entrevista 'até lá abaixo

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[6 JUN 2011] 6 Lembras-te da primeira vez que se imaginaram em África? Tínhamos um desconheci- mento total da África Subsa- riana. Imaginava-me em Áfri- ca de cada vez que lia ‘Ébano’ de Ryszard Kapuscinski, que é o meu autor preferido, mas sempre com uma imagem bastante distanciada daquilo que deveria ser a realidade porque nunca lá tinha estado. Quando essa hipótese come- çou a aproximar-se aumentei o número de documentários que vi e livros que li. E algu- mas coisas corresponderam, outras não. O que é que vos puxava? Certamente cada um de vocês tinha motivações diferentes. Primeiro tinha a ver com a paixão pelo jornalismo. Sa- bemos bem aquilo que quere- mos fazer na nossa profissão e que aqui em Portugal, quer pela nossa idade, quer pelo mercado, temos as vias mui- to tapadas para poder fazer reportagens internacionais. A única forma de o fazer era com um projecto independen- te. Segundo, temos um gran- de gosto por viajar. E depois tinha a ver com o Mundial de Futebol, porque todos nós amamos futebol, somos gran- des adeptos. E também pelas circunstâncias de vida. Está- vamos fartos, cansados da ro- tina, um bocado perdidos, e a fuga acabou por ser a melhor solução para começar tudo de novo. LIVRO. ‘ATÉ LÁ ABAIXO’ É A HISTÓRIA DE TRÊS JOVENS QUE PARTEM DE LISBOA RUMO A ÁFRICA DO SUL EM BUSCA DE ALENTO PARA AS SUAS VIDAS » ALUNOS DO TÉCNICO PREMIADOS Pedro Mendes, aluno de Engenharia Electrotécnica e de Computa- dores, foi o vencedor do Prémio REN 2010 – Redes Energéticas de Portugal, que visa distinguir as melhores teses de mestrado em Portugal no âmbito das temáticas de redes e sistemas eléctricos de energia e gás natural. O trabalho valeu-lhe um prémio no valor de 12.500 euros. » LICENCIADA DA UMINHO DISTINGUIDA É um dos maiores galardões na Informática e distingue pela primei- ra vez um trabalho sobre teoria da computação. Alexandra Silva, licenciada em Matemática e Ciências da Computação (MCC) pela Universidade do Minho, ganhou o Prémio Científico IBM 2010. A investigação assenta sobre métodos algébricos e coalgébricos para arquitectura de software. De bola na mão até África CANSADOS DE PREENCHER RECIBOS VERDES E DA INCERTEZA QUE O FUTURO LHES RESERVAVA, TRÊS AMIGOS FOGEM PARA A ÁFRICA DO SUL. COM APENAS 60 EUROS POR DIA NO BOLSO, UM JIPE EM SEGUNDA MÃO E BOLAS DE FUTEBOL NA BAGAGEIRA, TIAGO CARRASCO, JOÃO HENRIQUES E JOÃO FONTES LANÇAM-SE À ESTRADA PARA PERSEGUIR O SONHO DE FAZER JORNALISMO A SÉRIO. PELO CAMINHO FIZERAM-SE PASSAR POR ESTUDANTES DE DESPORTO E ATRAVESSARAM SELVA E DESERTO PARA ASSISTIR AO MUNDIAL DE FUTEBOL NA CIDADE DO CABO. TIAGO CARRASCO, AUTOR DE ‘ATÉ LÁ ABAIXO’, CONTA-NOS COMO FOI A AVENTURA. Iluminados www.mundouniversitario.pt O Mundial de Futebol serviu apenas de pretexto ou tam- bém é uma parte importan- te da viagem? O futebol é a mais universal das linguagens a par da mú- sica. Se eu tiver uma bola de futebol e tu também quiseres jogar, fazemos uma baliza com duas pedras e estamos a comunicar. Achámos que o futebol, principalmente em África, era a plataforma per- feita para chegar a sítios onde de outra forma seria muito di- fícil. E essa foi a primeira pre- missa: nós chegávamos com uma bola, mesmo em bairros problemáticos como na Nigé- ria, e fazíamos logo muitos amigos. Para fazer uma viagem destas, assim sozinhos, durante meses, é preciso ter alguma coragem. Não sei se é coragem ou se é ingenuidade. Lembro-me que no primeiro dia estava com- pletamente tonto, sentia-me com os pés fora da terra, cheio de medo. Não sabia o que ia apanhar. Quando arrancas no carro, pensas: «Onde é que eu me vou meter? A minha vida vai mudar toda daqui para a frente.» É realmente uma sensação de um grande con- flito interior, mas que depois é saborosa. O que te marcou mais nesta experiência? Pela positiva, e isto pode pare- cer um lugar comum, mas fo- ram as pessoas. Noventa por cento dos africanos levanta-se todos os dias sem saber o que vai comer ao almoço, sem um único euro. Ao levantarem-se cada dia como se fosse o últi- mo acabam por também não ter grandes ambições nem respeitar grandes convenções. São muito genuínos e puros. E nesse contacto tu voltas um bocado às tuas raízes huma- nas. O que mais me marcou pela negativa foi, sem dúvida, a situação política e social da grande maioria dos países por onde passámos. Nunca me senti tão livre como nesta via- gem – podia andar descalço, sentar-me no chão, ninguém conhecia os meus passos. O regresso trouxe-vos alguma esperança quanto ao futuro profissional? O projecto, que à partida toda a gente dizia que era falhado e morto à nascença, permitiu- -nos fazer coisas que nunca tínhamos feito na vida. Publi- cámos em meios onde nunca tínhamos publicado antes, publicámos o livro, possivel- mente vamos fazer um docu- mentário, e isso tudo preen- cheu-nos completamente a nível profissional. Depois há o outro lado, que é o retorno que nós pensávamos que po- deríamos ter. Isso realmente não aconteceu e deixa-nos um bocado tristes. Possivelmente a única maneira de nos sen- tirmos satisfeitos a nível pro- fissional e conseguir seguir o jornalismo é voltarmos a fazer uma coisa destas. Andreia Arenga [email protected] © João Henriques PASSAPORTE TIAGO CARRASCO É jornalista. Estagiou na TVI, colaborou em alguns programas da RTP, escreveu para a revista ‘Sábado’ e ‘Playboy’, mas sempre a recibos verdes. No início do livro agradece às chefes que nunca lhe ofereceram um contrato de trabalho. Depois de regressar de África continua a trabalhar como freelancer para vários meios e produtoras para pagar as contas. Espera voltar a fazer mais um destes projectos até que alguém valorize o seu trabalho. JOÃO HENRIQUES É fotógrafo. Colaborou regularmente com o jornal ‘Público’ e com a Associated Press em Portugal. Quando regressou de África ficou três meses à procura de emprego sem perspectivas de futuro. Continua a fazer trabalhos como freelancer para sobreviver. JOÃO FONTES É o homem da câmara. Quando regressou da aventura esteve três meses à procura de trabalho e acabou por voltar para casa dos pais. Finalmente conseguiu emprego no programa ‘Só Visto’ na RTP e continua, tal como os amigos, a dedicar-se à edição de um documentário sobre a viagem ao continente africano. ‘‘ ‘‘ Tiago Carrasco, autor de ‘Até Lá Abaixo’ A única maneira de nos sentirmos satisfeitos é voltar a fazer uma coisa destas

