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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO Entrelaçamento da História com a Literatura em Ana Terra de Érico Veríssimo Tanara Mantovani Sfalcin Professora Orientadora Dra. Ieda Gutfreind São Leopoldo / RS, maio de 2002 .

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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MESTRADO

Entrelaçamento da História com a Literatura

em Ana Terra de Érico Veríssimo

Tanara Mantovani Sfalcin

Professora Orientadora Dra. Ieda Gutfreind

São Leopoldo / RS, maio de 2002.

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado

Entrelaçamento da História com a Literatura

em Ana Terra de Érico Veríssimo

Tanara Mantovani Sfalcin

Dissertação apresentada como requisito

parcial e último para a obtenção do

grau de mestre em História, sob a

orientação da professora Dra. Ieda

Gutfreind.

São Leopoldo / RS, maio de 2002.

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado

A comissão examinadora abaixo aprova o trabalho de conclusão de curso.

Elaborado por:

Tanara Mantovani Sfalcin

Como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História.

Comissão examinadora:

Orientação Professora Dra. Ieda Gutfreind

Dra. Heloísa Jochims Reichel

Dra. Marilene Weinhardt

São Leopoldo / RS, maio de 2002.

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Dedico este estudo

à minha sobrinha,

Priscila Mantovani Fogliatto.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicialmente, a Deus, que guia meus passos com uma generosa benção.

Aos meus avós, Guilherme Wöhl e Donatila Mello Wöhl, in memorian , estancieiros em

uma terra que hoje é minha vida.

Aos meus pais, Jairo Francisco Mantovani e Nelcinda Mantovani, sempre um porto seguro

para ancorar.

Ao meu esposo, Eliseo Elias Sfalcin, pelo companheirismo, apoio e ajuda constantes.

À professora Dra. Ieda Gutfreind, pela disponibilidade na orientação, amizade e tolerância

com que conduziu a concretização deste estudo.

Muito Obrigada !

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RESUMO

A dissertação “Entrelaçamento da História com a Literatura em Ana Terra de Érico Veríssimo” aborda temáticas situadas na fronteira entre a História e a Literatura. O fio condutor, responsável pelo entrelaçamento entre ambas, na pesquisa, é a mímese aristotélica, em torno da qual se cristalizam o imaginário e as representações sociais na História e na Literatura.

Acredita-se que a narrativa, considerada ficção, contida em determinados romances preenche o vazio entre um e outro fato / acontecimento documentado em arquivos. Para cumprir esta função, relacionam-se reflexões que dizem respeito ao imaginário, ao simbólico e às representações que estão expressas na obra selecionada para o estudo, Ana Terra do escritor gaúcho Érico Veríssimo.

A história cultural, perspectiva teórica na qual a pesquisa apoiou-se, permite a valoração da literatura com novas abordagens para a historiografia, o que facilitou para que se tomasse como objeto de estudo Ana Terra , pois essa é uma das mais consagradas obras do escritor Érico Veríssimo, reconhecido dentro e fora do país.

De posse de conhecimentos históricos e literários, pode-se afirmar que, Érico Veríssimo foi muito mais que um ‘contador de histórias’ ao propor novos critérios, entenda-se aqui ocupou espaços , no campo da História através de seu instrumento de trabalho: a Literatura.

A pesquisa, apoiada em fontes bibliográficas enriqueceu-se com a coleta de depoimentos das pessoas que conviveram com o escritor na cidade de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul.

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SUMÁRIO

Introdução ...............................................................................................................................8

I História e Literatura: entrelaçamentos possíveis .............................................................21

II Érico Veríssimo: vida e obra em uma perspectiva histórica cultural .............................47

III Imagens e símbolos na construção da narrativa histórica de Ana Terra .....................106

Conclusão ...........................................................................................................................148

Anexos

Anexo 1: Érico Veríssimo e suas origens ..........................................................................155

Anexo 2: Érico Veríssimo no contexto modernista ..........................................................156

Anexo 3: Ana Terra na trilogia O Tempo e o Vento ..........................................................158

Anexo 4: Ana Terra no tempo: ocorrências de ordem mundial, brasileira e sul-rio-

grandense (1777-1811) .......................................................................................................161

Anexo 5: Produção literária de Érico Veríssimo ................................................................164

Bibliografia .........................................................................................................................167

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INTRODUÇÃO

A dissertação que se apresenta visa a conclusão da Pós-Graduação, em nível de

mestrado em História da América Latina, cursado no período de 1999 a 2002, oferecido

pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos -

UNISINOS e inicialmente, pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das

Missões - URI.

A linha de pesquisa ‘Idéias e Movimentos Sociais na América Latina’ proposta pelo

curso, abrange a temática abordada neste estudo, pois investiga temas pertinentes à história

das idéias e à história social da América Latina, analisa processos mentais, tais como o

pensamento político-filosófico, econômico, social, bem como o imaginário e as

representações construídas pelos agentes sociais, considerando-os integrantes do real

histórico.

O tronco principal, ao qual se prende esta temática é a articulação da História com a

Literatura. A escolha do tema é resultante de um duplo e prazeroso envolvimento da

autora enquanto professora graduada em Língua Portuguesa, com especialização em

Lingüística e Literatura, e a graduação em História, que se constituíram em impulso

propulsor para o envolvimento destas áreas: História e Literatura.

A elaboração deste trabalho se fez através da leitura de fontes bibliográficas de

cunho teórico sobre aspectos da História Cultural e seus novos objetos de estudo, obras

clássicas sobre a historiografia do Rio Grande do Sul, o parafraseamento e a condensação

do que já se tem publicado sobre o assunto, sem a pretensão de esgotá-lo, a leitura de

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documentos impressos e visuais, além de depoimentos de pessoas que privaram com Érico

Veríssimo. Esta pesquisa foi realizada na casa onde Érico Veríssimo viveu sua infância,

na cidade de Cruz Alta / RS, que desde 1986, conforme Lei Municipal nº 0367/86, abriga a

Fundação Érico Veríssimo, hoje, Patrimônio Histórico Cultural.

O período de tempo estudado compreende um retrospecto sintético da História da

Cultura Ocidental iniciada com os gregos, perpassando o período aristotélico (384-322

a.C.). De Aristóteles retirou-se o arcabouço teórico que dá suporte à pesquisa, temática

que se aprofundou ao longo do texto, prosseguindo com a História da formação do Rio

Grande do Sul entre 1777 e 1811, relacionando com a vida do escritor Érico Veríssimo, de

1905 a 1975, não estanque nesta ordem. Conforme a necessidade, faz-se referências aos

dados ou fatos que remetem a épocas posteriores ou anteriores. Tal é o caso das citações de

historiadores que corroboram no embasamento teórico.

Chama-se a atenção para a grafia de algumas palavras e a precisão das datas que

diferem de autor para autor; optando-se pela que teve maior incidência. O espaço

geográfico delimitado para estudo é o atual estado do Rio Grande do Sul, sendo que,

quando se torna fundamental, mencionam-se outras áreas.

Os romances fazem parte do cotidiano. É através deles que as sociedades se

retratam, narram suas histórias, expressam seu imaginário, descortinam suas ideologias,

revisam seu passado, projetam suas imagens no outro... O tema desta dissertação está

voltado para as relações entre o romance e a História. Apontam-se, através da

identificação de aspectos técnicos, temáticos e teóricos, alvos de convergências entre a

História e a ficção e demonstra -se que todo romance pode encerrar em si uma função

histórica com o ingrediente ficção.

A relação entre o discurso histórico e o discurso ficcional vem marcando a História

e a Literatura desde as suas primeiras manifestações. O fato é apontado por leitores que,

ao lerem uma obra classificada como romance, identificam a história como sendo a

História dada como oficial pelos historiadores, pois a ação tomada pelo escritor pode ser

um acontecimento real.

ZILBERMAN (1982), em suas pesquisas para escrever artigos e obras sobre

literatura e história do Rio Grande do Sul, confirma a mediação entre a História e a

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Literatura, embora essa proximidade possa parecer, “à primeira vista, arbitrária, devido à

gênese distinta de ambos, à diversidade de seus interesses e fins, assim como a sua

trajetória social”. No entanto, um escritor pode representar o fato / acontecimento real,

usando um recurso poético.

A literatura aqui revisada, vale dizer, em estudos realizados há pouco tempo, revela

que a História e a Literatura são complementos mútuos. A obra Gêneros de fronteira:

cruzamento entre o histórico e o literário , é um exemplo, pois apresenta vários autores

para os dois temas bases: História e Literatura. Este estudo é o resultado de um encontro

multidisciplinar promovido pelo Centro Angel Rama, em 1997, em São Paulo. Em suas

abordagens recapitula -se da Antigüidade Clássica com Aristóteles até a

contemporaneidade, sempre mantendo o discurso em torno de fronteiras his tórica e

literária. Sua leitura e análise foi de grande valia para a pesquisa, pois há uma constante

relação da história com literatura e vice-versa em muitos artigos. Também se considerou a

idéia de que distinção não é, necessariamente, oposição. Ao tentar distinguir História de

Literatura, perambulou-se em margens que se confundiam, daí o entrelaçamento de ambas.

Mais recentemente, publicaram-se duas obras que, igualmente, enfatizam o mesmo

tema, História e Literatura. Uma delas é O Tempo e o Vento : 50 anos, organizado por

Robson Pereira GONÇALVES (2000). Nesta coletânea, historiadores, literatos e outros

focalizam pontos de vista distintos sobre a trilogia O Tempo e o Vento do escritor Érico

Veríssimo, aspectos como questões sociais e políticas, da História ou da Literatura? A

obra não responde, deixa a incógnita aberta para que se continuem os estudos. Merecem

destaque os ensaios ‘O narrador como testemunha da História’, de Flávio Loureiro

CHAVES, ‘O Tempo e o Vento: um diálogo entre ficção e história’, de Marilene

WEINHARDT, entre outros. Esta obra descortinou à autora nomes de historiadores e

literatos que, após pesquisados contribuíram para o amadurecimento de muitos dos

argumentos refletidos nesta pesquisa.

A outra obra é Pelas Margens – outros caminhos da História e da Literatura,

organizado por Edgar Salvadori de DECCA e Ria LEMAIRE, em 2000, onde o próprio

título sugere o que será abordado. Do mesmo modo, foi escrita por historiadores e críticos

literários, quando buscam a historic idade dos textos literários e a ficcionalidade da

História. Sem dúvida que, admitir a possibilidade dos historiadores também ficcionarem é

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um grande desafio. Alguns dos artigos destacam-se, na medida que os historiadores

sustentam que a ‘ficção literária ’ torna-se necessária para a compreensão de um fato /

acontecimento que não aparece totalmente elucidado apenas com a rigorosa verificação e

análise de fontes aceitas como historiográficas. Daí, a valoração da Literatura pela

História.

A Literatura, neste estudo e neste caso, é entendida entre uma interpretação

aplicada aos estudos históricos, tomando como referência uma releitura da historiografia,

para desfazer-se das imagens que impedem de ver a verdade que o passado contém.

Trabalhar a Literatura como um documento historiográfico, promove o registro e a

revelação de outras possibilidades históricas. Pensa-se os romances como discursos

produtores de ideologias, que buscam definir uma identidade nacional, formada a partir da

História Cultural, que esse mesmo discurso produz. Constata-se que o mundo criado pela

narrativa ficcional, organiza práticas sociais que terminam por construir uma

nacionalidade. Também observa -se o oposto, os documentos apresentam um discurso que

lhe justifique, vale dizer que lhe dê autenticidade, nem que para isso se tenha que recorrer

ao imaginário e às representações coletivas.

Estudar a interação e a interpenetração de processos sociais e simbólicos implica

um cruzamento interdisciplinar de olhares que estabelece uma distinção entre, de um lado,

o passado real, concreto, do outro, a historiografia, ou seja, a narrativa feita dele, ou o

discurso construído pelo historiógrafo/historiador a partir do que se passou. Mas, e se o

historiador não viveu naquele tempo, como poderá dizer o que, exatamente ocorreu? Sabe -

se que os próprios documentos, a princípio comprovantes do que de fato houve são

passíveis de obscurecer a realidade. Neste sentido, poder-se-ia continuar com indagações

indefinidamente.

A cultura transformou-se em uma categoria chave para a compreensão do passado,

até mesmo os níveis políticos e ideológicos devem ser esclarecidos no seu modo primário

de representação, que é cultural. Esta dificuldade que se tem em definir os territórios é

uma conseqüência, já que as tradicionais fronteiras de um processo de história cultural de

pesquisa foram quebradas. Ao mesmo tempo que a cultura traz a aparência de

globalização, aponta-se para uma fragmentação voltada para o pressuposto da unidade

cultural. A própria noção de ‘cultura’ alargou-se em direção de outras dimensões e outros

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territórios, para além da ‘grande narrativa da civilização ocidental’, o que, de certa forma,

possibilita este estudo: fragmentado em uma temática, mas globalizado nas ciências

histórica e literária.

A mudança de enfoque da história cultural se identifica, não só, mas também com a

alteração do papel da teoria no trabalho historiográfico. Os historiadores da cultura

trataram de emancipar -se de modelos que remetiam o social a ele mesmo. A cultura,

simbólica e imaginária passou a ser relacionada a uma totalidade histórica antes

desprezada, como os símbolos e as práticas culturais, que foram consideradas como lugares

de exercício de poder, de dominação e de conflitos sociais. A história cultura l redefiniu -se

como um estudo dos processos e práticas das quais se constrói um sentido e se planejam os

significantes do mundo social.

Do ponto de vista da Literatura e dos estudos literários vem ocorrendo uma abertura

em direção à História preparada pelas novas abordagens contextualizantes, que permitiram

passar do positivismo convencional dos estudos literários para uma história cultural, ou

seja, a contextualização da Literatura, a sua leitura e interpretação tornam-se partes

integrantes de contextos econômicos, políticos, sociais e culturais, permitindo ultrapassar

uma barreira que separava o fato/acontecimento histórico dos fatos literários.

Tanto a narração literária quanto a historiografia pressupõem um processo e

estratégias de organização da realidade, há uma procura de coerência imaginada, baseada

na descoberta de laços e nexos, de relações e conexões entre os dados fornecidos pelo

passado.

Essa coerência, fictícia, depende da plausibilidade de uma significação possível,

imaginada pelo escritor/historiador de tal maneira que o leitor possa reconstruí-la e aceitá -

la. Sendo assim, a construção de ‘mundos ideais’, de realidades possíveis, da sua

admissibilidade dependem, também, do contexto histórico no qual eles são produzidos e

reproduzidos pelos leitores.

Apesar de forçada a renunciar às suas pretensões de verdade e veracidade, a

historiografia, tomada em sua generalidade, produzida nas últimas décadas, vem

formulando novas exigências de cientificidade, embora outros tantos negando, fundadas

em critérios tais como o da credibilidade e o da verossimilhança. O verossímil, o

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plausível, é uma modalidade possível, quer dizer, imaginável, imaginária e imaginada do

fato/acontecimento. É essa dimensão da História que lhe confere o seu caráter

polissêmico. A historiografia transforma o passado em hipótese sobre o que aconteceu no

próprio passado. A História, sendo representação do real, constrói o seu discurso pelo viés

do imaginário, bem como a Literatura, apesar de as duas seguirem caminhos, às vezes,

parcialmente divergentes.

História e Literatura reconfiguram o passado. Trata-se, no caso da História, de uma

reconfiguração ‘autorizada’, circunscrita pelos dados fornecidos pelas fontes e pela

ocupação da investigação sobre documentos. Literatura e História se distinguem também

pelo tipo de leitura que tem a intenção de provocar. A Literatura tenta incitar, antes de

mais nada, à empatia, à identificação, visa criar uma proximidade entre o leitor e a

narrativa, esteja no presente ou no passado. Ao fixar, ao encaixar o tempo com o objetivo

de apresentar a sua visão, o historiador apresenta ‘o que poderia ter sido’ como ‘o que foi’.

Os modos de inserção da palavra literária no contexto histórico assumem, nesse

sentido, um valor ambíguo ou um caráter híbrido, sendo negativo e afirmativo ao mesmo

tempo em relação à realidade, e assentando sobre um espaço e um tempo eventuais em que

as coisas e os fatos/acontecimentos dependem apenas de uma peculiar estratégia lingüística

e textual, adquirindo um sentido global e indiscutível.

O embasamento teórico deste estudo, isto é, o eixo que vai, fundamentalmente,

percorrer os capítulos está ancorado, conforme adiantou-se páginas atrás, na mímese

aristotélica, porque na trajetória desta pesquisa, a partir da metodologia usada, observou-se

a recorrência desta relação nos escritos históricos e literários.

Mimetizar não significa apenas reproduzir, mas representar a realidade com o

compromisso de obedecer a conceitos para que a obra figure simbolicamente algum ser,

algum sentimento ou emoção, algum fato / acontecimento e estes precisam estar em

harmonia proporcionalmente, a fim de que se reconheça a mímese como um documento.

Em todos os teóricos relacionados neste estudo fica evidente a imitação da

realidade, mesmo que com outra denominação, e mesmo que o intelectual não admita a

mímese, trabalha com ela. Tem-se em mente a idéia de que refletir é espelhar, revelar,

imitar, retroceder sob determinado ângulo, desviando de uma posição inicial, neste caso, da

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história cultural sob a concepção de historiadores na Literatura e vice-versa. Abordar-se-á

o conceito de documento, de história -narrativa, a importância da biografia e do imaginário

no decorrer deste estudo, sempre relacionando a premissa de que estas perspectivas de

estudo compõem as novas abordagens aceitas como científicas pela História Cultural.

Estes mesmos conceitos são utilizados por historiadores e literatos, daí o entrelaçamento.

O corpus da dissertação apresenta-se em três momentos distintos: no primeiro

capítulo, há considerações sucintas sobre aspectos gerais que permeiam a História com a

Literatura desde suas origens, resgatando a produção escrita de Heródoto e Tucídides, até a

contemporaneidade, dando-se ênfase ao que determina a imitação ao que Aristóte les (IV

a.C.) denominou de ‘mímese’, pode -se dizer que há, e aqui apresenta-se um traçado da

evolução da mímese aristotélica através do tempo, identificando-se alguns vultos tanto na

História como na Literatura, acreditando-se valorar a pesquisa.

Além da mímese que perpassa os três capítulos, conceitua -se Literatura de acordo

com MOISÉS, como “um tipo de conhecimento expresso por palavras de sentido

polivalente” (1968, p.21). Na área historiográfica faz-se alusão às idéias de BURKE

(2000), quando defende a História como uma memória social e HALBWACHS (2000)

reforça, afirmando que esta memória é construída por grupos sociais. Este sociólogo em

relação ao primeiro, admite que houve uma ‘revolução documental’, ocasionando a

abertura para a admissão de objetos, depoimentos, literatura, entre outros, como

documentos.

LE GOFF (1998), outro autor que nos inspirou, vem pesquisando, reforçando e

ampliando seus estudos desde há muito tempo. Em 1998, refletiu acerca do que se toma

como documento histórico e no modo como o historiador se apropria da narrativa-

histórica. Discute-se, além da narrativa histórica, segundo FURET (s.d.) que afirma que a

narrativa biográfica também é História.

LACERDA (1994) em seu artigo ‘História, narrativa e imaginação histórica’

concorda com FURET (s.d.) e com STONE (1994) no que diz respeito a perceber a

biografia, o testemunho, o estudo de caso, a narrativa, incluindo a literária como

documento, mas argumenta, chamando a atenção para que o historiador e o escritor

precisam policiar-se, para não tomar a História como um texto melancólico, lamuriento,

depressivo ou elogioso ocultando o que deve ser registrado.

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A partir dos estudos realizados por STAROBINSKI (1989) observa-se a liberdade

do historiador em escolher e reproduzir o que descobre em um documento. Exemplifica-

se este livre arbítrio com o trabalho de PESAVENTO (1995) que permitiu a si própria

novas focalizações sob o mesmo objeto de estudo, incluindo a Literatura com outro valor

que não só de romance.

De todas as leituras, depoimentos informais, conversas casuais, pesquisas

documentais e visitações ao alcance da autora, um dos melhores momentos encontra-se

registrado no segundo capítulo que compõe o corpus desta dissertação. Pois é quando

História e Literatura se confunde m entre os conceitos dos historiadores e a biografia de

Érico Veríssimo, e ao tecer-se comentários e reflexões a respeito da História Cultural. Em

nenhum momento tem-se a intenção de ousar defini-la, tendo em vista que seus integrantes

também não entram num acordo e nem é objetivo deste estudo. Mesmo assim, utiliza-se a

perspectiva de História Cultural na visão de Roger CHARTIER, a qual “tem por principal

objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada

realidade social é construída, pensada, dada a ler” (1990, p.17). Esta postura possibilita

entender uma história cultural conectada a uma história social, posto que as representações,

de acordo com o pesquisador citado neste parágrafo, são produzidas a partir de papéis

sociais. A representação do real, ou do imaginário é, em si, elemento de transformação do

real e de atribuição de sentido ao mundo, isto é, à História.

Seguindo a linha de pensamento, houve o propósito de apresentar uma tarefa,

talvez até atrevida demais, utilizar formalmente recursos da produção literária de um

escritor que reunisse tais características, do contrário a hipótese de um entrelaçamento da

História com a Literatura perderia seu sentido.

Dentre tantos escritores especiais, optou-se por Érico Veríssimo (1905-1975). Para

falar de mímese aristotélica precisa-se de uma História, por isso dedicam-se muitos

parágrafos na construção da história biográfica deste autor. No segundo capítulo

aprofunda-se sua história de vida, aqui apenas apresenta -se informações sumárias.

Nascido em Cruz Alta (RS), de tradicional família gaúcha que repentinamente

perdeu sua fortuna, viu-se obrigado a exercer os mais variados ofícios: trabalhou num

armazém de secos e molhados e foi sócio de uma farmácia, que entretanto faliu.

Autodidata, leitor constante das obras-primas da literatura universal, escreveu inúmeros

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contos, que publicou em jornais e revistas de Porto Alegre. Firma -se mais tarde como

secretário da Revista Globo. Estreou em livro com Fantoches , em 1932, coletânea de

contos e artigos que passou mais ou menos despercebida pela crítica. Ganha prêmios

diversos, Graça Aranha, Academia Brasileira de Letras... Viaja aos Estados Unidos com a

família e, na Universidade da Califórnia leciona literatura brasileira. Importante, em sua

carreira de romancista, é a trilogia O Tempo e o Vento , O Continente , O Retrato e O

Arquipélago, obra cíclica que trata da formação social do Rio Grande do Sul, em forma de

romance histórico, obra que se constituiu numa das mais importantes da moderna literatura

brasileira. Para uns, considerado o maior romancista brasileiro, para outros simples

contador de histórias. Érico Veríssimo tem, contudo, recebido o apoio do público leitor,

destacando-se como um dos mais lidos e populares escritores da língua portuguesa.

Cronologicamente, sua bagagem literária inclui a ficção e não dispensa a História. Nos

seus primeiros romances, de Clarissa (1932) a O resto é silêncio (1943), preocupa-se com

as crises morais e espirituais do homem no mundo atual, mas com O Tempo e o Vento

realiza uma obra de proporções épicas. Faleceu subitamente, de infarto a 28 de novembro

de 1975, em Porto Alegre, quando escrevia o segundo volume de suas memórias, Solo de

Clarineta.

Movida pela biografia acima, remete-se ao pensamento de BACZKO (1985),

quando afirma que o imaginário é um ‘objeto de poder simbólico’. E seguindo, o que se

propôs inicialmente, BACZKO lembra da revisão aristotélica das técnicas de persuasão,

apostando no imaginário. Para o historiador, o aspecto simbólico é a característica

principal do fato social, evidenciando as conexões entre sociedade, política, economia,

cultura e expressão artística. Então, dimensiona-se a teoria deste autor, ao que seria a

contextualização da História na época em que Érico Veríssimo escreveu o capítulo Ana

Terra, relacionando-a aos aspectos que nortearam a sua infância. Observe que não se trata

do momento 1949, e nem do período de 1777 a 1811, datas citadas na narrativa da obra, e

sim da época em que o autor passou pela inf ância e adolescência, redimensionando através

do real, simbólico e imaginário com registros equivalentes com a função de articular a

História. O imaginário e a simbologia utilizada por Érico Veríssimo, na construção, seja

nas formas de expressão, seja na escolha das temáticas, não delimita fronteiras entre o

histórico e o literário. A transformação faz parte não só da literatura, mas também do

imaginário, e dos aspectos que norteiam o fato histórico.

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A interpretação do passado, formada pela memória dos literatos, constrói uma

identidade social através de representações coletivas, entendendo por tal a cristalização de

hábitos, usos e costumes que passam despercebidos para quem não resgata a História. Por

isso, selecionou-se para ilustrar este estudo, a obra Ana Terra, publicada pela primeira vez

em 1949 como parte integrante de O Continente, primeiro volume da trilogia O Tempo e o

Vento , considerada pela crítica literária um romance histórico, do autor sul-rio-grandense

Érico Veríssimo. Por múltiplas razões, várias delas nas páginas precedentes deste texto

introdutório já se falou isso, no entanto, repete -se aqui com outro objetivo, o de perceber

que a sociedade, o coletivo, já o tinha selecionado como um grande representante do

quadro histórico da História do Estado, logo, precedendo a seleção da autora de torná -lo

objeto de seu estudo. Tanto é que, no levantamento das dez obras fundamentais para o

conhecimento da História rio-grandense, proposto por Carlos Reverbel em Notas Avulsas

de sua coluna no Jornal Correio do Povo , de Porto Alegre, em setembro de 1955, no

resultado Érico Veríssimo despontou em nono lugar. De qualquer modo, firma -se o

padrão do romance histórico na literatura brasileira contemporânea. Ao estabelecer um

modelo de romance histórico brasileiro, a obra Ana Terra assinala um dos pontos do

diálogo com a literatura ocidental, entrosando-se com os conceitos da historiografia

francesa.

Ainda nesta segunda parte, acolhe-se e segue-se o desafio de WHITE (1984)

quando afirma que a narrativa histórica testa a capacidade das ficções de uma cultura

através da Literatura. Tendo essa premissa por parâmetro, retoma -se a mímese

aristotélica, pois permite que o fato / acontecimento seja ficção ou realidade, conforme a

condução e o posicionamento dado pelo autor.

Apresenta -se, também uma definição de regionalismo para o autor, Érico

Veríssimo, com características modernistas. Salienta -se que há muitas definições deste

momento histórico convencionado por literatos do Modernismo, e ainda há discrepâncias

quanto às semelhanças e diferenças dos autores. Considera-se que nesta situação é

importante ser flexível, e muito mais, respeitar as peculiaridades dos escritores, além de

simplesmente considerá-los regionalistas modernistas ou outra classificação. Por isso,

toma-se aqui o regionalismo em sua segunda fase, ou dependendo do autor, em uma

terceira vertente, onde se encontra a preocupação com a realidade social do meio em que

vive o autor / escritor.

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A produção de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge

Amado e Érico Veríssimo inserem-se nesta fase, pois estes produzem uma literatura de

caráter mais construtivo, de maturidade, aproveitando as conquistas da geração de 1922 e

sua prosa inovadora. Eis o ‘gancho’ que se faz do regionalismo modernista com a

História através da narrativa, onde se encontra o imaginário pelas representações

simbólicas.

Há no terceiro e último capítulo múltiplos enfoques com uma série de abordagens

teóricas, todas pendendo à História Cultural. A riqueza destes parágrafos são os

argumentos de caráter narrativo da historiografia que demonstram, ou melhor, separam a

ficcionalização da veracidade.

Focalizar-se o imaginário pela concepção de dois historiadores: Bronislaw

BACZKO (1985) e Roger CHARTIER (1988) é sempre um bom exercício de memória: o

primeiro notabiliza-se pelos estudos que o levaram a concluir que o fato social é um

aspecto simbólico, que o imaginário social é uma das forças reguladoras da vida coletiva, e

a imaginação está a serviço da razão manipuladora, do poder simbólico. O segundo

aposta na História Cultural, afirmando que as representações são determinadas por

interesses de grupos através das formas de apropriação.

Considerando-se que uma representação pode ser a tradução de uma realidade

externa e percebida, não se representa o que não se conhece e se isto se fizer então

transpõe-se da narrativa histórica para a ficção.

CASTORIADIS (1993), igualmente se preocupou com a representação do

imaginário definido pelo social-histórico, e é isto que se apresenta com semelhanças no

posicionamento de HALBWACHS (1990) quando conceitua as ‘imagens como

entrelaçadas’. Estas posições, do primeiro e do seguinte, estão associadas à mímese

aristotélica , que é a teoria usada para demonstrar, na prática, a História na obra Ana Terra

de Érico Veríssimo.

Enriquecendo este estudo, como um modelo de análise mais rigorosa que indica a

perspectiva da História Cultural, escolheu-se Ana Terra (1949, 1ª edição), do escritor Érico

Veríssimo, porque os própr ios críticos literários a classificam como um romance histórico,

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então presume-se de antemão que nesta obra há algo que se admite não só fictício, mas

também como que tenha realmente ocorrido, ou seja, histórico.

Pode ser que o leitor deste estudo encontre mais realidade do que ele próprio possa

imaginar, isto eventualmente ocorre, principalmente se este tem uma sensação de clausura

dentro da realidade em que vive. Mas, também é possível que aconteça o contrário, o

decifrador destes signos lingüísticos sinta a necessidade interna de igualmente dar

testemunho da sua experiência. Esta Literatura de cunho biográfico ou testemunhal,

inserida nos parâmetros da História Cultural, compreende uma narrativa que visa a

recuperação, o resgate e a representação de um passado coletivo, tendo em vista que

nenhum ser é uma ilha, cada humano interage em um grupo social cultural.

Há, nesta parte da dissertação, comentários do período histórico da narrativa da

obra Ana Terra, de 1777 a 1811; da infância do autor, a qua l não se ousa datar, temendo

cometer equívocos, pois a memória pode trair uma data; da época que precede a escritura

do texto, portanto anterior a 1949, ano de sua primeira publicação; e, finalmente, criva-se a

ficção do que se julga histórico na obra citada. Nesta última tarefa, extrair a História do

que é visto como ‘romance’, adotou-se a seguinte estratégia: os trechos citados estão

numerados de acordo com os capítulos. Há partes, capítulos inteiros, que não foram

dissernidas por não se perceber tão importantes e cumpridoras do objetivo deste estudo.

Outra informação importante é a ausência proposital de página de onde se extraiu os

trechos históricos. Tomou-se esta atitude tendo em vista dois motivos: primeiro: o

primordial é o texto no contexto, o aspecto semântico da narrativa e não a página onde está

escrita; e em segundo lugar: inclusive no ano em curso, encontram-se várias publicações

de Ana Terra em bibliotecas, escolas, instituições educacionais, à venda no mercado

livreiro, em residênc ias particulares, entre outras possibilidades, então seria dificultoso

para um leitor ter disponível exatamente a obra da qual se baseou para retirar estas

citações. A estratégia utilizada para distinguir os trechos históricos baseia-se em cores.

A explicação deste recurso encontra-se na página precedente à História, no terceiro

capítulo.

Posteriormente, faz-se comparações apenas ilustrativas com o intuito de aplicar os

conceitos de documento, narrativa e imaginário, todos inseridos na História Cultural.

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Os anexos corroboram para o esclarecimento do que se apresenta durante a

escritura do trabalho, é o caso de conhecer as raízes do escritor Érico Veríssimo, através de

sua genealogia, no primeiro anexo. A segunda nota para o leitor situa o escritor no

contexto histórico-literário modernista. O terceiro anexo situa Ana Terra na obra O

Tempo e o Vento; já o quarto é um painel que correlaciona Ana Terra com fatos /

acontecimentos de 1777 a 1811, comparativamente no mundo, no Brasil e no Rio Grande

do Sul, quando, neste momento pode-se claramente ver a autenticidade do relato histórico.

O último anexo parece ser uma praxe de todos estudiosos de Érico Veríssimo, isto é, quem

escreve, estuda, analisa, critica ou realiza outras possibilidades, no fin al do seu trabalho

relaciona a produção literária de Érico Veríssimo. Aqui, também se reproduziu a

listagem, pois leu-se muitas delas, visando uma aproximação maior das temáticas

abordadas pelo autor, sua estética com a construção dos conhecimentos desta autora.

Relacionado com o exposto acima cita-se CHAVES (2001), que realizou um

belíssimo trabalho em uma de suas últimas publicações, a qual chamou de ‘fortuna crítica’.

Trata-se do levantamento de mais de mil títulos de escritores sobre o laço que Érico

Veríssimo estabeleceu com a História, o que vem de encontro com o objetivo deste estudo,

se não fosse historicamente importante, CHAVES, com certeza, não teria tanta dedicação.

Esclareço que, como o texto apresenta poucas explicações, optou-se substituir as

notas de rodapé com numeração arábica, pelo símbolo asterisco e a respectiva elucidação.

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I HISTÓRIA E LITERATURA :

ENTRELAÇAMENTOS POSSÍVEIS

“A poesia é mais importante e

mais filosófica do que a História.”

Aristóteles. Poética. IV a.C.

Este primeiro capítulo aborda as relações possíveis entre História e Literatura,

entrelaçando teorias filosóficas, historiográficas, literárias, iniciando com os antigos

gregos e, cronologicamente, avançando no tempo, detendo-se na cultura ocidental e

permitindo que se perceba, no decorrer deste estudo, suas conexões sem sobrepô -las ou

julgá-las corretas, ou não, e sim adequadas ao seu tempo e espaço.

