-doras multinacionais vêm bus-cando desenvolver novos mode-los de negócios para compensar as perdas nas vendas de discos. Segundo o pesquisador, as estra-tégias incluem a terceirização dos serviços e a otimização dos inves-timentos. Novos usos para publi-cidade aparecem também como

Márcio Castilho

Tecnologia

Page 25: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

25Agosto 2009

A indústria fonográfica em tempos digitais

uma das principais ferramentas para a recuperação do setor. “To-dos os empresários de novos ne-gócios musicais querem reduzir o custo da compra do download, porque na verdade eles não ga-nham dinheiro com a música, mas com a publicidade e através das parcerias com outras empresas”, explica o doutorando da ECO.

Mercado da féAlguns segmentos da música

brasileira parecem resistir melhor aos tempos de adaptação da in-dústria fonográfica. É o caso dos padres-cantores Marcelo Rossi e Fábio de Melo e das duplas ser-tanejas. Esses gêneros costumam superar em pouco tempo a marca de 100 mil CDs vendidos no mer-cado formal. Leornado de Marchi atribui esse fenômeno ao carisma pessoal dos artistas e, especifica-mente no caso dos padres-can-tores, à questão da religiosidade e à ascensão dos evangélicos que souberam explorar esse nicho de mercado. “Houve uma retomada da Igreja Católica em um mercado dominado pelos evangélicos, que souberam aproveitar a indústria cultural ao máximo para evan-gelizar. Marcelo Rossi representa essa contrarreforma pela indús-tria cultural, usando o discurso da fé para que o público católico compre os discos autorizados da gravadora”, avalia o pesquisador.

Um aquecido mercado de DVDs de shows ao vivo apareceu também como uma das possibili-dades, complementa Marchi, de retomada do crescimento do setor fonográfico no início da década atual. Porém, os números se esta-bilizaram depois que essa tecno-logia foi absorvida pela chamada indústria da pirataria. De acordo com a Associação Antipirataria Cinema e Música (APCM), os fis-cais apreenderam no ano de 2007 mais de 36 milhões de unidades de CDs e DVDs, entre gravados e virgens, em cerca de três mil ope-rações realizadas em todo o país. Em relação aos DVDs de shows, foram apreendidas 3,1 milhões de unidades, correspondendo a um aumento de 14,51% em compara-ção ao ano anterior.

Global versus localEnquanto a pirataria é apon-

tada pelas grandes gravadoras como a principal responsável pela perda de arrecadação de impostos e redução de postos de trabalho e de artistas contratados no setor fonográfico, a venda de produtos pelo mercado informal tornou-se a maior aliada de músicos distan-tes dos grandes mercados, como Rio de Janeiro e São Paulo. A evo-lução do chamado “tecnobrega” é emblemática por ilustrar o êxito de um modelo inovador de negó-cio que se apropria da cultura lo-cal. O gênero musical, nascido na, cidade de Belém (PA), se relacio-na com a formação de uma nova cadeia produtiva em que os artis-tas vendem seus CDs em bancas de camelôs para que possam se

projetar no mercado local e ga-nhar dinheiro com a realização de shows. Não há grande preocupa-ção quanto aos direitos autorais. O lucro dos discos costuma ficar com os ambulantes.

Para Oona Castro, coordena-dora-executiva do Instituto So-ciocultural Overmundo, o sur-gimento de movimentos como o “tecnobrega” aponta para a afir-mação de processos descentra-lizados e modelos inovadores de negócios. “No Norte do país, com a ausência de políticas de investi-mento das gravadoras e a ausên-cia da grande indústria do direi-to autoral, a criação de modelos inovadores que não dependem do grande mercado é quase um im-perativo”, afirma Oona Castro, que é líder de projetos do Centro de Tecnologia e Sociedade da Funda-ção Getúlio Vargas – Direito Rio.

