entrevista com a pesquisadora e professora ......benin foi um grande porto do sequestro dessas...
TRANSCRIPT
ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA DE HISTÓRIA DE
EDUCAÇÃO BÁSICA LÍVIA COUTINHO CARDOSO AO PORTAL DE
NOTÍCIAS DA ALES - 12 DE NOVEMBRO DE 2020.
LAVÍNIA COUTINHO CARDOSO é historiadora e pesquisadora do Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiro (Neab) da Ufes, mestre em História Social das Relações Políticas (Ufes),
especialista em História Política, Educação e Mídia (Ufes), professora de educação básica
na rede pública de ensino de Vitória. Atualmente, pesquisa sobre história das mulheres
negras no Espírito Santo. É autora do livro Revolta do Queimado, publicado pela Appris
Editora, Campinas (2020). É militante do Círculo Palmarino e do Núcleo Estadual de
Mulheres Negras do Espírito Santo. Lavínia concedeu esta entrevista ao portal de notícias
da Ales por conta da Semana da Consciência Negra no Espírito Santo.
Gleyson Tete e Aldo Aldesco.
EIS A ENTREVISTA.
A TERMINOLOGIA UTILIZADA POR CLEBER MACIEL, DEFININDO SUDANESES E
BANTOS COMO OS PRINCIPAIS TRONCOS ÉTNICOS AFRICANOS TRAZIDOS AO
BRASIL CONTEMPLA O MAPEAMENTO DOS VARIADOS GRUPOS AQUI
EXISTENTES?
LAVÍNIA COUTINHO CARDOSO – Sim, contempla. Tive a oportunidade de ser orientanda do
professor Cleber Maciel, sou cria dele. Na verdade, a maior parte da população negra do Espírito
Santo pertence ao grupo cultural banto. Minha bisavó era banto. Ela era da região de Itaúnas. A
cultura negra no Espírito Santo tem sua matriz na cultura banto.
QUAIS SÃO OS OUTROS GRUPOS MINORITÁRIOS QUE VIERAM PARA O ESPÍRITO
SANTO?
LAVÍNIA – É um mapeamento um pouco complicado por causa da documentação. A gente trabalha
muito com os vestígios. O maior vestígio da cultura negra no Brasil está na matriz banto. Você tem
uma circulação das outras culturas pelo Brasil. Todas essas culturas estão presentes naquilo que a
gente pode dizer como a cultura negra diaspórica, a cultura negra que vai se reconstituir e vai se
reafirmar no Brasil e construir um território para ela, um território muito bem demarcado nas
manifestações culturais, que de uma certa forma viraram coisas da cultura brasileira, mas são
notadamente, marcadamente da cultura negra. Todos esses grupos têm passagem pelo Espírito
Santo. Mas o grupo que vai demarcadamente criar um território da cultura negra no Espírito Santo é
o grupo banto.
DE ONDE VIERAM? QUANTOS, A PARTIR DE QUANDO, PARA ONDE? — IORUBÁS,
CRIOLOS, MINAS, NAGÔ, BENGUELA, MOÇAMBIQUE, CABINDA, REBOLO, SÁS,
CONGOS?, ENFIM, GRUPOS, TRIBOS, ETNIAS, NAÇÕES.
LAVÍNIA – A gente tem estimativa dos números e de como eles chegam. A gente só não sabe
(vocês sabem que os arquivos foram queimados pelo sr. Rui Barbosa para apagar a mancha negra da
história do Brasil). Existem registros de números e o que notadamente está a nossos olhos, e não
precisa de números para saber disso, é que esmagadoramente a maior parte da população do
Espírito Santo é afrodescendente, negros (pretos e pardos).
E TEM ALGUMA DOCUMENTAÇÃO DE LOCALIZAÇÃO DE ONDE VIERAM MAIS
AFRICANOS?
