entrevista com a pesquisadora e professora ......benin foi um grande porto do sequestro dessas...

9
ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA DE HISTÓRIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA LÍVIA COUTINHO CARDOSO AO PORTAL DE NOTÍCIAS DA ALES - 12 DE NOVEMBRO DE 2020. LAVÍNIA COUTINHO CARDOSO é historiadora e pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro (Neab) da Ufes, mestre em História Social das Relações Políticas (Ufes), especialista em História Política, Educação e Mídia (Ufes), professora de educação básica na rede pública de ensino de Vitória. Atualmente, pesquisa sobre história das mulheres negras no Espírito Santo. É autora do livro Revolta do Queimado, publicado pela Appris Editora, Campinas (2020). É militante do Círculo Palmarino e do Núcleo Estadual de Mulheres Negras do Espírito Santo. Lavínia concedeu esta entrevista ao portal de notícias da Ales por conta da Semana da Consciência Negra no Espírito Santo. Gleyson Tete e Aldo Aldesco.

Upload: others

Post on 18-Jun-2021

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA DE HISTÓRIA DE

EDUCAÇÃO BÁSICA LÍVIA COUTINHO CARDOSO AO PORTAL DE

NOTÍCIAS DA ALES - 12 DE NOVEMBRO DE 2020.

LAVÍNIA COUTINHO CARDOSO é historiadora e pesquisadora do Núcleo de Estudos

Afro-Brasileiro (Neab) da Ufes, mestre em História Social das Relações Políticas (Ufes),

especialista em História Política, Educação e Mídia (Ufes), professora de educação básica

na rede pública de ensino de Vitória. Atualmente, pesquisa sobre história das mulheres

negras no Espírito Santo. É autora do livro Revolta do Queimado, publicado pela Appris

Editora, Campinas (2020). É militante do Círculo Palmarino e do Núcleo Estadual de

Mulheres Negras do Espírito Santo. Lavínia concedeu esta entrevista ao portal de notícias

da Ales por conta da Semana da Consciência Negra no Espírito Santo.

Gleyson Tete e Aldo Aldesco.

Page 2: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

EIS A ENTREVISTA.

A TERMINOLOGIA UTILIZADA POR CLEBER MACIEL, DEFININDO SUDANESES E

BANTOS COMO OS PRINCIPAIS TRONCOS ÉTNICOS AFRICANOS TRAZIDOS AO

BRASIL CONTEMPLA O MAPEAMENTO DOS VARIADOS GRUPOS AQUI

EXISTENTES?

LAVÍNIA COUTINHO CARDOSO – Sim, contempla. Tive a oportunidade de ser orientanda do

professor Cleber Maciel, sou cria dele. Na verdade, a maior parte da população negra do Espírito

Santo pertence ao grupo cultural banto. Minha bisavó era banto. Ela era da região de Itaúnas. A

cultura negra no Espírito Santo tem sua matriz na cultura banto.

QUAIS SÃO OS OUTROS GRUPOS MINORITÁRIOS QUE VIERAM PARA O ESPÍRITO

SANTO?

LAVÍNIA – É um mapeamento um pouco complicado por causa da documentação. A gente trabalha

muito com os vestígios. O maior vestígio da cultura negra no Brasil está na matriz banto. Você tem

uma circulação das outras culturas pelo Brasil. Todas essas culturas estão presentes naquilo que a

gente pode dizer como a cultura negra diaspórica, a cultura negra que vai se reconstituir e vai se

reafirmar no Brasil e construir um território para ela, um território muito bem demarcado nas

manifestações culturais, que de uma certa forma viraram coisas da cultura brasileira, mas são

notadamente, marcadamente da cultura negra. Todos esses grupos têm passagem pelo Espírito

Santo. Mas o grupo que vai demarcadamente criar um território da cultura negra no Espírito Santo é

o grupo banto.

DE ONDE VIERAM? QUANTOS, A PARTIR DE QUANDO, PARA ONDE? — IORUBÁS,

CRIOLOS, MINAS, NAGÔ, BENGUELA, MOÇAMBIQUE, CABINDA, REBOLO, SÁS,

CONGOS?, ENFIM, GRUPOS, TRIBOS, ETNIAS, NAÇÕES.