Oona realizou uma pesquisa sobre o crescimento do mercado de trabalho e o faturamento des-ses novos produtores culturais. Em 2006, o “tecnobrega” gerou, segundo ela, 6,4 mil novos postos de trabalho. Os shows movimen-taram cerca de R$ 3 milhões e o faturamento proveniente das ven-das de CDs e DVDs atingiu cer-ca de R$ 2 milhões. “A pesquisa também mostrou que 88% dos músicos nunca tiveram contrato com uma gravadora. O mercado informal neste segmento é ab-solutamente rico, mas é preciso criar meios para que não fique marginalizado. Os órgãos de fis-calização precisam entender que o ‘tecnobrega’ funciona em outra lógica, apresentando um produto diferenciado. É necessária a cria-ção de um marco que garanta essa flexibilidade sem afetar a inova-

ção, para que se possa inserir o ‘tecnobrega’ no mercado formal”, analisa a coordenadora do Over-mundo.

O fenômeno no Norte do país ilustra também o aproveitamento das novas tecnologias de repro-dução sonora. “Essa produção cultural tem algumas caracterís-ticas em comum. São comunida-des mais pobres que passam a ter acesso à tecnologia sem ter um conhecimento musical muito de-senvolvido. O uso da tecnologia serve para suprir esse desconhe-cimento da teoria e prática musi-cal”, explica Leonardo de Marchi.Em relação à produção musical independente, o pesquisador per-cebe uma mudança na divisão in-telectual do trabalho no setor fo-nográfico nesse cenário de trans-formações tecnológicas. Diferen-temente do modelo adotado nos anos 1970, quando os indepen-dentes identificados como “mar-ginais” pregavam uma negação do mercado, os músicos hoje atuam como empreendedores afinados com as tendências comerciais. Ele afirma que o objetivo dos “músi-cos administradores” é fazer com que seus produtos alcancem o mercado em condições competi-tivas. “A mentalidade hoje é mais racionalizada. O músico se preo-cupa com a sua imagem, com os nichos de mercado, e não apenas em gravar o disco e fazer o show. Outra diferença é a criação de uma rede de relacionamentos. O artista passa a ter por meio desses novos mediadores uma rede de consumidores, incorporando-os em seu portifólio. Esse é o maior exemplo de economia da infor-mação”, reflete Marchi, citando a ascensão de artistas que surgi-ram na Internet, como a cantora e compositora Mallu Magalhães – jovem de apenas 15 anos de ida-de, que compõe canções folk (ou rock acústico) em inglês.

Tecnologia

Page 26: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

26 Agosto 2009

Diferentes manifestações artísticas e intelectuais vão mostrar ao público brasileiro, até

o fim do ano, uma parte da produção contemporânea francesa. São eventos culturais, científicos, tecnológicos e acadêmicos que fazem parte da programação do Ano da França no Brasil, lançado em abril com o objetivo de fortalecer as relações bilaterais entre os dois países no campo cultural e econômico-comercial. O gesto que sinaliza a abertura de diálogo e o intercâmbio de atividades nas mais diversas áreas do conhecimento revive, de certa forma, um momento peculiar da história do Brasil: em 1816, o desembarque de um grupo de artistas, entre pintores, escultores, desenhistas e arquitetos, que faziam parte da chamada Missão Artística Francesa. Diferente da sua versão mais contemporânea, o Ano da França no Brasil de 1816 não teve um período pré-determinado nem programação definida. Na verdade, o movimento, também conhecido como Colônia Lebreton, estendeu sua influência ao longo de todo o século XIX e início do XX, contribuindo para a transformação das artes e da arquitetura no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro.

A missão chegou ao Brasil em 26 de março de 1816 por um suposto convite da coroa portuguesa, que havia transferido a corte para o Rio de Janeiro, em 1808. Segundo essa versão, a sugestão de trazer os artistas teria partido do Marquês de Marialva, representante do governo português na França. A iniciativa obteve o apoio de D. João VI, tendo como interlocutor o ministro dos Assuntos Estrangeiros Antônio de Araújo e Azevedo, o Conde da Barca. Outros historiadores afirmam que os artistas franceses, simpáticos a Bonaparte, ofereceram seus serviços a D. João após a ascensão dos Bourbon ao poder na França. Para Ângela Âncora da Luz, diretora da Escola de Belas Artes (EBA), houve uma “convergência de interesses”. “Quando se inicia o período da Restauração na França, em 1815, os artistas franceses, que eram bonapartistas, ficaram sem espaço político. Eles escreveram cartas para saber onde poderiam atuar. D. João soube desse interesse e viu que, elevando a questão cultural do reino, Portugal poderia se inserir novamente no mundo desenvolvido”, informa Ângela, que é

