entrevista com david harvey

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Entrevista 19.01.2011 18:00 David Harvey: “A crise capitalista também é de urbanização” Por Natalia Aruguete* David Harvey é um geógrafo britânico reconhecido internacionalmente. Estudou a relação entre as crises financeiras e urbanas. Em entrevista ao jornal Página/12, ele sustenta que a sucessão de crises no sistema é alimentada, entre outras coisas, por uma febre da construção que, por sua vez, provoca crise no capitalismo em sua atual etapa hegemonizada pelas finanças. Harvey defende ainda que existe uma estreita relação entre urbanização e formação das crises. Além dos Estados Unidos, cita como exemplo a Grécia e a Espanha. Parte da explicação da crise nestes países, defende o geógrafo, está vinculado a péssimos investimentos em infraestrutura. Enquanto alguns especialistas se esmeram em alegar que crise atual é uma crise das hipotecas subprime ou é o estouro de um capitalismo que se financeirizou demais, David Harvey prefere falar de “crises urbanas”, provocadas por uma febre da construção “sem importar o quê”. Autor de “Breve história do neoliberalismo”, Harvey não só acusa a desregulação do setor financeiro como um dos fatores que levaram ao descalabro atual, mas adverte que a supremacia do capital concentrado sobre as decisões políticas seguirá sendo um impedimento para sair da crise. Em sua passagem por Buenos Aires, o geógrafo britânico conversou com o jornal Página/12sobre as transformações do mercado imobiliário nas últimas décadas, a orientação que teve o investimento em infraestrutura e a consequente “acumulação por perda de posse”. Frente a um modelo que não é sustentável, Harvey propõe pensar “um novo tipo de urbanização”. Reproduzimos a seguir a entrevista concedida ao Página/12: Desde sua perspectiva como geógrafo, que conexões encontra entre urbanização e esta crise? Uma das coisas que eu gostaria de enfatizar é a relação entre urbanização e formação da crise. Nas décadas de 50 e 60, o capitalismo se estabilizou com uma forma de suburbanização massiva: estradas, automóveis, um estilo de vida. Uma das perguntas é se isso é sustentável no longo prazo. No sul da Califórnia e na Flórida, que são epicentros da crise, estamos vendo que este modelo de suburbanização não serve mais. Alguns querem falar da crise do subprime; eu quero falar das crises urbanas. E o que pensa das crises urbanas? Na década de 80 se pensava que o Japão era uma potência e essa crença sucumbiu nos anos 90 pela crise crise dos preços da terra. Desde então, não se recuperou mais. Também existe uma preocupação nos Estados Unidos de que a crise imobiliária impeça a recuperação, apesar de todas as tentativas que vêm sendo feitas para isso. Outra questão é que a forma de uso intensivo da energia exigiria muitas extensões de terra, o que criaria um estilo de vida de lugares dispersos. Isso está estabelecendo, justamente, um novo tipo de urbanização. O que chama a atenção é que a China está copiando os EUA, o que é muito estúpido. Isso não é sustentável sob a situação de crise ambiental. Existe uma alta conexão entre desenvolvimento capitalista, crise capitalista e urbanização. Em que medida a transformação do mercado imobiliário influiu na crise da urbanização? Onde as pessoas ricas colocaram seu dinheiro nos últimos 30 anos. Até os 80, colocar dinheiro na produção dava mais dinheiro que colocá-lo no negócio imobiliário. A partir dali, começou-se a pensar onde colocar o dinheiro para obter uma taxa de retorno mais alta. Os mercados imobiliários e da terra são muito interessantes: se eu invisto, o preço sobe, como o preço sobe, mais gente investe e, então, o preço segue suibindo. Em meados da década de 70, em Manhattan (Nova York), podia-se vender por 200 mil dólares um tipo de edifício que agora custa 2 milhões de dólares. Desde