LAVÍNIA – A gente tem estimativa dos números e de como eles chegam. A gente só não sabe

(vocês sabem que os arquivos foram queimados pelo sr. Rui Barbosa para apagar a mancha negra da

história do Brasil). Existem registros de números e o que notadamente está a nossos olhos, e não

precisa de números para saber disso, é que esmagadoramente a maior parte da população do

Espírito Santo é afrodescendente, negros (pretos e pardos).

Page 3: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

E TEM ALGUMA DOCUMENTAÇÃO DE LOCALIZAÇÃO DE ONDE VIERAM MAIS

AFRICANOS?

LAVÍNIA – Há os ciclos, período em que ele vêm majoritariamente da região do Benin, o golfo de

Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma

lógica mercantil. Mas não dá pra saber ao certo quantos de cada grupo vieram. Muitas vezes os

negros eram capturados num lugar, levados para outro e daí transportados. Não é uma

movimentação do tipo da imigração europeia. Um descendente de italiano consegue saber a raiz

dele, vai lá [na Europa] visitar seus parentes. Eu não consigo fazer isso com minha ancestralidade.

Aqui nós tivemos que construir um outro acesso a nossa ancestralidade, uma outra forma de alçar

essa ancestralidade, reconstruir todo um conjunto de referências. A religiosidade é muito importante

nesse sentido porque ela reconstrói essa ancestralidade mítica. Eu sou uma mulher de axé, sou uma

orixá, filha de Oxum. E considero Oxum como ancestral mítico. Então você refaz um laço. Refazer

um laço que foi desfeito a partir da violência que foi o massacre imposto às culturas e civilizações

da África, na desarticulação dessas sociedades, na captura, no sequestro dessas pessoas para o

Brasil. Repetindo Beatriz Nascimento, somos uma população transatlântica. Somos negros e negras

da diáspora, somo resultado da diáspora.

SÃO MATEUS FOI A PRINCIPAL PORTA DE ENTRADA DE AFRICANOS NO BRASIL?

LAVÍNIA – Do Espírito Santo, sim; do Brasil, configura uma das mais importantes, é destaque.

Mas do Brasil, as mais importantes são: Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Maranhão. São Mateus

recebeu um número enorme de escravizados.

HÁ REGISTROS DE TRAFICANTES DE ESCRAVOS CAPIXABAS QUE TENHAM

ATUADO EM S. MATEUS, VITÓRIA E ITAPEMIRIM?

LAVÍNIA – Tem muitos descendentes de traficantes de escravos entre nós [risos]. Na minha

pesquisa sobre Queimado, não vamos falar de traficantes, mas vamos falar de quem tinha escravos,

de famílias que hoje são famílias tradicionais e que tem o seu patrimônio vindo do trabalho escravo.

A FAZENDA DE ARAÇATIBA, EM VIANA, ERA DE ESCRAVOS AFRICANOS DE

JESUÍTAS?

LAVÍNIA – Os jesuítas estão juntos com os indígenas. Essa é a população que eles vão

salvaguardar (entre aspas) da escravização que os português impõe sobre as culturas e civilizações

Page 4: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

africanas. Os jesuítas levam os indígenas para as missões para catequizá-los. Lógico que os jesuítas

também tinham escravos. O Convento da Penha foi construído com o trabalho de indígenas e negros

escravizados. Adoro ir ao Convento da Penha porque é um espaço da minha infância. A gente ía

muito lá fazer piquenique, tenho foto da minha mãe e de meu pai quando eram noivos ainda,

naquela pedra, onde agora tem aquelas palmeiras imperiais. Quando eu subo por aquele caminho.

Imagina, levar aquelas pedras, mais banha de baleia, porque não tinha cimento, lá pra cima. Muita

gente morreu ali naquela subida para construir aquele espaço. Hoje é um patrimônio, lugar de

visitação, de fé, de devoção.