Os fatos históricos, em sua dimensão individual ou agrupados em conjunturas ou

estruturas, objetos da História como conhecimento, foram percebidos e analisados

diferentemente ao longo da trajetória da História e não apenas como processo, permitindo,

assim, a existência de um campo próprio do conhecimento histórico voltado para sua

análise: a historiografia ou a escrita da História, à qual permite visualizar as diferentes

formas de conceber e escrever a História no espaço e no tempo.

No decorrer deste estudo, faz-se um retrospecto da evolução da forma de ver e de

pensar a História iniciada com os gregos, aí localizando a origem da Cultura Ocidental, e

situando a teoria aristotélica, a qual orienta a pesquisa, e é um marco universal.

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A História, significando narração, relato e testemunho está colocada aos

historiadores desde a Antigüidade, quando os gregos desenvolveram a primeira grande

civilização do continente europeu. Nesta época, os fatos eram vistos como resultado da

vontade dos deuses, apesar desta visão um tanto religiosa, Heródoto (484 – 425 a.C.),

distintamente, durante sua vida visitou o Egito, a Itália e a Ásia Menor com o intuito de

conhecer e colher informações sobre os povos para posteriormente transmiti-las em suas

Histórias. O orador romano Cícero o considerou o Pai da História, um qualificativo

considerado válido até os dias de hoje.

Tucídides (460 – 396 a.C.), igualmente grego, testemunhou com sua participação

na Guerra do Peloponeso, episódio em que as cidades-estado, Atenas e Esparta (431 – 401

a.C.) se defrontam, e escreveu sua história, considerando as causas políticas como

determinantes dos fatos históricos. Tucídides manifestava -se como um historiador

científico, objetivo ou então, como um cientista político. Na Antigüidade Clássica, a

invenção de discursos pelos historiadores, no qual se destaca Tucídides, afirmavam dizer a

verdade, e esta invenção não era considerada uma prática aética. Em outras palavras,

escritores gregos e seus públicos não colocavam uma linha divisória entre história e

literatura, entendida aqui como ficção, no mesmo lugar em que alguns historiadores a

colocam hoje.

Heródoto percebe o homem como um agente racional e Tucídides valoriza as fontes

de suas informações, ambos fundaram a História, narrando grandes eventos, isto é, suas

histórias romanceadas foram, e ainda são, referência para estudos da histó ria na

Antigüidade. Esta visão das diferenças de estilo entre estes historiadores gregos é

reforçada por IGLESIAS (1988, p. 146), quando destaca que “o principal interesse de

Heródoto está nos fatos mesmos, enquanto o de Tucídides se concentra nas leis segundo as

quais acontecem os fatos”. Apesar de se encontrar heróis, lendas e mitos nas narrações

gregas, não se pode negar o valor historiográfico destas obras. Estes historiadores já

apontavam para a construção do conhecimento histórico como a História enquanto relato –

narração, portanto, a História e a Literatura já encontravam-se muito próximas. Ao

ampliar-se a visão do que se entrelaçava com a Literatura, observa-se que não só

historiadores da Antigüidade utilizavam-se da Literatura, mas igua lmente o faziam os

filósofos.

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A origem da Literatura, semelhante à da História, remonta à Antigüidade Clássica.

Ao refletir sobre o período, nota-se que um dos filósofos importante é Aristóteles. Sua

família estava tradicionalmente ligada à medicina e à Macedônia. Estagira, a cidade onde

Aristóteles nasceu, em 384 a.C., localizava -se na Calcídica e, apesar de estar situada

distante de Atenas, era um território sob a dependência da Macedônia. A vida de

Aristóteles está marcada por essa dupla vinculação: à cultura helênica e à cultura,

principalmente política deste local. Ao ingressar na Academia Platônica, que viria a

freqüentar durante cerca de vinte anos, Aristóteles já trazia acentuado interesse pela

pesquisa e com o objetivo de prosseguir seus estudos.

Enquanto isso, Platão (428-7 – 348-7 a.C.), sentia a necessidade de fundamentar

qualquer atividade em conceitos claros e seguros, assim, cerca de 387 a.C. funda em

Atenas sua própria escola de investigação científica e filosófica, tornando-se o primeiro

dirigente de uma instituição permanente voltada para a pesquisa e concebida como a união

de esforços de um grupo que vê no conhecimento algo vivo e dinâmico e não um corpo de

doutrinas a serem simplesmente transmitidas. O que se sabe das a tividades da Academia,

bem como da obra escrita de Platão e das notícias sobre seu ensinamento oral, é um

testemunho sobre a concepção de sua atividade intelectual: inicialmente busca a

inquietação, seguindo pela reformulação permanente e a multiplicação das vias de

abordagem dos problemas, apresenta a filosofia como sendo um esforço para pensar mais

profunda e claramente.

Para Platão, a política não deveria se limitar à prática insegura e circunstancial, e

sim, pressupor a investigação sistemática dos fundamentos da conduta humana, sendo que

os fundamentos da ação requerem uma explicação global da realidade, na qual aquela

conduta se desenrola. Depois de algumas viagens, Platão viu na matemática a esperança

de um caminho que ultrapassaria perguntas sem respostas, e conduziria às certezas. A

educação deveria basear-se em uma ciência e ultrapassar o plano estável da opinião. A

política poderia deixar de ser um ‘jogo’ de ações motivadas por interesses nem sempre

claros e freqüentemente pouco dignos, pa ra se transformar em uma ação verdadeira em

gesto criador de harmonia, justiça e beleza. No estudo dessas idéias, Platão, durante

aproximadamente duas décadas, dedicou-se ao magistério e à composição de suas obras.

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Na Academia em questão, o educando deveria ser levado ao exame do significado

das palavras, dos núcleos de significação dos vocábulos, que apontavam também, para um

ideal de linguagem construído em função das idéias, consideradas justas medidas de

significação e realidade.

Posteriormente, por volta de 335 a C., em Atenas, Aristóteles abre uma escola, o

Liceu, voltada fundamentalmente para investigações matemáticas, por isso, esse lugar

transformou-se em um centro de estudos dedicado principalmente às ciências naturais.

Sabe-se que, de toda a sua grande obra há dois tipos de composições: as endereçadas ao

público, redigidas de forma mais argumentativa do que demonstrativa, e os escritos ditos

filosóficos ou científicos, que eram lições destinadas aos alunos do Liceu. Estas últimas

foram as únicas que se conservaram, mesmo assim acredita -se que deve ser apenas uma

parcela do todo que é atribuído a Aristóteles.

A parte de sua obra que interessa para este estudo compõe o que se convencionou

chamar de Corpus aristotelicum, que apresenta o pensamento de Aristóteles sistematizado,

como um conjunto enciclopédico, no qual as mais diversas questões são elucidadas de

forma aparentemente definitiva, tendo em vista o tempo em que foram escritas. As

soluções propostas por outros pensadores foram analisadas e criticadas por Aristóteles,

dessas críticas partiu para a formulação de suas próprias concepções. O caráter

sistemático que perpassou, desde a Antigüidade, o pensamento aristotélico, contribuiu para

que, fosse aceito como autoridade em matérias filosóficas e científicas. O último trabalho

do Corpus aristotelicum é a Poética, da qual restou apenas um fragmento. Tendo em

mente que seus textos não devem merecer correções e sim análises ou comentários, retirou-

se da Poética, a mímese aristotélica , fio condutor deste estudo.

Sem dúvida, este pensador movimentou o centro intelectual e artístico da Grécia no

século IV a C., e talvez por isso passou a ser hostilizado pela facção antimacedônica, que o

considerava politicamente suspeito. Por várias acusações, acabou deixando Atenas e

refugiando-se em Cálcis, na Eubéia e aí morreu no ano de 322 a C..

Retomando o estudo das relações entre História e Literatura, valorizados pelos

gregos, no caso de Aristóteles, o filósofo considerou o conceito da última, no sentido de ser

uma imitação da realidade. Este é o significado com o qual emprega várias vezes a

palavra ‘mímesis’, em sua obra Poética.

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Construindo um esquema de raciocínio, de antemão, Platão distintamente,

acreditava e pregava a teoria de que esse mundo é uma aparência, ‘é o mundo dos

prisioneiros da caverna’, é uma cópia ou sombra do mundo verdadeiro e real, pois o

mundo verdadeiro é o das essências, sem contradições nem oposições, sem transformação,

onde nenhum ser passa para o seu contraditório. As imagens contraditórias devem

constituir -se em conceitos idênticos para os pensantes, de modo que se reconheça e se

determine o que é verdadeiro e o que é falso. Platão pretende resolver a relação existente

entre as formas e os objetos físicos que lhe são correspondentes através de duas noções

fundamentais: a de participação e a de imitação, com uma ressalva: não abrir mão da

transcendência das idéias.

Até o século VI a.C., a imitação apresenta um caráter de permanência: o modelo e a

cópia estão ambos no plano concreto, são as duas faces: a interna, apreendida

racionalmente e a externa, apreendida pelos sentidos, em uma mesma realidade. A

doutrina platônica da imitação, a que Aristóteles irá denominar ‘mímese’, difere da

acepção referida acima. Com Platão, a noção de imitação é adquirida pela essência das

coisas, como uma lógica decorrente do distanciamento entre o plano sensível e o

inteligível. Os objetos físicos aparecem como cópias imperfeitas dos arquétipos ideais.

O mundo sensível seria uma imitação do mundo perceptível, sendo que, o universo se

constituiria como resultante da ação de um artista. Analogamente, o homem tanto

constrói uma casa real como, na condição de pintor, pode reproduzir em um quadro a

imagem dessa casa, e ainda como literato, pode reconstituir a mesma casa através de

palavras no imaginário do leitor. O escritor aparece por isso, em A República, como um

‘criador de aparências’.

A questão da imitação torna -se mais intrincada quando se faz a distinção entre seus

graus: o objeto imita uma idéia que lhe é correspondente e a arte representa, por sua vez,

aquela representação. A relação cópia / modelo usada por Platão para explicar a relação

sensível / inteligível reaparece assim em sua estética e justifica as restrições feitas aos

artistas em A República. A arte imitativa deveria conservar o caráter de cópia de seus

produtos, não querendo, confundi-los com os objetos reais.

Aristóteles, no conjunto de seus estudos, segue uma via diferente da escolhida por

Platão. Considera desnecessário separar realidade e aparência em dois mundos diferentes,

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e não aceita que a mudança seja mera aparência ilusória. Estas argumentações amparam

também, o discurso literário, estabelecendo condições e fundamentos necessário s para a

verificação da autenticidade.

Segundo Aristóteles, a Literatura é uma obra de arte adjetivada como mímese, uma

imitação verbal não do que é, mas do que pode ser, cujas partes integrantes formam um

todo, um texto, do qual nada pode ser retirado ou acrescentado, e onde tudo é necessário e

verossímil do ponto de vista interior da obra. Julga um texto literário, verificando se tudo

que nele aparece tem ligação com o todo, senão há elementos desnecessários ou que estão

soltos, sem desenvolvimento ou justificativa. Em última análise, interessa a coerência

interna do texto, seja ele poesia ou prosa.

O conceito de mímese empregado por Aristóteles pode tornar-se ambíguo se

privilegiar a idéia de que a Literatura deve corresponder ao universo real, imitando-o de

forma melhor do que ele é, e outra possibilidade é a idéia de que o importante é o universo

fictício, que pode representar o mundo real ou o mundo possível, desde que coerentemente

construído pelas palavras. Então, a mímese é uma criação filosófica, é um termo usado

para definir Literatura, e que pode designar também características da narrativa histórica,

como os escritos de Heródoto e Tucídides, conforme explicou-se inicialmente.

A conexão do parágrafo anterior deixa claro que, em especial a História e a

Literatura, não são exclusividades de si mesmas. Entretanto, o que varia são as formas de

empregá-las, o modo de relacioná-las.

O que já se expôs, sugere que a historiografia, isto é, a escrita ou o estudo crítico da

História apresenta momentos diferenciados e evolutivos. Até aqui, tratou-se de um

história épica e filosófica que ora confunde -se com a literatura, ora assume uma função

historiográfica.

Avançando no tempo, chega-se ao período medieval, quando os turcos tomam

Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente e com a Guerra dos Cem Anos, a

qual se convencionou datar de 1337 a 1453, embora saiba-se que esta é uma das datações

arbitrárias dos períodos históricos, pois os historiadores marxistas, por exemplo,

determinam outra data, a qual não será discorrida, entendendo não ser discussão

fundamental neste estudo. Os ‘historiadores’ do medievo mantiveram a tradição da

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Antigüidade Clássica, narrando guerras, intrigas de cortes e dedicando-se a uma história,

que entre os séculos IX e XII, evoluiu para uma literatura popular, de caráter religioso. A

Igreja, durante a época medieval, monopolizava a interpretação da realidade social e esta

era a de que o homem devia buscar a salvação. Neste período originam-se as

universidades, como corporações entre alunos e professores, e os estudos aí desenvolvidos

retomam as idéias filosóficas de Aristóteles, entre outros pensadores.

No período denominado moderno, pela historiografia convencional, é possível

identificar a evolução cultural em três momentos: o do Renascimento, o do Barroco e o do

Iluminismo. O denominador comum desse conjunto, do ponto de vista das relações entre

cultura e sociedade, que define a tendência da cultura na época moderna é a visão mimética

racionalista de mundo, marca da sociedade cada vez mais burguesa. A produção cultural

se deslocou do domínio dos clérigos para o dos homens comuns. O Renascimento foi uma

valorização cultural que expressou a mentalidade da nova sociedade, a sociedade burguesa.

Os humanistas destacaram-se pela produção com a reforma educacional, passando da

crítica dos textos antigos à das próprias condições em que viviam. A História passou a ser

vista como uma área de estudo separada da Poesia, Filosofia, Matemática e Eloqüência.

Os iluministas defenderam o predomínio da razão e, entre outras características, criticavam

a censura para as manifestações intelectuais. Quanto ao Barroco, salientou-se mais no

âmbito das artes, como um estilo artístico definido basicamente pela idéia de movimento.

A partir do fim do século XVIII, as ciências humanas avançaram em todas as áreas

do conhecimento. A História e a Geografia destacaram-se, procurando recriar uma

imagem viva do passado. Salientou-se a importância dos aspectos econômicos e sociais

na compreensão da História. Conforme colocar-se-á posteriormente, a mímese aristotélica

neste caso, vai servir de suporte para um outro modo de relacionar o momento histórico e

suas implicações com a História.

A História tornada científica no século XIX, ligada ao desenvolvimento das

ciências sociais, como a Sociologia e a Antropologia, formula problemas e dá as respostas,

usando método próprio, análise documental, ganhando assim um sentido pragmático, isto

é, compreendendo as transformações do passado e apontando as diretrizes parta o futuro,

sem deixar de lado questões reflexivas sobre o conhecimento da História. Tanto é que, em

1804, na Alemanha, Wilhelm DILTHEY publica “A construção do Mundo Histórico no

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Estudos Humanos”, onde trás à tona questões sobre a determinação da natureza do

conhecimento histórico, que lhe rendeu o título de ‘Criador do Historicismo’. Para o

filósofo e historiador, os fatos humanos são históricos, possuem valor, sentido, significado

e finalidade. As ações humanas expressam um estado psíquico e a tarefa do historiador é

a de relacionar os fatos com o estado mental das pessoas que interagem para que o fato

ocorra. Esta perspectiva histórica de que cada época tem seus valores e ideais, onde

prevalecem os sistemas que manifestam as intenções predominantes na humanidade, faz

com que se compreenda o processo de influência da História, como ciência, em outras

ciências. O conhecimento histórico proposto por DILTHEY é uma representação

oferecida de modo convencional, que para sua efetivação precisa de teoria, técnicas,

métodos e suportes documentais. Este modo de representar a realidade, tendo em vista a

‘cópia’ do que ‘realmente ocorreu’ reflete o que considera a mímese aristotélica .

Nesse sentido, pode-se tomar como base algumas palavras que conceituam

Literatura por um estudioso da área, que em sua obra, já clássica, afirma que a Literatura

“é um tipo de conhecimento expresso por palavras de sentido polivalente” (MOISÉS:

1968: p. 21). As palavras polissêmicas são metáforas, que de modo genérico,

representam a realidade determinada por uma apreciação de valor, de acordo com o

momento histórico em que vive o autor.

A ficção, “entendida como o universo interior onde estão armazenados e

transfigurados os produtos da percepção sensível e emotiva da realidade ambiente”

(MOISÉS: 1968, p. 22), faz aqui sua entrada. Daí vem que a Literatura emprega palavras

polissêmicas como expressão dos conteúdos da imaginação ou da ficção, sendo este um

tipo de conhecimento, uma habilidade da poética, segundo Aristóteles. Literatura,

empregada dentro da arte literária, é a expressão dos conteúdos da ficção, ou da

imaginação por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal. Ou, mais sucintamente,

literatura é ficção, quando assim se pretende entender. O mundo ficcional acompanha o

mundo real, realizando permanentemente uma interação. Ora pensa-se ilusoriamente, ora

percebe-se a realidade dos fatos. A subjetividade intercala pensamentos. Então, pode -se

dizer que há a produção literária isolada de qualquer outra ciência, e há uma Literatura

vista como uma ciência literária em um contexto histórico.

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Destas considerações pode -se apontar à teoria de Aristóteles onde referencia a

equivalência entre o universo criado e o universo real como literatura e exemplifica com a

Poética, pois nesta, enfoca aspectos estruturais da linguagem como análise semântica e

sintática em textos poéticos, trágicos, cômicos, fábulas e lendas.

O fluxo histórico é contínuo. Entre Heródoto e Dilt hey, Aristóteles e o autor acima

citado, muito tempo passou, no entanto, observa -se que História e Literatura continuam

próximas. Alguns conceitos foram revistos, alterou-se o ponto de vista de análise do

objeto e consequentemente tiraram-se outras conclusões, sem que tenha ocorrido a total

inutilização de uma ou outra, isto é, o conhecimento nas ciências têm-se colaborado

mutuamente.

A História como conhecimento, ou seja, como operação intelectual, envolve

registro, crítica, reflexão e é sempre seletiva por quem a registra. Lembrar e escrever

sobre o passado não são mais histórias aceitas com neutralidade. Os historiadores do

século XIX percebiam a História como uma ciência do passado. Utilizavam-se dela para

justificar o presente, permitindo espaço para uma história positivista, interessada em

política, em documentos, fontes da verdade e da objetividade, e em fatos concretos. Os

historiadores deram-se conta que a cada interpretação ou compreensão tem-se a influência

dos grupos sociais da época do historiador.

Aproximando-se do foco da investigação, a primeira observação importante a ser

feita é a respeito do conceito de cultura, que com muito mais razão aprofunda-se no

capítulo seguinte quando for abordado questões específicas referentes à História Cultural.

No entanto, antecipa-se um breve comentário: no século XVIII, este termo designava o

progresso de métodos e técnicas referentes a agricultura. Aliou-se à cultura, o termo

civilização, entendida como evolução, aperfeiçoamento científico. As civilizações se

auto-caracterizavam cultas, tendo em vista seu desenvolvimento na escrita, nas ciências, na

organização e divisão social da sociedade e do trabalho. Segundo CARDOSO, “a

civilização era vista como uma forma superior de cultura” (1997, p. 2).

No século XIX, os historiadores alemães, diferentemente dos franceses, entenderam

cultura como um verbete designativo de costumes específicos de uma sociedade. As

discussões em torno deste conceito convergiam para pontos de vista diferentes, o que se

convencionou chamar de ‘deslocamento de paradigmas’. Defendeu-se uma história

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científica e racional, partindo de um conhecimento hipotético, de uma história -problema,

para a produção de uma história analítica explicativa, no que se procurava basear a

cientificidade.

A produção do conhecimento histórico atual, vem construindo sua História ‘de’ e

na História ‘para’ um ponto determinado, ou seja, estudiosos vêm observando que os

interesses passam de universais para particulares; outra característica importante diz

respeito à narrativa histórica, pois vem sendo admitido o processo de significação e

interpretação de um texto de acordo com as concepções e conveniências individuais de

quem o está utilizando. Na percepção desta historiografia, cujas denominações variam,

inclusive vem sendo nomeada por alguns de pós-moderna, já outros História Cultural, há

um interesse pela valorização das interações intencionalmente dirigidas para que haja a

compreensão de uma história narrativa e literária.

A partir de uma perspectiva de História Cultural, a História pode ser

compreendida sob diversos prismas, e não apenas explicada e aceita. Assim sendo, há a

necessidade de se redimensionar a compreensão do que seja documento e de seu controle.

A ruptura com o conceito de verdade, objetividade e com as explicações historicistas

segundo modelos teóricos positivistas e / ou idealistas, faz com que muitos historiadores

estejam, hoje, mais preocupados com a busca de sinais, de vestígios, de indícios do que de

certezas e provas, pois se desenvolveram outras percepções de realidade, de passado e de

História.

O historiador inglês BURKE (2000), ao referir-se à História como uma memória

social, cita HALBWACHS, para o qual “as memórias são construídas por grupos sociais”,

sendo que, na década de 20, como comprobatório, o próprio “HALBWACHS fez uma

incisiva distinção entre a memória coletiva, como uma construção social, e a história

escrita, por ele considerada, à maneira tradicional, objetiva” (HALBWACHS, apud

BURKE, 2000: p.71).

Baseando-se nos argumentos acima, de que a memória individual e seletiva também

é social, portanto cultural, podendo variar dependendo do tempo e com o passar do tempo,

do lugar e da interação com o grupo mais próximo, ou até em determinada circunstância

mais distante, relaciona-se, então, memória à literatura. Historiadores, escritores e

filósofos concordam que a memória é uma garantia da própria identidade de um grupo

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social. É uma evocação do passado, é a capacidade humana para reter e guardar o tempo

que se foi, salvando-o de uma perda total. Como consciência da diferença temporal,

passado, presente e futuro, a memória é uma forma de percepção interna chamada

introspecção, cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento: os fatos/acontecimentos

passados lembrados, o próprio passado do indivíduo e o passado relatado ou registrado por

outros em narrativas orais e escritas. Além dessa dimensão pessoal e introspectiva da

memória, é preciso mencionar sua dimensão coletiva ou social, isto é, a memória objetiva

gravada nos monumentos, documentos, relatos e na literatura da História de uma

sociedade.

Pelas funções de reconhecimento, recordação, percepção e outras, considera-se a

memória essencial para a elaboração da experiência e do conhecimento científico,

filosófico e histórico. É provável que, de posse desse conhecimento, Aristóteles observou

que é da memória que os homens derivam a experiência, pois as recordações repetidas da

mesma coisa produzem o efeito de uma única experiência.

Uma obra literária é a concretização do domínio que o escritor tem da sua memória,

seguramente um ato individual, mas ao tomar-se várias obras literárias, de vários autores,

de um determinado período de tempo e espaço, observar-se-á que as narrativas não são

estórias inocentes da memória e sim tentativas objetivas de repassar um conjunto de idéias,

mesmo que estas estejam nas entrelinhas do que não foi escrito naquela narrativa.

Assim, fica fácil entender o porquê dos estudos literários passarem a fazer parte das

ciências sociais, na medida em que fornecem subsídios para o entendimento da História

Cultural. Neste sentido, pode-se dizer que o próprio objeto de estudo, a Literatura, pode

representar mimeticamente a estrutura da sociedade, fornecendo uma compreens ão da sua

organização social e apontando, com essa compreensão, um sentido para a direção do seu

desenvolvimento.

Pode-se exemplificar através de painéis, apresentando a História Geral-Mundial do

Ocidente situada no tempo, mesmo que se compreenda apenas como marcos de início e

término: a Era Colonial (1500 - 1808), o Período de Transição (1808 - 1836) e a Era

Nacional (1836 - aos dias de hoje), acompanhando a evolução econômica e política do

país; os mesmos painéis caracterizam os estilos de época; relacionam acontecimentos nos

determinados períodos; dividem o espaço como sendo mundial, brasileiro e sul-rio-

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grandense, mas, por outro lado, essa divisão arbitrária ou separação, paradoxalmente, une a

História com a Literatura, destacando autores e obras mais re presentativas. Ainda sobre o

paradoxo traçado na correspondência cronológica entre os períodos literários brasileiros e

o panorama histórico nacional e mundial, há a observância da conquista de um espaço, pois

notadamente, há painéis histórico-literários não só em livros didáticos, mas em obras de

intelectuais que merecem destaque, é o caso de ZILBERMAN (1982) que apresenta um

quadro cronológico da Literatura do Rio Grande do Sul com dados relativos à História do

Rio Grande do Sul.

Esses historiadores concebem as questões históricas e literárias em uma mesma

moldura que enquadra a visão de ambas: a realidade para a criação ou vice-versa, passando

ao leitor / receptor a convicção de que as estratégias envolvidas no fato literário são

pedaços de história da História e, que antes de tornarem-se obra literária houve uma

experiência humana. Esta experiência, aliada ao conhecimento histórico, está ‘guardada’

na memória de uma sociedade, da qual o escritor pode ser uma representatividade.

Logo, se tem a memória, tratada por HALBWACHS (2000), como “produto de

grupos sociais”, representada através da Literatura tão disponível para a História quanto a

História para a Literatura. O registro da memória coletiva transparece na produção

literária de uma época, ou de um grupo de indivíduos e, esta Literatura passa a ter o valor

de um documento.

Quando se coloca a Literatura como um documento para a História tem-se em

mente a visão de documento de PRIORI que considera que “o historiador prepara todo

um dossiê documental, visando dar credibilidade às questões da pesquisa” (1994, p.185).

Nesse sentido, o historiador não está obrigado a ter como documento apenas aquilo

que antes se considerava a prova oficial de um feito, a verdade em si, na história

positivista. A Históri a passa a ser vista como um conhecimento através dos documentos,

sem considerá-lo a prova inconteste da História na íntegra.

A História Cultural ampliou o campo de percepção do documento entendido como

histórico, substituiu a história fundada essencialmente nos textos, nos documentos escritos

oficiais, por uma história construída a partir de uma multiplicidade de documentos: escritos

de todos os tipos, oficiais e não oficiais, documentos figurados, produtos de escavações

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arqueológicas, documentos orais, estatísticas, tabelas e variações de preços, fotografias,

filmes, e abriu-se o espaço para que, dentre esses ‘novos documentos’ se incluíssem as

obras literárias. Alguns historiadores, como LE GOFF (1998) chamou esta admissão de

variedades de documentos de ‘r evolução documental’. Esse historiador alerta quanto ao

cuidado que se deve ter ao analisar e criticar estes novos recursos para o historiador,

observando principalmente o tempo em que o objeto foi dado como documento e a ótica

moderna em que se está para analisá-lo. Entende-se que sempre há uma relação entre o

tipo de história que se escreve e o tipo de documentação que o historiador seleciona para

ter à sua disposição.

É ainda o autor em questão, quem considera o historiador contemporâneo mais

cauteloso e exigente que o tradicional a certas concepções, principalmente em relação ao

seu tratamento com o documento. Além do tempo, da cronologia, uma nova instrução

vem se desenvolvendo quanto a crítica documental, tal é o caso do documento falso ser

visto como um indicador cultural. Para a historiografia tradicional é difícil convencer-se,

vale dizer apreender-se, do fato de que um instrumento de informação falso não é ingênuo.

Repara-se que um documento é o resultado de uma dada situação, se for emitida uma guia

falsa, é preciso analisar as condições nas quais tal escritura foi produzida e não só em que

circunstâncias mas o porquê, as intenções que a levaram a ser emitida falsamente. Neste

caso, a falsidade do documento não está em contradizê-lo, mas obviamente em interpretá-

lo, desmontá -lo e lê-lo como um produto da sociedade. Esconde-se aí a produção da

história identificada como uma forma de poder camuflado consciente ou

inconscientemente, o que se pensa difícil de ocorrer.

O documento informa posicionamentos de quem o fez, é algo que se forma com o

objetivo de impressionar, é o que FOUCAULT (1992) chamou de ‘documento

monumento’. Há a necessidade de se encontrar um significado objetivo em uma

documentação que se apresenta ambígua. Neste caso, a História precisa ser compreendida

e explicada, até justificada, conforme o caso. Percebe-se uma certa oposição de

interpretações, quando se fala em história compreendida e história explicada. O que se

deve clarear é que uma explicação não deve ocultar a ‘verdade’ a ser compreendida, nota-

se que um pesquisador deve ser um leitor aguçado na sua interpretação, principalmente

semântica, dos fatos, dos documentos, dos acontecimentos e também das teorias dos

próprios historiadores.

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Este ‘olhar aguçado’ recai a atenção, especialmente, para um traço distintivo de

novas abordagens da História que é a narrativa nos documentos. Os historiadores

reconhecem o papel ativo da linguagem, dos textos e das estruturas narrativas na criação e

descrição da realidade histórica que tem como comprovante oficial, o documento.

A admissão de uma alteração na abordagem do texto, através da narrativa, permite

o reconhecimento da natureza multidisciplinar da realidade; esta forma coincide com a

perspectiva de estudo da História Cultural. Trata-se do estudo de pequenas histórias, ou

histórias sob um ponto de vista, dentro da História. Em relação a narrativa, assim explica

um autor:

Neste grande território da história que a nova história muito contribuiu para ampliar, sem perder de vista fronteiras que não devem ser barreiras, mas interfaces com as outras ciências sociais, fronteiras permeáveis, submetidas a fluxos e refluxos, onde se elabora a boa terra de uma interdisciplinariedade verdadeira, tomarei como exemplo aqueles objetos da história que dão lugar, hoje, às chamadas “voltas”: a volta do acontecimento, a mais espetacular; a volta da história-narrativa, a mais polêmica; a volta da biografia, aparentemente a mais censual; a volta da história política, a mais considerável (LE GOFF: 1998, p. 6/7).

É certo que toda a narrativa, histórica ou literária, apresenta dois planos essenciais:

o plano da forma e o do conteúdo. No primeiro, tem-se os aspectos que envolvem a

construção do texto, ou seja, o vocabulário, a sintaxe, a sonoridade, as imagens, a

disposição das palavras no papel; no segundo temos as idéias. Portanto, enquanto a forma

envolve os aspectos lingüísticos e gráficos do texto, o conteúdo envolve os significados do

texto e suas relações com o mundo. Ape sar dessa divisão, ambos atuam juntos no texto

literário, e uma alteração em um dos planos implica a alteração no outro.

De acordo com a forma que os textos podem assumir, eles costumam ser

organizados em dois grandes grupos: os textos em verso, quase sempre literários, e os

textos em prosa, podendo ser histórico como um documento e/ou literário.

Além dessa divisão, há outras classificações que procuram organizar e hierarquizar

os textos literários. A mais antiga delas, e que ainda hoje é considerada, ba seia-se na obra

Poética, de Aristóteles. De acordo com essa concepção clássica, há três gêneros literários:

lírico, épico e dramático.

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Através da análise a partir de História Cultural, tem-se a intenção de que cada

gênero histórico-literário, inclusive os que já se relacionou, ressurja com questões

renovadas e inusitadas. Por isso, a história -narrativa deveria ser utilizada também como

um meio pedagógico do ensino escolar básico de qualquer matéria, observando ainda que,

várias matérias podem ser narra tivadas. É o que acontece com a Literatura e, aos seus

olhos, não deveria ocorrer com a História, porque ela “dissimula, inclusive de si mesma,

opções ideológicas e procedimentos metodológicos que, pelo contrário, devem ser

claramente enunciados” (LE GO FF: 1998, p. 7).

Para um esclarecimento melhor do posicionamento anterior há a não aceitação na

integra da história narrativa por ter sido interpretada apenas como Literatura. Neste caso,

a base historiográfica presente na narrativa, ao contrário de ser um critério de verdade,

serve como alicerce do ficcional. Os elementos históricos utilizados em determinado texto

em prosa criam sua dimensão fictícia. Exemplifica-se com a narrativa do contexto da

Revolução Farroupilha:

O movimento dos Farrapos ocorreu no Rio Grande do Sul, entre 1835 e 1845, e se

estendeu a Santa Catarina. A origem dessa revolta está vinculada às especificidades que

marcaram a formação da Província do Rio Grande do Sul.

Especialmente no século XVIII, os gaúchos passaram a se dedicar à pecuária com o

gado de corte, charque, cavalos e muares. Progressivamente, o sul do país passou a

produzir bens para o mercado interno, abastecendo a região sudeste com o charque, o gado

e o couro. A pecuária extensiva necessitava da mobilidade constante do vaqueiro e do uso

de arma para poder defender o rebanho, para isso utilizava mão-de-obra livre, contando

com um número menor de escravos, se comparado com o nordeste brasileiro.

Durante o período colonial, a região foi palco de conflitos entre as metrópoles

ibéricas; isso porque o comércio ilegal destinado às minas de prata de Potosi eram

realizados através do Rio da Prata; a produção gaúcha encontrava concorrência no mercado

interno dos produtos provenientes da Argentina e do Uruguai, que não eram taxados pelo

governo central, estabelecendo-se uma concorrência desleal com o produto nacional; e, a

fronteira entre os domínios espanhóis e portugueses não estava claramente definida.

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Assim, essa área ao Sul acabou sendo marcada por uma presença militar e por

interesses econômicos distintos daqueles do setor exportador. O governo central, afinal,

era controlado pelos senhores de escravos, plantadores de cana -de-açúcar em Pernambuco

e Bahia, e café, no Rio de Janeiro. Esses alimentavam seus negros com charque, produto

que, uma vez taxado, aumentaria seu preço, diminuindo o lucro dos fazendeiros. Além

deste, outros problemas se colocaram entre o Governo e os estancieiros como os pesados

impostos e a designação, pela Corte, do Presidente da Província.