então, houve bolhas de diferentes tipos, que tem estourado uma a uma. Os mercados financeiros enlouqueceram nos anos 90. Se observamos a participação dos distintos setores no Produto Interno Bruto dos EUA, em 1994, o mercado acionário tinha uma participação de 50% do PIB. Em 2000, subiu para 120% e começou a cair com a crise das empresas pontocom. Enquanto que a participação do mercado imobiliário no PIB começou a crescer, e passou de 90 para 130% no mesmo período. Qual sua opinião sobre a orientação que teve o investimento em infraestrutura nas últimas décadas? O capitalismo não pode funcionar sem sua infraestrutura típica: estradas, portos, edifícios e fábricas. A grande pergunta é como se constróem essas infraestruturas e em que medida contribuem para a produtividade no futuro. Nos Estados Unidos, fala-se muito de pontes que vão a lugar nenhum. Há interesses muito grandes dos lobistas da construção que querem construir não importa o quê. Podem corromper governos para fazer obras que não terão nenhuma utilidade. Um exemplo do que descreve é o que ocorreu na Espanha, com o boom da construção… Uma parte da explicação da crise na Grécia e na Espanha pode ser vinculada com esses péssimos investimentos em infraestrutura. A Grécia é um caso típico também em função dos Jogos Olímpicos, que originou grandes obras de infraestrutura que agora não são usadas. Nos anos 50 e 60, a rede de estradas e autoestradas, nos EUA, foi muito importante para a melhoria da produtividade. Algo similar se observa atualmente na China, com estradas, ferrovias e novas cidades, que nos próximos anos terão um alto impacto na produtividade. O sr. acredita que a China está enfrentando a crise de maneira distinta da dos Estados Unidos? A China tem melhores condições que outros países sobretudo porque conta com grandes reservas de divisas. Os EUA têm uma grande déficit e a China um grande superávit. O outro problema nos EUA é político. Quais são os fatores políticos que dificultam a saída da crise? Quem tenta construir obras de infraestrutura úteis é acusado imediatamente de “socialista”, que é o que está acontecendoi com Barack Obama. Na China isso não importa porque as condições políticas são outras. O governo na China

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A crise capitalista também é de urbanização

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Entrevista19.01.2011 18:00David Harvey: A crise capitalista tambm de urbanizaoPor Natalia Aruguete*

David Harvey um gegrafo britnico reconhecido internacionalmente. Estudou a relao entre as crises financeiras e urbanas. Em entrevista ao jornalPgina/12, ele sustenta que a sucesso de crises no sistema alimentada, entre outras coisas, por uma febre da construo que, por sua vez, provoca crise no capitalismo em sua atual etapa hegemonizada pelas finanas. Harvey defende ainda que existe uma estreita relao entre urbanizao e formao das crises. Alm dos Estados Unidos, cita como exemplo a Grcia e a Espanha. Parte da explicao da crise nestes pases, defende o gegrafo, est vinculado a pssimos investimentos em infraestrutura.Enquanto alguns especialistas se esmeram em alegar que crise atual uma crise das hipotecas subprime ou o estouro de um capitalismo que se financeirizou demais, David Harvey prefere falar de crises urbanas, provocadas por uma febre da construo sem importar o qu. Autor de Breve histria do neoliberalismo, Harvey no s acusa a desregulao do setor financeiro como um dos fatores que levaram ao descalabro atual, mas adverte que a supremacia do capital concentrado sobre as decises polticas seguir sendo um impedimento para sair da crise.Em sua passagem por Buenos Aires, o gegrafo britnico conversou com o jornalPgina/12sobre as transformaes do mercado imobilirio nas ltimas dcadas, a orientao que teve o investimento em infraestrutura e a consequente