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tIAgO cARRAscO É jornalista. Estagiou na TVI, colaborou em alguns programas da RTP, escreveu para a revista ‘Sábado’ e ‘Playboy’, mas sempre a recibos verdes. No início do livro agradece às chefes que nunca lhe ofereceram um contrato de trabalho. Depois de regressar de África continua a trabalhar como freelancer para vários meios e produtoras para pagar as contas. Espera voltar a fazer mais um destes projectos até que alguém valorize o seu trabalho. 6 www.mundouniversitario.pt

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Page 1: Entrevista 'Até lá abaixo

[6 JUN 2011]6

Lembras-te da primeira vez que se imaginaram em África?Tínhamos um desconheci-mento total da África Subsa-riana. Imaginava-me em Áfri-ca de cada vez que lia ‘Ébano’ de Ryszard Kapuscinski, que é o meu autor preferido, mas sempre com uma imagem bastante distanciada daquilo que deveria ser a realidade porque nunca lá tinha estado. Quando essa hipótese come-çou a aproximar-se aumentei o número de documentários que vi e livros que li. E algu-mas coisas corresponderam, outras não.

O que é que vos puxava? Certamente cada um de vocês tinha motivações diferentes.Primeiro tinha a ver com a paixão pelo jornalismo. Sa-bemos bem aquilo que quere-mos fazer na nossa profissão e que aqui em Portugal, quer pela nossa idade, quer pelo mercado, temos as vias mui-to tapadas para poder fazer reportagens internacionais. A única forma de o fazer era com um projecto independen-te. Segundo, temos um gran-de gosto por viajar. E depois tinha a ver com o Mundial de Futebol, porque todos nós amamos futebol, somos gran-des adeptos. E também pelas circunstâncias de vida. Está-vamos fartos, cansados da ro-tina, um bocado perdidos, e a fuga acabou por ser a melhor solução para começar tudo de novo.

LIVRO. ‘Até Lá AbAIxO’ é A hIstóRIA de tRês jOVens que pARtem de LIsbOA RumO A áfRIcA dO suL em buscA de ALentO pARA As suAs VIdAs

» ALunOs dO técnIcO pRemIAdOsPedro Mendes, aluno de Engenharia Electrotécnica e de Computa-dores, foi o vencedor do Prémio REN 2010 – Redes Energéticas de Portugal, que visa distinguir as melhores teses de mestrado em Portugal no âmbito das temáticas de redes e sistemas eléctricos de energia e gás natural. O trabalho valeu-lhe um prémio no valor de 12.500 euros.