Após ameaças e fracassos nas tentativas de negociações, em 20 de setembro de

1835, teve início a Revolta dos Farrapos. Os revoltosos tomaram a capital, Porto Alegre,

liderados pelo estancieiro Bento Gonçalves. Este contava com a discreta simpatia dos

caudilhos da fronteira brasileira. De um lado estavam os conflitos entre os grandes

pecuaristas gaúchos, e do outro o governo central.

Politicamente, a elite gaúcha rebelou-se contra uma medida alfandegária do

governo central, que reduzia os impostos para a entrada de artigos da região do Prata,

similares aos do sul. A justificativa do governo recaiu nas reclamações da população do

sudeste, de que os preços dos produtos sulistas eram abusivos. As lideranças sulistas

envolvidas na rebelião pretendiam conquistar maior parcela de autonomia, porém

mantendo os vínculos com o Império. O ‘separatismo’, afinal poderia significar a perda

do mercado brasileiro de charque. Os trabalhadores por eles mobilizados, os ‘farrapos’,

viam no auto-governo da região, sob a forma republicana, o início da solução para a

situação em que viviam. A instituição da República, ligada ao valor de um produto de

primeira necessidade, o charque, atraiu para suas fileiras de combatentes personagens da

História, como Giuseppe Garibaldi.

Mas, o movimento de insatisfação que eclodiu no Sul e passou à História como

Revolução Farroupilha apresenta causas mais complexas: a excessiva centralização

administrativa, que entorpecia os negócios públicos, a incapacidade de presidentes de

província mal preparados para o cargo, tributação fiscal injusta e, acima de tudo, as idéias

liberais políticas em voga na época, inclusive disseminadas por ideólogos estrangeiros.

Os rio-grandenses não tinham indenização pelos danos das guerras. A maior parte

dos oficiais era composta por portugueses, não se dando oportunidades aos rio-grandenses

de fazerem cursos militares. Havia a prevenção das principais famílias em entregarem

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seus filhos ao mando desses oficiais, o que o obrigava a prática do recrutamento. Não

havia retribuição aos impostos, nem mesmo aos militares se pagava em dia os

vencimentos.

Os impostos pesados que recaíam sobre o principal produto sul-rio-grandense, o

charque, seja diretamente, 15% na alfândega, seja sobre o campo, dez mil réis por légua

quadrada, tornava impossível sustentar nos mercados nacionais a concorrência com o

charque platino.

A historiadora Sandra PESAVENTO (1980) lembra que:

Dentro da percepção que os farrapos tinham dos acontecimentos, o centro era acusado de má gestão do dinheiro público, de realizar gastos supérfluos sem aparelhagem material do país e de onerar o Rio Grande do Sul com impostos, sem indenizá-lo por danos sofridos. Por trás dessas acusações vê-se a percepção de que o Rio Grande do Sul era explorado economicamente pelo centro (1980, p. 26).

Diga-se, a bem da verdade, que não eram só os impostos que tornavam difícil a

concorrência dos produtos de nossas charqueadas com os produtos do Prata. O sistema

escravagista tornava -se antieconômico. Isto não o poderiam entender os estancieiros de

1835. Tanto é que após o término da revolução, com a elevação de 25% na alfândega para

o charque platino, o produto rio -grandense só encontrava facilidade de comércio, quando

os países vizinhos andavam perturbados pelas contínuas revoluções ou guerras.

A 20 de abril de 1835 foi instalada a Assembléia Provincial de São Pedro do Rio

Grande do Sul, constituindo-se esta na expressão do poder legislativo das várias áreas

brasileiras englobadas sobre a dominação do Império, o que não agradou a todos. O

Presidente da Província, nomeado pelo poder regencial, foi Antônio Rodrigues Fernandes

Braga e na facção contrária, de cunho liberal, exaltado, pontificou-se o Coronel Bento

Gonçalves da Silva, um rico estancieiro, que liderou tropas particulares para depor o

governador Antônio Rodrigues Fernandes Braga, dando início ao movimento.

Os farrapos ocuparam Porto Alegre, no dia 11 de setembro de 1836, quando

proclamaram a República Rio-Grandense ou República Piratini, assumindo a presidência o

Coronel Bento Gonçalves da Silva. A primeira capital da República foi Piratini (1836),

transferindo-se depois para os núcleos de Caçapava (1839) e após Alegrete (1842).

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Posteriormente, em julho de 1839, José Garibaldi e David Canabarro invadiram

Santa Catarina, por Laguna, e proclamaram a República Catarinense ou República Juliana,

em referência ao mês em que foi proclamada, confederada à República Rio-Grandense, a

qual teve curta duração.

Ao nomear o Barão de Caxias como comandante das tropas legalistas, o governo

central dá um passo importante em direção ao final do conflito. Após pequenas vitórias,

em fevereiro de 1845, as tropas imperiais comandadas pelo Marechal Luís Alves de Lima

e Silva, o futuro Duque de Caxias, ofereceram uma proposta de paz aos farroupilhas. E em

28 de fevereiro de 1845, detiveram o movimento, formalizando um acordo. Para obter a

vitória, ele, com sua habilidade de estrategista, soube explorar, no terreno político, as

divergências entre os donos das estâncias mais moderados e outros líderes farroupilhas, de

modo a isolar os mais radicais. O governo imperial agiu da mesma forma cautelosa,

decretando, como queriam os estancieiros, uma tarifa de importação de 25% sobre a carne

salgada da região do Prata.

PESAVENTO (1980) assim descreve a situação da região Sul nesta época:

A rebelião era sustentada pelos estancieiros gaúchos que mobilizara a sua peonada. Mesmo com a Proclamação da República, o que os revolucionários almejavam era a independência política com relação ao domínio do centro, mantendo contudo os laços econômicos com o resto do país, através da continuidade do fornecimento do charque ao mercado interno. Nesta medida, propunham federar-se às demais províncias que, como eles, quisessem adotar a forma republicana. É neste sentido que deve ser entendida a projeção do movimento revolucionário até Santa Catarina, revelando ainda o interesse na aquisição de um porto (Laguna) para o escoamento da produção via marítima. A barra do Rio Grande permaneceu, durante todo o tempo da revolução, fechada aos farrapos, ficando a cidade em mãos dos legalistas. Face a esta situação, foi só através das ligações com o Prata, das exportações por Montevidéu e dos contínuos reforços em munições e cavalos, que chegavam da Banda Oriental, que os farrapos puderam sustentar dez anos de lutas contra o Império (1980: p. 27-28).

A paz foi estabelecida, no acampamento às margens do Rio Santa Maria, perto de

Poncho Verde, no interior do atual município de Dom Pedrito, quando da assinatura do

acordo entre o General David Canabarro, chefe dos rebeldes, e o Barão de Caxias,

comandante -chefe do exército imperial na guerra contra os farrapos. A formalização do

acordo consistia nas seguintes condições: os gaúchos poderiam escolher, ou pelo menos

indicar, o presidente da província; as dívidas da República Rio -Grandense seriam pagas

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pelo governo central; os militares rebeldes poderiam se transferir para o exército nacional

com os mesmos postos que ocupavam; os prisione iros de guerra deveriam ser soltos logo;

aumentaria o imposto sobre o charque argentino; seria concedida a anistia geral; seria

garantida a segurança individual e de propriedade em toda sua plenitude; entre outros.

Essa ‘paz’ proclamada serviu para serenar os ânimos, mas a defesa pela fronteira

continuou, pois pouco tempo depois, farrapos e imperiais voltariam a lutar juntos contra os

soldados do ditador argentino, Rosas, em 1852.

Os elementos históricos no contexto da Revolução Farroupilha acima resumidos,

nem sempre são indícios do real, mas há a fuga deste para uma dimensão completamente

ficcional, até porque o autor pode escrever uma estória de amor e não uma história baseada

em questões políticas reais. Valer-se de elementos históricos para dar maior ênfase aos

aspectos ficcionais de um enredo é um recurso utilizado além da literatura, também pela

narrativa cinematográfica, muitas vezes, ou algumas, com sucesso de bilheteria. Por

coincidência ou não, é a questão que se coloca na dissertação ao tratar do romance Ana

Terra , de Érico Veríssimo que construiu sua história com características semelhantes ao

exemplo acima.

STONE (1994), debatendo sobre História e narrativa, chama a atenção para a

tradição da narrativa histórica. A composição historiográfica foi um modelo narrativo

posteriormente dominado por uma História científica, explicativa. Para este autor, o que

ocorre é uma diversidade de orientações e focos de interesse aplicados nas pesquisas com o

objetivo de reconstruir a História, contra pondo com os métodos de análise estatística e com

esquemas explicativos que determinam o fato/acontecimento. STONE contrasta a

modalidade narrativa de história com o padrão científico-explicativo de historiografia,

correlacionando-as de maneira intrínseca.

Segundo FURET, citado por LACERDA (1994):

A narrativa biográfica confere um sentido especial às experiências individuais, organizando-se em função de uma trajetória finalista, e tal como o romance ordena fatos fictícios em torno das ações e sentimentos de seus personagens, a história narrativa monta fatos supostamente verdadeiros a fim de contar a ‘vida’ (aspa do autor) do Estado ou da nação (FURET apud LACERDA: 1994, p. 15).

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FURET destaca, ainda, a História narrativa como sendo um relato factualístic o

guiando-se por acontecimentos políticos, militares e diplomáticos aceitos como tais nos

meios acadêmicos. A História narrativa reconstitui os fatos pela lógica cronológica da

composição, também romântica e, hoje, aceita contribuições das ciências que colaboram

para a autenticidade desta reconstituição.

Admite-se aqui uma bifurcação de sentidos: a interpretação do passado tendo por

base o tratamento serial às fontes como alternativa para o discurso narrativo e a outra

possibilidade é a admissão da biografia e do romance histórico, produzindo uma

mimetização da vida coletiva através de testemunhos subjetivos, também coletivos.

A perspectiva de revalorizar a narrativa examinada por STONE (1994) coincide

com a análise de FURET, na medida em que os historiadores destacam sua atenção para os

sentimentos, emoções e padrões de comportamento, passando então, a investigar as

dimensões do imaginário e do simbólico nos processos sociais, ao invés de aterem-se

somente aos fatos causais de explicação, como queria a História, tida como científica.

De acordo com este ponto de vista, há a exploração de fontes, até o momento

negligenciadas, evidenciando o modo narrativo de escrita. Pelo parecer de BURKE

destacado por LACERDA (1994), “a recondução do acontecimento e da biografia à

dignidade de objeto historiográfico e a reatualização do estudo de caso têm aí papel

reconhecido” (BURKE in LACERDA: 1994, p. 18). BURKE esboça ‘a volta da

narrativa’ opondo-se ao discurso conceitual e analítico da História construída segundo os

procedimentos de raciocínio causal e dedutivo.

LACERDA (1994) cita STONE, considerando que na maioria das vezes:

... o relato estoriado, a narrativa circunstanciada, extremamente minuciosa, de um ou mais ‘acontecimentos’ com base nas declarações de testemunhas oculares e de participantes, é obviamente um meio de recuperar algo das manifestações exteriores da mentalidade do passado (LACERDA: 1994, p. 19).

Apesar de se estar a par dos conceitos, às vezes deixados ambíguos pelo próprio

autor, o relato ou a narrativa de um ou mais fatos/acontecimentos com base em declarações

de testemunhas ou participantes como ocorre na biografia que ora cita-se neste estudo, de

Érico Veríssimo, é óbvio que é um meio de recuperar vestígios do passado. E, junto com

esta , o evento, o fato, o acontecimento, e aí sim, interpretar culturalmente através da

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análise e da aceitação de contribuições de outras ciências, como é o caso da filosofia,

quando se refere à mímese aristotélica . As formas de representação miméticas, vale

dizer, realistas, tanto históricas quanto ficcionais, produzem uma imagem ordenada do

mundo imaginado real, entendendo que não se imagina o que não existe, não se representa

o que não se conhece, e se isto o fizer, então será uma fantasia, claro, que, me diante

códigos e regras constituídas, segundo as tendências culturais dominantes.

A narrativa oferece ao historiador de arquivos a capacidade de embrenhar-se

intelectualmente, a fim de tornar a sua investigação a mais valiosa possível e, também a

mais prazerosa para o público leitor.

Aparentemente, portanto, tem-se, de acordo com STONE, a revalorização da

narrativa opondo-se à mitificação da História científica e a oposição de FURET,

depreciando a narrativa histórica pelos aspectos nostálgicos que possa representar,

alegando que não se vive plenamente as emoções e as representações de nossos

antepassados. Com base nestes conceitos em relação ao texto narrativo percebe -se uma

índole afetiva e outra ideológica, e abre-se a possibilidade de uma produção his toriográfica

que contemple ambos: imaginação e razão.

O bom senso e a experiência são os grandes trunfos do profissional para a execução

de uma tese que, cuidadosamente, deve evidenciar o emprego de obras literárias na

historiografia contemporânea, desvinculando aspectos ilusórios de que isto é impossível de

se fazer. Muitos historiadores já reconhecem o inevitável entrelaçamento do discurso

historiográfico com as modalidades de discurso ficcional. Para se verificar esta premissa,

basta observar a inc idência da Literatura na História por grandes nomes historiográficos

que a citam, pesquisam, entre outras possibilidades. O discurso histórico também está

imbuído de imaginação e representação, principalmente quando se quer resgatar

fatos/acontecimentos e, destes não se participou.

Sob um outro aspecto, observa -se que o uso do substantivo ‘narrativa’ provoca

discussões, ou pelo menos manifestações diversas. Pode -se entender que a narrativa, se

for histórica, porque há a possibilidade de ser ficcional, mantém uma relação específica

com a verdade pelo fato de remeter a um passado que realmente existiu. Partindo deste

pensamento, diferencia -se o enredo histórico do romanesco, acrescentando que a

compreensão do que é narrativa ou não, está no ‘como’ perceber o contexto.

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Um livro pode ser lido através da sua montagem e do seu enredo. A escrita faz

com que o leitor se concentre como em uma obra de ficção, isto é, o leitor entrega -se ao

prazer da leitura, do instruir-se e divertir -se ao mesmo tempo, mas não há o que impeça

que se trate de fato de História, de relatos de acontecimentos realmente ocorridos, de um

fenômeno histórico verdadeiramente explicado, de documentos de arquivos examinados e

publicados de forma inédita, então, efetivamente, o leitor está adquirindo novos

conhecimentos pelo subsídio da narrativa de um romance histórico.

Nesse contexto é imprescindível que se tenha claro a diferenciação, melhor ainda,

que se use o sinônimo adequado para o verbete ‘narrativa’ para que não haja confusões,

pois sabe-se que o conceito é polissêmico. Narração pode ser uma exposição escrita ou

verbal de algum fato, pode dar uma descrição, uma história, pode ser uma exposição

minuciosa, pode ser um discurso, um conto, um relato e outras possibilidades. Alguns

historiadores polemizaram a história -narrativa que destacava em primeiro lugar os

indivíduos e os acontecimentos, e, não se contentaram mais com a ordem da sucessão e da

cronologia. A posição das ciências sociais, que tem como objeto grupos sociais e não o

indivíduo, não mais a seqüência dos acontecimentos, mas o fato social, questionou também

o tempo, tornando-o social ao referir-se aos ciclos, conjunturas, estruturas. A História

escrita na forma de narrativa é imperceptível por preencher espaços e mostrar ao leitor as

relações e ligações sem expô -lo a uma cronologia crescente, baseada em documentos

seqüenciais. É difícil perceber a História Cultural sem um elo de ligação com a narrativa.

Até porque, não se pode renunciar à história -narrativa que mencionava apenas o

acontecimento, deve -se compreendê-la como uma forma de narrativa do que diz e do que

está oculto em um documento. O acontecimento faz parte do enredo, logo faz parte de

uma forma de narrativa. A História pode ser vista como uma narração social comprovada

pelos documentos em um texto narrativo. A relação da narrativa-histórica com a realidade

pode aparecer na forma de representação desses documentos.

A visão de que as formas narrativas são inseparáveis do discurso histórico e,

consequentemente, fazem parte dos documentos que o historiador toma por objeto, cria

uma interdisciplinaridade sem fronteiras para as ciências, não só para a historiografia e

para a literatura, mas também à lingüística, à semântica, à sociologia, à filosofia, à

antropologia... O ato de leitura do historiador implica práticas de exclusão e classificação

seja qual for o seu objeto de estudo. Assim, isolar um objeto de estudo, atribuindo um

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caráter fragmentário à pesquisa, próprio dos estudos de casos, recai em uma visão

individualista que não atendia mais a trajetória historiográfica que parte para o estudo de

fragmentos contextualizados em tempos longos, mesmo que descontínuos.

Historiadores tradicionais presos aos documentos, base da sua atividade, tanto

fragmentado como contextualizado, através de procedimentos metodológicos aos quais

estão acostumados, ou são previsíveis, confirmam suas proposições. Mas a busca da

verdade do fato ou autenticidade da fonte não é acompanhada com a mesma expectativa da

interpretação, a partir de uma nova postura da História que aposta na credibilidade e

plausibilidade da versão – narrativa – criada sobre o passado pelo historiador. Esta pode

ser uma posição bem distanciada daquela que garantia ser o conhecimento histórico

verdadeiro, apenas pelo documento.

O olhar do historiador sobre a Literatura tem a tendência de traçar um contexto para

o tempo da narrativa e para o tempo da escritura da narrativa, contexto este obtido pelas

relações com o real que o historiador se obriga a fazer, talvez por dever de ofício. É

preciso cercar o texto, no tempo e no espaço, social e institucionalmente, pois o historiador

quer ver na narrativa literária uma verossimilhança com o contexto ao qual se refere. As

linhas de tempo de His tória e de Literatura, tanto quanto os painéis ilustrativos já referidos

anteriormente, confirmam esta necessidade que o historiador tem de verossimilhança com

o contexto. A partir da História Cultural, o historiador espera encontrar coerência e

sentido no texto, na sua trama e personagens, bem como nos referenciais que ele possua.

Esta coerência com o seu tempo, permitirá que o historiador -leitor sinta -se com o dever

cumprido.

As palavras de STAROBINSKI sobre a atitude que deve assumir o historiador

diante do texto literário, parecem ser as mais viáveis:

... o intérprete presta uma contribuição própria, ainda que não pretenda fazer mais do que uma decifração. Na realidade, ele é, em grande parte o produtor daquilo que descobre no texto, uma vez que escolhe, conforme as suas necessidades intelectuais e as necessidades de sua época, o código em que inscreverá o sentido próprio (1989, p. 141).

O que vem sendo muito explorado pela História é a possibilidade que a Literatura

lhe oferece para perceber o que está oculto. É nesse ponto que a História vista como

conhecimento, também referida por MOISÉS (1968), quando afirma que a ‘Literatura é um

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tipo de conhecimento’, entende-se que é dotada de um método científico e deve buscar

formas para tornar inteligível o passado, recuperando-o por uma estrutura alternativa que

não aquela trazida pelos documentos tidos como oficiais ou os métodos tradicionais.

Entende -se que é a Literatura, produto de uma cultura, que dá à História a sensibilidade, a

percepção que permite entender o passado de outra forma ou sob um ponto de vista

distinto.

PESAVENTO (1980), desvencilhou-se da exigência de veracidade e busca nos

textos literários uma outra visão dos fatos, uma versão alternativa que permitirá ao

historiador constatar a existência de outras interpretações, talvez de uma reinterpretação.

O historiador verifica que não existem apenas fatos, mas discursos que, a partir de

diferentes focalizações, narram os fatos, omitindo ou acrescentando determinados aspectos,

de acor do com o interesse do indivíduo ou do grupo que os enunciam, implicitamente há

uma intencionalidade.

Receptividade, esta seria a palavra correta para o sentimento do historiador

contemporâneo. Só inteligência não basta para qualificá-lo neste momento histórico. A

prática histórica não pode ser reduzida apenas a documentos e deles se retirar conclusões.

O historiador evidencia a História com o conhecimento dos documentos. Tanto é que,

entre 1950 e 1960, construiu -se uma historiografia que somatizava apenas o que

interessava dos pareceres gregos, filosóficos e historicistas. Porém, estes trazem implícito

as razões que os levaram a ser e existir como tais, portanto eles ultrapassam os limites da

História, isto se considerar que a História tem limites. O pesquisador deve ser objetivo,

mas também precisa preencher estas lacunas e para isso lança mão, por exemplo, da

Literatura, entre outros conhecimentos. E esta poderá suprir o sentido que falta para

compreender ou decifrar um documento.

Iniciou-se este estudo retornando à Antigüidade Clássica e traçando

cronologicamente a evolução da História com os gregos, os filósofos e posteriormente,

com os historiadores contemporâneos: PRIORI e LE GOFF. Se Heródoto, tendo dado

atenção às fontes, eximindo-as de análise, foi reconhecido por LE GOFF pelo seu espírito

histórico, que o levou a descrever em detalhes os costumes que explicavam o conflito entre

os gregos e os bárbaros, então está-se escrevendo uma História que não só se testemunhou,

mas também exprime a cultura daqueles povos que visitou. O mesmo ocorre com

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Tucídides, quando traçou com perspicácia as relações entre causas e efeitos, meios e fins

como partícipe do acontecimento, a Guerra do Peloponeso.

Quanto às idéias de Aristóteles, continuam sendo utilizadas, revistas e comparadas

com as de Platão. A mímese ainda é susceptível de questionamentos por parte de

historiadores e literatos. Tanto a mímese quanto a narrativa, para MOISÉS ou para LE

GOFF devem receber interpretações de acordo com o contexto em que aparecem, ou de

acordo com o objeto ao qual elas estão sendo relacionadas. Tal é o caso da tese de

doutorado sobre a obra de Érico Veríssimo, de Maria da Glória BORDINI, em que trata a

teoria mimética como dependente dos conceitos de realidade em que ela se interpõe.

Para esta pesquisadora, a mímese aristotélica é um ponto de partida esclarecedor ‘em

virtude de sua persistência na história literária ocidental’, e, completa-se este pensamento

afirmando que a Filosofia, a História, a Literatura e, provavelmente outras ciências ainda

tiram proveito desta teorização justamente pelo seu grau de ambigüidade interpretativa.

Esta ambigüidade é vista em relação a representação que pode ser do fato / acontecimento

presente como de algo ausente. Vale dizer que o importante em cada estudo é a

adequação do conceito aristotélico além daquele exposto no século IV a.C..

A interpretação da mímese é uma produção de sentido do real ligado a conceitos

como do imaginário, do simbólico, entre outros, da criatividade na arte literária como, com

muito empenho abordou BORDINI (1995) relacionando com a criação literária de Érico

Veríssimo.

O fato / acontecimento pertence à História como à Literatura, com funções diversas

e pode ser definido como uma varia nte do enredo. Têm-se aí duas confirmações: a de que

rejeitar o acontecimento não significa fazer desaparecer a narrativa, nem o acontecimento,

mas transformá-los e de que rejeitar a narrativa não desfaz o acontecimento. É o que

ocorre com o romance histórico, precisamente Ana Terra, de Érico Veríssimo, onde há um

momento histórico narrado e há um romance narrado, ambos podem ser um modelo muito

próximo da História, senão ela mesma, de acordo com a História Cultural, tanto pelo

vínculo da ocorrência do fato com o enredo, como pela seriedade do relato.

Cabe aqui considerar que a História Cultural ampliou o campo de observação do

historiador pela redescoberta e aceitação de novos objetos, entre os quais, a Literatura

como sua fonte. Além do que, passou a entender o acontecimento como a expressão de

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uma imagem mental social, que resulta da co-relação entre sujeito e objeto. A partir desta

perspectiva é que se realiza este trabalho: o conhecimento é um esforço de representação

do imaginário, o qual segue com uma análise mais profunda no próximo capítulo.

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II ÉRICO VERÍSSIMO: VIDA E OBRA EM UMA PERSPECTIVA

HISTÓRICA CULTURAL

“A melhor maneira de compreender

uma nação é ler a obra de seus

escritores.”

Érico Veríssimo - Califórnia, 1943.

No capítulo anterior traçou-se possíveis entrelaçamentos da História com a

Literatura, levando em consideração suas origens gregas e o fio condutor deste estudo: a

mímese aristotélica, que é o que se propõe para uni-las. Passa-se, nesta parte, ao relato de

dados biográficos do autor, Érico Veríssimo, da obra Ana Terra. Porém, para alcançar

plenamente os propósitos, se intercalam alguns comentários importantes para o

entendimento da relação da biografia com a História e a Literatura.

A historiografia, assim como qualquer ciência, apresenta momentos que se

distinguem na sua trajetória. A História está ligada às ciências sociais, procurando

ultrapassar a aparência imediata dos fatos e atingir explicações mais profundas, tenta

captar o sentido das mudanças, e, por isso, às vezes privilegia as rupturas em detrimento da

continuidade.

A História do século XX é um movimento de valorização de aspectos culturais,

onde se encontra como objeto de estudo as representações, os mitos, o cotidiano, os signos,

o imaginário, sem se preocupar em estancar as relações determinantes entre um e outro

objeto nem a fronteira das ciências.

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Os historiadores procuram captar o processo histórico, manifesto em toda produção

cultural, seja no relacionamento do homem com a natureza ou no relacionamento dos

indivíduos entre si. Captar o processo histórico envolve determinar as próprias leis de

movimento da História, isto é, detectar o conjunto das transformações ocorridas, devido ao

surgimento de mudanças essenciais na organização social.

A História Cultural tem se aproximado cada vez mais da Literatura, chegando a tal

ponto de historiadores e literatos reunirem-se, com a melhor das intenções, para discutirem

suas fronteiras, mas dificilmente chegam a um acordo definitivo. Apenas para ilustrar o

que se vem afirmando, cita-se nos próximos parágrafos exemplos desses estudos.

É o que ocorre com WHITE (1994), quando propõe um estudo da História baseado

em aspectos lingüísticos e semânticos e finaliza ancorando-se em textos literários como

poder-se-á observar ainda neste capítulo após os dados biográficos relacionados para este

estudo.

A preocupação comum pela importância dos registros literários para a História

denota um valor que até então passava despercebido, embora a matéria lit eratura, e não

disciplina segundo CAON (1998), sempre tenha se situado em um contexto histórico

como, referenciou-se anteriormente, agora se está dando outro enfoque com o intuito de

validar este tema.

O historiador profissional, ou aquele que se sente com esta missão, utiliza a

Literatura pela propagação de abordagens que pouco interessam ao contexto histórico,

talvez pela quantidade de ficção dos discursos, e também pela desconfiança frente à fonte

literária, percebida como sendo menos real que o documento de arquivo.

CHARTIER (1990) apresenta a possibilidade de ir do discurso ao fato, o que obriga

a pôr em causa a idéia da fonte enquanto testemunho de uma realidade e de que esta seria

mero instrumento de mediação. Ao analisar a realidade através das suas representações

precisa-se considerar as representações como realidades em múltiplos sentidos, através de

formas de apropriação, as quais permitem simultaneamente a relação de conhecimento

sobre as fontes, e os atos de relação que existem entre as práticas e as representações.

Volta-se a observar a interdependência entre os objetos de estudo, fazendo com que se

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anexe territórios de outras ciências ao território do historiador. Uma das inspirações, neste

sentido, são os objetos de estudo reencontrados sob novas abordagens.

Uma das características da História Cultural é a de conciliar novos domínios de

investigação com a mesma exatidão dos postulados da história social, visando a

apropriação de uma legitimidade científica, apoiada em aquisições intelectuais que, neste

estudo, refere-se à Literatura.

Na visão de CHARTIER, citada na introdução deste estudo, a História Cultural

“tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma

determinada realidade social é construída, pens ada, dada a ler” (1990, p. 17), tendo-se em

mente que as representações do mundo real são determinadas pelos interesses do grupo que

as planejam, consequentemente as percepções do social são discursos que produzem

estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas

menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar suas intenções. Enfim,

as representações estão sempre colocadas em termos de poder e de dominação.

Para seguir a trajetória criada, apresenta-se neste corpus uma biografia

relacionando o escritor no momento histórico em que viveu, o porquê da escritura de suas

obras em temáticas diferentes e as representações que há na obra direcionada para a análise

em curso.

A biografia que segue é uma elaboração pessoal, baseada em várias obras de Érico

Veríssimo e sobre Érico Veríssimo. Estas obras foram bastante úteis na composição das

informações sobre a vida do autor encontradas de forma esparsa. Trabalhou-se com

inúmeras fontes, dentre elas, embora em pequena quantidade, documentos cartoriais e

depoimentos de pessoas que conviveram com o escritor. Ao freqüentar a Fundação Érico

Veríssimo sediada em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, tomou-se

conhecimento de objetos, jornais antigos e fotos que retratam sua vida particular e social.

Este garimpo de informações, escritas ou não, foi colhido em uma estada na cidade de

Cruz Alta, RS, em janeiro de 2001, onde tentou-se captar e sentir a atmosfera onde Érico

Veríssimo nasceu e viveu parte de sua vida, inclusive visitando residências e locais

públicos nos quais o autor também havia freqüentado. Nas páginas que seguem apresenta-

se a biografia do autor construída conforme os conhecimentos adquiridos no explicado

acima.

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Érico Lopes Veríssimo nasceu na casa da família, em Cruz Alta, Rio Grande do

Sul, no dia 17 de dezembro de 1905. Desde 1986, este local abriga a Fundação Érico

Veríssimo, conforme Lei Municipal Número 0367/86, hoje Patrimônio Histórico Cultural.

Este fato traz à tona a validade da representação das obras do escritor para a cultura de uma

sociedade.

Seus pais, Sr. Sebastião Veríssimo da Fonseca e Dona Abegahy Lopes Veríssimo,

pertenciam a um grupo de famílias tradicionais da região. Segundo pesquisas

genealógicas feitas pelo próprio Érico, seu tronco paterno iniciou no Brasil com o Sr.

Manuel Veríssimo da Fonseca que veio de Portugal por volta de 1810, casou-se com Dona

Maria Quitéria da Conceição, natural de Ouro Preto, Minas Gerais. O tronco materno veio

de Curitiba e São Paulo, eram tropeiros de Sorocaba que vinham montados a cavalo ao Rio

Grande do Sul para comprar mulas e revendê-las posteriormente na feira de sua cidade.

Cruz Alta serviu de ponto de encontro dessas famílias, era uma comunidade típica do

Planalto Médio, onde predominava a população de origem portuguesa, caboclos,

descendentes dos tropeiros paulistas que, às vezes, deixavam na cidade filhos bastardos.

O Sr. Sebastião Veríssimo estudou por obrigação e obediência ao seu pai, Sr.

Franklim, formou-se em Farmácia, em Porto Alegre, RS, sendo este o menor dos cursos

acadêmicos da época. Ao voltar para Cruz Alta iniciou o namoro com D. Abegahy, filha

do pecuarista e Coronel da Guarda Nacional, Aníbal Lopes da Silva. Mesmo depois de ser

extinta a Guarda Nacional, em 1918, o título coronel continuou a ser usado pelos grandes

proprietários de terras da República Velha, 1894 – 1930. Apesar de não ser objeto de

estudo neste momento, abre-se para a reflexão a representatividade do nome ‘coronel’

impondo autoridade e legitimando o espaço social em um sistema de poder e de

dominação.

O Sr. Sebastião casou-se com vinte e quatro anos sabendo que seus sogros já iam

mal nos negócios, bem como inúmeros estancieiros deste período, quando se evidenciava a

decadência das oligarquia s rurais.

Seu Franklim presenteou o filho recém-casado estabelecendo-o profissionalmente

na Farmácia Brasileira , que se ligava através de um corredor ao sobrado rústico, de estilo

colonial, onde morava a família. Nesta Farmácia servia-se, além de remédios, champanha

francesa e pães com caviar. Era um importante local de reunião de pessoas menos

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ocupadas da cidade e de aposentados. Seu sebastião e D. Abegahy tiveram dois filhos.

Érico dividiu as brincadeiras de infância com Ênio, seu irmão mais novo, hoje rádio-

técnico, ainda em Cruz Alta, Rio Grande do Sul.

Érico Veríssimo iniciou seus estudos oficialmente no Grupo Escolar Venâncio

Aires, há obras que apresentam a data de 1912 e outras 1913 para este início escolar, diz-se

oficialmente porque ao ingressar na escola já sabia ler e acumulava conhecimentos sobre

História do Brasil. Paralelo à escola freqüentou aulas particulares com a professora

Margarida Pardelhas. Além de muitos méritos, considerava-se mimado pelas professoras

devido ao prestígio social da família, principalmente do proprietário da Farmácia

Brasileira onde tantos freqüentavam socialmente.

A intenção do pai, Sebastião, para com o filho mais velho era muito boa, queria que

fosse estudar na Escócia. Mas, ao completar dezoito anos a realidade foi outra. Os avós

paternos já haviam falecido e os maternos estavam em péssimas condições financeiras.

De acordo com Érico, esta situação foi provocada pelo seu pai, pois este possuía ‘ares de

rico e galanteador’, quando, mesmo estando casado continuava seus passeios noturnos e

aventurosos. Tanto é que, D. Abegahy, mãe de Érico, viu -se na condição de sustentar os

filhos sozinha, obrigando-se a exercer o ofício de costureira. Por isso, anos depois, Érico

foi estudar em Porto Alegre, e não na Escócia. Ao esboçar-se estes primeiros anos de vida

do escritor, tem-se uma visão de família que será delineada por personagens em seus

romances com uma função simbólica que extrapola o aspecto meramente ficcional da obra.

Apesar da tenra idade, alguns fatos presenciados por Érico Veríssimo nunca foram

esquecidos como muitas vezes, em que, tarde da noite, homens feridos batiam à porta da

Farmácia Brasileira ou do sobrado em busca de socorro. Eram vítimas das brutalidades

dos capangas do chefe político local ou alguém que se intrometera em alguma briga.