acumulao por perda de posse. Frente a um modelo que no sustentvel, Harvey prope pensar um novo tipo de urbanizao.Reproduzimos a seguir a entrevista concedida aoPgina/12:Desde sua perspectiva como gegrafo, que conexes encontra entre urbanizao e esta crise?Uma das coisas que eu gostaria de enfatizar a relao entre urbanizao e formao da crise. Nas dcadas de 50 e 60, o capitalismo se estabilizou com uma forma de suburbanizao massiva: estradas, automveis, um estilo de vida. Uma das perguntas se isso sustentvel no longo prazo. No sul da Califrnia e na Flrida, que so epicentros da crise, estamos vendo que este modelo de suburbanizao no serve mais. Alguns querem falar da crise do subprime; eu quero falar das crises urbanas.E o que pensa das crises urbanas?Na dcada de 80 se pensava que o Japo era uma potncia e essa crena sucumbiu nos anos 90 pela crise crise dos preos da terra. Desde ento, no se recuperou mais. Tambm existe uma preocupao nos Estados Unidos de que a crise imobiliria impea a recuperao, apesar de todas as tentativas que vm sendo feitas para isso. Outra questo que a forma de uso intensivo da energia exigiria muitas extenses de terra, o que criaria um estilo de vida de lugares dispersos. Isso est estabelecendo, justamente, um novo tipo de urbanizao. O que chama a ateno que a China est copiando os EUA, o que muito estpido. Isso no sustentvel sob a situao de crise ambiental. Existe uma alta conexo entre desenvolvimento capitalista, crise capitalista e urbanizao.Em que medida a transformao do mercado imobilirio influiu na crise da urbanizao?Onde as pessoas ricas colocaram seu dinheiro nos ltimos 30 anos. At os 80, colocar dinheiro na produo dava mais dinheiro que coloc-lo no negcio imobilirio. A partir dali, comeou-se a pensar onde colocar o dinheiro para obter uma taxa de retorno mais alta. Os mercados imobilirios e da terra so muito interessantes: se eu invisto, o preo sobe, como o preo sobe, mais gente investe e, ento, o preo segue suibindo. Em meados da dcada de 70, em Manhattan (Nova York), podia-se vender por 200 mil dlares um tipo de edifcio que agora custa 2 milhes de dlares. Desde ento, houve bolhas de diferentes tipos, que tem estourado uma a uma. Os mercados financeiros enlouqueceram nos anos 90. Se observamos a participao dos distintos setores no Produto Interno Bruto dos EUA, em 1994, o mercado acionrio tinha uma participao de 50% do PIB. Em 2000, subiu para 120% e comeou a cair com a crise das empresas pontocom. Enquanto que a participao do mercado imobilirio no PIB comeou a crescer, e passou de 90 para 130% no mesmo perodo.Qual sua opinio sobre a orientao que teve o investimento em infraestrutura nas ltimas dcadas?O capitalismo no pode funcionar sem sua infraestrutura tpica: estradas, portos, edifcios e fbricas. A grande pergunta como se constrem essas infraestruturas e em que medida contribuem para a produtividade no futuro. Nos Estados Unidos, fala-se muito de pontes que vo a lugar nenhum. H interesses muito grandes dos lobistas da construo que querem construir no importa o qu. Podem corromper governos para fazer obras que no tero nenhuma utilidade.Um exemplo do que descreve o que ocorreu na Espanha, com o boom da construoUma parte da explicao da crise na Grcia e na Espanha pode ser vinculada com esses pssimos investimentos em infraestrutura. A Grcia um caso tpico tambm em funo dos Jogos Olmpicos, que originou grandes obras de infraestrutura que agora no so usadas. Nos anos 50 e 60, a rede de estradas e autoestradas, nos EUA, foi muito importante para a melhoria da produtividade. Algo similar se observa atualmente na China, com estradas, ferrovias e novas cidades, que nos prximos anos tero um alto impacto na produtividade.O sr. acredita que a China est enfrentando a crise de maneira distinta da dos Estados Unidos?A China tem melhores condies que outros pases sobretudo porque