LAVÍNIA – Há os ciclos, período em que ele vêm majoritariamente da região do Benin, o golfo de
Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma
lógica mercantil. Mas não dá pra saber ao certo quantos de cada grupo vieram. Muitas vezes os
negros eram capturados num lugar, levados para outro e daí transportados. Não é uma
movimentação do tipo da imigração europeia. Um descendente de italiano consegue saber a raiz
dele, vai lá [na Europa] visitar seus parentes. Eu não consigo fazer isso com minha ancestralidade.
Aqui nós tivemos que construir um outro acesso a nossa ancestralidade, uma outra forma de alçar
essa ancestralidade, reconstruir todo um conjunto de referências. A religiosidade é muito importante
nesse sentido porque ela reconstrói essa ancestralidade mítica. Eu sou uma mulher de axé, sou uma
orixá, filha de Oxum. E considero Oxum como ancestral mítico. Então você refaz um laço. Refazer
um laço que foi desfeito a partir da violência que foi o massacre imposto às culturas e civilizações
da África, na desarticulação dessas sociedades, na captura, no sequestro dessas pessoas para o
Brasil. Repetindo Beatriz Nascimento, somos uma população transatlântica. Somos negros e negras
da diáspora, somo resultado da diáspora.
SÃO MATEUS FOI A PRINCIPAL PORTA DE ENTRADA DE AFRICANOS NO BRASIL?
LAVÍNIA – Do Espírito Santo, sim; do Brasil, configura uma das mais importantes, é destaque.
Mas do Brasil, as mais importantes são: Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Maranhão. São Mateus
recebeu um número enorme de escravizados.
HÁ REGISTROS DE TRAFICANTES DE ESCRAVOS CAPIXABAS QUE TENHAM
ATUADO EM S. MATEUS, VITÓRIA E ITAPEMIRIM?
LAVÍNIA – Tem muitos descendentes de traficantes de escravos entre nós [risos]. Na minha
pesquisa sobre Queimado, não vamos falar de traficantes, mas vamos falar de quem tinha escravos,
de famílias que hoje são famílias tradicionais e que tem o seu patrimônio vindo do trabalho escravo.
A FAZENDA DE ARAÇATIBA, EM VIANA, ERA DE ESCRAVOS AFRICANOS DE
JESUÍTAS?
LAVÍNIA – Os jesuítas estão juntos com os indígenas. Essa é a população que eles vão
salvaguardar (entre aspas) da escravização que os português impõe sobre as culturas e civilizações
africanas. Os jesuítas levam os indígenas para as missões para catequizá-los. Lógico que os jesuítas
também tinham escravos. O Convento da Penha foi construído com o trabalho de indígenas e negros
escravizados. Adoro ir ao Convento da Penha porque é um espaço da minha infância. A gente ía
muito lá fazer piquenique, tenho foto da minha mãe e de meu pai quando eram noivos ainda,
naquela pedra, onde agora tem aquelas palmeiras imperiais. Quando eu subo por aquele caminho.
Imagina, levar aquelas pedras, mais banha de baleia, porque não tinha cimento, lá pra cima. Muita
gente morreu ali naquela subida para construir aquele espaço. Hoje é um patrimônio, lugar de
visitação, de fé, de devoção.
A construção daquilo que a gente chama de empresa colonial no Brasil ela é alicerçada em duas
coisas: na violência e na fé cristã. A violência não é só física, não é só a chibata, o ferro ou o
grilhão. A violência é aquilo que te diminui como ser humano, é aquilo que te coloca um espelho
dizendo que você é um selvagem, que você não tem cultura, que você é um demônio. É um
processo da qual o Brasil precisa olhar, sem vitimismo, sem caça às bruxas, precisamos nos
debruçar sobre esse processo, estudar e construir algo diferente. De lá pra cá, a violência continua a
mesma, só mudou a forma. Quem é a população mais encarcerada? Nós, negras e negros. Qual é a
mulher que mais sofre violência [no parto]? Nós, mulheres negras, porque somos fortes, nós
aguentamos ter filho sem anestesia. Entre uma mulher negra e uma mulher branca na hora do parto
(são dados, eu não estou aqui viajando, não) a mulher negra espera porque ela é mais forte. Esse
resgate de humanidade,de uma cidadania plena, de direitos, de ser percebido, valorizado na sua
cultura ainda não foi feito. Não aquilo que o discurso de poder da branquitude coloca de que nós
devemos ser.