Márcio Castilho professora de História da Arte da EBA.A missão, liderada pelo secretário

recém-destituído do Institut de France Joaquim Lebreton, era composta pelos pintores Jean-Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay, Marc e Zéphirin Ferrez, o arquiteto Grandjean de Montigny e o gravador de medalhas Charles-Simon Pradier, dentre outros. Pouco tempo depois da chegada dos artistas, o rei de Portugal cria, por decreto, em 12 de agosto de 1816, a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios. A instituição fundaria o ensino formal de artes no Brasil e seria o embrião da atual Escola de Belas Artes da UFRJ. No decreto, D. João reafirma a importância da arte para o “progresso da agricultura, mineralogia, indústria e comércio de que resulta a subsistência, comodidade e civilização dos povos”.

DificuldadesApesar da proposta de criação de

uma Escola Real, a missão artística encontrou uma série de dificuldades. Enfrentou resistências por parte de artistas nativos e mestres portugueses identificados com a arte barroca. Eles criticavam a presença estrangeira dos bonapartistas e a introdução no Brasil do estilo neoclássico. “A estética portuguesa era colonial e barroca. Tinha como característica a talha gorda, a forma cheia, as sombras e a emoção. Os franceses vieram com a linha reta, o equilíbrio e a simetria. O domínio estilístico não possui afinidade entre esses dois campos de pensamento”, explica Ângela.

Os problemas se agravaram com a morte do Conde da Barca, em 1817, um dos principais aliados dos artistas franceses. Dois anos depois, Lebreton, chefe do grupo, também veio a falecer. Ele era diretor da Escola Real, embora não houvesse uma sede para abrigar a instituição. “Os artistas começaram a dar aulas de ateliê, uma maneira improvisada na região do Catumbi”, afirma Ângela. No lugar de Lebreton, assumiu a direção o pintor português Henrique José da Silva, descrito como um profissional “de caráter mesquinho, de trato difícil, invejoso, malevolente e inimigo dos franceses” pelo pesquisador Alfredo Galvão, autor, na primeira metade do século XX, de diversos trabalhos que se tornaram referência para os estudiosos do tema.

A instalação efetiva de uma escola para o ensino de artes plásticas no Brasil somente ocorreria dez anos depois

Criado em 1979 com o objetivo de preservar a memória do ensino artístico oficial, o Museu D. João VI reúne um rico patrimônio acadêmico, mostrando a evolução da produção artística, principalmente nos séculos XIX e XX. O espaço abriga atualmente 800 gravuras, 837 desenhos, 560 esculturas, 480 pinturas, 253 porcelanas, 167 fotografias, além de desenhos arquitetônicos, móveis, vitrais e cerca de cinco mil moedas/e medalhas.

O acervo histórico e artístico compreende um arquivo, uma coleção de obras de artes visuais e uma biblioteca de obras raras. Ana Maria Moura de Alencar, coordenadora do Museu D. João VI, afirma que o espaço deverá disponibilizar nos próximos anos um banco de imagens e um arquivo de documentos digitalizados.

A biblioteca de obras raras engloba cerca de quatro mil livros, incluindo o de Grandjean de Montigny sobre a arquitetura toscana, obra escrita em 1815. Há também a Coleção Jeronymo Ferreira das Neves, doada em 1947 à então Escola Nacional de Belas Artes, incluindo obras das escolas européias (Itália, França, Espanha e Portugal) datadas a partir do século XVI. Entre pinturas, esculturas, gravuras, tecidos, porcelanas e pratarias, o destaque é o medalhão italiano de cerâmica esmaltada, proveniente do ateliê de Luca della Robbia. “Outra preciosidade é uma carta de Eugénie Delacroix, de 28 de outubro de 1857, aceitando convite para ser membro correspondente da Academia Imperial. Ele foi um dos pintores mais importantes do romantismo francês”, conta Ana Maria.