A construção daquilo que a gente chama de empresa colonial no Brasil ela é alicerçada em duas

coisas: na violência e na fé cristã. A violência não é só física, não é só a chibata, o ferro ou o

grilhão. A violência é aquilo que te diminui como ser humano, é aquilo que te coloca um espelho

dizendo que você é um selvagem, que você não tem cultura, que você é um demônio. É um

processo da qual o Brasil precisa olhar, sem vitimismo, sem caça às bruxas, precisamos nos

debruçar sobre esse processo, estudar e construir algo diferente. De lá pra cá, a violência continua a

mesma, só mudou a forma. Quem é a população mais encarcerada? Nós, negras e negros. Qual é a

mulher que mais sofre violência [no parto]? Nós, mulheres negras, porque somos fortes, nós

aguentamos ter filho sem anestesia. Entre uma mulher negra e uma mulher branca na hora do parto

(são dados, eu não estou aqui viajando, não) a mulher negra espera porque ela é mais forte. Esse

resgate de humanidade,de uma cidadania plena, de direitos, de ser percebido, valorizado na sua

cultura ainda não foi feito. Não aquilo que o discurso de poder da branquitude coloca de que nós

devemos ser.

DO PONTO DE VISTA DO CRISTIANISMO, EXISTIA ALGUM TIPO DE DIFERENÇA

PARA O SENHOR DE ESCRAVO NA HORA DE ESCOLHER ENTRE UM SUDANÊS E

UM BANTO?

LAVÍNIA – Os sudaneses eram tidos como negros perigosos. Os europeus quando olham pra uma

cultura diferente, diz assim: essa cultura está mais próxima de nós, então ela é mais inteligente. Os

sudaneses escreviam. Eram tidos como homens perigosos porque sabiam ler, porque sabiam

escrever. Os sudaneses pertenciam a uma religião que cultuavam um deus único, então, muito mais

próximo da cosmovisão cristã. Os bantos tinham os seus Inquices, que são os espírito da natureza, e

isso é para o europeu um culto primitivo, por estar associado à natureza. Na verdade, não se tinha

essa ideia. Isso só vai ser elaborado pela ciência antropológica no século 19. Naquele momento [nos

séculos anteriores da escravatura], era coisa do demônio. Tinha as proibições dos cultos. No caso

dos bantos, tiveram que se reinventar, se alojar junto às irmandades de negros, cultuando santos

Page 5: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

negros, como São Benedito. Há um processo de criação de estratégia de sobrevivência. E

funcionou, tanto que estou aqui.

QUAIS AS PRINCIPAIS REVOLTAS ESCRAVISTAS NO ESPÍRITO SANTO? HÁ

REGISTROS DE ALGUMA ANTES DOS ANOS 1800?

LAVÍNIA – A revolta de escravizados mais importante é a Revolta de Queimado. Há movimentos e

pequenas revoltas que aconteceram ao longo do século 17, 18 e 19. Pode ser que exista, mas não

conheço. Em meus estudos, fiquei muito presa aos meus estudos, que é sobre a revolta.

O professor Rodrigo Goulart (Ifes) acabou de escrever um artigo que fala de revoltas no mesmo

período que a Revolta do Queimado. Tem, sim, mas ainda carece de pesquisa. Ele fala de uma

revolta em louvor à Nossa Senhora de Santana, que foi registrada pelo historiador José Roberto

Pinto Goes. Além dessas revoltas que são ações coletivas em busca de liberdade, há aquilo que eu

chamo de síncopa libertária, que é o espaço do improviso. Você tem a relação na base e na do

senhor escravo. No espaço do improviso [entre as duas relações] do cotidiano, na síncopa, há a

negociação.

O meu orientador, Geraldo Antônio Soares, tem um artigo que fala das pequenas fugas de negros

para negociar com o seu senhor. Ele é o único escravizado de um senhor e todo o trabalho da casa

fica pra ele, aí ele foge e vai pra casa de um vizinho (estamos falando de área rural, casa de vizinho

e longe), e fica abrigado na casa de um home livre pobre. Ele manda dizer pro seu senhor que se

aquela situação de sobrecarga de trabalho não mudar ele vai embora e não volta nunca mais. O

senhor, que precisa do trabalho desse negro, pois é dele que ele vive, aceita as condições. Quem

negocia? É o trabalhador. Você tem no espaço do improviso do que chamo de síncopa libertária,

você tem momentos em que a liberdade acontece. Porque o cotidiano não está narrado por status

jurídico. Coisas acontecem no cotidiano. Então, existem alguns estudos sobre esses pequenos

eventos que acontecem de forma, às vezes, individual, que não se caracterizam por uma revolta. Ou

fugas coletivas, individuais, essas pequenas negociações de que eu falo.