DO PONTO DE VISTA DO CRISTIANISMO, EXISTIA ALGUM TIPO DE DIFERENÇA
PARA O SENHOR DE ESCRAVO NA HORA DE ESCOLHER ENTRE UM SUDANÊS E
UM BANTO?
LAVÍNIA – Os sudaneses eram tidos como negros perigosos. Os europeus quando olham pra uma
cultura diferente, diz assim: essa cultura está mais próxima de nós, então ela é mais inteligente. Os
sudaneses escreviam. Eram tidos como homens perigosos porque sabiam ler, porque sabiam
escrever. Os sudaneses pertenciam a uma religião que cultuavam um deus único, então, muito mais
próximo da cosmovisão cristã. Os bantos tinham os seus Inquices, que são os espírito da natureza, e
isso é para o europeu um culto primitivo, por estar associado à natureza. Na verdade, não se tinha
essa ideia. Isso só vai ser elaborado pela ciência antropológica no século 19. Naquele momento [nos
séculos anteriores da escravatura], era coisa do demônio. Tinha as proibições dos cultos. No caso
dos bantos, tiveram que se reinventar, se alojar junto às irmandades de negros, cultuando santos
negros, como São Benedito. Há um processo de criação de estratégia de sobrevivência. E
funcionou, tanto que estou aqui.
QUAIS AS PRINCIPAIS REVOLTAS ESCRAVISTAS NO ESPÍRITO SANTO? HÁ
REGISTROS DE ALGUMA ANTES DOS ANOS 1800?
LAVÍNIA – A revolta de escravizados mais importante é a Revolta de Queimado. Há movimentos e
pequenas revoltas que aconteceram ao longo do século 17, 18 e 19. Pode ser que exista, mas não
conheço. Em meus estudos, fiquei muito presa aos meus estudos, que é sobre a revolta.
O professor Rodrigo Goulart (Ifes) acabou de escrever um artigo que fala de revoltas no mesmo
período que a Revolta do Queimado. Tem, sim, mas ainda carece de pesquisa. Ele fala de uma
revolta em louvor à Nossa Senhora de Santana, que foi registrada pelo historiador José Roberto
Pinto Goes. Além dessas revoltas que são ações coletivas em busca de liberdade, há aquilo que eu
chamo de síncopa libertária, que é o espaço do improviso. Você tem a relação na base e na do
senhor escravo. No espaço do improviso [entre as duas relações] do cotidiano, na síncopa, há a
negociação.
O meu orientador, Geraldo Antônio Soares, tem um artigo que fala das pequenas fugas de negros
para negociar com o seu senhor. Ele é o único escravizado de um senhor e todo o trabalho da casa
fica pra ele, aí ele foge e vai pra casa de um vizinho (estamos falando de área rural, casa de vizinho
e longe), e fica abrigado na casa de um home livre pobre. Ele manda dizer pro seu senhor que se
aquela situação de sobrecarga de trabalho não mudar ele vai embora e não volta nunca mais. O
senhor, que precisa do trabalho desse negro, pois é dele que ele vive, aceita as condições. Quem
negocia? É o trabalhador. Você tem no espaço do improviso do que chamo de síncopa libertária,
você tem momentos em que a liberdade acontece. Porque o cotidiano não está narrado por status
jurídico. Coisas acontecem no cotidiano. Então, existem alguns estudos sobre esses pequenos
eventos que acontecem de forma, às vezes, individual, que não se caracterizam por uma revolta. Ou
fugas coletivas, individuais, essas pequenas negociações de que eu falo.