» LIcencIAdA dA umInhO dIstInguIdAÉ um dos maiores galardões na Informática e distingue pela primei-ra vez um trabalho sobre teoria da computação. Alexandra Silva, licenciada em Matemática e Ciências da Computação (MCC) pela Universidade do Minho, ganhou o Prémio Científico IBM 2010. A investigação assenta sobre métodos algébricos e coalgébricos para arquitectura de software.

De bola na mão até ÁfricaCaNsadOs de preeNCher reCibOs verdes e da iNCerteza qUe O fUtUrO Lhes reservava, três amigOs fOgem para a ÁfriCa dO sUL. COm apeNas 60 eUrOs pOr dia NO bOLsO, Um Jipe em segUNda mãO e bOLas de fUtebOL Na bagageira, tiagO CarrasCO, JOãO heNriqUes e JOãO fONtes LaNçam-se à estrada para persegUir O sONhO de fazer JOrNaLismO a sériO. peLO CamiNhO fizeram-se passar pOr estUdaNtes de despOrtO e atravessaram seLva e desertO para assistir aO mUNdiaL de fUtebOL Na Cidade dO CabO. tiagO CarrasCO, aUtOr de ‘até LÁ abaixO’, CONta-NOs COmO fOi a aveNtUra.

Iluminados www.mundouniversitario.pt

O mundial de futebol serviu apenas de pretexto ou tam-bém é uma parte importan-te da viagem?O futebol é a mais universal das linguagens a par da mú-sica. Se eu tiver uma bola de futebol e tu também quiseres jogar, fazemos uma baliza com duas pedras e estamos a comunicar. Achámos que o futebol, principalmente em África, era a plataforma per-feita para chegar a sítios onde de outra forma seria muito di-fícil. E essa foi a primeira pre-missa: nós chegávamos com uma bola, mesmo em bairros problemáticos como na Nigé-ria, e fazíamos logo muitos amigos.

para fazer uma viagem destas, assim sozinhos, durante meses, é preciso ter alguma coragem. Não sei se é coragem ou se é ingenuidade. Lembro-me que no primeiro dia estava com-pletamente tonto, sentia-me com os pés fora da terra, cheio de medo. Não sabia o que ia apanhar. Quando arrancas no carro, pensas: «Onde é que eu me vou meter? A minha vida vai mudar toda daqui para a frente.» É realmente uma sensação de um grande con-flito interior, mas que depois é saborosa.

O que te marcou mais nesta experiência?Pela positiva, e isto pode pare-cer um lugar comum, mas fo-ram as pessoas. Noventa por cento dos africanos levanta-se todos os dias sem saber o que vai comer ao almoço, sem um único euro. Ao levantarem-se cada dia como se fosse o últi-mo acabam por também não ter grandes ambições nem respeitar grandes convenções. São muito genuínos e puros. E

nesse contacto tu voltas um bocado às tuas raízes huma-nas. O que mais me marcou pela negativa foi, sem dúvida, a situação política e social da grande maioria dos países por onde passámos. Nunca me senti tão livre como nesta via-gem – podia andar descalço, sentar-me no chão, ninguém conhecia os meus passos. O regresso trouxe-vos alguma esperança quanto ao futuro profissional?O projecto, que à partida toda a gente dizia que era falhado e morto à nascença, permitiu--nos fazer coisas que nunca tínhamos feito na vida. Publi-cámos em meios onde nunca tínhamos publicado antes, publicámos o livro, possivel-mente vamos fazer um docu-mentário, e isso tudo preen-cheu-nos completamente a nível profissional. Depois há o outro lado, que é o retorno que nós pensávamos que po-deríamos ter. Isso realmente não aconteceu e deixa-nos um bocado tristes. Possivelmente a única maneira de nos sen-tirmos satisfeitos a nível pro-fissional e conseguir seguir o jornalismo é voltarmos a fazer uma coisa destas.

Andreia [email protected]

© João Henriques

pAssApORtetIAgO cARRAscOÉ jornalista. Estagiou na TVI, colaborou em alguns programas da RTP, escreveu para a revista ‘Sábado’ e ‘Playboy’, mas sempre a recibos verdes. No início do livro agradece às chefes que nunca lhe ofereceram um contrato de trabalho. Depois de regressar de África continua a trabalhar como freelancer para vários meios e produtoras para pagar as contas. Espera voltar a fazer mais um destes projectos até que alguém valorize o seu trabalho.

jOãO henRIquesÉ fotógrafo. Colaborou regularmente com o jornal ‘Público’ e com a Associated Press em Portugal. Quando regressou de África ficou três meses à procura de emprego sem perspectivas de futuro. Continua a fazer trabalhos como freelancer para sobreviver.

jOãO fOntesÉ o homem da câmara. Quando regressou da aventura esteve três meses à procura de trabalho e acabou por voltar para casa dos pais. Finalmente conseguiu emprego no programa ‘Só Visto’ na RTP e continua, tal como os amigos, a dedicar-se à edição de um documentário sobre a viagem ao continente africano.

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Tiago Carrasco, autor de ‘Até Lá Abaixo’

A única maneira de nos sentirmos satisfeitos é voltar

a fazer uma coisa destas