O museu universitário recebe também alunos de disciplinas como restauração, estética, pintura e análise da composição, dentre outras, contribuindo para formação dos estudantes de graduação da EBA. Atende ainda a uma das linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação de História e Crítica da Arte da instituição, segundo a coordenadora. A riqueza de fontes primárias do seu acervo documental atrai o interesse de pesquisadores brasileiros e de países como Estados Unidos, Portugal, Alemanha, França, Bélgica e Canadá. O Museu D. João VI já recebeu 38 pesquisadores e 920 visitantes.

“Os interessados fazem pesquisas principalmente acerca da arte brasileira. Consultam também, por exemplo, as correspondências de pensionistas que ganharam prêmios de viagem para a França. É uma documentação que somente existe aqui”, afirma a coordenadora do Museu.

O D. João VI foi todo remodelado graças ao patrocínio firmado em julho de 2005 entre a Petrobrás e a Fundação Universitária José Bonifácio (FUJB), após aprovação do Ministério da Cultura, por intermédio da Lei Rouanet. O projeto de revitalização foi coordenado por Sônia Gomes Pereira, professora titular da EBA. O novo espaço funciona, desde dezembro do ano passado, no 7º andar do prédio da Reitoria. A reinauguração coincidiu com as comemorações pelos 200 anos da chegada da família real ao Brasil.

As visitas devem ser agendadas pelo telefone (21) 2598-1997.Mais informações pelo site www.museu.eba.ufrj.br.

Museu preserva memória do ensino de arte

Arte & Cultura

Page 27: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009Agosto 2009 UFRJJornal da

27Agosto 2009

da chegada da Missão. Projetado por Grandjean de Montigny, o prédio da Academia Imperial de Belas Artes foi inaugurado em 5 de novembro de 1826 na região onde hoje fica a avenida Passos, no Centro do Rio (demolido em 1937, o corpo central de sua fachada encontra-se preservado no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde foi remontado cuidadosamente, em 1940). Com a criação de um espaço próprio para as atividades de ensino, os franceses começaram a construir um importante legado na pintura, na arquitetura e no ensino de arte no país.

LegadoOs pintores Debret e Nicolas Taunay

muito produziram no Brasil. Enquanto Taunay se destacava com obras inspiradas nas paisagens do Rio de Janeiro, como o “Morro de Santo Antônio em 1816”, as aquarelas de Debret buscavam retratar principalmente o cotidiano, os fatos da vida da corte e os personagens comuns da cidade, como escravos e grupos indígenas. “Na pintura neoclássica, valorizava-se o mito, o imperador, as cenas celebrativas e heróicas. Em Debret, você vê os negros, o cotidiano. Ele cria um cânone, mas dos tipos simples. Debret era um anotador do seu tempo, fazia um registro quase fotográfico”, observa a diretora da EBA.

A contribuição dos franceses na arquitetura foi também das mais importantes. Grandjean de Montigny desenvolveu o estilo neoclássico no Brasil. Um dos principais exemplos dessa arquitetura, que permanece preservada, é a Casa França-Brasil, antiga Casa da Moeda “Um neoclássico puro de Grandjean de Montigny. Caracteriza-se pelos arcos plenos, os frontões triangulares, as colunas, um tipo de espaço de claridade, de métrica e de formas equilibradas e limpas. Vendo uma parte da construção, podemos refazer em nossa imaginação como será todo o prédio”, analisa Ângela Âncora da Luz.

Debret, Montigny e o filho de Nicolas, Félix Taunay, dentre outros artistas franceses, também eram

professores da Academia Imperial de Belas Artes. Como ainda não era tombado, o espaço, símbolo da implantação do ensino artístico no país, desapareceu em 1938 diante da pressão da especulação imobiliária no Centro do Rio. Naquela ocasião, com a transição do regime político, do Império para a República, a instituição já havia sido rebatizada com o nome de Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), ocupando desde 1909 um quarteirão inteiro no final da avenida Central, atual Rio Branco, perto da Cinelândia. Este prédio, de estilo eclético e autoria do arquiteto Adolfo Morales de los Rios, abriga desde 1937 o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA).