Tem um outro livro que é um clássico de Sidney Chalhoub, Visões da liberdade, que conta as
estratégias que negros e negras escravizados no Brasil buscaram para serem livres. Essas histórias
sobre as estratégias de resistências está ainda muito restrito ao nível da academia.
Todas as vezes que eu passo por alguma dificuldade, lembro sempre de minha bisavó, uma mulher
que nasceu na Lei do Ventre Livre. Foi lavadeira no beira do Rio Cricaré, criou três filhos sozinha,
porque o homem que era pai dos filhos dela não podia estar com ela ou não queria estar com ela,
porque era o maestro da Lira Mateense, Manoel Ribeiro, e não podia estar com uma mulher negra.
Ela se chamava Carolina de Jesus, e chamávamos ela de Calu. Lembro sempre das estratégias de
resistência dessa mulher, que ela sobreviveu a mais de 100 anos. Nós, negros e negras, precisamos
conhecer precisamos conhecer as histórias de nossos bisavós.
PROVAVELMENTE, A ETNIA BANTO PREDOMINOU NA INSURREIÇÃO DE
QUEIMADO OU FOI DIFERENTE?
LAVÍNIA – Nunca parei para pensar nisso, mas provavelmente, sim. Não foi algo que me capturou
em minha pesquisa. Eu estava mais interessada em perceber como acontece essa movimentação.
Quase toda a historiografia escrita por homens brancos tinha como ponto de partida a promessa que
o frei fez [e não foi cumprida]. Tem importância se o frei prometeu ou não prometeu? Não, né?. O
importante é o que mobiliza.
E o que mobiliza Queimado? O que mobiliza aqueles negros escravizados? — a busca, a luta pela
liberdade. Tanto que meu livro se chama Revolta de Queimado, negritude, política e liberdade.
A Revolta de Queimado é o ápice de um movimento, de uma construção de uma micropolítica ali na
região do Queimado, por Eliziário, João da Viúva, Chico Prego, todos eles que se articularam no
sentido de conquistar a carta de alforria a partir da construção da igreja. A igreja e um espaço
importante, era a matriz da Freguesia do Queimado, uma freguesia muito importante, entreposto
comercial de toda a produção que vinha da região dos tropeiros até a região montanhosa e descia
com os canoeiros pela Rio Santa Maria e paravam em Queimado para se abastecer. Eliziário e os
outros perceberam que aquele era um momento importante. Se tinha notícia de que vários negros
que voltavam guerras haviam conquistado a carta de alforria. O Eliziário (que sabia ler e escrever)
era um negro escravizado que convivia na casa de João Clímaco, que tinha sido presidente da
Assembleia Provincial e era deputado.
AS COMUNIDADE QUILOMBOLAS REMANESCENTES E NOVAS SÃO FORMAS DE
RESISTÊNCIA E AUTO-ORGANIZAÇÃO DE DESCENDENTES DE ANTIGOS
ESCRAVOS?
LAVÍNIA – Sim. Mas não existem comunidades quilombolas novas. Foi na Constituição de 1988
que se criou esse dispositivo para legalizar a posse de terra das comunidades existentes que estavam
na terra e que não possuíam a posse dele. As comunidades remanescentes de quilombos são
oriundas de famílias negras que permaneceram ligadas à terra após a abolição.
QUAL A DIFERENÇA ENTRE A ABOLIÇÃO NO BRASIL E NOS EUA?
LAVÍNIA – São processos diferentes. O processo de conquista é diferente nos EUA é diferente. As
13 colônias que deram origem aos Estados Unidos exterminam as várias civilizações que estavam
ali, violentamente. No Brasil, esse processo aconteceu em relação aos nossos indígenas. O Brasil foi
o último país a acabar com a escravidão. O que nos aproxima são os processos e estratégias que
foram criados de lutar, de sobreviver e nos mantermos de pé. Estou estudando algumas autoras
norte-americanas, elas falam e escrevem coisas que eu já senti. Mas os processos são diferentes. A
construção do que é ser negro nos EUA é diferente da de ser negro no Brasil.