Questiona-se, então se estes fatos ‘nunca esquecidos’ fazem parte da realidade vivida pelo

autor ou já faz parte do imaginário do mesmo ? Os fatos que marcam a memória do

escritor são deslocados para o romance para servirem de trama ao enredo. Voltando à sua

biografia, o Sr. Sebastião ficava indignado, protestava contra essas brutalidades, atacando

oralmente quem estava no poder, onde quer que estivesse, ou pela imprensa, isto quando

encontrava algum jornal suficientemente corajoso para publicar artigos seus contra as

arbitrariedades do governo municipal e estadual.

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Os contabilistas da Farmácia Brasileira não controlavam ganhos e gastos.

Qualquer pessoa da cidade tinha crédito ilimitado na Farmácia, e raramente ou nunca, os

devedores pagavam suas contas.

Entre as imagens e impressões que ficaram gravadas na memória de Érico

Veríssimo estão o ruído da máquina de costura, o cheiro dos tecidos e principalmente a

figura da mãe com uma tesoura da mão, cortando moldes e costurando. Tal é a

importância dessas lembranças da infância que, entre outros objetos, Érico relaciona “a

máquina Singer em que D. Bega cosia, e sua grande tesoura de ferro, que apareceria trinta

anos mais tarde em O tempo e o Vento, nas mãos de Ana Terra, que com ela cortava o

cordão umbilical dos recém-nascidos que partejava” (VERÍSSIMO: 1973, p. 40).

Os objetos citados acima representam a função simbólica, como uma

representatividade que informa as diferentes modalidades de apreensão do real, que pode

ser através de signos lingüísticos, das figuras mitológicas e da religião, ou de objetos que

fazem parte do cotidiano e têm reconhecimento em uma sociedade.

Não obstante os altos e baixos nas finanças, Seu Sebastião recebia e lia

regularmente L’Illustration e outras revistas francesas que valorizavam uma cultura

humanista clássica, possuía uma considerável biblioteca particular, além de obras literárias

adquiridas em livrarias, permitindo que o filho tivesse uma boa formação intelec tual, tendo

em vista a distância de Cruz Alta a Porto Alegre e a época. Em suas memórias está

registrado o hábito da leitura da revista carioca Tico-Tico, surgida em outubro de 1905,

sendo uma das primeiras publicações de estórias em quadrinhos infantil, que também

continha estórias em forma de textos, biografias, folclore, poesias e brincadeiras. Esta

formação intelectual será a base de sua produção literária poucos anos mais tarde.

Em 1920, seu Sebastião decidiu que, após ter sido reprovado nos exames escolares

no ano anterior, Érico iria fazer o curso ginasial em Porto Alegre no Colégio Cruzeiro do

Sul, fundado por pastores - missionários americanos da Igreja Episcopal Brasileira.

Nas férias de verão, um ano depois, Érico Veríssimo descobre que a residência da

família, ‘o sobrado’, em Cruz Alta, está hipotecada. Percebe também que só está em um

colégio interno na capital do Estado, porque sua mãe o mantinha lá, e assim o manteve até

dezembro de 1922.

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Situa-se historicamente algumas ocorrências da História do Brasil a fim de

contextualizar a conjuntura histórica que, Érico Veríssimo vivenciou, mesmo afastado

geograficamente do palco dos acontecimentos. Aos dezessete anos, o futuro escritor

acompanhava o momento histórico brasileiro através dos notic iários. Um mês após a

Semana de Arte Moderna, sobre a qual tecer-se-á comentários em seguida, a política

nacional vive dois fatos importantes: em primeiro de março, a eleição para a escolha do

sucessor de Epitácio Pessoa na Presidência da República, com a vitória do mineiro Artur

Bernardes sobre Nilo Peçanha; e nos dias 25, 26 e 27 de março, a realização, no Rio de

Janeiro, do congresso de fundação do Partido Comunista Brasileiro.

A eleição de 1922 ocorre em meio a grave crise econômica e, contrariando a norma

da República do Café-com-Leite, polariza-se entre as candidaturas de Artur Bernardes,

representante das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, e Nilo Peçanha, representante

das oligarquias de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Trata-se de

uma disputa motivada por interesses pessoais e locais, e não por propostas diferentes de

governo. Entretanto, o acirramento do quadro político e a agitação da campanha eleitoral

trazem à tona o descontentamento de importante setor da sociedade: a classe média,

representada por jovens oficiais e militares, que exigem mudanças e tentam impedir a

posse de Artur Bernardes.

O processo revolucionário teve início com a revolta dos militares do Forte de

Copacabana, em cinco de julho de 1922, o movimento, entretanto, durou apenas vinte e

quatro horas, culminando com uma caminhada fatal pelas ruas de Copacabana, de

dezessete jovens militares e um civil contra aproximadamente três mil soldados das forças

governistas. Esse episódio, conhecido como ‘ Os dezoito do Forte’, significou o sacrifício

por um ideal, ficando gravado como símbolo de luta. O fato citado acima pode parecer

insignificante neste estudo, mas, é provável que tenha contribuído para que Érico

Veríssimo, ao tomar conhecimento deste, fortalecesse seus pontos de vista sobre a política

brasileira.

Ao ler e reler verbalizações feitas por Érico Veríssimo em entrevistas e em seus

livros de memórias percebe-se que o autor, desejoso de se tornar o próprio ator de uma

mudança social, empenha -se em fazer História no mesmo ato de fazer Literatura. Ante

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essa percepção, os fatos que seguem podem ser o suporte para sua literatura, assim como o

foi a História da formação do Rio Grande do Sul em Ana Terra.

Os primeiros anos do governo de Artur Bernardes são marcados por um constante

estado de sítio, censura à imprensa e intervenções nos Estados. No entanto, essas medidas

não são suficientes para fazer parar uma marcha revolucionária: em cinco de julho de

1924, dois anos após os acontecimentos de Copacabana, estoura uma revolução em São

Paulo em que os militares exigem o fim da corrupção, maior representatividade política,

voto secreto e justiça. O movimento dos tenentes em São Paulo, após um mês, termina

com a retirada dos revoltosos em direção ao interior, onde se encontram com tropas vindas

do Rio Grande do Sul, comandadas pelo Capitão Luís Carlos Prestes. Para dar

continuidade à luta de seus objetivos, a saída é a formação de uma coluna com

aproximadamente mil homens, sob o comando do capitão Prestes, que percorreria grande

parte do Brasil, difundindo os ideais revolucionários. Depois de esquadrinhar vinte e

quatro mil quilômetros e enfrentar tropas do exército, forças regionais, jagunços e os

cangaceiros de Lampião, embrenha -se em territó rio boliviano. Extrapolando, porém em

direção aos propósitos deste estudo, Virgulino Ferreira da Silva teve o nome de guerra

‘Lampião’ (1900–1938), serviu como instrumento dos mandos e desmandos dos

‘coronéis’ da época; acabou sendo trucidado pela polícia no seu esconderijo, em Angico,

Sergipe. O ‘bandido’ e seus companheiros tiveram a cabeça decepada e levada como

troféu para Salvador, Bahia. O mesmo ocorreu com o cadáver de Maria Bonita, sua

amante. Estas últimas linhas escritas permite uma inquirição: a vida de Lampião é um

romance ? É uma história da História ? O que é representativo ou imaginário nesta

História ? Apenas pela variabilidade, a História Ana Terra de Érico Veríssimo, remete a

uma situação similar.

Prosseguindo no contexto do período de 1922 a 1930, este igualmente se

caracteriza por definições no quadro político partidário: em 1922, sob o impacto da

Revolução Russa, é criado o partido Comunista, que contava, entre seus fundadores, com

vários elementos vindos das lutas anarquistas, em 1926 surge o Partido Democrático, de

larga extensão entre a pequena burguesia paulista e que teve, entre seus fundadores o

literato Mário de Andrade. A situação política e social é de aparente calma com a eleição

de Washington Luís para sucessor de Artur Bernardes. Mas, na realidade, o país

caminhava para o fim desse período de movimentos sociais com a ocorrência da

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Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, iniciando-se uma nova era da

história brasileira.

Voltando a 1922, este foi um ano marcante no país, pois o Brasil comemorou o

primeiro centenário de sua Independência, e marcante na vida de Érico Veríssimo também.

No dia em que chegou em Cruz Alta encontrou a mãe separando-se definitivamente do

marido e voltando à casa dos pais com Ênio, seu irmão e Maria, a empregada. Érico, em

profundo estado depressivo, decidiu que não voltaria ao internato do colégio para terminar

os estudos. Queria e precisava urgentemente conseguir um emprego. Para isso contou

com a ajuda de seu tio Americano Lopes, que era o sócio principal de uma firma que

fornecia gêneros alimentícios aos dois regimentos de guarnição federal da cidade, que

levou-o para trabalhar no seu armazém.

Érico Veríssimo tinha a impressão que seus sonhos, e os do pai também, e projetos

haviam se desfeito. Para ele foi uma desgraça varrer todas as manhãs a poeira do assoalho

do armazém depois de molhar as tábuas de água misturada com creolina. Isto lhe lembrava

a vida rural, a qual o literato nunca demonstrou interesse, af inidade e gosto. Entretanto, foi

na máquina de escrever Unterwood, desse armazém, que alimentava soldados do 6º

Regimento de Artilharia Montada e do 8º de Infantaria, que fez às escondidas a sua

primeira literatura. Outro símbolo importante na vida do escritor, a máquina de escrever.

O futuro escritor acompanhou através das notícias publicadas em jornais e pelo

rádio, a primeira fase do desenvolvimento da Semana de Arte Moderna, um marco do

Movimento Modernista ocorrido nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro

Municipal de São Paulo que contou com a participação de intelectuais e de artistas do Rio

de Janeiro e São Paulo.

Érico Veríssimo ainda morava na interiorana cidade de Cruz Alta, no Rio Grande

do Sul, quando, reforçando o que se explicou anteriormente, teve conhecimento, através da

imprensa, do que ocorria no centro do país como o movimento tenentista, a marcha de Luís

Carlos Prestes, questões políticas e, como não poderia deixar de ser para um literato, o

mundo das artes e das letras.

Os participantes da Semana de Arte Moderna não tinham um projeto artístico

comum, o que os unia era o sentimento de liberdade de criação e o desejo de romper com a

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cultura tradicional, combatendo-a, portanto a princípio, bastante restrito aos meios

artísticos de São Paulo. Apesar disso, este evento foi ganhando importância histórica:

primeiramente porque representou a confluência das várias tendências de renovação que

vinham ocorrendo na arte e na cultura brasileira antes de 1922, cujo objetivo era combater

a arte tradicional ou a cópia de modelos europeus; em segundo lugar, a Semana conseguiu

chamar a atenção dos meios artísticos em diferentes campos com escritores, poetas,

pintores, escultores, arquitetos, músicos e bailarinos, permitindo a troca de idéias e

técnicas, o que ampliaria os diversos ramos artísticos e os atualizaria em relação ao que

eles próprios produziam, ou seja, a modernização.

O movimento modernista no Brasil contou com duas fases: a primeira entre 1922 e

1930, e a segunda entre 1930 e 1945, a qual abordar-se-á no decorrer deste capítulo. A

primeira fase caracterizou-se pelas tentativas de solidificação do movimento renovador e

pela divulgação de obras e idéias modernistas.

Apesar da diversidade de correntes e de idéias, pode-se dizer que, de modo geral, os

escritores de maior destaque dessa fase defendiam propostas com as quais Érico Veríssimo

concordava, dentre elas destacavam-se: reconstruir a cultura brasileira sobre bases

nacionais, promover uma revisão crítica do passado histórico e das tradições culturais,

eliminando o complexo de colonizados apegados a valores estrangeiros. Portanto, todas as

propostas estão relacionadas com a visão nacionalista, porém crítica, da realidade

brasileira.

Os jovens escritores e artistas brasileiros que haviam organizado e animado a

Semana de Arte Moderna tinham razão quando protestavam contra a excessiva

dependência da França e de Portugal. Érico Veríssimo aliava -se com os modernistas,

quando afirmavam que era preciso dinamizar a literatura, tornando-a irreverente.

Para ter opiniões tão bem formadas, Érico Veríssimo lia muito, dentre as obras

preferidas: Os Sertões de Euclides da Cunha, e autores como Moysés Vellinho com o

pseudônimo de Paulo Arinos, Coelho Neto, Afrânio Peixoto; os realistas: Aluísio Azevedo,

Gustave Flaubert; os romances naturalistas de Émile Zola; livros e revistas em francês e

assim por diante. Tais informações foram retiradas do Museu de Érico Veríssimo, de

folders sobre o autor e suas obras, de orelhas de algumas de suas edições, das obras de

memória, das pessoas que conviveram com ele em Cruz Alta.

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Após tantos dados biográficos e essenciais para extrapolar a temática deste estudo,

a História entrelaçada com a Literatura, observa-se que, desde 1914, Henri BERR, como

crítico da revista dos Annales, já questionava aspectos relacionados à História. É provável

que Érico Veríssimo, entre tantas leituras feitas, poderia ter sofrido influências culturais

francesas, assim como qualquer leitor sul-rio-grandense, enfim brasileiro deste período,

pois essa era a moda de época. Esta possibilidade está alicerçada nas representações

usadas em seus romances, mais específico em Ana Terra, onde há indícios de que a

produção literária que lia estaria alterando seu ponto de vista, ou nesta época, refle tindo

sobre sua inspiração literária, explicando com outras palavras, ampliando e amadurecendo

idéias, transpondo as fronteiras entre a História e a Literatura.

Prosseguindo a biografia, no início de 1923, a mãe de Érico, percebendo que o

armazém não era o melhor trabalho para seu filho, conseguiu-lhe um emprego em uma

casa bancária, no Banco Nacional do Comércio, ainda em Cruz Alta.

O pai, que desde a separação não se encontrava mais com a família, vivia em um

pequeno hotel com poucos recursos econômicos. Algumas vezes envolveu-se em

complicações políticas, embora ciente que Cruz Alta era um território de políticos

republicanos, tinha votado em Assis Brasil. A Revolução de 1923, politicamente,

encerrou o período autoritário de Borges de Medeiros no governo do Rio Grande do Sul.

Érico Veríssimo nunca pensou em alistar-se em forças revolucionárias, mas isto não

significa que não estivesse a par das ocorrências, ao contrário, estava sempre bem

informado e com opiniões próprias. No final de 1923, o governo federal interveio no Rio

Grande do Sul na pessoa do Ministro de Guerra, General Fernando Setembrino de

Carvalho, que conseguiu levar maragatos e republicanos, partidos políticos locais, a

sentarem-se a uma mesa para discutir em paz, que se consubstanciou no Tratado de Pedras

Altas, o qual representou até certo ponto uma vitória para os revolucionários, pois graças a

ele foi instituído o voto secreto. Este acordo reformava a Constituição gaúcha, proibia a

reeleição do presidente e o vice-presidente também devia ser eleito em voto direto. Tal foi

a pacificação que, em 1927, os dois grupos uniam-se para eleger Getúlio Vargas como

governador e posteriormente preparariam a Revolução de 1930.

Em 1924, chegou a vez de Ênio Veríssimo ingressar no curso ginasial, então, foi

decidido que a família mudar-se-ia para Porto Alegre. Érico Veríssimo conseguiu uma

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transferência da agência do Banco do Comércio em Cruz Alta para a matriz na capital do

Estado, mesmo assim, essa tentativa de mudança foi desastrosa, seu salário diminuiu e os

gastos aumentaram, além de transtornos com doença e outros contratempos. Seu irmão,

Ênio Veríssimo matriculou-se no Colégio Cruzeiro do Sul e custeou seus próprios estudos,

trabalhando na contabilidade do colégio.

Após um ano, o escritor, a mãe e Maria, a senhora que ajudava nas lidas

domésticas, voltam para Cruz Alta, todos instalam-se novamente na casa do Coronel

Aníbal, pai de D. Abegahy. Érico Veríssimo foi readmitido no Banco Nacional do

Comércio da cidade.

No ano de 1926, Érico recebeu uma proposta a qual pareceu-lhe “a oportunidade de

libertar minha mãe de sua sina de trabalhar dia e noite” (VERÍSSIMO: 1973, p. 197).

Assim, aos vinte anos, tornou-se sócio principal da Farmácia Central, trabalhando atrás do

balcão, como fazia no armazém, sem ter a menor vocação para o comércio e tudo o que

sabia sobre boticário foi o que viu e ouviu quando criança na Farmácia Brasileira.

Entre a venda de um remédio e outro aproveitava para ler e namorar a vizinha, uma

menina de quinze anos com olhos azuis, que às vezes vinha debruçar-se na janela de sua

casa, do outro lado da rua. Dona Mafalda Halfen Volpe foi a menina que perturbou Érico

Veríssimo, filha do Sr. Vicente Volpe, descendente de italianos trabalhava como viajante

comercial, e sua mãe, Dona Emma Halfen Volpe, descendente de alemães, e que cuidava

da casa, como a maioria das mulheres da época.

Érico Veríssimo, em Cruz Alta, costumava passar horas nos cafés, discutindo

cinema, futebol e, logo, aproximadamente em 1924, conheceu Maurício Rosemblatt,

igualmente interessado em Literatura, que se tornou grande amigo, o assunto em destaque

entre ambos passou a ser literatura e questões filosóficas. Novamente o escritor deixa a

possibilidade para que se pense que estava a par não só de questões políticas regionais,

estaduais e nacionais, mas também do que ocorria na Europa no âmbito cultural, apesar de

ter apoiado as idéias modernistas não significa que tenha se tornado alheio às inovações

intelectuais do exterior.

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Um ano depois, Érico Veríssimo teve alunos de Inglês e de Literatura, que afinal,

era onde tinha mais habilidade, mas os alunos assim como os clientes da sua Farmácia

prometiam saldar um dia suas dívidas...

A primeira vez que Érico Veríssimo viu o escritor Manoelito de Ornellas foi no

inverno de 1928, em seguida foram apresentados. Manoelito residia em Tupanciretã,

cidade localizada próxima a Cruz Alta, escrevia prosa e verso, inclusive já havia publicado

um livro de poesia, Rodeio de Estrelas, amava os livros e, como Érico Veríssimo, tinha

uma farmácia, uma botica em condições econômicas tão precárias como a de Érico ou

melhor, ele era também um ‘falso – boticário’. Esse foi o início de uma grande amizade,

embora às vezes um pouco desencontrada, por causa da diferença de temperamentos entre

ambos.

Manoelito de Ornellas costumava visitar Érico Veríssimo para ler seus versos. Um

dia descobriu, no fundo de uma gaveta, um conto que Érico havia escrito, Ladrão de

Gado, e mandou-o com uma carta de recomendações ao editor Mansueto Bernardi, que o

publicou na sua recém fundada Revista do Globo. Esse fato encorajou Érico Veríssimo que

ousou remeter a próxima estória, A Lâmpada Mágica, diretamente ao Suplemento

Literário do Correio do Povo, em 1929. Seu Diretor, De Souza Júnior, olhou os originais,

viu a assinatura e murmurou: ‘O conto pode não prestar, mas o nome do autor é bonito e

merece ser divulgado’. E mandou a estória para a oficina do jornal, sem a ler.

Durante os quatro anos de sócio da Farmácia Central, algumas vezes Érico passava

poucos dias em Porto Alegre, cidade que não lhe era nada simpática já que o dinheiro,

curtíssimo, não lhe permitia ir ao Rio de Janeiro, a São Paulo ou Buenos Aires. Nessas

visitas à capital do Estado, nunca deixou de visitar a Livraria do Globo, pela qual sentia

uma certa fascinação. Subia até a sala de Mansueto Bernardi e ficava folheando livros

franceses que, por serem muito caros, não podia comprar. Observava o ambiente, na

esperança de que encontrasse alguns dos escritores gaúchos de renome que ele cost umava

ler em livros, nas páginas do Correio do Povo ou no Diário de Notícias. Talvez Augusto

Meyer, Theodomiro Tostes, Pedro Vergara, De Souza Júnior, Athos Damasceno Ferreira,

Ernani Fornari, Ruy Cirne Lima... Érico Veríssimo ficava atento para ouvir o que diziam

os literatos. Em uma de suas viagens, em 1927, no escritório de Mansueto Bernardi falava -

se com entusiasmo da visita a Porto Alegre de Guilherme de Almeida, que vinha fazer

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conferências sobre o Movimento Modernista, mas Érico Veríssimo precisava voltar para

Cruz Alta, ainda era farmacêutico, não podia esquecer das duplicatas vencidas, do cofre da

firma vazio, do borrador cheio de lançamentos de vendas a crédito a pessoas, às vezes,

completamente desconhecidas.

Érico Veríssimo vivia em três mundos , explicados por ele mesmo em inúmeras

circunstâncias: o primeiro era o da realidade cotidiana; a rotina física, o ritual burguês, os

avisos dos bancos; o outro era o mundo dos livros, das personagens de ficção que lhe

levavam para outros tempos e outras geografias e o terceiro mundo era o da sua própria

fantasia: as estórias que escrevia e mandava quase semanalmente para o Jornal Correio do

Povo, que as publicava em seu Suplemento Literário.

Os mundos explicados por Érico Veríssimo possuem uma certa semelhança com a

explicação que se encontra na obra A História Cultural: entre práticas e representações do

historiador Roger CHARTIER (1990), quando cita as definições do termo representação no

dicionário de FURETIÈRE tendo em vistas dois sentidos:

... a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro, a representação como exibição de uma presença, como a apresentação pública de algo ou de alguém. No primeiro sentido, a representação é instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de figurar tal como ele é (apud CHARTIER: 1990, p. 20).

Permite-se estabelecer relações entre os mundos de Érico Veríssimo com temáticas

desenvolvidas por franceses no que se refere as representações. O relacionamento de uma

imagem presente e de um objeto ausente, valendo aquela por este, sendo que para cada

momento de sua vida pressupõe-se uma representação distinta do mesmo objeto, a da

variabilidade e da pluralidade de compreenções das representações do mundo social

influenciadas pelo empirismo.

Estando muito seguro de si, Érico Veríssimo enviou uma carta a Mansueto Bernardi

perguntando-lhe se a Livraria do Globo estaria disposta a publicar uma seleção dos seus

contos. A resposta veio em seguida. Delicadamente Bernardi respondeu que o livro ‘seria

certamente um sucesso literário mas que, em vista de se tratar de um autor novo,

desconhecido do público, só poderia ser um fracasso em matéria de vendas, motivo por que

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a sua editora não poderia, infelizmente, corre o risco...’ O escritor, no início da carreira

demonstrou maturidade, aceitando, sem o menor ressentimento, as razões de Mansueto

Bernardi, que lhe pareceram sensatas.

O pai da sua namorada começou pressioná-lo, tentando ver quais eram as intenções

sérias de Érico com relação à sua filha. A conseqüência foi o pedido da senhorita em

casamento, em 12 de outubro de 1929.

Érico Veríssimo sempre associara a História política a eventos de sua vida

particular. Pensando assim, os fatos que seguem assumem um só significado: um futuro

incerto. Em 4 de outubro de 1930, foi deflagrada em todo o país a anunciada revolução

contra o Presidente Washington Luiz, que levaria Getúlio Vargas ao poder, e quase todo o

Estado do Rio Grande do Sul estava sob o comando dos rebeldes. No mesmo ano a

Farmácia Central foi à falência, e muitos anos após Érico Veríssimo ainda saldava suas

dívidas.

O escritor foi um soldado no meio da revolução no país e na sua vida particular:

estava falido, sem dinheiro, sem profissão certa, e noivo. Em fins de outubro, a Revolução

de 30 agitava o país, o Sr. Sebastião Veríssimo havia se engajado na luta armada, para

completar sua tristeza, mas o pai volta a Cruz Alta de uma viagem que havia feito,

desempregado e sem recursos financeiros, despediu -se do filho dizendo que dali iria para

São Paulo.

Em dezembro, Érico Veríssimo decidiu mudar-se para Porto Alegre. Antes

prometeu ao futuro sogro e à noiva que, tão logo encontrasse um emprego na capital do

Estado, ele se casaria com a moça. O Sr. Volpe deu-lhe um crédito de confiança

emprestando-lhe sua máquina de escrever portátil, já que Érico Veríssimo pretendia

continuar fazendo literatura talvez, um dia como profissão. Levava no bolso os 500$000

que o tio materno lhe emprestara por acreditar na possibilidade e nas intenções do

sobrinho.

Nas semanas que se seguiram, Érico Veríssimo assistiu ao desfile dos soldados e

voluntários civis que iam derrubar o Governo Federal para instaurar no país, conforme

diziam os jornais e os oradores revolucionários, uma nova era de verdadeira moralidade,

em que se pudesse promover o progresso do Brasil e a felicidade de seu povo.

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Em Porto Alegre, Érico Veríssimo saiu em busca de um emprego, mas sem nenhum

resultado positivo. Em desespero de causa concordou ser empregado público e, como

tinham-lhe informado de que havia uma vaga na Secretaria de Estado do Interior, foi até lá.

O chefe do gabinete de Oswaldo Aranha, era Moysés Vellinho, um crítico literário que

escrevia sob o pseudônimo de Paulo Arinos, este recebeu Érico Veríssimo com grande

cordialidade, mas informou que no momento não havia vaga naquela Secretaria.

Aproximou-se o fim do ano, o dinheiro que Érico Veríssimo levara consigo estava

terminando e ele continuava desempregado. No entanto, ganhou duzentos mil-réis em uma

só noite, pintando até alta madrugada alguns bonecos coloridos para ornamentar as vitrinas

de Natal. O literato descobriu que também era pintor.

Uma tarde, porém, à porta da Livraria do Globo, encontrou Mansueto Bernardi,

então diretor da Revista do Globo e que, como os jornais já haviam noticiado, preparava-se

para dirigir a Casa da Moeda, no Rio de Janeiro, a convite de seu amigo Getúlio Vargas,

que no momento ocupava o cargo de chefe supremo do Governo Provisório, instituído pela

Revolução de Outubro de 1930. Mansueto Bernardi reconheceu Érico Veríssimo, e em um

diálogo amistoso convidou-o para trabalhar na Revista do Globo.

A partir deste momento, o escritor vai tornando-se cada vez mais envolvido com as

questões intelectuais, não só pelo convívio no meio dos que formam a intelectualidade,

mas também pelo acesso internacional com o domínio da língua estrangeira e pelos

contatos que estabelece através da profissão. Então abre-se novamente para a possibilidade

da influência da cultura francesa na produção literária do escritor.

Mansueto Bernardi, funcionário da Revista Globo, embarcou para o Rio de Janeiro

em 1931, abrindo espaço cada vez maior para Érico Veríssimo, seu substituto. Henrique

Bertaso, sócio da Livraria do Globo, tomou conta da Seção da Editora e o escritor

responsabilizou-se pela Revista Globo sem conhecer tipografia, nem como se fazia um

clichê ou como se montava uma página de revista. Agora precisava cumprir sua promessa.

Em julho mandou fazer a roupa para o casamento. Casou-se então com Dona Mafalda

Halfen Volpe. Os recém casados foram morar em Porto Alegre. Nas poucas horas vagas,

Érico Veríssimo dedicava-se a leituras como: Ibsen, Shakespeare, George Bernard Shaw,

Oscar Wilde, Machado de Assis... que acabaram somando a influência na sua formação

literária. Para completar o ordenado que recebia da Revista do Globo , o escritor decidiu

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traduzir livros do inglês para o português e como a Revista ocupava quase o dia inteiro,

costumava trabalhar em traduções à noite, para aumentar a renda mensal, já que o casal

vivia com um mínimo de dinheiro.

Érico Veríssimo estava fazendo o que gostava, mas precisava apostar no sucesso

financeiro da empresa para manter o seu emprego. Um editor podia publicar livros e

passar um ano inteiro, ou mais, sem saber se está ganhando ou perdendo dinheiro.

Ninguém sabia melhor que Érico Veríssimo, o que era falência de um negócio. Havia o

problema da distribuição de livros, o da prestação de contas das livrarias, e a devolução

dos livros consignados, quase sempre em mau estado de conservação. O que se publicava

em uma revista precisava ter um bom para excelente faturamento. Achava, porém, que a

editora precisava ser reformulada, modernizada, dinamizada, livrar -se de seu

conservadorismo. Primeiro uniu-se a Henrique Bertaso para provar ao seu sócio, o pai de

Henrique, Sr. José Bertaso, e aos outros sócios da firma que era possível uma casa editora

existir e prosperar neste extremo do Brasil. O propósito era lançar a editora para todo o

Brasil, bem como a política da época: fazer o Brasil reconhecer o Rio Grande do Sul como

seu Estado.

O plano de publicar um livro nunca foi esquecido. Érico Veríssimo, cada vez mais

confiante, conversou com Henrique Bertaso dizendo-lhe que gostaria de reunir em um

livro alguns contos seus já aparecidos em jornais. O literato sabia que não era bom

negócio para a editora fazer isso por conta própria, por isso colocou-se a disposição para

pagar a edição de seu bolso. Precisava, apenas, de um orçamento e condições acessíveis de

pagamento. E para sua surpresa, Henrique Bertaso respondeu que a editora podia publicar

seu livro independente de sua participação financeira inicial, pediu-lhe os originais e meses

mais tarde foi publicado Fantoches, com tiragem de 1.500 exemplares.

O primeiro artigo que apareceu na imprensa sobre esse primeiro livro foi uma

crítica nada animadora, publicada no Correio do Povo. Seu autor agredia pessoalmente

Érico Veríssimo, acusando-o, entre outros comentários, de ser membro duma ‘rodinha de

elogio mútuo’. Afirmava que Érico Veríssimo não tinha qualidades literárias, era um

escritor sem futuro. Esta ‘elite amiga’ de elo gios mútuo encontrava -se em jantares

periódicos, e dela faziam parte: Moysés Vellinho, Guilhermino César, Dante de Laytano,

Maurício Rosemblatt, Mário Quintana, Manoelito de Ornellas, Augusto Meyer. Nestes

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encontros, falavam de tudo, menos de literatura. Entretanto, opondo-se a este artigo,

Agripino Grieco, publicou em um jornal do Rio de Janeiro um outro em que elogiava

Fantoches, fazendo com que o autor se entusiasmasse novamente. Apareceram outras

críticas: umas favoráveis, outras neutras. Vargas Neto, poeta regionalista, demonstrou

apreço pelo livro. Estas opiniões, ou melhor, críticas eram muito importantes para Érico

Veríssimo.

Porém, dos 1.500 volumes impressos, venderam-se apenas 400. O restante ficou

empilhado em um depósito que foi destruído por um incêndio. Como todos os livros

estavam segurados, a Editora Globo não teve prejuízo com Fantoches e o autor recebeu a

sua comissão de 10% sobre os exemplares queimados. Em 1972, a Editora Globo, para

comemorar o quadragésimo ano de publicação do pr imeiro livro de Érico Veríssimo,

reeditou Fantoches junto com os outros contos. A diferença se fez nas notas críticas e

informativas nas margens de cada página desta obra e ainda com ilustrações feitas pelo

autor de próprio punho. Sessenta e cinco anos depois, a mesma editora publica na décima

quarta edição esta obra comemorativa, Fantoches e outros contos.

A noção de apropriação do que representa o conhecimento, já referenciado no

início deste estudo, denuncia as leituras que antecederam a obra Fantoches. A abordagem

do romance denota uma história cultural européia que se prende com práticas diferenciadas

aos costumes nacionais. Esta obra põe em relevo a pluralidade dos modos de emprego das

representações daquilo que lhe está ausente a diversidade das leituras do autor.

Sublinhado o caminho percorrido para a produção de Fantoches, voltemos a 1932,

ano em que Érico Veríssimo recebeu uma carta de seu pai, vinda de São Paulo, onde dava -

lhe boas notícias dizendo que estava bem, confirmando com uma fotografia. Esta carta

trouxe uma certa tranqüilidade para o filho, apesar de ter consciência de toda a ostentação

que ocorreu no passado: luxos, falências, separação. Em seguida, Érico Veríssimo reuniu a

família sob o mesmo teto. Dona Abegahy trouxe consigo o manequim, a máquina de

costura e a tesoura. Observar-se-á posteriormente que determinados personagens

femininos de O Tempo e o Vento carregam objetos significativos da história da vida de

Érico Veríssimo.

Voltando ao acontecimento trágico do primeiro livro, mas rendoso, tanto é que

encorajou Érico para oferecer ao chefe seu segundo livro, uma novela com o título de

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Clarissa , a personagem principal é uma moça de quinze anos, filha da aristocracia rural. A

moça vai a Porto Alegre estudar e passa a viver em uma casa de pensão, permitindo ao

leitor visualizar a classe média urbana. Através dos outros personagens, trata da crise

moral e espiritual do mundo. Henrique Bertaso decidiu incluir Clarissa na Coleção

Globo, para que cada exemplar pudesse ser vendido a um preço baixo, com uma tiragem

de 7.000 exemplares, o que era uma imprudência para aqueles tempos, 1933. A crítica

sobre essa novela foi favorável e pela primeira vez o escritor teve o prazer de ver na rua e

nos bondes pessoas com o seu livro na mão. No entanto, a edição de 7.000 exemplares só

se esgotou cinco anos mais tarde, e os últimos três milhares de volumes tiveram de ser

vendidos com um desconto considerável, entre muitas liquidações. Em 2001, Clarissa

encontrou-se à venda na qüinquagésima primeira edição.

Entre a elite literária estava Moysés Vellinho, intelectual de renome nos círculos

literários, com quem Érico Veríssimo tinha prazer de conversar sobre o que escrevia para

os seus leitores e como percebia esta atividade como um ato literário e artístico, além do

publicar como um ato comercial ou industrial, conforme os interesses.