Se o prédio original da Academia Imperial existe apenas nos livros e

1816o Ano da França

no Brasil

A Missão Artística Francesa, integrada por nomes como Lebreton, Debret e Grandjean de Montigny, contribuiu para o desenvolvimento das artes plásticas e da arquitetura no Brasil. A chegada do grupo em 1816 também representou a implantação da educação artística em caráter oficial e foi o embrião da atual Escola de Belas Artes da UFRJ.

registros de memória, a contribuição da instituição para a implantação no Brasil da educação artística em caráter oficial atravessou décadas, formando gerações de grandes artistas em diferentes áreas, como Cândido Portinari, Eliseu Visconti, Belmiro de Almeida, Pedro Américo, Rodolfo Amoedo, Ismael Nery e Victor Meirelles. Partiu de Lebreton, ainda nos primeiros anos da Missão Artística Francesa, a proposta de criação de uma nova metodologia com disciplinas teóricas e práticas. Ele também contribuiu para a democratização do ensino. “Havia os cursos livres e o curso regular, que exigia conhecimento e uma escolaridade maior. Portinari foi aluno tendo apenas o 3º ano incompleto da escola primária. Os alunos dos cursos livres frequentavam todos os ateliês”, explica Ângela.

Uma importante mudança ocorreu após a transferência da capital federal para Brasília. A partir de 1966, a instituição passa a denominar-se Escola de Belas Artes da UFRJ, como permanece até os dias atuais, sendo transferida do prédio do Museu Nacional de Belas Artes, na Cinelândia, para o da Reitoria e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), na Cidade Universitária, em 1975-1976. “Viemos sem planejamento e infraestrutura. Muita coisa se perdeu, mas a parte das obras referente ao ensino ficou conosco. Apesar de tantas mudanças, nunca houve interrupção de nossas atividades. Esse é o milagre da arte”, ressalta a diretora da EBA. O acervo voltado para a área acadêmica hoje constitui o Museu D. João VI.

Arte & Cultura

Nicolas Antoine Taunay,Morro de Santo Antônio Rio de Janeiro, RJ, óleo sobre tela/Reprodução

Page 28: Entrevista Dulce Chiaverinni Por um Brasil que veja a saúde, · PDF fileDia 31 - Ivan Lins Depois de um ano na estra-da, Ivan Lins está de volta ao Brasil. Com formato ... e “Madalena”

Agosto 2009UFRJJornal da

28

Orixás, festas, crian-ças e a força do trabalho. Nas telas de Djanira Motta e Silva (1914-1979)

irrompe em cores o Brasil e sua gente nos mais diversos momentos. Descen-dente de austríacos e de índios guaranis, a pintora encontra nas raízes do país a inspiração para eternizar a própria arte. “Não poderia viver entre quatro pare-des e criar sem que meus olhos vissem a paisagem e os tipos que retrato”, definiu a artista, confessando que deu início à pintura quando começou a desenhar o mundo que lhe cercava. “Meus animais, minha varanda, o interior de minha casa, o retrato dos vizinhos. Eram estu-dos de observação amorosa das coisas que estimava”, afirmava Djanira.Considerada uma das maiores intérpre-tes do modernismo brasileiro, após as vanguardas dos anos de 1920 e 1930, o despertar artístico da paulista de Ava-ré acontece depois de vencer a tuberculose.

Ângela Âncora da Luz, professora e diretora da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ, recorda que Djanira ainda menina migra para Porto União (SC). Foi trabalhar na lavoura e, ao retornar à cidade natal, torna-se vendedora am-bulante. “A vida de privações e a pouca alimentação fizeram com que, em 1930, a doença se desenvolvesse, chegando a ser internada como paciente terminal, no Sanatório Dória, em São José dos Campos (SP), à espera da morte que, fe-lizmente, não veio”, explica Ângela, que é crítica e historiadora da Arte. Para ela, naquele momento de fragilidade, Dja-nira experimentou os pincéis e as tintas, “explorando a figura do Cristo como o homem que levou sobre si as nossas en-fermidades”. Acerca deste episódio, en-quanto ainda estava na cama, Djanira brincava dizendo que “faria um retrato melhor do que aquele que via pendura-do na parede”, informa Ângela.