POR QUE A POPULAÇÃO AFRODESCENDENTE, EX-ESCRAVA, FOI DISCRIMINADA
NA CULTURA E ECONOMIA BRASILEIRA?
LAVÍNIA – Em termos culturais, nós não fomos discriminados. Porque o que é de preto faz
sucesso, o que não faz sucesso é ser preto. Vamos pensar no axé, no samba, são manifestações
culturais negras que fazem sucesso.
O racismo não é uma construção subjetiva — eu não gosto de você, Lavínia, porque você é negra
—. O racismo é uma estrutura de poder de um grupo sobre outro, é uma expressão de poder, de
hegemonia e, no Brasil, de branco sobre negro.
Quando a gente fala da questão cultural (samba, capoeira), tem aquela expressão — Ah, vou pra
Europa tomar um banho de cultura. O problema do Brasil é que não temos cultura —. São falas que
expressam alguma coisa. O que essas falam representam? Que o lugar de cultura é lá. Por quê?
Porque o projeto de embranquecer esse país deu errado. Embranquecer o Brasil foi um projeto de
Estado. A imigração tinha como objetivo de acabar com a presença nefasta da comunidade negra no
Brasil. Na década de 1930 tem toda uma literatura que culpabiliza a população negra pelo atraso do
Brasil.
A historiografia passa a ideia tradicional de que os trabalhadores negros escravizados eram todos
selvagens. Havia trabalhadores especializados. Por exemplo, na região de Minas Gerais, quem vai
trabalhar na extração do ouro são mineradores africanos. Outro dia, descobri por um professor de
arte angolano, que muitos traficantes ofereciam trabalho para mineradores e chegando aqui eram
escravizados. Falar que civilizações que construíram Timbuktu [cidade islâmica no Mali, construída
antes da era cristã], as pirâmides do Egito [e outras], que são civilizações que não têm cultura, que
não tem trabalhadores especializados; o ferro, e isso é comprovado, foi forjado em primeiro lugar
na África. A África é o berço da humanidade. A gente percebe que existe um discurso que
desabilita, que descaracteriza, que desautoriza, que transforma a África em tribos. Olha a diferença
em você falar tribo e civilização, complexo civilizatório e tribo. Quando você fala em tribo, você
pensa em monte de gente. Toda vez que se refere a povos, aos indígenas, são civilizações. Por quê?
Porque tem culturas próprias, por que tem um civilis culturais, que produzem sentidos, porque tem
uma relação com o sagrado, são povos diversos múltiplos.
Essa multiplicidade, essa diversidade da movimentação dos povos no planeta Terra é que é lindo. O
problema é o discurso hegemônico de uma cultura que se colocou acima do bem e do mal e que
produziu tanta violência. É só ver a primeira e a segunda guerra mundial, a diáspora africana, a
guerra do Vietnã. As guerras promovidas pelos europeus e pela cultura branca são guerra e processo
de extermínio, e, de certa forma é o que o Estado brasileiro promove e apoia, e que nós negros
temos de conviver todos os dias. As mães negras enterrando as suas crianças. Promover dignidade,
democracia e cidadania é combater o racismo, e combater o racismo é uma responsabilidade de
todos nós, de todos que acreditam que o mundo é pra todo mundo. Os saberes, todos eles, devem ser
respeitados, não podem ser minimizados, do saber da mulher quilombola, do saber da marisqueira,
ela sabe uma coisa que não sei. Por que o saber acadêmico é mais importante? Nós temos como
princípio civilizatório a roda onde todos coloquem aquilo que sabem, aquilo que podem oferecer, e
que tudo isso é bem-vindo. Quando você elimina, inferioriza ou descarta uma cultura você está
tirando do mundo a possibilidade de criatividade, de reinvenção, daquilo que eu acredito que pode
tornar o mundo um mundo melhor.