Nesta época, no Rio de Janeiro, o poeta-editor Augusto Frederico Schmidt lançara

um livro notável, Casa Grande e Senzala, que revelava o sociólogo Gilberto Freyre. Por

sua vez, o livreiro José Olympio fazia -se editor e prestava grande contribuição à literatura

brasileira com outros lançamentos de igual valor. A Globo não podia, nem queria perder

terreno para nenhuma outra editora do país, pretendia lançar suas publicações literárias no

Rio Grande do Sul para o Brasil, através de excelentes autores, e que estes pudessem

competir com os ‘escritores da corte’ que apareciam na capital do país, e tinham, além de

seu valor próprio indiscutível, boa imprensa. A Editora Globo precisava transcender sua

localização geográfica, um dos fatores que a considerava de menor importância em relação

às publicações do centro do país. A Editora, assim como qualquer empresa, também

necessitava manter-se financeiramente, e até prosperar. Pensando assim teria de lançar -se

com um grande escritor, uma obra que conquistasse leitores de norte a sul do país. Deste

modo, deixaria o quase anonimato, e não poderia mais ser interpretada como uma Editora

de ‘província’, vale dizer, de segunda classe, ou ainda, de escritores sem público leitor.

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Enquanto Érico Veríssimo conversava sobre essa questões com Henrique Bertaso,

pensava no livro em que já trabalhava, apenas ao sábados à tarde, pois nos outros dias

dedicava dez horas à Revista do Globo e às traduções.

Érico Veríssimo tinha amizade, inicialmente política, com Vianna Moog, um fiscal

de imposto de consumo que voltava do Amazonas, para onde fora removido, como punição

por ter acompanhado Borges de Medeiros na Revolução de 1932, contra o governo de

Getúlio Vargas. Vianna Moog devia servir em Porto Alegre, no entanto, durante o seu

exílio teve bastante tempo para ler e rascunhar alguns originais que ofereceu-os à Globo,

acabou tornando-se um literato. Tanto é que, Vianna Moog ocupou a cadeira número

quatro da Academia Brasileira de Letras com a publicação de Um rio imita o Reno. Érico

Veríssimo não perdeu a oportunidade de prestigiar ainda mais seu amigo.

Tendo em vista o acúmulo de trabalho, Henrique Bertaso convidou Érico Veríssimo

para ajudá-lo como conselheiro literário na editora, tirando-lhe algumas horas da Revista

do Globo. Propunha pagar por esses serviços de assessoria literária 200 mil réis por mês.

Era dinheiro que chegava em boa hora para o orçamento doméstico. Aceitou o convite e

começou a trabalhar.

O escritor Augusto Meyer apresentou a Érico a obra ‘Point Counterpoint’ de

Aldous Huxley. Após a leitura, Érico Veríssimo sugeriu a Henrique Bertaso que o

publicasse em português. A sugestão foi aceita e o próprio Érico Veríssimo encarregou-se

da tradução que ocupou oito meses de trabalho. Contraponto , em português apareceu em

1933, sem nenhum lucro para a Editora, foi um livro de venda lenta, só quarenta anos

depois passou a ser reeditado periodicamente pela Editora.

Dyonélio Machado, outra pessoa com quem Érico Veríssimo mantinha relações

cordiais, convidou-o para participar do concurso da Companhia Editora Nacional de São

Paulo que instituiu o Prêmio de Romance Machado de Assis, em 1934. Aceito o convite,

Érico Veríssimo escreveu Música ao Longe em poucas semanas. Nesse concurso houve o

empate entre quatro romances finalistas, um deles foi Érico Veríssimo. A comissão

julgadora entendeu ser melhor dividir o prêmio entre os quatro finalistas.

Incontestavelmente a obra continua com o mérito recebido no concurso, se não houvesse

essa aprovação pelo público leitor, a atual Editora Globo não teria publicado sua trigésima

nona edição em 1997.

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A obra traduzida, Contraponto, foi responsável pela técnica que o autor usou para

escrever o romance Caminhos Cruzados em 1934, mas como ficou em uma gaveta da

Editora durante dez meses, só foi publicado em 1935, sendo considerado pelo escritor

como um ‘documento de protesto social’. Neste romance várias histórias paralelas se

entrecruzaram simultaneamente. Apesar da crítica ora favorável, ora desfavorável, e de

ser chamado de comunista, com Caminhos Cruzados , Érico Veríssimo recebeu o prêmio

anual de romance conferido pela Fundação Graça Aranha, do Rio de Janeiro. Em 1995, a

Editora Globo disponibilizou aos leitores a trigésima edição desta obra.

Seguindo a cronologia, 1935 foi outro grande ano na vida de Érico Veríssimo,

houve bons e maus momentos. Dona Mafalda e Érico mudaram-se para um apartamento

que lhes oferecia maior comodidade e Henrique Bertaso fez o mesmo com a sua família

para o apartamento no andar abaixo fazendo com que a amizade profissional se tornasse

familiar. As senhoras Dona Mafalda e Dona Luíza estreitaram relações. Érico Veríssimo e

Henrique Bertaso discutiam livros e autores, imaginando coleções novas e também

perguntando um ao outro se algum dia a situação financeira da Editora Globo poderia

melhorar a ponto de permitir que ambos ganhassem um ordenado mais alto, ou melhor,

menos baixo, que os permitisse viajar ao estrangeiro.

Neste ano, na mesma semana em que nasceu Clarissa, estando Dona Mafalda ainda

no hospital, Érico Veríssimo recebeu por intermédio do Grêmio de São Paulo a notícia de

que seu pai sofrera um derrame cerebral, encontrava-se em estado grave e absolutamente

sem recursos. No dia seguinte, porém, chegou a notícia do falecimento do Sr. Sebastião.

É provável que morrera sem saber que já tinha uma neta. Nesse momento de luto, Érico

Veríssimo contou com a amizade de Maurício Rosemblatt.

Pouco tempo depois, a Associação Rio-Grandense de Imprensa elegeu o escritor

como Presidente da entidade, no entanto, estava difícil de expressar-se livremente em um

país em que a liberdade de expressão era controlada.

Em 1936 nasceu Luís Fernando Veríssimo. Junto com ele nasceu Um lugar ao sol,

romance que aborda temas urbanos com personagens de classe média, faz uma análise das

injustiças sociais no contexto das cidades grandes, revelando a influência de escritores

ingleses como Katherine Mansfield e Aldous Huxley nos trabalhos de Érico Veríssimo.

Luís Fernando Veríssimo tornou-se um grande escritor, seguindo, talvez alguns traços do

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pai, quanto a obra Um lugar ao sol encontra-se na trigésima segunda edição. Segundo

críticos literários a narrativa urbana deste romance dá continuidade a uma tendência que

fora inaugurada por Mário de Andrade e Oswald de Andrade nos primeiros anos do

modernismo brasileiro, aproximadamente na década de 20.

No âmbito nacional, Getúlio Vargas instituiu o Estado Novo, em 1937 e o

Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP - começou a exercer rigorosa censura

sobre a imprensa e as estações de rádio. Érico Veríssimo foi notificado de que dali por

diante teria de submeter previamente suas histórias infantis ao Departamento de Censura,

antes de narrá-las aos seus pequenos ouvintes. Mas, o que talvez o DIP não soubesse era

que o trabalho incansável para melhorar financeiramente sua situação, a dedicação às

atividades da Revista e na Editora Globo, ocupando as horas úteis do dia, as traduções

feitas à noite, as tardes de sábado e os domingos reservados aos seus próprios romances

fizeram com que Érico improvisasse as estórias à frente do microfone na Rádio

Farroupilha, no programa infantil de sua criação ‘Amigo Velho’, o contador de histórias, e

o ‘Clube dos Três Porquinhos’, cerca das dezoito horas, duas vezes por semana. Então, a

única saída foi terminar a Hora Infantil, o que o locutor fez com um discurso de despedida

e ao mesmo tempo de protesto contra a situação, propiciando que a polícia o interpelasse e

o vigiasse.

Por outro lado, sem se dar conta no momento, Érico Veríssimo colaborou com a

evolução da literatura infantil brasileira. O crescimento quantitativo da produção para

crianças e a atração que ela começa a exercer sobre os escritores comprometidos com a

renovação da arte nacional demonstram que o mercado estava sendo favorável aos livros

infantis. Sua produção literária era a ficção de uma ficção já que a História verdadeira ele

não podia nem mais ficcioná-la. Na obra infantil, As Aventuras de Tibicuera, o

protagonista é um índio imortal que apronta malandragens e não é punido. O escritor

baseou-se na versão oficial da História do país passada às escolas neste período político,

em 1937.

Em geral, os livros de Érico Veríssimo davam pouco ou quase nada de lucro para a

Editora Globo. Mesmo assim o escritor continuava a escrever e a Editora a publicar seus

livros, quase um por ano. Alguns dos planos da Editora alcançaram êxito, Henrique

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Bertaso organizara um boa rede de distribuição, fazendo com que a editora se tornasse

conhecida em grande parte do país.

Em 1938, a Globo publicou Olhai os lírios do campo , o romance que iria dar novo

rumo à vida profissional de seu autor. Até então as edições de 2.000 exemplares de sus

livros levavam cerca de dois anos para se esgotarem. A nova estória teve sua primeira

edição de 3.000 volumes e foi vendida em poucas semanas. Antes de terminar o ano já era

lançada a terceira edição do romance, após 1997, a Editora Globo passou a reimprimi-la

anualmente.

Nos últimos romances citados, o autor descreve a sociedade tal como pensa que ela

é, ou como gostaria que fosse. A relação de representação é assim confundida pela ação

da imaginação, que faz tomar a ficção pela história, que carrega os signos visíveis como

provas de uma realidade que não o é. Assim deturpada, a representação transforma -se em

um bem de consumo capitalista.

Aos poucos Érico Veríssimo foi abandonando a Revista do Globo e dedicando a

maior parte do tempo à Editora. Um rapaz que também viera de Cruz Alta, Justino

Martins, ficou ocupando a vaga disponibilizada por Érico Veríssimo, como revisor na

tipografia da Revista do Globo.

Maurício Rosemblatt, um dos mais antigos amigos de Érico Veríssimo, trabalhava

em uma loja de discos e aparelhos domésticos. Érico Veríssimo convidou-o para trabalhar

na Editora Globo e este aceitou a proposta. Posteriormente, Maurício Rosemblatt foi para

o Rio de Janeiro com uma finalidade, entre muitas outras, a de melhorar a imagem da

Editora Globo perante os escritores nacionais, que acusavam os sul-rio-grandenses de

desprezar a literatura indígena, ou nacional, voltando-se exclusivamente para a estrangeira.

Durante o tempo em que permaneceu no Rio de Janeiro usando suas qualidade humanas,

Maurício fez amigos entre intelectuais e gente de imprensa, realizando um excelente

trabalho, mas convenceu-se, realista que era, de que os melhores escritores do país

encontravam facilmente e preferiam editores do Rio de Janeiro e São Paulo. O que

sobrava para a Editora Globo, com algumas exceções, era autor e obra, ou melhor,

produções literárias de segundo plano. Acrescenta-se a isso, o fato de a Editora estar

ligada à Livraria do Globo, fazendo com que pagasse suas dívidas, principalmente

publicações sem retorno econômico positivo.

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Este era justamente o sonho de Mansueto Bernardi: criar na Globo, ainda quando

era só a livraria, uma editora de âmbito nacional, totalmente independente da Livraria do

Globo, projeto esse que não contava com o apoio do Sr. José Bertaso, pai de Henrique.

Talvez pelo receio de que a Editora não sobrevivesse sozinha financeiramente.

Retornando às questões familiares: no verão de 1939-1940 a situação financeira dos

Veríssimo permitiu-lhes que passassem duas semanas em Gramado, no Rio Grande do Sul.

Lá encontraram Moysés Vellinho com sua família, neste momento revigoram-se os laços

de amizade. Em 1940, com o auxílio da Caixa Econômica Federal, Érico Veríssimo

comprou uma residência no Bairro Petrópolis, em Porto Alegre, para que lá fixassem

raízes. Em maio, Érico Veríssimo conversou com Ênio Veríssimo na capital, mas este

continuou morando em Cruz Alta, observa-se que a ligação do escritor com o irmão é

eventual. Estes fatos familiares que se narra neste capítulo são importantes pa ra que,

posteriormente se compreenda o entrelaçamento entre a História Cultural e a Literatura.

A publicação do romance Saga caracteriza as ideologias de esquerda e de direita

que, neste momento se destacavam no cenário internacional. O personagem principal

chama-se Vasco Bruno, sua ação que vai mover a trama, é o ingresso na guerra civil

espanhola como voluntário republicano. A temática é política e trata da liberdade que o ser

humano tem de escolher seu caminho na vida.

Érico Veríssimo sentia-se com a liberdade, da ficção e da realidade, tolhida desde

uma vez em que saiu para fazer conferências pelo interior do Estado e foi seguido por um

investigador do DOPS. O Estado Novo estava cada vez mais forte. O escritor logo

começou a sentir os efeitos da situação política, pressões de todos os lados, principalmente

do setor da extrema esquerda, que pedia, exigia uma colaboração, ao mesmo tempo em que

temiam que o escritor falasse mal do governo. Getúlio Vargas, inicialmente amigo e

companheiro de rodas de conversa no Globo, passou a ser visto como um homem

controlador das palavras de Veríssimo. Temia-se que o escritor pregasse a democracia

em um período ditatorial.

Nesta ano ainda, Érico Veríssimo foi convidado pelo Departamento de Estado

norte-americano, para visitar os Estados Unidos. Tinha então trinta e cinco anos e era a

primeira vez que deixava o Brasil para visitar um país estrangeiro. Ficou três meses

viajando e proferindo palestras. Como o governo americano fez-lhe um convite individual

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e ele não tinha dinheiro para pagar as despesas de viagem de sua esposa, então Dona

Mafalda ficou no Brasil, compreendendo o que aquela visita representaria na carreira

literária do marido. Esta viagem está narrada na obra Gato preto em campo de neve.

Publicado pela primeira vez em 1941 e pela vigésima terceira vez em 1997.

Seguidamente Érico Veríssimo recordava-se do passado, como se vivesse dele,

pensava no que havia acontecido nos anos de 1930 a 1945, dentro da chamada Era

Getuliana. A Revolução de 30 propiciou uma mudança na sociedade gaúcha, do

predomínio dos caudilhos rurais durante a República Velha, rumo a uma sociedade urbana

e industrializada. Os longos períodos ditatoriais durante essa fase da História não pareciam

prometer que a democracia liberal se consolidasse no Brasil. A tensão entre a aspiração

democrática de Érico Veríssimo e os períodos ditatoriais getulistas traduz uma dialética

entre o ideal democrático e a realidade da ditadura. Mas logo voltava à realidade com

questões nacionais que urgenciavam soluções. O DIP inspirava ameaças aos escritores. A

sombra dos seus censores se projetava sobre suas vidas, casas e gabinetes de trabalho.

Apesar da tensão instalada pelo período político, alguns escritores e amigos

costumavam a visitar o escritório de Henrique Bertaso, como Moysés Vellinho, Darcy

Azambuja, Athos Damasceno Ferreira, Reynaldo Moura, Vidal de Oliveira e Guilhermino

César, este último um mineiro de formação humanista e que se dedicou à Literatura e, em

profundidade à História do Rio Grande do Sul. Ernani Fornani e Augusto Meyer

transferiram residência para o Rio de Janeiro após de 1935. Manoelito de Ornellas

raramente visitava a Editora Globo.

Ao investigar dados para compor esta biografia, chama -se a atenção para um fato /

acontecimento ocorrido que, posteriormente tornou-se História para a história romanceada

de Érico Veríssimo. Tudo ocorreu ao anoitecer, em Porto Alegre, algumas pessoas

testemunham, entre as quais o escritor, casualmente o suicídio de uma moça. Um dos

protagonistas de seus romances, Tônio Santiago, transforma o fato em tema de um dos seus

livros, analisando o acontecimento sob vários pontos de vista. Este recurso narrativo

retoma a técnica do ‘contraponto’ e lança para o leitor questões políticas sociais.

Ao publicar O resto é silêncio, em 1943, com a temática acima, Érico Veríssimo foi

gravemente criticado pelo padre jesuíta Leonardo Fritzen, professor no Colégio Anchieta.

Na verdade, a polêmica ocorreu por um conflito de idéias. A origem foi uma publicação

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na Revista O Eco, um órgão literário interno do Colégio Anchieta, vale dizer, que não tinha

uma circulação que abrangesse o Estado, muito menos o País.

O Pe. Fritzen cumpriu dois objetivos com a matéria “Getulinho Vargas”: um de

homenagear seu ex-aluno, Getúlio Vargas Filho, que recentemente havia falecido, e o

outro objetivo foi de criticar o escritor Érico Veríssimo por alguns trechos da obra O resto

é silêncio que o Padre considerou indecente.

O crítico fazia referência ao sentido oculto que havia no conteúdo da obra,

denunciando o autor como um corrupto amoral e imoral. Praticamente acusa o leitor de

tomar “veneno” ao ler a obra. Érico Veríssimo sabia que a Igreja Católica, como o

Exército, apoiava a ditadura de Getúlio Vargas, e na verdade ele já se sentia contrafeito

com a situação política e social do Brasil há algum tempo, sabia também que, os poucos

que se opunham ativamente ao Estado Novo eram exilados, presos ou reduzidos ao silêncio

e à imobilidade por uma polícia ativa e, em muitos casos, brutal.

Então, a idéia foi reagir, mesmo que fosse de maneira discreta e simbólica. Érico

deu-se ao trabalho de contratar um advogado para se defender e processar o religioso, tinha

a intenção que seu gesto fosse interpretado como um protesto contra a situação política

vigente no país. A petição acabou sendo elaborada por quatro advogados. E, ocorreu

exatamente ao contrário, o caso teve repercussão em todo o país, pois centenas de pessoas

das mais diversas camadas sociais e profissões, e que tinham as mais variadas ideologias

tomaram posição, inclusive independente de terem lido ou não a obra, que foi acusada

inicialmente pelo artigo que provocou o incidente.

O que mais chamou a atenção do governo foi o fato de Érico Veríssimo ter

espontaneamente juntado os oposicionistas ao seu lado. Estava decepcionado com o

Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo de Getúlio Vargas, que mesmo

depois de eleito Presidente do Estado, continuava, uma vez que outra, a reunir-se com o

grupo de literatos do Globo, com que intenção ?

Talvez não tenha sido por acaso que em 1943, Érico Veríssimo recebeu e aceitou o

convite do Departamento de Estado dos Estados Unidos para lecionar português e literatura

brasileira em uma universidade americana da sua escolha. Optou pela Universidade de

Berkeley, na Califórnia, para onde se mudou com toda a família. As conferências

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pronunciadas pelo escritor em janeiro e fevereiro de 1944, formam um panorama pessoal

da história da literatura brasileira desde a época colonial até a Geração de 45 e foram

publicadas, pela Editora Globo, em 1995, em língua portuguesa com o título Breve

História da Literatura Brasileira e com tradução de Maria da Glória BORDINI,

atualmente diretora do Acervo Literário de Érico Veríssimo – ALEV, sediado no Centro de

Pesquisa da PUCRS,. Em 1996, já se encontrava na terceira edição em língua portuguesa.

Érico Veríssimo estava nos Estados Unidos quando foi discutida, entre o intelectual

Moysés Vellinho e Henrique Bertaso, proprietário da Editora Globo, a idéia de lançar uma

revista literária que valorizasse os intelectuais gaúchos. Em uma troca de correspondência

entre Henrique Bertaso e Érico Veríssimo, esse se declarou afirmativo em relação a uma

publicação desta natureza, e que na sua opinião, ninguém melhor que Moysés Vellinho

podia exercer as funções de diretor da nova publicação. O sucesso de Província de São

Pedro foi excepcional do ponto de vista literário e interdisciplinar. Carlos Reverbel

exerceu as funções de secretário de redação. No entanto, a revista durou apenas vinte e

cinco números, publicados entre os anos de 1945 e 1957. A Província de São Pedro não

apenas aglutinou em torno de si os nomes mais significativos da intelectualidade sulina da

época, como divulgou trabalhos de aut ores importantes e em atividade no centro do país,

como Paulo Rónai, Otto Maria Carpeaux, Afrânio Coutinho, Antônio Cândido, Graciliano

Ramos, Cecília Meireles, entre tantos outros.

Em entrevista feita pela Revista Literária Blau, Porto Alegre, janeiro de 1999, com

Flávio Loureiro CHAVES, este declara que “as revistas do Rio Grande do Sul sempre

subsistiram enquanto tiveram suporte político ao lado do suporte cultural porque não há,

ainda, no Brasil, um público leitor consumidor que possa sustentar uma revista

exclusivamente cultural”. Qualquer publicação, segundo ele, “sempre será sustentada na

melhor das hipóteses, quando estiver aliada a uma determinada fórmula política”. Então,

segundo este depoimento, o consumo de revistas culturais e ou literárias dependem de

fatores políticos ou episódicos, e aí entra o exemplo do caso da Revista da Província de

São Pedro, que não teve um vínculo político de sustentação.

Qualquer editora precisa manter-se financeiramente, precisa aliar a qualidade do

que publica com os rendimentos que a mantém, este fato não é exclusivo de uma editora

em especial, e sim, de todo estabelecimento comercial. O ano de 1947 foi negativo

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financeiramente para a Editora Globo, tanto é que a equipe de tradutores foi dissolvida. Os

editores empregam em um livro um certo capital em dinheiro e trabalho. Se o livro não

vende, tem-se um prejuízo total. Quanto aos escritores, ganham 10% dos livros vendidos

mas não arriscam, seu dinheiro no negócio.

Nesse contexto, da especificidade cultural e das necessidades econômicas do

escritor provinha um compromisso editorial cuja finalidade era de ajustar-se à aptidão de

leitura dos compradores que os editores desejavam atrair. Portanto, era dupla, a lógica que

se ocultava por trás da produção literária que expressava a cultura e a questão profissional.

Reforça-se aqui o que foi explicado anteriormente: Érico Veríssimo foi se

desligando da Editora Globo aos poucos; no início da década de 40, dividia seu tempo

entre a Editora e a sua própria produção literária. No entanto, sempre demonstrou ter uma

imensa gratidão por ela. Reconheceu publicamente, em diversas ocasiões, dever a

Henrique Bertaso a disposição de correr o risco de um prejuízo publicando o primeiro livro

do escritor desconhecido que er a, e mais tarde, continuar editando os seus romances, de

venda precária entre 1932 e 1938, permitindo que assim lançasse as bases de sua carreira

literária. Érico Veríssimo devia à Editora Globo um romance de sucesso não só literário,

mas também financeiro.

O escritor não precisou exatamente quando lhe ocorreu pela primeira vez a idéia de

escrever uma saga do Rio Grande do Sul. Mas, analisando com imparcialidade os seus

romances anteriores, percebia o quão pouco, na sua essência, eles tinham a ver com o seu

Estado natal. Os romances tendiam para um universalismo, que descrevia Porto Alegre de

1934 como uma grande metrópole. Apesar de ser descendente de campeiros, Érico

Veríssimo negava qualquer apreciação da vida rural, nunca passou muito tempo em uma

estância, não aprendeu a andar a cavalo, aliás o que era uma tristeza para seu avô, Coronel

Aníbal, e pouco usava a linguagem gauchesca. Embora sempre tivesse admiração pelos

trabalhos de escritores como Simões Lopes Neto, Darcy Azambuja, Ciro Martins e Vargas

Neto, em nenhuma produção literária, até o momento, pendeu para o regionalismo gaúcho,

considerando inclusive esse gênero literário limitado.

Porém, o escritor estava consciente de que ler é uma prática que constrói

significados não restritos às intenções dos autores dos textos. A recepção das obras de

Érico Veríssimo devem responder a uma multiplicidade de aptidões e expectativas dos

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leitores. Estes põem em operação uma leitura plural que distingue a ficção da realidade.

A profundidade de pe rcepção do leitor em relação ao que lê é influenciada pela estrutura

interna do próprio texto e pela estética da recepção∗, que tenta localizar as determinações

individuais ou comuns que regem os modos de interpretação extrínsecos ao texto. A

definição de leitura que CHARTIER apresenta no artigo ‘Textos, impressão, leituras’

enfatiza que ler é “ o ponto de aplicação onde o universo do texto encontra -se com o do

leitor, onde a interpretação da obra termina na interpretação do eu. Ler é entendido como

uma apropriação do texto” (apud HUNT: 1992, p. 214). Logo, Érico Veríssimo possuía

um público alvo composto de uma sociedade que interpretava seus enredos de modo

semelhante, ou seja, os membros desta sociedade compartilhavam os mesmos estilos de

leitura e as mesmas estratégias de interpretação. É importante salientar que a

compreensão de uma narrativa, não importa de que tipo, depende das formas com as quais

ele chega até o leitor.

Retoma-se a teoria da recepção defendida por CHARTIER “que postula uma

relação direta e imediata entre o texto e o leitor, entre os signos textuais usados pelo autor e

o horizonte de expectativa daqueles aos quais ele se dirige” (apud HUNT: 1992, p. 220),

para se articular a posição do escritor, que não é ingênua, mas politicamente direcionada ao

leitor desde que se compreenda a importância da recepção de uma obra.

É provável que o material didático da época tenha exercido certa influência, pois os

livros escolares eram mal impressos em papel amarelado e, nem sempre, faziam os alunos

amar ou admirar o Rio Grande e sua gente. Os livros eram redigidos como um relatório

municipal, apresentavam a História do Estado como uma sucessão de datas, de nomes de

heróis e de batalhas entre tropas brasileiras e castelhanas, e obviamente os brasileiros

venciam sempre. Para Érico Veríssimo, a verdade sobre o passado do Rio Grande do Sul

devia ser ‘mais viva e mais próxima do real’. A intenção de resgatar a História

esclarecendo-a é bem clara no seu livro de memórias Solo de Clarineta , volume 1:

Cabia pois ao romancista descobrir como eram por dentro os homens da campanha do Rio Grande. Era com aquela humanidade batida pela intempérie, suada, sofrida, embarrada, terra-a-terra, que eu tinha de lidar. Talvez o drama de

∗ Entende-se a estética da recepção, neste texto, como uma teoria que postula uma relação direta, imediata, entre o texto e o leitor, entre os sinais textuais manejados pelo autor e o horizonte de expectativas daqueles a quem se dirige.

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nosso povo estivesse exatamente nessa ilusória aparência da falta de drama (1973, p. 291).

O escritor queria descobrir e trazer à tona como eram realmente os homens da

campanha do seu Estado. Era com aqueles humanos que sofriam sob o mau tempo,

suavam ou se embarravam que Érico tinha de lidar quando escrevesse um romance sobre o

antigo Continente. Mas por que uma narrativa com tantas característica reais ? ‘Talvez o

drama do povo estivesse exatamente nessa ilusória aparência da falta de drama’. Érico

Veríssimo entende e diferencia exatamente a ambigüidade da mímese aristotélica: o herói

não é um ser inatingível, não é um mito, e se assim o for então o escritor cai na fabulação,

o herói é um mortal, assim como tantos, assim como todos, assim como qualquer um.

Realizando uma revisão da literatura histórica e da literatura em si, observa-se que

Érico Veríssimo se enquadra na linha de escritores que renunciam ao projeto de uma

história ampla em prol da valorização da história regional. Ao escrever uma narrativa

com representações populares sobre a região que o leitor conhece muito bem, ou pelo

menos se identifica, possuía grandes chances de realização de seu projeto.

Para tanto, segundo a Literatura revisada de Érico Veríssimo e sobre Érico

Veríssimo, citada na bibliografia e complementada no Anexo 5, o escritor iniciou seu

trabalho relacionando vários tipos humanos abrigados no Rio Grande do Sul: o valentão, o

coronel, o peão, o gaudério, o bandido, o invasor, entre outros. E assim, depois que

selecionou os protagonistas para o projeto da narrativa, relacionou-os com parentes,

amigos, senhoras que conhecera, admirava, estimava: Adriana Veríssimo, Maurícia Lopes,

Maria da Glória Ramos, Amélia Neves, Bibiana Fagundes, daí a História foi emergindo da

memória de sua infância. Érico Veríssimo tinha diante de si personagens com

características próprias, como enroladas em seus xales, enquanto o minuano soprava, ora

fazendo pão ou queijo na cozinha, ou ainda, balançando-se nas cadeiras, esperando seus

homens que estava m nas lidas do campo ou da guerra, de acordo com depoimentos orais

colhidos em uma estada na cidade de Cruz Alta, e mais importante, onde os próprios usos e

costumes estão cristalizados até os dias de hoje no interior do Rio Grande do Sul.

A partir destas personagens -referências criou, na verossimilhança com o seu

passado, o ‘Sobrado dos Terra Cambará’. A escolha de um sobrado como ponto de

encontro e de partida das tramas que se desenrolariam, levou em conta que o autor quando

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era menino viveu em um sobrado, que aliás existe ainda hoje abrigando a Fundação Érico

Veríssimo, detalhada no início desta biografia. O autor passou a viver em dois mundos: o

mundo do real e o do imaginário, entendido como ficcional. Para criar personagens e

ações com tamanha verossimilhança, o novelista tem de usar sua capacidade de empatia,

isto é, colocar -se na situação em que vive outra pessoa, no caso do romance, sentir -se

vivendo a situação do personagem e imaginar o que ele faria em cada momento. O

ficcionista utilizou-se de figuras humanas que conheceu na vida real para inspirar seus

personagens, como Ana Terra em O Tempo e o Vento. Daí, vale a reflexão, até onde o

personagem pode ser verdadeiro ou fictício em uma narrativa ? Quando se lê um

depoimento, presume-se que verdadeiro, apenas troca-se o nome do depoente para

preservar sua identidade, e nem por isso se deixa de afirmar a autenticidade de uma

determinada obra como um documento oficial da História, desde que haja elementos

identificatórios de sua veracidade .

Seguindo a trajetória desta idéia, o leitor rudimentar sentiu-se à vontade ao ler o

livro O Tempo e o Vento, pois há nesta obra textos já conhecidos por ele, como a História

de Formação do Estado Gaúcho, quando a maioria das pessoas que liam o livro já

possuíam um entendimento previamente adquirido, seja na escola, seja na oralidade, seja

na vida.

A saga do Rio Grande do Sul teria que abranger duzentos anos, de 1745 a 1945,

consequentemente transformou-se em uma trilogia com 2.200 páginas e que o autor levou

quinze anos para concluí-la, sendo que nem sempre esteve envolvido com a escritura desta

obra.

O escritor trabalhou na parte O Continente, primeiro livro da trilogia O Tempo e o

Vento , de 1947 a 1948. A publicação só saiu em 1949 com um êxito de vendas que

superou a expectativa. Segundo explicações dadas por Érico Veríssimo, levou dois anos

para escrever esse primeiro volume, usando ou rejeitando notas que ele mesmo havia

acumulado nas gavetas desde 1939, ainda no seu gabinete da Editora Globo, com uma

única janela sem paisagem que dava para os fundos de um tradicional restaurante da

cidade. Ainda na atualidade, a obra continua sendo reeditada pela Editora Globo, em São

Paulo, e se encontra-se na sua trigésima quarta edição.

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O período de dois anos em que o autor ocupou na pesquisa e redação da obra,

pressupõe que, tanto o historiador quanto o literato devem buscar um meio comum de

determinar os paradigmas de leitura predominantes em uma comunidade de leitores, em

um dado período e lugar. Pode -se dizer que historiadores e literatos tratam das ‘fronteiras’

da História e da Literatura, elas praticamente inexistem nesta situação. Até admite-se que

em outro estudo de caso ou com outras perspectivas de estudos, as fronteiras sejam

marcadas, delimitadas e até estanques, mas não é este o caso.

O Retrato, segunda parte de O Tempo e o Vento começou a ser escrito apenas em

1950, na Praia de Torres, no litoral gaúcho. O próprio autor o considerou inferior

literariamente a O Continente. O Retrato foi publicado em 1951.

Amigos, conhecidos, parentes afirmam que Érico Veríssimo ainda esteve ligado à

Editora Globo na qualidade de conselheiro literário, função que nunca abandonou de todo,

embora mais adiante tivesse preferido voltar-se inteiramente para a vocação de escritor,

como verdadeira profissão, e até que enfim sustentando-se com os rendimentos das suas

obras publicadas. Para a Editora Globo, traduziu mais de cinqüenta títulos do inglês, do

francês, do italiano e do espanhol, além de organizar várias coleções célebres, como a

Nobel e a Biblioteca dos Séculos.

Em 1953, por indicação do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, assumiu a

direção do departamento de Assuntos Culturais da OEA, cargo que exerceu até 1956, em

Washington, D.C., como Diretor do Departamento Cultural da União Pan-Americana,

segundo muitos sua ida e permanência no exterior relaciona -se também com o episódio

ocorrido com o Padre Leonardo Fritzen, em 1943. Apesar de que, o caso deu-se por

encerrado em meados de 1949, quando houve um incêndio no Foro de Porto Alegre e os

principais documentos deste processo foram perdidos. Até onde se tem notícias, a queixa

feita por Érico Veríssimo foi fora do prazo legal previsto por lei, isto é, a queixa foi

prescrita e quanto à matéria escrita pelo Padre, esta não constava a sua assinatura e sim

apenas as iniciais: L. F. Portanto o autor deveria ser processado por anonimato público, de

acordo com a Lei de Imprensa da época. Concluindo sucintamente, deixando de lado as

questões políticas que os escoraram, o processo não foi adiante.