Tem um outro livro que é um clássico de Sidney Chalhoub, Visões da liberdade, que conta as

estratégias que negros e negras escravizados no Brasil buscaram para serem livres. Essas histórias

sobre as estratégias de resistências está ainda muito restrito ao nível da academia.

Todas as vezes que eu passo por alguma dificuldade, lembro sempre de minha bisavó, uma mulher

que nasceu na Lei do Ventre Livre. Foi lavadeira no beira do Rio Cricaré, criou três filhos sozinha,

Page 6: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

porque o homem que era pai dos filhos dela não podia estar com ela ou não queria estar com ela,

porque era o maestro da Lira Mateense, Manoel Ribeiro, e não podia estar com uma mulher negra.

Ela se chamava Carolina de Jesus, e chamávamos ela de Calu. Lembro sempre das estratégias de

resistência dessa mulher, que ela sobreviveu a mais de 100 anos. Nós, negros e negras, precisamos

conhecer precisamos conhecer as histórias de nossos bisavós.

PROVAVELMENTE, A ETNIA BANTO PREDOMINOU NA INSURREIÇÃO DE

QUEIMADO OU FOI DIFERENTE?

LAVÍNIA – Nunca parei para pensar nisso, mas provavelmente, sim. Não foi algo que me capturou

em minha pesquisa. Eu estava mais interessada em perceber como acontece essa movimentação.

Quase toda a historiografia escrita por homens brancos tinha como ponto de partida a promessa que

o frei fez [e não foi cumprida]. Tem importância se o frei prometeu ou não prometeu? Não, né?. O

importante é o que mobiliza.

E o que mobiliza Queimado? O que mobiliza aqueles negros escravizados? — a busca, a luta pela

liberdade. Tanto que meu livro se chama Revolta de Queimado, negritude, política e liberdade.

A Revolta de Queimado é o ápice de um movimento, de uma construção de uma micropolítica ali na

região do Queimado, por Eliziário, João da Viúva, Chico Prego, todos eles que se articularam no

sentido de conquistar a carta de alforria a partir da construção da igreja. A igreja e um espaço

importante, era a matriz da Freguesia do Queimado, uma freguesia muito importante, entreposto

comercial de toda a produção que vinha da região dos tropeiros até a região montanhosa e descia

com os canoeiros pela Rio Santa Maria e paravam em Queimado para se abastecer. Eliziário e os

outros perceberam que aquele era um momento importante. Se tinha notícia de que vários negros

que voltavam guerras haviam conquistado a carta de alforria. O Eliziário (que sabia ler e escrever)

era um negro escravizado que convivia na casa de João Clímaco, que tinha sido presidente da

Assembleia Provincial e era deputado.

AS COMUNIDADE QUILOMBOLAS REMANESCENTES E NOVAS SÃO FORMAS DE

RESISTÊNCIA E AUTO-ORGANIZAÇÃO DE DESCENDENTES DE ANTIGOS

ESCRAVOS?

LAVÍNIA – Sim. Mas não existem comunidades quilombolas novas. Foi na Constituição de 1988

que se criou esse dispositivo para legalizar a posse de terra das comunidades existentes que estavam

Page 7: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

na terra e que não possuíam a posse dele. As comunidades remanescentes de quilombos são

oriundas de famílias negras que permaneceram ligadas à terra após a abolição.

QUAL A DIFERENÇA ENTRE A ABOLIÇÃO NO BRASIL E NOS EUA?