Outra desculpa era de que os negros só trabalhavam em baixo do chicote. Como não tinha mais
chicote, são preguiçosos, são malandros, não gostam de trabalhar. E a gente naturalizou essas
expressões de uma forma gritante, aquilo que chamamos de racismo recreativo, que a gente faz sem
perceber que estamos sendo racistas. O racismo no Brasil, por ser estrutural, foi naturalizado nas
nossas ações, nas nossas falas. A linguagem é uma expressão de poder. Tem um provérbio africano
que diz que a linguagem constrói o mundo. O racismo é o maior entrave para que você tenha
cidadania plena e democracia. Enquanto houver racismo, o Brasil não vai ser um país democrático.
QUAL É A IMPORTÂNCIA DO ABOLICIONISMO (ABOLICIONISTAS E IMPRENSA)
NO ESTADO? NÃO ERA COISA DE BRANCO?
LAVÍNIA – Nós temos abolicionistas negros. Luiz Gama é minha referência no movimento
abolicionista. Luiz Gama ia para a Assembleia Provincial de S. Paulo e defendia que após a
abolição houvesse uma espécie de política pública que promovesse e pudesse incluir essa
população. Na verdade, após a abolição a popução negra foi abandonada, inclusive havia um
discurso do Estado que dizia: — vocês não são brasileiros, são africanos, voltem para África. Tudo
isso ainda precisa ser revelado, vir à tona, e conhecer como se dá essa construção. O movimento
abolicionista tem importância, mas a resistência, as estratégias de afirmação de se manter em pé… e
a Lei Áurea, na verdade, a abolição no Brasil não é a Lei Áurea, a abolição é um processo, é um
conjunto de leis que vai pouco a pouco abolindo a escravidão, mas o mais importante é a
movimentação da população negra nessas estratégias. Lógico que a luta pelo direito, principalmente
liderada por Luiz Gama, é da maior importância. O autor de Insurreição de Queimado, Afonso
Claudio, era abolicionista. O Espírito Santo teve dois grupos de abolicionistas.
SEGREGACIONISMO, O QUE SERIA NO COTIDIANO DE ONTEM E DE HOJE?
LAVÍNIA – Essa palavra pode ser aplicada na realidade norte-americana, na África do Sul, onde
teve leis de segregação. No Brasil, é mais complicado porque não há um processo de segregação
oficial. Ela acontece no processo que foi naturalizado. Por que a massa carcerária no Brasil é negra?
— Porque são preguiçosos, não gostam de trabalhar, aí viram bandidos —. O menino morreu na
boca do tráfico: — ah, mas ele tinha escolha —. Aí, eu pergunto, onde você nasceu? Ah, na Praia
do Canto? É dizer que outro tinha escolha quando você tem escolha. O que a gente tem é um
destino social e racial no Brasil. O destino social de negros e negras é estar no subemprego, ter os
piores salários, a pior escolarização. Isso vem mudando? Vem. Mas nós somos a maioria, então
temos que estar representado na universidade, temos que ser a maioria. Não podemos ser a minoria,
ou 20%. Está mudando? Mas ainda somos poucos dentro da Assembleia Legislativa. Quantos
ministros negros temos?
É preciso avançar. Acho que a gente está num momento linear desse avanço. Falei das estratégias do
período da escravidão, da resistência, da construção do movimento negro, de toda essa articulação
que a gente vem fazendo no sentido de apresentar políticas afirmativas, no sentido de escrever a
nossa história, queremos mais, precisamos de mais porque nossa juventude está sendo exterminada,
porque nossas mulheres ainda estão sendo violentadas, são as que mais sofrem violência.
GLEYSON TETE E ALDO ALDESCO