conta com grandes reservas de divisas. Os EUA tm uma grande dficit e a China um grande supervit. O outro problema nos EUA poltico.Quais so os fatores polticos que dificultam a sada da crise?Quem tenta construir obras de infraestrutura teis acusado imediatamente de socialista, que o que est acontecendoi com Barack Obama. Na China isso no importa porque as condies polticas so outras. O governo na China autoritrio pode pr as coisas em seu lugar, como bem entende. No caso dos EUA, o Congresso est dominado por grupos republicanos e democratas que manejam interesses econmicos e as condies para tomar decises so outras.Deduz-se ento uma diferena na relao entre o poder poltico e o poder econmico nestes pases.Na China, por causa da crise americana, a resposta foi fazer grandes projetos de infraestrutura imediatamente. Alm disso, o governo centralizado da China tem enorme poder sobre os bancos. Deu a ordem: Forneam emprstimos para governos municipais e ao setor privado que vo tocar essas obras. O governo central dos EUA no pode fazer isso. Ele segue dizendo aos bancos: Emprestem. E os bancos dizem: No. A China est crescendo a um ritmo de 10% depois da crise, enquanto os EUA seguem estagnados.Quais so as falhas institucionais que levaram a essa crise?Desde a dcada de 70, houve uma ideia dominante de que a resposta era privatizar. H muitas alternativas para que o setor pblico fornea melhores servios do que o setor privado.O sr. acredita que esta concepo tambm penetrou o sistema financeiro?Nos EUA, na dcada de 30, os bancos de investimentos estavam separados dos bancos comerciais. Nos ltimos anos se permitiu que eles se unissem. um caso de mudana regulatria, onde o Estado se retira do controle.E como avalia o tipo de regulaes que comearam a ser propostas a partir da crise?H uma teoria chamada captura regulatria. Ela supe que as galinhas devem ser controladas pelas raposas. Se olhamos para as formas regulatrias propostas at agora, nos damos conta de que as raposas esto ganhando e isso ocorre porque elas controlam tambm o Congresso dos Estados Unidos.H diferenas entre as polticas impulsionadas nos EUA e na Europa?Sim, h diferenas. Um dos temas que estou estudando justamente as diferenas que existem em distintos lugares. Por exemplo, na Amrica Latina a reao dos governos foi muito mais sensvel crise do que o que se observa nos EUA e na Euorpa. Na Europa, h um grande conflito entre os pases maiores e os mais pequenos. A Alemanha, que por razes histricas tm uma obsesso com o tema da inflao, impe o tema da austeridade. O triunfo de um governo conservador na Inglaterra tambm fortalece a ideia de austeridade. Por isso, no surpreende que a Europa esteja estagnada, enquanto a China segue crescendo forte.Que impacto tm essas polticas de austeridade?A austeridade algo totalmente errneo. Em primeiro lugar, pelas diferenas de impacto entre classes sociais. Em geral, as classes mais baixas so as mais prejudicadas. Alm disso, essas classes mais baixas, quando tm dinheiro, o gastam, enquanto que as classes altas o usam paragerar mais dinheiro e no necessariamente para fazer coisas produtivas.Por exemplo?Muitos ricos dos EUA compraram terras na Amrica Latina. Isso provocou o aumento do preo da terra. No longo prazo, devemos pensar como possvel viver no mundo de acordo com seus recursos. Isso no significa austeridade, mas sim uma forma mais austera de viver, o que no a mesma coisa.Qual a diferena?Devemos pensar no que que realmente necessitamos para ter uma boa vida. Muitas das coisas que pensamos do consumo so uma loucura, significam desperdiar recursos naturais e humanos. Temos que pensar como fazemos no longo prazo para que 6,8 bilhes de pessoas possam viver, ter casa, sade e alimento para que tenham uma vida razovel e feliz.*Matria originalmente publicada no Pgina/12 e traduzida porKatarina Peixoto, da Carta Maior