LAVÍNIA – São processos diferentes. O processo de conquista é diferente nos EUA é diferente. As

13 colônias que deram origem aos Estados Unidos exterminam as várias civilizações que estavam

ali, violentamente. No Brasil, esse processo aconteceu em relação aos nossos indígenas. O Brasil foi

o último país a acabar com a escravidão. O que nos aproxima são os processos e estratégias que

foram criados de lutar, de sobreviver e nos mantermos de pé. Estou estudando algumas autoras

norte-americanas, elas falam e escrevem coisas que eu já senti. Mas os processos são diferentes. A

construção do que é ser negro nos EUA é diferente da de ser negro no Brasil.

POR QUE A POPULAÇÃO AFRODESCENDENTE, EX-ESCRAVA, FOI DISCRIMINADA

NA CULTURA E ECONOMIA BRASILEIRA?

LAVÍNIA – Em termos culturais, nós não fomos discriminados. Porque o que é de preto faz

sucesso, o que não faz sucesso é ser preto. Vamos pensar no axé, no samba, são manifestações

culturais negras que fazem sucesso.

O racismo não é uma construção subjetiva — eu não gosto de você, Lavínia, porque você é negra

—. O racismo é uma estrutura de poder de um grupo sobre outro, é uma expressão de poder, de

hegemonia e, no Brasil, de branco sobre negro.

Quando a gente fala da questão cultural (samba, capoeira), tem aquela expressão — Ah, vou pra

Europa tomar um banho de cultura. O problema do Brasil é que não temos cultura —. São falas que

expressam alguma coisa. O que essas falam representam? Que o lugar de cultura é lá. Por quê?

Porque o projeto de embranquecer esse país deu errado. Embranquecer o Brasil foi um projeto de

Estado. A imigração tinha como objetivo de acabar com a presença nefasta da comunidade negra no

Brasil. Na década de 1930 tem toda uma literatura que culpabiliza a população negra pelo atraso do

Brasil.

A historiografia passa a ideia tradicional de que os trabalhadores negros escravizados eram todos

selvagens. Havia trabalhadores especializados. Por exemplo, na região de Minas Gerais, quem vai

trabalhar na extração do ouro são mineradores africanos. Outro dia, descobri por um professor de

arte angolano, que muitos traficantes ofereciam trabalho para mineradores e chegando aqui eram

Page 8: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

escravizados. Falar que civilizações que construíram Timbuktu [cidade islâmica no Mali, construída

antes da era cristã], as pirâmides do Egito [e outras], que são civilizações que não têm cultura, que

não tem trabalhadores especializados; o ferro, e isso é comprovado, foi forjado em primeiro lugar

na África. A África é o berço da humanidade. A gente percebe que existe um discurso que

desabilita, que descaracteriza, que desautoriza, que transforma a África em tribos. Olha a diferença

em você falar tribo e civilização, complexo civilizatório e tribo. Quando você fala em tribo, você

pensa em monte de gente. Toda vez que se refere a povos, aos indígenas, são civilizações. Por quê?

Porque tem culturas próprias, por que tem um civilis culturais, que produzem sentidos, porque tem

uma relação com o sagrado, são povos diversos múltiplos.

Essa multiplicidade, essa diversidade da movimentação dos povos no planeta Terra é que é lindo. O

problema é o discurso hegemônico de uma cultura que se colocou acima do bem e do mal e que

produziu tanta violência. É só ver a primeira e a segunda guerra mundial, a diáspora africana, a

guerra do Vietnã. As guerras promovidas pelos europeus e pela cultura branca são guerra e processo

de extermínio, e, de certa forma é o que o Estado brasileiro promove e apoia, e que nós negros

temos de conviver todos os dias. As mães negras enterrando as suas crianças. Promover dignidade,

democracia e cidadania é combater o racismo, e combater o racismo é uma responsabilidade de

todos nós, de todos que acreditam que o mundo é pra todo mundo. Os saberes, todos eles, devem ser

respeitados, não podem ser minimizados, do saber da mulher quilombola, do saber da marisqueira,

ela sabe uma coisa que não sei. Por que o saber acadêmico é mais importante? Nós temos como

princípio civilizatório a roda onde todos coloquem aquilo que sabem, aquilo que podem oferecer, e

que tudo isso é bem-vindo. Quando você elimina, inferioriza ou descarta uma cultura você está

tirando do mundo a possibilidade de criatividade, de reinvenção, daquilo que eu acredito que pode

tornar o mundo um mundo melhor.