A obra Noite , publicada no Brasil em 1954 e traduzida para o inglês, fez uma

carreira internacional tão reconhecida quanto a nacional. Foi transformada em conto

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policial por uma empresa cinematográfica de Nova Iorque, segundo Érico Veríssimo, a

obra acabou perdendo seu sentido simbólico sem tornar-se uma grande produção. E isto

ocorreu precisamente pela substituição das representações da visão do autor pela visão do

leitor, que apesar de se esforçar por compreender o mundo ficcional desta obra, não teve

êxito na aplicabilidade da situação do que o autor imaginou. O ponto de articulação entre

o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se necessariamente em uma teoria da leitura

capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o

leitor e o conduzem a uma nova forma de compreensão do mundo. O enredo desta obra

desenvolve-se em somente uma noite, o protagonista é um homem que perde a memória,

envolve-se com desconhecidos. Durante todo o romance a questão crucial é o

esquecimento e o julgamento de si próprio.

Em 1956, Érico Veríssimo voltou de uma permanência de três anos e meio nos

Estados Unidos, concluído o mandato na União Pan-Americana. Estava praticamente

desligado da Editora, tecnicamente pelo menos, é provável que não sentimentalmente.

Neste ano a Editora Globo conseguiu independência da Livraria do Globo. A Editora

prosperou, apesar dos obstáculos políticos e geográficos, pois não havia crédito de que se

pudesse manter uma editora localizada em uma cidade ‘de província’, no extremo sul do

país, quando a vida intelectual estava toda concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Depois de Henrique Bertaso, assume a direção da Editora, o filho José Otávio Bertaso.

Nesse ínterim, Érico Veríssimo publica México, um livro que narra suas impressões

de um viagem feita a este país. O leitor realmente vai ao México durante a leitura desta

obra, pela sua agradabilidade e realismo.

Érico Veríssimo realiza um grande sonho em 1958: conhecer a Europa. Esta

viagem é feita a passeio, com uma certa tranqüilidade pois a filha Clarissa já estava

vivendo nos Estados Unidos, casada com um norte -americano.

Em 1961, de volta a Porto Alegre, publica O Arquipélago , que compõe a última

parte da trilogia O Tempo e o Vento, terminando o painel da sociedade gaúcha. Neste ano,

Érico sofreu um enfarte, porém, nada o deteve de continuar escrevendo, ao contrário, tudo

era um estímulo. Nem mesmo o golpe militar, o qual o autor era contra, que derrubou o

governo constitucional brasileiro do Presidente João Goulart, em 1964, serviu de pretexto

para detê -lo.

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A publicação de O Senhor Embaixador , em 1965, destaca as intenções políticas dos

regimes autoritário nos países latino-americanos coincidentemente com a instauração do

governo ditatorial na política brasileira.

Para complementar sua posição política, Érico Veríssimo escreve O Prisioneiro, em

1967, quando utiliza-se da Literatura como meio para protestar contra a tortura e a

ausência de liberdade de expressão. A literatura foi o meio que encontrou para despistar

sua manifestação política sem deixar de fazê -la neste momento da História.

No final de 1970, entregou aos primos Bertaso, que estavam introduzindo métodos

modernos na Editora Globo, os originais de seu décimo quarto romance, Incidente em

Antares. A ditadura havia baixado um decreto instituindo a censura prévia de livros e

periódicos, o escritor demonstrou sua revolta através de protestos públicos e recusou-se à

esta censura prévia.

Em 1972, a Livraria do Globo S.A. tornou-se uma das empresas mais prósperas e

sólidas não só do rio Grande do Sul, como também do Brasil. Sai a reedição de

Fantoches, seu primeiro livro com anotações, desenhos e comentários feitos nas margens

de cada página da obra.

Érico Veríssimo faleceu subitamente, de infarto a 28 de novembro de 1975, em

Porto Alegre, quando se ocupava com o segundo volume de suas memórias, Solo de

Clarineta , pois o primeiro foi publicado em 1973. Este segundo volume de memórias foi

organizado por Flávio Loureiro CHAVES a partir dos originais inacabados e publicado em

1976. Érico também deixou incompleto um primeiro esboço de redação do que deveria

transformar-se em romance, trata-se de A hora do sétimo anjo.

A produção literária deixada pelo escritor compõe uma história cultural quando

permite uma pluralidade de leituras que variam de acordo com os interesses e objetivos da

cada leitor. Dificilmente esgotar -se-ão estas possibilidades de compreensão, pois as

representações são inúmeras, bem como prevê a mímese aristotélica .

A definição de História Cultural aparece nos estudos de CHARTIER “como a

análise do trabalho de representação, isto é, das classificações e exclusões que constituem,

na sua diferença radical, as configurações sociais e conceptuais próprias de um tempo ou

de um espaço” (apud HUNT: 1992, p. 27). Parafraseando a explicação que o próprio

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historiador faz de sua definição dimensiona-se para as estruturas do mundo social que são

historicame nte produzidas pelas práticas articuladas, como políticas, como sociedades ou

práticas discursivas, que constróem as suas figuras. Estas demarcações e os esquemas que

as modelam constituem o objeto de uma História Cultural situada entre o social e as

representações. Visto sob outro ângulo, a História deve ser entendida como “o estudo dos

processos com os quais se constrói um sentido” (apud HUNT: 1992, p. 27). As práticas de

apropriação cultural são formas diferenciadas de interpretação empírica que neste estudo

está se utilizando como exemplificação da produção literária de Érico Veríssimo.

O imaginário na produção verissiana, este termo é usado por literatos, críticos e

historiadores ao se referirem a obra de Érico Veríssimo, ocupa um lugar na História

Cultural de um povo na medida que este se reconhece na história que faz parte da História.

Após a pesquisa e montagem da biografia acima, como dizer que o escritor em questão não

fez História com as suas histórias e refletindo ainda mais, como classif icar a literatura de

imaginária com tantos fatos / acontecimentos e personagens tão próximos!! ?? Deste

modo é salutar ter-se evidente de que imaginário está se falando.

O conceito de ‘imaginário’ encontra-se definido no Dicionário de Língua

Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA (1989, p. 350): “Imaginário. 1.

Que só existe na imaginação; ilusório; fantástico. 2. Aquele que faz estátuas ou imagens

de santos; santeiro imaginário.” Ao definir imaginário pelo seu sentido comum, como

fuga do real, encontrar-se-á deslocado do contexto do qual está se referindo.

O imaginário no âmbito da História e da Literatura é, segundo PATLAGEAN:

... constituído pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autorizam. Isto é, cada cultura, portanto, cada sociedade e até mesmo cada nível de uma sociedade tem seu imaginário (apud LE GOFF: 1993, p. 291).

Então, pode-se dizer que o imaginário apresenta-se como um dinamismo que

possibilita a organização cognitiva do mundo tanto na História, quanto na Literatura,

traduzindo-se em representações.

A imaginação, o imaginário, imagens, representações simbólicas e representações

míticas são expressões que durante algum tempo foram consideradas não científicas e

ilegítimas, por caracterizarem um conhecimento que não é comprovado por explicação

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através da atividade racional. Tudo porque considerava -se científico apenas o

conhecimento que podia ser comprovado. A modernidade considera o imaginário como

uma expansão ilimitada do domínio racional alicerçado na concepção de que a Ciência

dará as respostas aos nossos imaginários ou pelo menos os situará em nossa vida.

A temática do imaginário constitui-se uma evidência para alguns historiadores, tais

como Bronislaw BACZKO, Roger CHARTIER, entre outros. Observa-se que nos últimos

anos houve um considerável aumento de estudos transformados em dissertação de

Mestrado e de Doutorado, sobre o imaginário a respeito de algum objeto, ou de

determinado fato, ou um personagem da História, enfim há muitos alvos sendo

reinterpretados sob diferentes prismas. Este fato é observado pelos lançamentos literários

no encarte Segundo Caderno do jornal Zero Hora , Porto Alegre, RS, com circulação aos

sábados. A obra é brevemente comentada em seu aspecto mais geral. A Revista Literária

Blau, WS Editor, em Porto Alegre, RS, é outro comunicativo de monografias e

dissertações, através de resumos e crítica literária.

A análise de BACZKO (1985) relaciona o imaginário não apenas como ‘moda’,

mas como um ‘objeto de poder simbólico’. Em seus estudos, lembra que Aristóteles

revisou as técnicas de persuasão, apostando no imaginário. A própria mímese aristotélica

é uma imitação verbal do que é, e também do que pode ser. Então, tem-se o imaginário,

desde aquela época, manipulado por uma razão. Nos conflitos sociais e políticos, quem

exerce a dominação do imaginário controla as aspirações populares, incluindo a dominação

sobre a vida coletiva.

O autor citado acima, tem uma longa, mas sensata, explicação para incluir o

imaginário na História Cultural. As ciências humanas sofreram uma fracionação de idéias

de onde surgiram os novos objetos e os novos interesses de estudo, e através desta

perspectiva histórica, pode-se supor que a multidisciplinaridade é uma busca de respostas

para objetos analisados sob um ponto de vista distinto daquele que há tantos anos se

estudava. De posse desse conhecimento, no ensaio Imaginação Social, BACZKO (1985),

coloca uma visão teórica sobre a imaginação social e ilustra-a com estudos de casos em

situações históricas concretas, como as revoltas camponesas ocorridas na França, no século

XVII, o simbolismo revolucionário do dia 14 de julho, na Tomada da Bastilha, o

imaginário no poder totalitário estalinista, entre outros, considerando o imaginário tão

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essencial para a História quanto as análises quantitativas e qualitativas. Sua intenção é

vincular o imaginário social ao simbólico manipulado por interesses sociais, políticos,

econômicos. A linguagem dos símbolos fica disponível para manipular uma coletividade

expressando o que ela deseja, em outras palavras, os símbolos utilizados pelo imaginário

social correspondem ao reconhecimento e afirmação dos anseios coletivos.

Cada sociedade gera um sistema de representação que legitima o relacionamento

entre os indivíduos desta. Os símbolos e o imaginário fazem parte das representações

veiculadas, em especial para este estudo, através da Literatura, entre outras formas.

Assim, segundo BACZKO (1985), pode-se encontrar imagens como expressão de poder

simbólico nas religiões, nas crenças, na política partidária ou nacionalista, em propagandas

de grupos e classes sociais, etc. O papel das imagens manifesta-se principalmente nas

situações de crise social e revoluções, onde acentuam-se símbolos coletivos para a

afirmação ou reafirmação de instituições sociais.

Voltando-se ao início do assunto de que se trata, o imaginário está inserido nas

novas abordagens da História Cultural. O controle do imaginário e sua propagação causa

um impacto na conduta individual e coletiva, possibilitando a manipulação da escolha

coletiva. Lembrando-se que o imaginário social é uma força que ajusta a vida coletiva de

acordo com o sistema vigente.

Parafraseando a conclusão de BACZKO (1985) sobre o imaginário social chama -se

a atenção sobre o posicionamento, de que estes saíram do ‘esfacelamento’ de um grupo de

escritores que se uniam pelas mesmas características. Fundamenta -se a idéia no sentido

de que até o início do século XIX foi conveniente para o poder simbólico deter ou ocultar o

vazio que havia entre um e outro documento dos arquivos.

Depois de situadas essas dimensões do imaginário social, examina-se os estudos de

CHARTIER, que situa o imaginário e as representações como uma das tendências da

História Cultural.

As pesquisas deste historiador, propõem o estudo de novos objetos, ou mais

claramente, o estudo de velhos objetos sob uma nova perspectiva, propõe também que se

leve em conta a ‘recepção cultural’ quando se faz a análise de um objeto. Por estas e

outras linhas de pesquisas tornou-se o divulgador de uma Nova História Cultural.

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O século XX viu surgir uma reclassificação de disciplinas científicas, tendo em

vista as ciências que despontaram, ou talvez seja melhor dizer, as ciências que se tornaram

independentes nominalmente de outras ciências, mas que, para a explicação de suas teorias

necessitam das ciências que lhes deram origem e de outras aparentadas. Os paradigmas,

antes tidos como dominantes, acabaram se perdendo na sua capacidade de se estruturar.

Ao aceitar a Literatura como uma ciência que concentra o conhecimento, e este como já

pensava Dilthey ‘um processo de compreensão’, questionou-se a escrita da História

alicerçada em documentos e diagnósticos. Indicavam-se as relações econômicas e a

organização das relações sociais sem considerar as percepções e intenções dos indivíduos

que atuavam nessas relações, vigorava, igualmente, os procedimentos estatísticos de

número e série. A História era contada pelos números, datas, quantidades, gráficos, fatos...

CHARTIER (1994) revisou aspectos teóricos e retomou o conceito de História e

sua escrita, como uma ciência social, valorizando mais as relações e menos os paradigmas

que até então eram seguidos. Essa ‘nova história’ permitiu uma gama de diferentes

abordagens, repensou-se o papel do indivíduo que sustentam o fato/acontecimento

histórico. Os relacionamentos pessoais, as alianças, as dependências, os conflitos entre os

indivíduos mereceram mais atenção do que a porcentagem das tabelas. O objeto de estudo

da ‘nova história’ afirmou-se nas relações sociais pessoais e coletivas.

Alguns historiadores compreenderam que os seus discurso passaram a ser mais

narrativos do que seriais e gráficos, e que a Literatura poderia preencher os espaços ocultos

do documento que evidencia o fato.

A História Cultural e a Literatura passaram a ligar-se por pertencerem ao gênero da

narrativa. Ambas articulam personagens, espaço, tempo, e principalmente uma ação. Na

verdade, toda e qualquer história, de ficção ou não, apresenta categorias da narrativa.

No mesmo estudo CHARTIER esclarece, o que para tantos historiadores possa ter

ficado mal entendido, é o caso do ‘retorno da narrativa’ que, segundo ele, “tem a ver com a

preferência dada recentemente a algumas formas de narrativa em detrimento de outras,

mais clássicas” (1994, p. 103), e ainda cita como exemplo, as narrativas biográficas. Para

tentar desfazer o que ainda pode ser confusão, suge re “recuperar as propriedades

específicas da narrativa histórica em relação a todas as outras”, considerando que um

discurso se “compreende em si mesmo, sob a forma de citações que constituem efeitos da

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realidade, os materiais que o fundamentam e cuja compreensão ele pretende produzir”

(1994, p. 104).

Sempre que se apresenta uma novidade encontra-se aqueles que a aceitam e

enriquecem com seus conhecimentos, aqueles que simplesmente concordam e, entre outras

inúmeras possibilidades, há os que questionam resistindo ao novo, pois toda a novidade é,

de certa forma agressora. CHARTIER cita, em um Seminário no Centro de Pesquisas e

Documentação da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC/FGV, no Rio de Janeiro, em 1993,

alguns casos que dizem respeito à Nova História Cultural, principalmente no que se refere

à narrativa: os ‘tropos de linguagem’ e a linguistic turn.

Hayden WHITE (1994) debruçou-se no estudo do emprego de palavras em sentido

figurado, isto é das figuras de linguagem. Estas denominadas figuras de linguagem são

recursos que caracterizam o estilo do escritor, reforçando a sua mensagem. Estes recursos

dividem-se em: figuras semânticas ou de palavras; figuras de som ou fonéticas; figuras de

pensamento e figuras de construção ou sintática. Cada uma dessas figuras estão

subdivididas com outras classificações mais específicas, dentre as quais WHITE retirou

para estudo a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia.

Estas figuras, nada mais são que recursos não convencionais que o emissor /

escritor cria para dar maior expressividade à sua mensagem. WHITE (1994) chamou-os

de ‘tropos de linguagem’ e, entre os usados pelos gramaticalistas ∗, optou por analisar as

figuras de palavras ou recursos semânticos: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia ∗∗.

∗ Segundo os gramaticalistas: Celso CUNHA, Domingos Paschoal CEGALLA, Douglas TUFANO, Ernani TERRA, Luiz Antônio SACCONI, Maria Aparecida PASCHOALIN, Roberto Melo MESQUITA, Ulisses INFANTE, entre outros. ∗∗ Nestes conceitos de figuras de linguagem que ora são citadas, salienta-se que podem diferenciar de lingüísta para gramaticalista, inclusive na sua classificação: Metáfora: tropo que ocorre quando uma palavra passa a designar alguma coisa com a qual não mantém nenhuma relação objetiva, na base de toda metáfora está um processo comparativo, no qual o conectivo de comparação está implícito. Ex.: “Amor é um fogo que arde sem se ver”... Camões. Metonímia: tropo que consiste em substituir um termo por outro, quando existe alguma relação de proximidade entre eles. As relações podem ser: o autor pelas obras, a causa pelo efeito, o continente pelo conteúdo, o instrumento pela pessoa que o utiliza, a parte pelo todo... Ex.: Não tinha teto para se abrigar. Sinédoque: tropo que confere a um termo maior extensão do que se compreende. Pode ser: o todo pela parte e vice-versa, o plural pelo singular e vice-versa, o gênero pela espécie, a matéria pela forma e vice-versa... Ex.: O bronze marcou meia-noite. Ironia: tropo que consiste em, aproveitando-se do contexto, utilizar palavras que devem ser compreendidas no sentido oposto do que aparentam transmitir. Ex.: Muito competente aquele candidato!

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Seu objetivo era identificar os quatro tropos de linguagem possíveis em uma narrativa e

que igualmente encontram-se nas explicações históricas.

WHITE inspirou-se na metáfora, metonímia, sinédoque e ironia, como recurso

tanto para o discurso historiográfico quanto para o filosófico, e estes assumiram esta

configuração da narrativa em seus enredos, inclusive subordinando-os à níveis de

interpretação. Parafraseando WHITE, que desde 1984, já afirmava que a narrativa

histórica como tal, não disseminava falsas crenças sobre o passado histórico, reforça que, o

que a narrativa faz é testar a capacidade das ficções de uma cultura em dotar os eventos

reais com os tipos de significados que a Literatura traz à consciência mediante seus

padrões de composição dos eventos imaginários.

Nos Estados Unidos, a História Cultural pendeu para a linguistic turn tornando-se

destaque, como escreve CHARTIER, apoiando-se nos estudos de Ferdinand SAUSSURE,

que percebia:

... a linguagem como um sistema fechado de signos cujas relações produzem por si só significação. A construção do sentido é assim separada de qualquer intenção ou controle subjetivos, já que ela é atribuída a um funcionamento lingüístico automático e impessoal. A realidade não mais deve ser pensada como uma referência objetiva, exterior ao discurso, pois que ela é constituída pela e dentro da linguagem (CHARTIER: 1994, p. 104).

Uma primeira observação importante a ser feita é quanto ao escritor/historiador e ao

escritor / ficcionalista, ambos lidam com palavras que formam a linguagem do discurso,

ambos constróem seus discursos segundo as suas posições sociais objetivas, mesmo que

estas estejam ocultas ou nas entrelinhas da narrativa, ou ainda, podem estar encobertas

pelas figuras de linguagens pesquisadas por WHITE, e ou, pelos signos lingüísticos

saussureanos.

Uma segunda observação considerada valiosa neste estudo, é a de que na narração

histórica ou ficcional há a mímese aristotélica , ou seja, uma representação através da

linguagem do que é ou foi verdade pa ra o escritor, que pode não ser ou não ter sido a

verdade para os indivíduos que viveram no momento do fato narrado, até porque a verdade

é subjetiva. Conforme desenvolveu-se no primeiro capítulo, tal é o caso, retoma-se, do

escritor grego Heródoto, século IV a.C., que viajou com o intuito de conhecer e colher

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informações sobre os povos e posteriormente transmiti-los em suas histórias, então a

narrativa possui apenas a visão histórica do viajante.

Considera-se, da mesma forma, o caso do historiador que, através dos fatos

documentados em acervos, reconstrói, por exemplo, o momento, causas e conseqüências,

do Tratado de Santo Ildefonso, em 1777, quando decide-se que a Espanha ficaria com a

Colônia do Sacramento e a região dos Sete Povos das Missões, mas devolveria terras que

havia ocupado nos atuais estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ou pode-se tomar

um episódio mais elucidativo como os conflitos entre Portugal e Espanha no processo de

formação do Estado do Rio Grande do Sul na Literatura. Nota-se que o historiador ou o

literato talvez use o termo ‘guerras’ para explicar os conflitos entre espanhóis, castelhanos,

indígenas, portugueses e dos próprios brasileiros neste período. Pode -se usar pelos

mesmos o termo ‘ataques’ com a mesma intenção. Tendo em mente que, a mesma

História , com os mesmos participantes ou personagens, ou ainda protagonistas, pode ser

contada por um imigrante participante deste fato/acontecimento, havendo a possibilidade

da versão histórica ser ou não ser a mesma do historiador ou do literato, mesmo que este

faça o possível para torná-la real.

O verbete ‘guerra’ pode ser usado como um recurso semântico de ênfase incluindo-

o nos tropos de linguagem de WHITE (1994), mas igualmente pode solidificar o que se

comenta da teoria de BACZKO (1985), o termo ‘guerra’ cabe ser usado como objeto de

poder simbólico do escritor historiador no seu discurso.

Nesta análise, cumpre relacionar, com a mesma notoriedade, a visão do escritor

romancista que a princípio teve suas obras consid eradas apenas como uma história de

ficção. Entretanto, a própria história literária posiciona-se diante de tal consideração.

Incluídos na perspectiva de CHARTIER (1994) com as ‘novas abordagens’, questiona-se a

historicidade da própria história da literatura.

Em um primeiro momento, a história literária ajustava -se com a análise dos textos

produzidos em um determinado período. Para os literatos, é impossível separar o

momento histórico da produção artística literária. Eis porque anteriormente fez-se

referência aos painéis apresentados por alguns historiados e literatos. Ao abordar o

Romantismo europeu, está se falando da evolução de uma classe social denominada

burguesia e da Revolução Francesa; o Realismo reflete o Manifesto Comunista de Marx e

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Engels, do Evolucionismo de Darwin, das lutas proletárias, das transformações

econômicas, políticas e sociais da Segunda metade do século XIX; ao ler Os Lusíadas ,

escrito por Luíz Vaz de Camões e publicada em 1572, compreende-se a expansão do

império português, e assim pode-se citar, aleatoriamente, muitos exemplos. Mas, a história

literária também evoluiu nas suas abordagens, entendendo que, o historiador da Literatura

é um indivíduo crítico, privilegiador dos gêneros, analista das formas, sociólogo da cultura

entre várias possibilidades.

As obras literárias, independente do que dizem, produzem ou reproduzem uma

História. Essa relação será articulada conforme os interesses do momento histórico e da

interpelação da História contemporânea, sobre a relação com a História que ela produzia.

O objeto fundamental da História Cultural é a capacidade criadora da percepção de

cada indivíduo ou de uma coletividade, sendo estes influenciados pela posição social e pela

sua posição nas relações de dominação. CHARTIER (1994) insiste no combate à escrita

da História pelas posições e relações, e duplica sua atenção na valoração da narrativa

histórica analisada pelas ações e através das interações.

As pesquisas de CHARTIER (1994) extrapolam as abordagens de estudo dos

objetos quando direcionam a atenção para a recepção de toda e qualquer escrita. Nem

sempre importa o tempo em que se deu a escritura da obra, pois ela é decifrada a cada nova

leitura, por um novo leitor com uma perspectiva diferente. A decifração ocor re a partir das

relações empíricas, vale dizer, conhecimentos práticos apreendidos devido à experiência, e

das relações recepcionais do leitor. Em outras palavras, o empirismo traz à tona os

aspectos culturais e sociais do leitor, e ou do historiador quando depara-se com um fato e

faz a sua interpretação. Neste momento, está-se tratando da recepção de uma obra literária

ou de um fato / acontecimento que é concebível inserido em um contexto cultural. A

sociabilidade da leitura é, portanto, indispensável a qualquer abordagem que pretenda

reconstruir a maneira como os textos puderam ser apreendidos, compreendidos e

manipulados em determinado contexto cultural. Todo texto cria expectativas de leitura e

perspectivas de entendimento.

Complementando este pensamento, um dos fatores que permite novas abordagens é

a cultura do receptor da obra, do fato, do documento. Nesse sentido, CHARTIER, através

da seguinte abordagem, explica:

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... compreender como a leitura particular e inventiva de um leitor singular está escondida em uma série de determinações, sejam elas os efeitos de sentido visados pelos textos através dos próprios dispositivos de sua escrita, os cerceamentos impostos pelas formas que transmitem esses textos a seus leitores (ou a seus ouvintes) ou as competências ou convenções de leitura próprias de cada comunidade de interpretação (1994, p. 108).

A citação acima permite entender as produções literárias com o olhar de uma

releitura histórica. As representações coletivas anexam nos indivíduos as exigências

sociais e formam uma estrutura que os envolve de tal maneira, que os pressionam com um

poder estabelecido. BACZKO (1985) refletiu sob este ângulo quando afirmou ser o

aspecto simbólico a característica principal do fato social. Acrescenta-se um link

compreendendo que a noção de apropriação do imaginário e do simbólico torna possível

avaliar as diferenças na partilha cultural, na invenção criativa que se encontra no âmago do

processo de percepção. Parafraseando os estudos de Michel FOUCAULT (1999), a

apropriação social dos discursos é um procedimento que controla e um mecanismo que

restringe, em outras palavras, é como um grande sistema de dominação do discurso.

Na década de 80, pesquisadores, a exemplo de Carlo GINSBURG e Pierre

BOURDIEU, investiram no estudo das representações sociais particularizando-as na

política, na religião, sempre em uma área de uma representação de poder em um grupo

social. Sugere-se neste caso, uma história das relações de força simbólica. A

inferiorização do sexo feminino nos discursos masculinos, é apenas um caso ilustrativo

deste poder simbólico. Ao tomar-se circunstâncias particulares, observar-se-á que a

linguagem da dominação também pode ser usada para fortalecer a insubmissão. A

coletividade feminina demonstraria um nível de consciência de reação ao poder que é

opressor pela representação simbólica.

Na história de gêneros, em especial das mulheres, o historiador encontra fatos e

Literatura, que pode elucidar ou discordar, que deixa transparecer o discurso social e

transparecer a parte social do discurso. Em um primeiro momento constata -se que o

discurso é feito por dominantes e no segundo momento, o discurso troca de mãos e de

olhares, passa a ser dos dominados.

CHARTIER e WHITE concordam que a História é sempre uma narrativa

organizada com base em figuras e fórmulas que as narrações imaginárias mobilizam.

Ambos consentem que a História não tem mais nem menos conhecimento do real do que

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um romance histórico, o que há de diferente entre História e Literatura é a apresentação

formal. Nas palavras de WHITE (1994) encontra-se a explicação do que acontece nesta

apresentação formal:

... um processo dinâmico de alternância de códigos pelo qual uma subjetividade específica é evocada e estabelecida no leitor, que deve admitir essa representação do mundo como realista em virtude de sua natureza com a relação imaginária que o sujeito traz para sua própria situação social e cultural (WHITE apud CHARTIER: 1994, p. 110).

O historiador e pesquisador, CHARTIER, entende que mesmo o historiador

escrevendo de forma literária, ele não é um literato, pois seu compromisso é com o registro

oficial e com os critérios de cientificidade. A História, hoje, depende dos seus

procedimentos técnicos sem esgotar o discurso que preenche as lacunas deixadas pelos

índices, pelas séries e pelos enunciados, pois é nesta realidade referencial que estão as

representações sociais e o poder simbólico.

Nas páginas que seguiram a biografia de Érico Veríssimo buscou-se aprofundar os

suportes teóricos inseridos na História Cultural, e que inspiram e orientam a temática da

dissertação, toma-se, pois, o referencial que se propôs como identificador das teorias que

ora abordar-se-á na produção literária de Érico Veríssimo. Sabe -se que a Literatura é um

produto social e que existem relações entre a sua produção e o momento histórico ao qual

ela se refere e no qual ela está sendo produzida, e circulando estas relações está o

imaginário e está o simbólico.

A fase literária brasileira que se inicia a partir de 1930, traduz as contradições da

época, e seus autores mais representativos irão divulgar alguns equívocos na organização

social. Em geral, esta fase é definida por uma acentuada característica política e, por isso,

sustentada por uma preocupação ideológica.

Desta primeira fase de produções intelectuais convencionada a chamar-se

Modernista, Érico Veríssimo, com vinte e cinco anos, apenas acompanhou as notícias,

tendo em vista que se encontrava no interior, momento em que as comunicações eram

difíceis e a sua criação literária estava em fase inicial, onde consta de: Fantoches (1932),

romance que denuncia as leituras européias do escritor; Clarissa (1933) que trata das rotas

de migração da cidade para o campo, bem como os próximos romances.

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Caminhos cruzados (1935), Música ao longe (1935), Um lugar ao sol (1936), Olhai

os lírios do campo (1938), Saga (1940) e O resto é silêncio (1943) caracterizam-se pelo

absoluto domínio do espaço urbano, quer dizer, localizam-se no mundo citadino, em

especial Porto Alegre, RS, e registram, através das personagens, a existência de valores e

costumes de uma pequena burguesia que se tornava o setor social mais representativo da

capital. Esta burguesia é questionada, assim como o patriarcado rural, em nome de uma

ética entre pequenos burgueses. Tanto é que, o primeiro livro citado foi considerado pela

crítica da época um ‘documento de protesto social’ por um círculo de críticos literários e

políticos, porque mostra as diferenças entre a parte rica da população e a parte pobre, faz

referências a má vontade do clero católico e protesta contra a invasão da Abissínia pelas

tropas de Mussolini. O Departamento de Ordem Política e Social - DOPS -, em 1935,

acabou fichando Érico Veríssimo como comunista. Outra característica das obras citadas

acima é o aparecimento das mesmas personagens em várias narrativas, ou em parte delas.

Érico Veríssimo apresentou uma novidade com o uso ‘inovador da técnica do

‘contraponto’, desenvolvida pelo inglês Aldous Huxley, de quem Érico traduziu o romance

Contraponto , em 1933, asunto que já se comentou na parte inicial deste capítulo. Essa

técnica consiste em justapor uma série de protagonistas e situações por ele vividas, sem

que haja no texto um centro narrativo, uma síntese para onde tudo convergiria. O

percurso das personagens se cruza na trama que os envolve, mas não tomam a mesma

direção, ao contrário do romance tradicional. A técnica do contraponto foi utilizada

essencialmente em Caminhos cruzados (1935) e em O resto é silênc io (1943). Apesar das

idéias e situações romanescas e da linguagem tradicional sem maiores inovações de ordem

estilística, havia nessa primeira fase de produção literária, de Érico Veríssimo, momentos

expressivos da narrativa que indicam a presença de um grande escritor. Não se inclui aqui

a produção de histórias infantis do mesmo período.

Até 1949, Érico Veríssimo evitou escrever com tema regionalista e sobre o passado

rio-grandense como declara em Solo de Clarineta (1973, p. 288), seu livro de memória s.

Mas, sentia -se com uma dívida para com sua cidade, sua família e suas origens por ocasião

das celebrações do primeiro centenário da Revolução Farroupilha, em 1935, então pensou

em escrever algo que traduzisse a História de seu Estado de um ângulo que não incidisse

na visão que os livros escolares e também os textos regionalistas forneciam do passado

sulino.

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Nesse momento, Érico Veríssimo insere-se na segunda fase modernista, engajado

como escritor regionalista, valorizando a formação do patriarcado rur al no Rio Grande do

Sul, adotando um modo de narrar que alia o lirismo ao documento, à crítica social, e

caracterizando-se pela simplicidade de linguagem e pelo tom coloquial e popular, o que lhe

assegurou êxito de público.

O conceito de regionalismo é uma das muitas denominações portadores de

ambigüidades, tanto quanto mímese e narrativa; são conceitos vagos, imprecisos, sem

estatuto literário e historiográfico definido. Para lidar com este conceito é necessário

delimitar sua significação a dimensões que o tornem um instrumento útil.

Portanto, regionalismo se refere ora à representação de uma realidade regional

numa obra literária, ora à intenção de realizar essa representação. Em outras palavras, o

que se verifica, no primeiro caso é a presença do elemento local, ou situado, ou ainda

datado, em qualquer obra literária: nesse sentido, entende-se que uma obra, reconhecida

como sendo de caráter universal, é sempre situada com relação a um lugar, real ou

imaginário, e datada com relação a um tempo, também real ou imaginário. Já no

segundo caso, o que existe é um programa de representar literariamente determinada região

em determinado tempo. As razões dessa programação repousam em pressupostos

estéticos, na medida em que envolve uma decisão ao seu fazer. No caso, a obra Ana

Terra de Érico Veríssimo, por exemplo, percebe -se pela biografia do autor muitos trechos

que a identifica com uma determinada região e em um tempo bem marcado.

Chamar-se-á, pois regionalismo aquela representação do regional que obedece a um

programa, a uma vontade de fazer, a um projeto elaborado segundo convenções de que se

pode denominar um movimento literário.

O sentido que se deve atribuir à palavra realismo, não deve significar, pura e

simplesmente, a representação real, e sim a representação de determinado real, escolhido

segundo pressupostos teóricos e estéticos, de acordo com as convenções determinadas pelo

momento histórico.

O regional, enquanto visto em sua oposição a nacional, aparece como um simples

demarcador externo, como um parâmetro de situação, que delimita e situa determinado

corpus literário. A base dessa idéia de regional é a sua relação com um conjunto nacional.

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Este, por sua vez, pode ser entendido com base em critérios geográficos e ecológicos,

como inicialmente se fez no Brasil. Ou segundo critérios culturais, como se fixou a partir

do Modernismo. Haveria tantas literaturas regionais quantas fossem as regiões culturais

do país. Com base no conceito da mímese aristotélica, a realidade regional passa a ter

existência literária como representação de objetos. Este conceito de objeto representado e

designa o vivido enquanto projetado e transfigurado no, e pelo contexto ficcional. Como

se disse, sua raiz é o conceito de mímese, segundo o qual a representaçã o é sempre de algo

ou de alguém.