Em Santa TeresaCom a saúde recuperada, Djanira

vem morar nas ladeiras de Santa Teresa. Sob as luzes do bairro carioca, no início dos anos 1940, encontra a convivência criativa de artistas como Carlos Scliar e Carlos Vieira da Silva, entre outros. Muitos estrangeiros também viviam refugiados do início da Segunda Guer-ra Mundial, como o romeno Emeric Marcier que teria, em troca de pousada, dado aulas de pintura para ela. O crítico e amigo, Ruben Navarra, inclusive es-creve que a presença do europeu traz “o roteiro para a descoberta dos tesouros que tinham ficado esquecidos nos páli-dos baús da infância” da artista. Entre-tanto, o próprio Marcier nega ter feito o papel de mestre. “Diferentemente do que se tem afirmado, não dei aulas para Djanira. Apenas a estimulava a seguir

pintando, assim como a apresentava a todos aqueles que me visitavam” escla-rece o pintor em depoimento à Galeria de Arte Banerj (1986) para a exposição Tempos de Guerra – Pensão Mauá.

Outra versão desfeita pelos que vi-veram na Pensão Mauá é de que Dja-nira era a dona do estabelecimento. Na verdade, sublocava alguns de seus quartos para sobreviver, principalmen-te com a viuvez. Em outro depoimento à Galeria de Arte Banerj, Regina Cha-bloz (mulher do pintor Jean-Pierre Chabloz), revela que Djanira passeava na calçada com um macaco na mão e tinha animais de estimação como ara-ras, presentes do esposo Bartolomeu Gomes, maquinista da Marinha Mer-cante. “(...) Ela costurava para fora, especialmente fantasias de Carnaval. E resolveu desenhar”, recorda Chabloz, esclarecendo que o pintor Marcier limitava-se a selecionar o que achava melhor de seu trabalho.

Para Ângela Âncora, vale recordar que Djanira ainda frequentou um curso noturno de desenho no Liceu de Ar-tes e Ofícios. Ela pondera que todos os estímulos, inclusive a convivência com outros artistas, ajudaram-na a manifes-tar o que já possuía: “Uma poética pró-pria, expressionista e nacionalista, com a simplicidade nativista e a força dos intelectuais, não pelas letras, mas pela maestria de suas telas, colocando-se, as-sim, no mesmo patamar.”

Ângela ainda rebate as alegações de alguns críticos quanto ao primitivismo e à relevância de sua obra. “Ela traduziu com singeleza e força a arte brasileira na construção da modernidade. Autodida-ta, a artista se vinculava às poéticas do ex-pressionismo e em sua pintura podemos perceber seus traços fortes, suas formas estilizadas, as diversas transfigurações da figura humana em que buscava revelar o que de mais autêntico encontrava na cul-tura popular”, alude a professora.

Vencedora do prêmio de Viagem ao País no Salão Nacional de Arte Moder-na de 1952 com a tela “Caboclinhos” e reconhecida presença nas artes plásti-cas, também pelos trabalhos de cenó-grafa, gravadora, cartazista, ilustradora e desenhista, Djanira torna-se ainda uma das líderes do movimento pelo Sa-lão Preto e Branco (protesto de artistas contra os altos preços do material para pintura).

Em 1963 realiza o megapainel de Santa Bárbara, com 160 m2 e 5.300 azu-lejos, que por muitos anos ilustrou o túnel de mesmo nome que liga os bair-ros de Catumbi e Laranjeiras. O painel, desmontado para obras de reformas no túnel, encontra-se hoje no Museu Na-cional de Belas Artes. Quase no fim da vida, a verve religiosa levou Djanira a se tornar freira na Ordem Terceira do Carmo, mudar-se para o convento das Carmelitas Descalças e receber o nome de Irmã Teresa do Amor Divino.