Outra desculpa era de que os negros só trabalhavam em baixo do chicote. Como não tinha mais

chicote, são preguiçosos, são malandros, não gostam de trabalhar. E a gente naturalizou essas

expressões de uma forma gritante, aquilo que chamamos de racismo recreativo, que a gente faz sem

perceber que estamos sendo racistas. O racismo no Brasil, por ser estrutural, foi naturalizado nas

nossas ações, nas nossas falas. A linguagem é uma expressão de poder. Tem um provérbio africano

que diz que a linguagem constrói o mundo. O racismo é o maior entrave para que você tenha

cidadania plena e democracia. Enquanto houver racismo, o Brasil não vai ser um país democrático.

QUAL É A IMPORTÂNCIA DO ABOLICIONISMO (ABOLICIONISTAS E IMPRENSA)

NO ESTADO? NÃO ERA COISA DE BRANCO?

Page 9: ENTREVISTA COM A PESQUISADORA E PROFESSORA ......Benin foi um grande porto do sequestro dessas mulheres e homens para o Brasil. O tráfico tem uma lógica mercantil. Mas não dá pra

LAVÍNIA – Nós temos abolicionistas negros. Luiz Gama é minha referência no movimento

abolicionista. Luiz Gama ia para a Assembleia Provincial de S. Paulo e defendia que após a

abolição houvesse uma espécie de política pública que promovesse e pudesse incluir essa

população. Na verdade, após a abolição a popução negra foi abandonada, inclusive havia um

discurso do Estado que dizia: — vocês não são brasileiros, são africanos, voltem para África. Tudo

isso ainda precisa ser revelado, vir à tona, e conhecer como se dá essa construção. O movimento

abolicionista tem importância, mas a resistência, as estratégias de afirmação de se manter em pé… e

a Lei Áurea, na verdade, a abolição no Brasil não é a Lei Áurea, a abolição é um processo, é um

conjunto de leis que vai pouco a pouco abolindo a escravidão, mas o mais importante é a

movimentação da população negra nessas estratégias. Lógico que a luta pelo direito, principalmente

liderada por Luiz Gama, é da maior importância. O autor de Insurreição de Queimado, Afonso

Claudio, era abolicionista. O Espírito Santo teve dois grupos de abolicionistas.

SEGREGACIONISMO, O QUE SERIA NO COTIDIANO DE ONTEM E DE HOJE?

LAVÍNIA – Essa palavra pode ser aplicada na realidade norte-americana, na África do Sul, onde

teve leis de segregação. No Brasil, é mais complicado porque não há um processo de segregação

oficial. Ela acontece no processo que foi naturalizado. Por que a massa carcerária no Brasil é negra?

— Porque são preguiçosos, não gostam de trabalhar, aí viram bandidos —. O menino morreu na

boca do tráfico: — ah, mas ele tinha escolha —. Aí, eu pergunto, onde você nasceu? Ah, na Praia

do Canto? É dizer que outro tinha escolha quando você tem escolha. O que a gente tem é um

destino social e racial no Brasil. O destino social de negros e negras é estar no subemprego, ter os

piores salários, a pior escolarização. Isso vem mudando? Vem. Mas nós somos a maioria, então

temos que estar representado na universidade, temos que ser a maioria. Não podemos ser a minoria,

ou 20%. Está mudando? Mas ainda somos poucos dentro da Assembleia Legislativa. Quantos

ministros negros temos?

É preciso avançar. Acho que a gente está num momento linear desse avanço. Falei das estratégias do

período da escravidão, da resistência, da construção do movimento negro, de toda essa articulação

que a gente vem fazendo no sentido de apresentar políticas afirmativas, no sentido de escrever a

nossa história, queremos mais, precisamos de mais porque nossa juventude está sendo exterminada,

porque nossas mulheres ainda estão sendo violentadas, são as que mais sofrem violência.

GLEYSON TETE E ALDO ALDESCO