O regional é, aqui, uma forma de particularidade, como o são igualmente o

individual e o nacional. Isto é, a presença de representações objetuais de caráter regional

deve ser entendida como uma forma de representação objetual do particular. Em termos

estilísticos, poderia ser assim definido o estatuto do particular dentro da obra: ele aí figura

por um processo metonímico, em que a parte se apresenta como imagem do todo.

Em resumo: o regional se opõe ao nacional enquanto critério externo de

demarcação de um corpus literário, de preferência apoiado em bases culturais. O regional,

em oposição ao universal, é uma forma do particular, e deve ser subsumido por este último

termo, que caracteriza um dos elementos do processo metonímico que leva, do particular

ao universal, o sentido de um determinado universo literário.

Há, no entanto, um outro aspecto de fundamental importância a ser discutido. O

regionalismo, como é usualmente entendido, significa antes de tudo o uso de uma

linguagem regional, envolvendo não só objetos, temas, motivos e tipos regionais, mas

também, um modo particular de uso da linguagem.

Toda obra literária, obedeça ou não às convenções de um movimento, é sempre um

uso particular da linguagem, vale dizer que o documento também. É, aliás, o uso

particular que o texto literário faz da linguagem que vai caracterizar fundamentalmente o

estilo: ele é um uso resultante de uma opção feita segundo o universo pessoal do autor da

obra.

A linguagem literária não deve ser apenas o documento da linguagem de um

determinado grupo social. Pelo contrário, ela se torna literária na medida em que é

recriada: a rigor, a criação literária é uma criação de linguagem. O equívoco da linguagem

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documental, vista como objeto representado, pode falsear o regionalismo e o realismo

também. E não apenas a linguagem: todo esforço de documentar o real, sem atender ao

especificamente literário, vem em prejuízo deste. O literário deve criar uma forma de

representação que tenha um efeito de sentido de realidade, não é preciso que os elementos

tenham aspecto real, e sim que suas relações os tenham. Assim, Érico Veríssimo, na

linguagem de Ana Terra agrega fidelidade documental, consegue plenamente o efeito

visado de rusticidade e de primitividade. A criação, ou o poder criador do autor, reside na

sua capacidade de estabelecer relações significativas entre os documentos.

No Brasil, como no Rio Grande do Sul, pode ser constatada a presença do

regionalismo no movimento romântico, no realista e no modernista: nos três momentos a

tônica foi a vontade de fazer um levantamento de características regionais, com vistas à

constituição de uma literatura brasileira de fato.

O critério de regionalidade, deve pois abarcar tudo aquilo que traz a marca do

regional, mesmo sem regionalismo. Definiu-se acima o regional como uma forma

particular. Para simplificar, considere-se a obra literária como sendo a representação de

um universo dentro de determinada perspectiva, da qual resulta um efeito de sentido. Há ,

nessa definição três elementos: um universo representado, uma perspectiva de

representação e um sentido resultante. Quando um indivíduo, um escritor, se põe a

construir uma obra, ele recolhe o universo, a perspectiva e, em conseqüência, estabelece

um sentido. Acredita-se que com esses elementos, Érico Veríssimo, tentou e conseguiu

uma caracterização da regionalidade gaúcha alicerçada na mímese e em pesquisas

particulares.

Ao entrelaçar a História com a Literatura, no âmbito regional deve-se citar

selecionando dentre outros, Augusto Meyer, Moysés Vellinho e Guilhermino César, pois

são autores que ora aparecem citados na historiografia sul-rio-grandense e ora são citados

por literatos. Embora seus trabalhos não abarquem a História recente, recobre no enta nto

todo o período de formação da História e da Literatura rio -grandense, onde se podem

destacar momentos decisivos que viriam marcar todo o desenvolvimento posterior.

O critério histórico-cultural aliado ao discernimento literário leva alguns autores a

adotar este critério como a demarcação de um corpus de estudo, ou de pesquisa, ou de

romance, ou ainda de outras possibilidades.

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A Literatura é um resultado. Como fato, ela se alinha com os que fazem a História,

e como obra, é o resultado de um fazer individual e social e, assim um fenômeno de

cultura. A História e a cultura são pois suas fronteiras. Demarcar um corpus literário,

como a própria palavra sugere, é trabalhar nas fronteiras entrelaçadas. Isto é, lidar com

fenômenos de um e de outro lado, com vistas a estabelecer um objeto homogêneo que se

preste a uma descrição coerente.

A leitura da produção literária de Érico Veríssimo evidencia que as características

de fazer/ser gaúcho é que vai caracterizar o modo da cultura e da literatura regionais. É

nesse modo de fazer/ser que se esboça, em linhas gerais, os aspectos que se afiguram mais

pertinentes para o tema em exame.

A formação cultural do Rio Grande do Sul inicia com os primeiros povoadores do

território, que formam, desde o início, uma complexa gama de proveniências. Guaranis,

espanhóis, paulistas, lagunistas, mineiros, açorianos, além de outras levas que aportaram

periodicamente. Observa-se que cada um desses grupos traz consigo a cultura de origem,

transplantando-a para a convivência com as outras. Mas as lutas pela estabilização da

fronteira, acabaria fazendo deles uma mistura peculiar. A defesa guerreira da atividade

agrícola e o trabalho de pastoreio nos largos campos da região fronteiriça marca o modo

gaúcho. Talvez em nenhuma outra região do Brasil a tradição local tenha adquirido forma

tão própria. Isso devido não apenas às tarefas específicas, que exigiam um modo de viver

particularmente grosseiro e primitivo, mas, em especial, às condições em que eram

realizadas. Como observa Guilhermino CÉSAR (1994), o isolamento da província não foi

apenas geográfico e político: foi sobretudo cultural. A carência de educação, a falta de

conhecimento da cultura clássica, a presença da Igreja, a escassa convivência com o

processo cultural brasileiro como um todo, fizeram com que a tradição cultural se fizesse a

partir da ação imediata do povo, habitante da área sul-rio-grandense, o que se poderia

chamar um padrão de comportamento de várias etnias. Em contraposição a esse

isolamento forçado, os primeiros rio-grandenses foram, desde o início, levados

gradativamente a se posicionarem a favor da política portuguesa.

Em síntese, a cultura regional estabeleceu-se constituindo um sistema mais

completo quando ocorreu sua participação direta no processo brasileiro. Em outras

palavras, a tradição local, de um modo geral, é a cultura do gaúcho que vai servir de

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elemento aglutinador aos novos habitantes, como os colonos alemães e italianos que

começam a chegar em 1824 e 1875, respectivamente. Lembrando-se sempre que, neste

período já se tinham muitos açorianos nesta região.

Dá-se, atualmente, pela História Cultural uma importância significativa aos

elementos constituintes do mundo de representações da sociedade. De fato, parece que

não apenas os elementos conscientes, teorizados, que podem ser chamados de categorias

ou estruturas mentais, são responsáveis pela organização da vida social. Ela depende

também de fatores difusos, que subjazem à sua elaboração e manifestação concretas.

Inserido nessas estruturas mentais está o imaginário que pode despontar nos mais

diferentes tipos de discursos como um forjador de sentidos, de identidades e é com a

mesma força, o oposto, como um divulgador de uma realismo constituído.

A realidade cultural tem como elemento integrador a ação energética, o espírito de

fronteira, o alarde de coragem, sem detalhar aqui os pequenos hábitos cotidianos de

alimentação, vestuário e diversão, que acabaram sendo incorporados pelos imigrantes

tardios e seus descendentes, e que vêem nesse conjunto de características coletivas o modo

de ser gaúcho.

O que se disse nos parágrafos acima trata-se de uma verdade criadora pela força dos

fatos. A unidade que ostenta a Literatura é a mesma que ostenta a História. Os intelectuais

escritores e historiadores foram e ainda são lúcidos videntes das convenções de ocasião da

Província de São Pedro.

Uma demarcação, já agora definitiva, é a de que a Literatura rio-grandense é, em

seu conjunto, parte integrante do todo literário brasileiro, bem como a Província de São

Pedro. O enfoque dessa perspectiva de análise é de certa forma o objetivo primeiro da

História da Literatura do Rio Grande do Sul, de Guilhermino CÉSAR (1971), em função

do qual faz convergir inúmeros elementos de comprovação, mérito maior de sua obra.

Ocorre, pois, no plano literário, o mesmo que no geográfico e político: o homem sul-rio-

grandense está numa fronteira que ele quer retirar do indiferenciado para incorporá-la ao

conjunto brasileiro. Este foi o sentido político, e cultural de uma atividade guerreira: a de

garantir o caráter de brasilidade da ‘província’.

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A afirmação de que a literatura regional é parte integrante da brasileira significa

que ela não representa o que muitos literatos denominam de autonomia literária. A

existência de um reginalismo gaúcho não é suficiente para caracterizar um sistema literário

autônomo. Regionalismo houve e há em toda a literatura brasileira. Tanto na ficção

como na História verifica-se a representação da regionalidade. O romance, de modo

especial, parece ser o gênero mais adequado à representação por admitir a mescla das

experiências humanas em sua globalidade.

O regionalismo modernista é caracterizadamente um neo-realismo, para o qual a

observação do concreto é primordial: seu real é o real observável. As mudanças culturais

que se processam a partir da década de 20 dão início à uma literatura valorizada pela

verosimilhança, ou seja, neste estudo, está -se referindo à mímese. O que faz com que

arrisque dizer que o tipo literário gaúcho descrito por Moisés Vellinho, em 1925, agitou

um padrão de comportamento no plano do imaginário coletivo levando-o a escrever com o

pseudônimo de Paulo Arinos.

Na segunda fase de produção verissiana, já informou-se que este termo é usado por

literatos, críticos e historiadores ao se referir a obra de Érico Veríssimo, destaca-se,

segundo MOISÉS (1968), O Tempo e o Vento como uma novela, por ter uma ‘narrativa de

aventuras intermináveis e sucessivas’. O Tempo e o Vento está dividido em três volumes,

dos quais o terceiro subdivide-se em outros três, formando uma trilogia: a primeira parte,

publicada em 1949, com o subtítulo de O Continente, compõe-se de 639 páginas; a

segunda publicada em 1951, com o subtítulo de O Retrato , com 594 páginas; a terceira

parte, publicada em 1961 e subintitulada O Arquipélago, com 1.014 páginas. Totalizando

a trilogia com 2247∗ páginas. Apenas o número de páginas e volumes já basta para

caracterizá -lo como uma novela. Entretanto, o termo ‘novela’ não é comumente usado, e

sim os termos romance ou saga.

Ao reler as memórias de Érico Veríssimo, observa-se que um dos prováveis

motivos que levou o autor a escrever sobre a História sulina foi a ausência de credibilidade

no legado regionalista, tanto brasileiro quanto local e na desconfiança na História tida

como oficial do Estado, que, na época, dedicava-se a construir heróis, a partir de chefes

políticos ou militares, os quais nem sempre tinham esclarecido o porquê da heroicidade.

∗ A quantidade de páginas apresentadas em cada obra está baseada na primeira edição de cada livro.

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Entretanto, Érico Veríssimo também provinha do interior, de uma região

politicamente agitada e de economia agrária, onde testemunhara quando jovem os

desmandos dos líderes na cidade de Cruz Alta, RS, e conhecera inúmeras figuras que

transitavam entre o campo e sua cidade, tratara de pessoas doentes e feridas e ouvira suas

histórias, inicialmente na Farmácia Brasileira, de seu pai e depois no balcão do seu próprio

‘boticário’, a Farmácia Central.

No entanto, no Rio Grande do Sul já surgiam produções literárias significativas que

valorizavam o espaço local, essas produções eram impulsionadas desde a fase romântica

no Brasil, aproximadamente 1836–1871, em busca de uma identidade própria, que

singularizasse a vida gauchesca platina, de um lado, e, de outro, que defendesse os valores

da vida no Sul para contrapor ou equivaler o espaço retratado pelas produções nordestinas

e sertanejas ou pelos dramas de consciência da pequena burguesia ascendente nas grandes

metrópoles do sudeste. A relação de obras e autores sobre este período são facilmente

encontrados em livros de Literatura Brasileira, como de: José de Nicola; William Roberto

Cereja e Thereza Cochar Magalhães; Helena Bonito Pereira; Sergius Gonzaga; Douglas

Tufano; Clenir Bellezi de Oliveira, entre outros. No período modernista, a prosa de

ficção, no Brasil, se classificava em romances regionalistas, com ênfase no cenário

nordestino, e em romances com estilo de vanguardas européias, em geral de tema urbano,

como queriam os escritores Oswald de Andrade e Mário de Andrade, desde 1912.

Érico Veríssimo reconcilia suas lembranças da infância e adolescência em uma

cidade do interior com a vivência da cultura que se desenvolveu nos centros urbanos,

tentando expressar a constituição de seu Estado em uma ficção que pode ser mais

verdadeira, do que propriamente ficção.

Segundo a análise de SANTOS (1985), que observou o contexto cultural de Érico

Veríssimo para escrever a apresentação da obra Érico Veríssimo: História e Literatura do

ensaísta Joaquim Rodrigues SURO, quando ao fundir os elementos de origem histórica e

os aspectos de ordem pessoal, Veríssimo propõe uma reflexão em torno dos

acontecimentos que marcaram a história brasileira, de modo abrangente, e a do Rio Grande

do Sul, particularmente. Mostra ainda, que a obra verissiana, do ponto de vista de sua

concepção literária, obtém um vínculo com a realidade, utilizando os fatos sócio-históricos

como apoio para exprimir a atitude humana através dos tempos.

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Então, a História representa não só a sucessão contínua de fatos, mas explica, na

sua relação com a Literatura, o constante mover de circunstâncias cuja prática concreta, ao

longo do tempo, funciona, enfim como uma síntese da vida brasileira.

O romance histórico pareceu ser o mais adequado para o fortalecimento de um

sentimento nacional e da crise de identidade entre os intelectuais da época. Considera-se

que a designação ‘romance histórico’, herdada do século XIX, deve ser redimensionada

adequando-se aos conceitos contemporâneos do que é História e do que é ficção. Na

direção de tentar definir o romance histórico, WENHARDT (1999) explica que um dos

fatores que torna o romance em histórico é quando o escritor recorre a fatos ou argumentos

históricos que estariam em um plano externo da ficção.

O autor busca montar o seu projeto ficcional de modo que, de acordo com o

romance histórico, os fatos referenciados sirvam para que o leitor vá adiante,

presentificando as questões suscitadas pelos referidos fatos, isto é, o autor coloca para o

leitor questionamentos que mais dizem respeito à época de produção da obra do que

propriamente ao episódio retratado na trama ficcional. O arranjo ficcional de Érico

Veríssimo em O Tempo e o Vento , mais precisamente no volume Ana Terra , procede em

relação ao romance histórico, garantindo a expressão de vários aspectos em relação ao

mesmo fato retratado através das opiniões das personagens. BORDINI (1995) informa em

suas pesquisas que o autor fazia breves anotações em papéis soltos ou em cadernetas, como

se fossem pequenos projetos com a intenção de entrelaçar a História com a ficção, como se

fosse uma obra de arte. Sendo assim, movia-se considerando tanto sua experiência como

os fatos dos manuais de História. Sabe-se que para escrever O Tempo e o Vento, o autor

fez pesquisas onde incluiu notícias de jornais e depoimentos de pessoas que viveram a

História do Rio Grande do Sul ou que eram próximas de seus protagonistas, e que Érico

Veríssimo preferiu fontes primárias às narrativas dos historiadores da época, embora não

as tenha ignorado totalmente, confiou tanto nas interpretações literárias quanto nas

historiográficas, tendo em vista sua inquietude ante as manipulações da História oficial e o

caráter lacunar dos testemunhos memoriais.

Érico Veríssimo repensou a História, reagindo perante os escritos oficiais,

pretendendo identificar os pensamentos que mascaravam a realidade. Apesar de ser

romancista, sua tarefa coincidiu coma tarefa dos historiadores, tentando reencontrar a

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originalidade inflexível a qualquer definição a priori. Para o autor, o social não poderia

dissolver-se nas ideologias que tinha por objetivo moldá-lo. Sua intenção era indicar o

caminho a seguir para uma análise histórica que tomaria por modelo as descrições dos

fatos através da verossimilhança dentro de um contexto parcialmente fictício. Suger e-se

aqui uma leitura que postula, para cada época, a existência de estruturas de pensamento

comandados pelas evoluções sócio-econômicas que consequentemente abrem uma nova

leitura de uma mesma narrativa histórica ou ficcional.

A produção literária de Érico Veríssimo é indicação permanente, atravessa gerações

de leitores. Apesar de ter se passado mais de sessenta anos da publicação do seu primeiro

livro, sua obra permanece atual, pois continua sendo referência de leitura, tanto para alunos

como para professores. Prova disto é a recente indicação como leitura da Biblioteca

Básica para formação do professor leitor, segundo Maria Helena BASTOS e Maria Teresa

da CUNHA (1999), enfatizando a obra sob o ponto de vista da ação pedagógica e cultural.

Os leitores, inclusive críticos, vêem em O Tempo e o Vento um passado em que se

reconhecem por ser real, ainda que esteja emaranhado a uma ficção. Cada leitor retém o

que lhe interessa, ou seja, aquilo que convém a seu sistema de valores ou a seus objetivos,

a sua ambiência cultural. Eis a pluralidade da obra em questão, utilizada para análise em

várias áreas do conhecimento científico. E, também para uma reflexão, uma discussão

sobre a identidade do gaúcho e de como a História vem reafirmando os valores que

contribuíram para estabelecer o território através de símbolos e significações.

Quando a História abre-se para a cultura, como ciência e, simultaneamente,

reconhece seu caráter de discurso percebe a necessidade de conhecer o funcionamento dos

processos discursivos e sua força de aceitação do público leitor, de revelação e de

dissimulação, daí aponta para um outro modo de ler o texto ficcional que é aquele que

ostenta o histórico. Em quase toda trilogia, o que se informa sobre a personagem

ficcional, estereótipo da personagem histórica, foi o resultado de pesquisas em gazetas

diárias e em registros históricos feitos por Érico Veríssimo, portanto nos mesmos

documentos em que se apoiam os historiadores ‘responsáveis’ pela História que se quer

ciência. O ficcionista Érico Veríssimo criou o que é verossímil e provável que tenha

acontecido. O leitor aceita a obra, ainda hoje, identificando os protagonistas, os fatos e

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objetos como estereótipos da História que reconhece como sendo a História do Rio Grande

do Sul.

Ao transpor da análise literária da obra, que enfatiza duzentos anos de História,

para a abordagem histórica a que se propõe o autor, considera-se possível apreender o

processo cultural dimensionando-o neste contexto maior, podendo ser o ponto de partida

para a compreensão de que o relato ficcional pode não ser menos verdadeiro do que a

História, principalmente se, se tratar da constituição histórica de um povo.

Outra consideração importante que deve ser lembrada é sobre o conceito de

História predominante quando da trilogia de Érico Veríssimo, “o estudo dos fatos

registrados pela crônica histórica e de figuras de destaques a eles relacionados,

preferencialmente num sentido de exemplaridade e de reforço do heroísmo nacional”

(WENHARDT: 1999, p. 98), e ter-se claro que uma parcialidade deste conceito ainda

perdura, cristalizado no conhecimento de alguns professores e nos livros didáticos pouco

atualizados. Este conceito, na época, permitia localizar os momentos e as personagens

históricas que constituíam o cenário do enredo na escrita ficcional de Érico Veríssimo.

De acordo com a técnica que o autor usava, com anotações em papéis soltos ou

cadernetas, ela permitia que abordasse no texto literário o que considerava assunto

histórico e entrelaçava -o ao momento da criação ficciconal, isto é, usava a História como

informação necessária ao desencadeamento da ação romanesca.

Nessa altura, fica claro que se confirma a trilogia como ‘ficção histórica’ termo

usado por WENHARDT (1999), e com o qual aceita -se não no sentido de limitar, mas de

ampliar seu potencial criativo, sempre disponível para atualização, conferindo-lhe o caráter

plural da criação literária e sua capacidade de fortalecimento.

Na década de 30, quando surgem as obras iniciais de Érico Veríssimo, o romance

brasileiro desdobrava -se em três vertentes representativas:

1. experimentalismo formal, ao modo de Mário de Andrade e Oswald de Andrade;

2. a indagação sobre os estágios psicológicos do ser humano com Lúcio Cardoso e

Cornélio Pena e,

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3. a ficcionalização de universos regionalistas que teve como representantes Graciliano

Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Observe o Anexo 2 , onde se situa o

escritor, Érico Veríssimo, na terceira vertente modernista pela História de O Tempo e o

Vento .

Estudos atestam que Érico Veríssimo não esteve diretamente vinculado ao projeto

nacionalista do regionalismo iniciado em 1930, pelo menos declaradamente ao público e

com características semelhantes as de autores do centro e do norte do país, no entanto, há

um Estado que nasce nas entrelinhas da narrativa de O Tempo e o Vento e que vem de

encontro a última vertente representativa do romance de 30. A História serviu de suporte

para a ação da narrativa, ela está presente na forma de simbologias e representações, sobre

as quais serão feitas referências no próximo capítulo.

Apenas ilustrando o que se explicou acima, as referências de contexto que Érico

Veríssimo provavelmente usou para traçar a imigração alemã em O Tempo e o Vento, entre

1947 e 1962, foram empíricas, visto que, em 1947 o autor já havia convivido com

descendentes de imigrantes, tinha amigos entre os mesmos e sua esposa Dona Mafalda

Volpe, filha de Emma Halfen Volpe, também era de ascendência alemã. Outra referência

é a importância da identidade étnica no processo histórico da formação da sociedade rio-

grandense, e para desenvolver esta referência Érico Veríssimo precisou não só ser empírico

como também de pesquisa historiográfica. Além de fatores diretamente vinculados com

sua vida, observou as transformações de ordem econômica, social e política do Estado.

Nesse sentido, ZILBERMANN (1982) explica que a partir de 1930 a região da

Campanha começou a perder a prioridade em termos de representação literária. O

aparecimento do romance histó rico, vinculado à narrativa dos episódios da colonização,

significou a formação de uma literatura em cujo cenário aparece a imigração. O sucesso

do tema imigração alemã em romances, como citou-se na biografia de Érico Veríssimo,

levou Vianna Moog, com sua obra Um rio imita o Reno , publicado em 1939, à Academia

Brasileira de Letras, em 1945.

A posição do educador KREUTZ (1999) coincide com a caracterização que o

literato MOISÉS (1968) fez sobre O Tempo e o Vento , ambos concordam com o

planejamento da sucessividade temporal dos fatos que encadeiam a trilogia formando

consequentemente uma novela com um fundo histórico. Considerando-se da perspectiva

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das personagens imigrantes, O Continente, escrito entre 1947 e 1949, retrata a origem da

sociedade rio-grandense, sob a liderança de uma elite guerreira. Este primeiro volume

inicia a História em 1745 chegando a 1895, com ênfases na Revolução Farroupilha, Guerra

do Paraguai e Revolução Federalista. Os imigrantes aparecem na narrativa a partir de

1833, quando duas famílias chegam a cidade imaginária de Santa Fé, e, a partir de 1855,

quando um grupo de imigrantes alemães fundam a colônia de Nova Pomerânia, próxima de

Santa Fé. O Retrato, segundo volume da trilogia, escrito entre 1949 e 1951, embora

inicie e finalize com a deposição de Getúlio Vargas, em 1945, centra a ação histórica entre

1905 e 1920, com o cenário político referenciado a Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros

e Assis Brasil. Neste livro os imigrantes são descritos em fase de expansão econômica,

com presença crescente na indústria e no comércio. A última parte da trilogia é O

Arquipélago, escrito de 1959 a 1961, neste, a narrativa parte do início dos anos 20,

acompanha a Revolução de 30, a ditadura do Estado Novo e termina com a queda de

Getúlio Vargas, que também abrira e fechara O Retrato . Neste período de nazismo na

Alemanha, fascismo na Itália e integralismo no Brasil, as personagens imigrantes

manifestam sua adesão política, sendo pró-nazismo, ou então pró -integralismo. E quanto

as lideranças tradicionais da metade sul do país, estas vão perdendo a liderança econômica

e em parte política também.

Em quase toda obra de Érico Veríssimo é possível encontrá-lo testemunhando a

História, em uma história do cotidiano e/ou da sua vida pa rticular, onde o narrador estende-

se relatando a sua formação familiar, suas recordações de escolaridade, seus hábitos de

vida doméstica e social, costumes de uma pequena cidade e da capital do Estado, do início

do século XX aos anos setenta, usando meios que passem a informação e formação para o

leitor.

Mas, apesar de sua intelectualidade, de seus relatos pessoais e suas pesquisas

historiográficas, estudos feitos por LAJOLO e ZILBERMANN (1990), na área de

literatura infantil, identificam que Érico Veríssimo ‘assume os juízos legados pela visão

portuguesa da História porque foi essa a visão que aprendeu na escola’ e citam como

exemplo a obra As Aventuras de Tibicuera (1937), que conta, pelas façanhas de um índio

imortal, a História do Brasil, tendo como tema a versão oficial escolar da História do país

apresentada pelos portugueses.

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Segundo Guilhermino CÉSAR (1994), Érico Veríssimo pretendia seguir, nas

primeiras produções literárias, o exemplo dos grandes nomes da literatura universal, até

porque era o que mais lia, e isso pode ser claramente observado na obra Fantoches (1932),

mas dada a dura realidade financeira da época, percebeu que devia escrever o que estava

sendo mais cotado para a venda, pois precisava manter -se no emprego e sustentar a família.

Então compreendeu que a ‘expectativa de leitura’ era o romance regionalista, que também

aproveitara para uni-lo a interesses discretamente políticos de lançar o rio Grande do Sul

para competir com as publicações do centro do país.

Luís Fernando VERÍSSIMO (2000), filho de Érico Veríssimo, vê seu pai como um

escritor de vanguarda, não como um repetidor das vanguardas européias do início do

século XIX, mas como um dos primeiros escritores do século XX a fazer ‘literatura

urbana’ no Brasil, escrevendo com informalidade e não excluindo a experiência com

estilos e técnicas de narrativa, já que era tão bem informado sobre a teoria do romance,

embora se definisse como ‘apenas um contador de histórias’. Esta definição de si próprio

é encontrada nas orelhas de seus romances, em livros de literatura, em reportagens

jornalísticas e outros meios de comunicações. Érico Veríssimo não participava da vida

literária das grandes capitais e, mesmo assim, foi um dos escritores brasileiros, outro era

Graciliano Ramos, que conseguia sustentar a si próprio e a sua família apenas coma venda

dos seus livros.

Recapitula -se o que foi refletido neste capítulo, observando que o escritor Érico

Veríssimo apropriou-se da História que ele próprio considerou verdadeira, porque julgava

a dos livros escolares de sua época sem crédito, transformando-a em uma narrativa real.

Em outras palavras, a imaginação é uma atividade de reconstrução do real, de colocar algo

que não estava dito, de criação, a partir dos significados que atribuí-se aos acontecimentos

ou das repercussões que estes causam nos leitores, nesse caso. O imaginário está povoado

de representações simbólicas do real, prova disto são os vários estudiosos que se citou,

reconhecendo a História e a Literatura absorvidas entre si.

Na continuidade, articulando os conteúdos desenvolvidos no capítulo passa-se a

analisar o imaginário nas representações e no simbólico na obra Ana Terra, tendo como

pressuposto de que é a História da formação do Estado do Rio Grande do Sul. Estes

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objetos de estudo estão inseridos no que os historiadores da contemporaneidade

convencionaram chamar de História Cultural.

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III IMAGENS E SÍMBOLOS NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA

HISTÓRICA DE ANA TERRA

“ - Sempre que me acontece alguma

coisa importante, está ventando.”

Ana Terra – 1777, em Ana Terra.

Esta parte encerra o círculo deste estudo analisando a obra Ana Terra de Érico

Veríssimo no que se considera mais valioso, o imaginário do autor, tentando resgatar

através do relato uma História oficial mesclada a uma história ficcional baseada na

verossimilhança. Mas, a temática continua aberta para contribuições e enriquecimentos.

Algumas considerações, conceitos e teóricos já foram retomados na revisão da literatura

sobre o assunto nos capítulos anteriores, partir -se-á para reflexões complementares da

articulação da História com a Literatura e vice-versa.

Os livros de leitura, reconhecidos como romances históricos, constituem um gênero

literário (lírico, épico ou dramático), que permitem uma explicação da História da vida do

próprio Rio Grande do Sul. Embora feitos, muitas vezes, com interesses particulares, para

atingir apenas leitores ou estudantes que começam a trilhar o caminho do conhecimento,

tais obras merecem a atenção do pesquisador. Os interessados no desenvolvimento deste

Estado, ou aqueles que se debruçam sobre seu passado, não deveriam abrir mão desse tipo

de consulta, pois aí se encontra muita informação de valor inestimável. A apreciação em

ângulos pouco examinados pode trazer à tona o que a História diminui a ênfase. Os

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autores de livros, tidos apenas como ficção, como os best-sellers conquistam uma classe

social, econômica e intelectual diferente da de leitores de livros de História. Pretende -se

oferecer ao le itor uma informação sobre a formação do Rio Grande do Sul, não só pela

visão da História tradicional, entendida aqui como aquela encontrada nos livros de

História, mas abrir a perspectiva para uma História com fundamentos em um romance.

Cumpre reafirmar que se optou por não citar a página da obra Ana Terra , de onde

se fará inúmeras citações porque se julga importante o contexto da história inserido na

História e, também, porque há várias edições de Ana Terra , publicadas em coleções

diferentes.

Recorda-se que a trilogia O Tempo e o Vento de Érico Veríssimo, composta pelo O

Continente publicado em 1949, O Retrato em 1951, e O Arquipélago em 1961, abrange a

História do Rio Grande do Sul por dois séculos, de 1745 até 1945, envolvendo seu

processo de conquista, colonização, urbanização e o início da industrialização. Antes de

qualquer análise, percebe -se que foi elaborado e constituído dentro da lógica e da coerência

da história -ficção e da História.

O próprio Érico Veríssimo declara na orelha dos volumes integrantes da terceira

parte da trilogia que o romance procura “ser a saga de uma família e de uma cidade do Rio

Grande do Sul, desde suas origens, em meados do século XVIII, até nossos dias”, sendo

que a primeira parte reúne os acontecimentos ocorridos desde 1745, “a época das guerras

de fronteiras e estabelecimento das primeiras estâncias”, e 1895, “ano em que terminou a

Revolução Federalista de 93”, a segunda parte transcorre entre 1905 e 1915, e a terceira

vem de 1915 até o fim de 1945, precisamente duzentos anos depois de haver iniciado a

história da família Cambará, personagens da obra.

Eis o primeiro símbolo prático ilustrativo deste estudo, Érico Veríssimo é um

escritor, um sujeito simbolicamente representativo dos habitantes do período em que

escreveu a obra. São duzentos anos de história passada por oito gerações. A História está

contada por um literato, assim como poderia ser contada por um proprietário de terra, por

um soldado, por um padre jesuíta, por um elemento do sexo feminino, entre outros, o que

varia é o ponto de vista abordado por quem escreve, por quem narra, mas o objeto ou o

sujeito de quem se fala é o mesmo. Em nenhum momento pode-se julgar uma não-verdade

a História que alguém viveu, conheceu ou dela teve notícias, pois ela é a visão parcial de

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um momento histórico percebido como uma totalidade ou generalidade. A História

Cultural admite como objeto de estudo a parte de um todo, um evento inserido em um

contexto. É óbvio que não se defende, neste caso o caráter fragmentário dos estudos de

casos, principalmente se evidenciar uma descontinuidade, mas, sim o estudo de caso

intercalado em uma trajetória historiográfica.

A trilogia compõe-se de novelas justapostas, encadeadas de modo alusivo ao

próximo capítulo ou episódio. Entre a narrativa destas novelas aparece um segmento em

itálico, encontrado em todos volumes da trilogia, indiferente da edição, e que liga as

novelas, e por isso justapostas, que desempenham dupla função: inicialmente, faz a ligação

cronológica entre os episódios preenchendo as lacunas entre cada período histórico narrado

pelo autor, por exemplo, após o capítulo ‘A fonte’*, que retrata a formação do Rio Grande

em meio as guerras missioneiras, são relatados outros eventos sobre a ocupação do

território; após Ana Terra**, o segmento trata da instalação dos imigrantes alemães; após

Um certo Capitão Rodrigo*** , a Guerra Farroupilha; e assim sucessivamente. A outra

função é apresentar a perspectiva popular da História, quando avalia os aspectos negativos

causados pela guerra e as perdas sofridas pelas famílias, narra a história das classes menos

favorecidas, sintetizadas nas personagens da família Caré.

Tendo em vista a pluralidade dramática, envolvendo muitas personagens e apesar

da trama implicar em sucessividade, em 1970, a Editora Globo publicou separadamente

Um certo Capitão Rodrigo, e em 1971, Ana Terra , ambos extratos de O Continente,

entendendo que se constituem histórias com unidade temática e, por isso, destacáveis do

conjunto da obra sem danos ao leitor. A técnica do contraponto permite a história

fracionada, o que contribuiu para esse desmembramento.

Já se vê que os trechos intercalados exercem, na narração, o papel de completar a

crônica histórica, empregando um parecer da coletividade e recuper ando a ótica popular.

Esta técnica narrativa, sugere que, nos intervalos da História, coloque-se a ficção para

enunciar o que precisa ser contado.

* Não se escreve em itálico porque não é obra publicada separada do todo. ** Escreve-se em itálico porque é obra publicada inserida na trilogia e desvinculada da mesma. *** Idem à informação precedente.

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As subunidades intituladas O sobrado , em torno de junho de 1895, data citada na

obra e que coincide no âmbito da História com o término da Revolução Federalista, são,

impreterivelmente momentos importantes do processo histórico da configuração do Rio

Grande do Sul, cujo início também é datado com precisão: “ o fato de os portugueses

haverem fundado em 1737 um presídio militar no Rio Grande indicava que estavam

decididos a tomar posse definitivamente do Rio Grande de São Pedro”.

Os capítulos da trilogia que possuem segmentos em itálico intercalados remetem à

observância do uso que o autor faz da técnica do contraponto, usada pelo escritor inglês

Aldous Huxley (1928), no qual aprofunda o uso da composição fracionada da História,

cujos pontos espalhados pelo todo, vão se ampliando passo a passo, embutidos em uma

outra história. No segundo capítulo deste estudo explicou-se como Érico Veríssimo

tomou conhecimento desta técnica, ou seja, através da tradução da obra Point Counterpoint

de HUXLEY. A primeira vez que Érico usou esta técnica foi quando escreveu Caminhos

Cruzados, em 1934, e publicado em 1935.

Ainda explicando a técnica que o escritor usou para escrever O Tempo e o Vento ,

poder-se-ia dizer que a narrativa é cortada na horizontalidade do relato, intercalando cenas

relativas ao Sobrado, especialmente as passadas durante o final da denominada Revolução

Federalista de 1893, isto é, em 1895. Desse modo, a cada geração que surge, o escritor faz

seguir um flagrante do Sobrado, respectivamente no dia 25 de junho de 1895, de

madrugada, de tarde, de noite, e 26 de junho do mesmo ano de manhã e de noite, e 27 de

junho, de manhã. Ao todo, sete capítulos em torno daqueles dias de 1895, que funcionam

como uma premonição da ação, interpostos a outros seis: A fonte, Ana Terra, Um certo

Capitão Rodrigo, A Teiniaguá, A guerra e Ismália Caré, de forma que o último se situa no

tempo dos acontecimentos narrados naquele momento presente, numa convergência de

fatos em que o Sobrado constitui-se na localização geográfica e temática, e os demais

capítulos, variações de cada tema proposto. Para melhor situar o leitor, encontra-se no

Anexo 2, a estrutura da trilogia O Tempo e o Vento, o momento histórico coberto por cada

capítulo e o número e o ano das últimas edições.

Ressaltados estes conhecimentos importantes sobre a técnica utilizada pelo escritor,

passa-se à História do primeiro capítulo do volume O Continente (1949), de O Tempo e o

Vento .

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O acontecimento que marca a abertura da trilogia, é a trajetória da origem e

formação do Estado do Rio Grande do Sul, a guerra das Missões dos Sete Povos do

Uruguai, sabida conseqüência do Tratado de Madri (1750) entre Portugal e Espanha. Os

episódios deste fato integram o capítulo intitulado A fonte. O próprio título permite dois

significados: fonte pode ser entendido denotativamente como nascente de água e

conotativamente como o surgimento do território, no sentido de origem. Observa-se que

o substantivo comum, fonte, escolhido para ser o primeiro título, é um recurso semântico

usado pelo escritor como um símbolo representativo da História. Este capítulo comporta

ainda, como apontamentos significativos da História referências às incursões paulistas de

apresamento do índio, em situações de contatos que justificam a criação ficcional do

protótipo do mestiço mameluco, na figura de Pedro Missioneiro. O que se enfatiza

mesmo é a presença paulista, a índia e a castelhana dentro do ‘continente’, onde terra e

gados “seriam de quem primeiro chegasse”, com ou sem respeito à lei, em apropriações

arbitrárias. O substantivo comum que se destacou na frase anterior merece uma

explicação, ele igualmente possui duplo sentido: um referente ao título, primeiro tomo da

trilogia O Continente e o outro sentido é o de colonizar o espaço do continente ainda a ser

povoado oficialmente. Pois o povoamento indígena que já ocupava o espaço não foi

levado em consideração na época.

O capítulo, A fonte, antecedente de Ana Terra , inicia em abril de 1745, em uma

redução indígena dirigida por padres espanhóis no território das missões, que

posteriormente será terra rio-grandense. Nesta parte facilmente se nota a semelhança dos

fatos, talvez ainda percebidos como fictícios, com a História em relação às origens do

Estado, na fundação da Colônia do Sacramento em frente a Buenos Aires, em 1680, e a

ação predatória dos bandeirantes. Érico Veríssimo escreveu esta narrativa com a

percepção dos espanhóis, onde mostra a vida econômica da redução no momento em que

seus habitantes exportavam erva -mate e algodão para Buenos Aires e importavam o que

não produziam na redução, também mostra a vida organizada por regras estabelecidas

pelos jesuítas. Os momentos que se julgam realistas são descritos pelos pormenores da

estrutura sócio-econômica e institucional fazendo parte do idealismo verissiano, pois ele

acreditava, nesta estrutura, elogiava a democracia social e econômica presente na redução,

onde predominavam características socialistas. Este realismo se contrapõe à interpretação

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mítica da História que também está presente em A fonte, conforme citou-se, quadro onde

aparecem as origens do Rio Grande do Sul.

Érico Veríssimo relata, ainda neste primeiro capítulo, as razões políticas que os

portugueses tiveram para povoar o Continente de Rio Grande de São Pedro, ao mesmo

tempo que condena moralmente a conquista portuguesa pelo despotismo e a violência

destruidora das reduções jesuíticas, onde se vivia em aparente paz. Também critica a

história interesseira dos bandeirantes passando-os de heróis a bandidos.

No decorrer da obra, o autor aponta a superioridade moral da sociedade das

reduções jesuíticas e alerta o quanto há de arbitrariedade nas medidas do Tratado de Madri,

de 1750, e suas conseqüências. Os Sete Povos das Missões passaram às mãos de Portugal,

em troca da Colônia do Sacramento, que passava a ser propriedade espanhola, o que

conduziu à destruição das reduções jesuíticas e de sua sociedade.

No quadro A fonte, o título denota, até então, a origem da sociedade rio-grandense

nas reduções jesuíticas, assim como a origem da família Terra, pela presença do índio

Pedro.

Através do personagem Padre Alonzo e do seu objetivo de estabelecer uma

ditadura sobre a maior parte de territórios possíveis para implantar os ideais das reduções

jesuíticas há uma contradição com a democracia sócio-econômica e política estabelecida

nas reduções. Quer dizer, Érico Veríssimo vê as reduções jesuíticas sob três acepções:

primeiro, como modelo real, histórico, de uma democracia integral; segundo, como

organizadores de um governo em que os poderes de decisões se concentram nas mãos de

uma só pessoa com intenções políticas de expansão e domínio de uns sobre os outros, e

terceiro, como um relato lendário, mítico. Outra figura dramática é Pedro Missioneiro,

mestiço, filho de um bandeirante e uma índia, educado pelos jesuítas nas Missões guarani,

onde viveu até a destruição dessas, com a vitória de Gomes Freire de Andrade sobre as

tropas nativas de Sepé Tiaraju.

Antes de analisar o segundo capítulo de O Continente é interessante fazer uma

comparação entre as histórias: do historiador e a narrativa do escritor, a qual está

sintetizada em poucos parágrafos acima.

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Nos anos que se seguiram a escrita do ‘romance’, uma das saídas para enfrentar a

realidade brasileira, marcada pela censura, sem se posicionar abertamente era envolver-se

em formas lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos, em mitos que permitiam um

certo disfarce de opinião.

Nesse contexto, a imaginação tornou-se uma atividade de reconstrução do real.

Poderia se criar a partir dos significados que se atribui aos acontecimentos ou das

repercussões que estes causam na sociedade. Inserido na História Cultural, o imaginário

estaria povoado de representações simbólicas do real. À imaginação caberia imitar os

modelos através de imagens, que podem ser personagens reproduzidos em um ‘romance’.

Esta imitação da realidade remete à mímese aristotélica referida no início deste estudo.

A História de Érico Veríssimo pode ser uma mímese aristotélica na medida que

imita o real, usando um vocabulário simbolista. Presume-se esta afirmação apoiando-se

no que diz a ‘história oficial’ no mesmo período mencionado no capítulo A fonte, é como

se o escritor recuperasse os acontecimentos.

Focalizou-se anteriormente que a História é inevitavelmente uma narração, portanto

pode-se dizer que a História Oficial* narra a presença européia em terras gaúchas,

coincidindo com o início das reduções jesuíticas. Ao longo de 1627, os jesuítas espanhóis,

vindos do Paraguai, instalaram-se com suas reduções na margem oriental do Rio Uruguai.

Diversas expedições foram organizadas para a captura dos indígenas já influenciados pela

cultura dos religiosos, catequizados e acostumados ao trabalho da lavoura. Dentre eles,

destacou-se a expedição comandada por Antônio Raposo Tavares, que, em 1636, dominou

a redução de Jesus Maria José. As Missões foram destruídas, milhares de índios foram

capturados e o gado, solto nos campos. Em 1687, os jesuítas fundaram novas missões, Os

Sete Povos das Missões Orientais, no noroeste do território. Antes, porém, em 1680, foi

fundada a Colônia do Sacramento, pelos portugueses, às margens do Rio da Prata, em

frente a Buenos Aires, espraiando seus domínios. A reação espanhola foi violenta. A

fundação de Montevidéu pelos portugueses, como ponto de apoio para Sacramento, não

atingiu os objetivos desejados. Mais bem armados e em maior número, os espanhóis não

permitiram o desenvolvimento da colônia portuguesa. Montevidéu foi conquistada e

* Entende-se por História Oficial aquela que, comumentemente se encontra nos livros. Admite-se todo e qualquer ponto de vista que dela discorde através de teses, pesquisas e outros meios reconhecidos como científicos pela historiografia.

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Sacramento entregue à própria sorte. Em 1737, o governador da capitania do Rio de

Janeiro enviou ao sul uma expedição de socorro coma ndada pelo brigadeiro José da Silva

Pais*. Impossibilitado de cumprir sua missão, Silva Pais subiu o litoral e entrou na Lagoa

dos Patos, fundando a Colônia do Rio Grande de São Pedro, atual cidade de Rio Grande.

O gado que havia sido solto em decorrência das expedições predatórias

multiplicou-se. Para suprir as crescentes necessidades de transporte e alimentação da

população que se deslocou para Minas Gerais após a descoberta de ouro, negociantes e

vaqueiros estabeleceram-se na região e passaram a levar o gado muar, ou seja as mulas,

através da antiga trilha dos bandeirantes, de Viamão para Sorocaba, em São Paulo. As

expedições de captura do gado aprofundaram-se no território e a presença portuguesa

aumentou. O povoamento intensificou-se com a promoção da imigração de casais

açorianos, que desembarcaram em Rio Grande entre 1740 e 1760. Em 1762, foi fundada a

Vila de Porto dos Casais, hoje Porto Alegre. As divergências entre Portugal e Espanha,

em guerra na Europa, refletiram-se nas colônias. Em 1763, os espanhóis invadiram

grande parte do território do Rio Grande do Sul e o dominaram durante treze anos.

Ao comparar as Histórias acima, a, ainda, considerada ficção e a outra, entendida,

como História oficial, aponta -se que a consciência do escritor dispôs uma forma de

representar o mundo, onde o próprio fato está presente na mente e na realidade. O objeto,

a História, é apresentado à consciência por uma imagem, no mais amplo sentido do termo.

Assim, busca-se no mundo das imagens e dos símbolos um significado situado no

plano real. Essas relações que se estabelecem compõem a teoria que norteia este estudo, a

mímese ancorada no real.

Situadas essas incorporações entre o histórico e o literário, destaca-se que não há

fronteiras estancadas entre um e outro, há dimensões que ora constata -se mais real e menos

fictício e vice versa. O romance histórico do século XX é uma narrativa que recupera e

problematiza ações e personagens que apontam para questões gerais de uma época e de

uma comunidade. Assim, diferencia -se do romance social pelo critério de representação.

O romance histórico tematiza representar questões abrangentes, buscando refletir sobre o

* Na literatura historiográfica pesquisada encontra-se divergência na nomenclatura, às vezes, Paes, outras Pais.

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próprio fundamento dos fatos, e o romance social prioriza a representação de assuntos

localizados , de abrangência específica e circunstancial.

O romance histórico, segundo o crítico marxista, LUKÁCS (1962), não necessita

reproduzir diretamente feitos e personagens imitados de registros do mundo empírico, no

entanto, toda narrativa histórica exige uma cuidadosa análise tanto no momento da sua

produção quanto de sua recepção. As primeiras obras de Érico Veríssimo lançadas nos

anos 30, comentadas na biografia do autor e enumeradas no Anexo 5 , demonstram uma

preferência pela História apenas como matéria de representação, o uso da decadência do

patriarcado rio-grandense e as marcas do crescimento das cidades ilustra essa idéia. A

permanência das formas literárias do romance é o reflexo da atitude social do autor, o qual

é o de seu mundo histórico-social, através de uma teoria histórica feita pelo autor, que é o

elo entre a estrutura interna do romance e a sua realidade cultural. Ainda de acordo com

LUKÁCS, precisa ser estipulado que o crítico sociológico deve partir da reflexão que faz o

escritor sobre sua realidade histórico-social, para buscar as semelhanças entre a História e a

Literatura.

O procedimento através do qual o autor equacionou a matéria de representação

ficcional na linha do romance histórico, onde insere-se O Tempo e o Vento , consistiu em

selecionar um episódio histórico, dentro do qual foram introduzidas as personagens e

situações ficcionais e em torno do qual gira a trama romanesca, num processo integrativo

que produz imbricações entre fatos com maiores e menores seqüências de significa dos.

A Histórica Cultural tem colocado o romance histórico como uma das fontes da

própria História. Uma vez que haja coerência e verossimilhança é possível que essa

representação do passado colabore para se encontrar respostas para determinadas questões.

Se a narrativa, tida como de ficção vem sendo trabalhada com o olhar do historiador, com

resultados extremamente interessantes, pode-se deduzir que o que muda é a percepção do

presente em relação ao passado e não o passado. Logo, vem à tona a postura de Eric

HOBSBAWM (1998), um historiador que se opõe a esta afirmação, salientando que ‘o

sentido do passado é padrão para o presente e o presente reproduz o passado’.

O passado concretizado em ações em que o histórico e o ficcional se mesclam,

indistingüíve is, e o que a História não consegue registrar acaba sendo suprido pela

imaginação, que sonda o verossímil e com ele preenche as lacunas temporais.

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É dessa forma que a História contada em Ana Terra descola do cotidiano das

pessoas, dos detalhes da vida, dos atos triviais ou heróicos de atores sociais que nunca

aparecem na historiografia porque não ficam documentados, e talvez nem mereçam

monumentos. A História vai do individual para o grupo familiar, dos feitos pessoais aos

coletivos, das histórias particulares à História do Rio Grande do Sul.

Ana Terra é o segundo capítulo do volume O continente , parte esta onde

aprofundar-se-á aspectos referidos neste estudo até então. O substantivo próprio Ana Terra

encerra muitos símbolos. Tentar-se-á colocar alguns: o sobrenome Terra indica o que mais

havia de precioso nesta parte do território brasileiro, a terra. Oficialmente, ‘terra de

ninguém’, mas há estimativa de que uma quantidade significativa de índios já habitavam o

local; esta terra servia de passagem para quem tivesse interesse na Colônia do Sacramento,

e muitos o tinham; o fato de ter escolhido uma representação feminina para ser o fio

condutor de uma História que simboliza o quanto as mulheres foram importantes neste

período, apresentando suas atitudes frente à realidade, abordando questões antes apenas

discutidas pelos homens, revendo as estratégias de sobrevivência em diferentes regiões. O

autor aborda o estudo das relações de gênero, a partir da História na Literatura.

O historiador BACZKO (1985), conforme adiantou-se no capítulo anterior a este,

aprofundou seus estudos com o objetivo de definir Literatura ligando-a à História. Com

esta intenção, mostra que um dos caracteres fundamentais do fato social é precisamente

seus aspecto simbólico. Nesse sentido os elementos do ‘romance’, tanto seres animados

como inanimados, são um modo de representação dos interesses coletivos através da

forma, expressos pelo poder, pela classe dominante, ou ainda pelas crenças e mitos da

sociedade. Ou seja, a Literatura através da ficção pode mostrar livremente, sem

compromissos com a ciência, a correlação de forças presente na sociedade, que é questão

das representações do imaginário coletivo. A Literatura ao longo do tempo produziu

representações de formas, que com seu poder metafórico, deu sentido e função aos

indivíduos e às coisas.

Ao se pretender colocar a análise da História versus Literatura, como um campo de

discussões, é necessário acentuar alguns conceitos básicos, como de imaginários social e

representação. Para BACZKO (1985), o imaginário social é uma das forças reguladoras da

vida coletiva e através dele:

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... uma coletividade designa sua identidade, elabora uma certa representação de si, estabelece a distribuição de papéis e das posições sociais, exprime e impõe crenças comuns, e constrói uma espécie de código de convivência ... Cada geração trás consigo uma certa definição de homem e de sociedade, simultaneamente descritiva e normativa, no mesmo tempo que adota, a partir dessa concepção, uma idéia de imaginação do que a sua sociedade é, e do que ela deveria ser (1985, p. 113).

Partindo deste princípio, cada geração vive a sua própria História, porque, embora o

passado não mude, o presente se modifica a cada descendência, a partir de um novo olhar

sobre o passado. Focaliza-se uma percepção importante neste estudo, não é o passado que

altera o presente, mas sim o presente que altera a maneira de ver o passado, através do

imaginário coletivo de cada época. Ainda de acordo com o autor acima citado, o

imaginário social tem que ser visto como um algo efetivo e eficaz no controle da vida

coletiva e em especial do exercício da autoridade e do poder, o imaginário social “se

transforma assim, no lugar e no objeto dos conflitos sociais.” (BACZKO: 1985, p. 113). A

Literatura oferece, portanto, as melhores condições para um indivíduo produzir o

desenvolvimento das idéias, das imagens e das representações. O imaginário busca sentido

para as coisas e para os fatos através dos diversos olhares ou leituras que são feita s da

realidade.

A representação, segundo LE GOFF (apud PESAVENTO: 1980), “é a tradução

mental de uma realidade externa e percebida”. Portanto, ela é a presentificação de um

ausente, que é percebido, segundo uma imagem mental ou material, que se distancia do

mimetismo aristotélico, e trabalha com atribuição de sentido. O ausente se presentifica por

força da imagem, já que existe sempre um outro sentido além do manifesto. Os

documentos históricos são formas de representação, expressa por palavras ou coisas. A

representação social possui sem dúvida uma face de transformação e sedução, e é também

portadora do sonho da coletividade na sua dimensão utópica. Ao se trabalhar com a

Literatura, a representação fica colocada de maneira explícita, e o imaginário coletivo com

os valores simbólicos expressos no discurso da narrativa.

Apesar de se ter muito a trilhar, no que diz respeito ao assunto que ora aborda-se, é

notório de que há historiadores que reconhecem e aceitam o imaginário para dar sentido

aos documentos. O discurso ficcional, com a liberdade de apropriação de linguagens que

o caracteriza, pode aproximar-se do histórico a ponto de imitá-lo, que é o que afirma a

mímese aristotélica . O discurso histórico, reconhecem hoje os teóricos da história,

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também recorre ao elemento próprio do ficcional, o imaginário, para dar sentidos aos

documentos, conceito este também reformulado e ampliado.

O sociólogo e psicanalista, de origem grega tal qual Aristóteles, Cornélius

CASTORIADIS (1993) vai referir-se ao simbólico como uma referência a tudo que se

apresenta para nós no mundo social-histórico. Os atos individuais e coletivos não se

esgotam no simbólico, mas são impossíveis fora de uma rede simbólica, observe:

Todo lo que se nos presenta, en el mundo social-histórico, pasa indefectiblemente por la urdimbre de lo simbólico. No es que se agote en ello. Los actos reales, individuales o colectivos, el trabajo, el consumo, la guerra, el amor, el parto, los innumerables productos materiales sin los cuales ninguma sociedad podría vivir un instante, no son, no siempre, ni directamente, símbolos. Pero unos y otros son imposibles fuera de una red simbólica. En primer lugar encontramos a lo simbólico, claro está, en el linguaje. Pero lo encontramos igualmente, en otro grado y de otra manera, en las institucines. Las instituciones no se reducen a lo simbólico, pelo sólo pueden existir en lo simbólico, son imposibles fuera de un simbólico en segundo grado y constituyen cada una su red simbólica (CASTORIADIS: 1993, p. 38).

As diferentes instituições criadas pela sociedade têm a sua existência simbólica. É

a dimensão imaginária que cria formas as quais se enraízam no histórico, para que se

façam legítima. Como seres humanos, somos dotados de um poder de autodeterminação

por nossas finalidades subjetivas e, por isso, capazes de viver a vida em uma realidade

físico-imaginária, ou seja, simbólica. É sob esse prisma que se tomou a obra Ana Terra do

escritor gaúcho, Érico Veríssimo, como exemplificativo da História do Rio Grande do Sul

no imaginário do autor.

A dimensão simbólica da História e da Literatura recoloca os indivíduos, a partir da

sua cultura, da sua sociedade, das suas emoções, das suas vivências, dos sonhos, mitos e

ritos, para decifrar assim, uma pluralidade de linguagens que passam despercebidas.

A sociedade, apesar de instituída, está em construção permanente. Esse também é

um pressuposto de CASTORIADIS, que propõe a categoria da criação histórica como

“capacidade de criar, de produzir, de dar -se, de fazer ser o que não é e nem nunca foi”

(1993, 43). Trata -se do imaginário num sentido radical, da imaginação criadora do sujeito

e da sociedade que exercitam a sua autonomia, a sua capacidade imaginária.

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O imaginário, que está-se trazendo com um outro olhar para a História e para a

Literatura, não se limita ao conjunto de valores, crenças, mitos e ideologias instituídas

socialmente. O imaginário é concebido a partir da dimensão sócio-histórica, individual ou

coletiva, do produtor de imaginação, o sujeito da criação. Assim como CASTORIADIS

(1993) não acredita na imaginação criando algo do nada, pode -se afirmar que a atividade

criadora da imaginação está relacionada com a riqueza e variedade de experiências

acumuladas e possibilitadas ao homem. Quanto mais rica a experiênc ia humana, tanto

maior o material de que dispõe a imaginação, tanto para compreender a História como para

ficcionar o que dela fica uma incógnita.

Ao acompanhar o raciocínio que está seguindo este estudo, observa-se que a

produção literária é uma expressão da cultura, assim como a obra de arte, a música, a

pintura, a produção cinematográfica. A Literatura, principalmente o romance histórico,

anteriormente definido, é produto do social e que existem relações intrínsecas e imanentes

entre a sua produção e ambiente em que vive seu autor. O campo literário não pode ser

separado do contexto da sua produção porque é uma visão de mundo, é uma maneira de

ver e sentir um universo concreto de seres e coisas e o escritor é um homem com

qualidades para encontrar uma forma adequada para criar, ou recriar e expressar este

universo, e isto não constitui no fato isolado, mas sim na sociabilidade. Partindo dessas

idéias, o mesmo se poderia afirmar do imaginário, isto é, das criações literárias, que se

criam a partir de um imaginário coletivo já existente.

Desta forma a Literatura pode ser considerada uma configuração menor, inscrita

sob uma configuração maior. É o que ocorre com a versão histórica que Érico Veríssimo

colocou no quadro Ana Terra , de O Continente. A linguagem histórica ou literária está,

não como um âmbito abstrato, mas como a esfera que tem a ver com o fazer História, sob o

prisma de quem a viveu intensamente.

O quadro de Ana Terra começa em 1777, com a terceira invasão e expulsão do

inimigo espanhol e castelhano do território sul-rio-grandense. A família da protagonista

Ana Terra vivia no meio rural sem ligação com a história do presente, estavam integrados

aos eventos naturais em vez de aos eventos histórico-sociais. Mesmo assim, não viviam

completamente isolados pois tinham intercâmbio econômico com a povoação mais

próxima que era Rio Pardo, o que situa a família dentro do tempo histórico-social.

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A personagem Ana Terra descendia de uma família de paulistas transferidos para o

Sul do país, eram pequenos proprietários rurais que viviam assolados pelos ladrões, de um

lado, e de outro atacados pela prepotência dos grandes latifundiários, como a família dos

Amarais.

Ao mesmo tempo, cresce e se desenvolve a família dos miseráveis Carés,

representantes gaúchos pobres e desterrados que vêm a se fixar no Angico, propriedade dos

Cambarás, até o surgimento de Ismália Caré, amante que Licurgo mantém antes e depois

do casamento. Apenas pela relação das personagens e das suas características, observa -se

que a miscigenação e a diversidade étnica são fatores importantes na constituição do

romance de Érico Veríssimo. As diferentes camadas sociais estão representadas, desde os

grandes proprietários aos miseráveis sem terra.

A história da família concentra, portanto, os vários ângulos de uma história social,

revelando-se paradigmática: a destruição e a construção. A guerra missioneira marca o

início da história do Rio Grande do Sul sintetizada em O Continente, mais propriamente

em Ana Terra , com a integração do Continente de São Pedro ao território Português depois

da destruição dos Sete Povos pelo exército de Gomes Freire de Andrade, e um elemento de

agregação, a miscigenação étnica, que une Pedro Missioneiro a Ana Terra, depois Bibiana

Terra a Rodrigo Cambará. Concluído o processo de miscigenação, o elemento de

agregação passa a ser a própria família, de onde sairão os personagens – soldados para as

guerras: Rodrigo, Bolívar, Florêncio e Licurgo e as mulheres para a sustentação do lar.

A exposição acima serve para mostrar que, se no nível coletivo, o imaginário de um

acontecimento do passado deixa marcas profundas na sociedade, para o indivíduo parece

não ser muito diferente. A descendência transmite um sentimento de dor, perda, violência,

tortura, medo, ódio, mas que, em nenhum momento perde a esperança de recuperar o que

consideram de grande valor: sua terra. É evidente que o escritor, assim como qualquer

outro ser humano, possui consciência, e escreve atuando de acordo com uma

intencionalidade subjetiva que não pode ignorar -se ao explicar um fato social. Os aspectos

negativos servem, neste caso, para valorizar e incentivar a luta pela posse do território.

Recorda-se que os apontamentos do sociólogo, Maurice HALBWACHS (1990), um

dos precursores do estudo sobre a memória, as lembranças são características próprias do

indivíduo. No entanto, elas estão inseridas em um contexto. O imaginário é uma imagem

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entrelaçada a outras imagens ou a um conjunto delas. Então, as imagens, por sua vez, são

construídas e ordenadas de acordo com a cultura do indivíduo. Assim, na percepção de

HALBWACHS, uma história universal seria impossível, uma vez que existe uma

infinidade de histórias parciais. Nesse processo, os acontecimentos históricos operam

como auxiliares do imaginário.

Outro elemento utilizado pelo historiador e pelo literato, talvez até de modo

inconsciente, é a afetividade, pois, quando há envolvimento afetivo e emocional ocorre o

registro na memória e esta encarrega -se de trabalhá-la no plano do imaginário. Assim,

ambos os capítulos A fonte e Ana Terra, através das lembranças individuais dos

personagens, envolvem elementos de ordem afetiva, uma vez que as imagens de suas

lembranças decorrem de experiências vividas com seus familiares e sua redes afetivas

construídas socialmente com a mãe, com o pai, filhos, irmãos, amigos ou pessoas com as

quais, no cotidiano, se estabelecem e se mantêm vínculos afetivos e uma relação de

proximidade e de fome mais direta. Essas histórias parciais revelam também o que

aconteceu num tempo e espaço determinados , percebidos e registrados por alguém que os

vivenciou e se envolveu. Encontra-se um bom exemplo ao reportar a biografia de Érico

Verísssimo, quando relatou-se alguns momentos e alguns fatos que ocorreram na sua

infância.

A ação que transcorre em toda trilogia O Tempo e o Vento ocorre entre 1745,

quando nasce Pedro Missioneiro, filho de uma índia violada por um aventureiro paulista,

nas reduções jesuíticas do Alto Uruguai, e o ano de 1945, que assinala o fim de uma época

na queda de Getúlio Vargas, impõe a visão de uma mudança. Transformou-se o antigo Rio

Grande do Sul, patriarcal e agrário, para dar lugar à cultura dos imigrantes e ao surgimento

de setores médios da população.

A fase da ocupação do Continente ao agrupamento de ranchos nas terras do

Corone l Amaral à criação do Povoado se inicia com a integração do Rio Grande do Sul ao

Brasil Colônia, com a permuta da Colônia do Sacramento pela região das Missões,

determinadas pelo Tratado de Madri, em 1750. Mas, a História na obra O Continente inicia

na região onde estavam os jesuítas, em 1745, quando do nascimento de Pedro Missioneiro,

ao mesmo tempo que tropeiros paulistas começam a chegar em outros pontos do território,

ainda com seus limites indefinidos, por isso chamado de Continente de São Pedro. Este é o

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caso do personagem Maneco Terra que traz a família, proveniente de Sorocaba, em São

Paulo, para se instalar em uma estância próxima de Rio Pardo, por volta de 1777, como

confirmam as recordações da protagonista Ana Terra, sua filha.

Rio Pardo, a vila mais próxima e mais desenvolvida servia de ponto de apoio e era

para lá que os dois filhos de Maneco Terra iam vender sua produção excedente, comprar

outras necessidades e se distrair. Rio Pardo se apresenta como contraponto da cidade, pois

neste local existe o comércio, a Igreja Matriz, as festas. O isolamento em que viviam

reflete bem a estrutura regional e fundiária do Continente, onde partes de terras cultiváveis

chamadas de sesmarias foram doadas, tornando a densidade populacional baixa.

Além de Rio Pardo, a cidade de Viamão era uma das esperanças de Ana Terra para

mudar-se do local onde moravam. A chegada e permanência de Pedro Missioneiro na

estância dos Terra vai mudar o destino da vida da família. Ana engravida e seus irmãos

matam Pedro, estes fatos já se constituíram numa tragédia, que não se ameniza com o

nascimento de Pedrinho, mas segue com a morte da mãe e o ataque de um bando de

castelhanos à estância dos Terras, em 1789, quando esses estavam começando a progredir.

Decorre daí a morte do pai e do irmão, e o estupro de Ana. À Ana só restava ir embora

com seu filho, com a cunhada e a filha desta. Na estrada encontraram e embarcaram em

duas carretas com um grupo de pessoas que se dirigiam para as terras do coronel Ricardo

Amaral, segundo a informação de um personagem que as conduziam. Após vários dias de

viagem, avistaram o Rio Jacuí, que os impressionou pelo seu tamanho. Construíram uma

balsa para que pudessem atravessar e retomaram a marcha.

Pela descrição feita pelo autor, pode-se inferir que a localização dessas terras eram

à noroeste do território gaúcho, numa região de campos marcados por coxilhas, onde a

pecuária era a atividade predominante. No decorrer do romance se esclarece que Santa Fé

situa -se próxima de Cruz Alta, cidade que compete com ela comercialmente. Abre-se um

parêntese para ressaltar que não é informação unânime dos críticos literários, nem dos

historiadores, que a cidade fictícia de Santa Fé seja Cruz Alta e nem que esta seja a cidade

de Cruz Alta (RS) que existe hoje. Há contradições sobre esta informação. Prosseguindo

sobre o que se fala, a referência de estar nas coxilhas e não na serra coincide com o

mapeamento da ocupação do Rio Grande do Sul nessa época, ou seja, até 1850 todos os

núcleos urbanos estavam situados em região de campos, exceto aqueles povoados

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próximos ao Rio dos Sinos, pois a ocupação da serra, só acontecerá com a chegada do

segundo turno da imigração no Estado, a partir de 1850. A escolha dessa localização

portanto, para a instalação de Santa Fé permitiu que Érico Veríssimo desenvolvesse sua

história ligada tanto às bases oligárquicas da pecuária gaúcha, como à imigração européia e

ao desenvolvimento da agricultura.

A presença dos habitantes acaba marcando o território através de seus percursos, de

suas lutas e de sua permanência. Iniciada com os tropeiros, que darão origem ao gaúcho,

imagem tão bem expressa na figura do Coronel Amaral e do Capitão Rodrigo, ou os

açorianos, cuja presença se percebe pela plantação de trigo na região. Mais tarde, ocorrerá

a chegada de alemães e italianos à região de Santa Fé, já na sua segunda fase de

desenvolvimento.

Importante, então, é destacar que Santa Fé situa-se no caminho por onde todos

passam e muitos acabam ficando, desenvolvendo aqui suas práticas sociais. Pode-se inferir

que Érico Veríssimo utilizou sua cidade natal, Cruz Alta, como referência para criar Santa

Fé, trazendo para esta, muitas das características lá existentes. A exposição acima serviu

para mostrar que, se no nível coletivo, as lembranças de um acontecimento do passado

deixam marcas profundas na sociedade, para o indivíduo parece não ser muito diferente.

A formação do povoado para assentar aquele agrupamento de famílias, no qual Ana

Terra havia chegado com seu filho Pedro, ocorre em 1804, nas terras do Coronel Amaral.

A personagem Chico Amaral, filho do coronel, conseguiu do Administrador da Redução de

São João um ofício que lhe concedia o terreno necessário para a edificação do povoado.

As notícias sempre chegavam a Santa Fé através de um portador que informava das

novidades, das guerras, da chegada da família real no Brasil, quando a personagem Bibiana

tinha três anos, e outras referências que permitem introduzir os habitantes na região, no

Estado, no país e no mundo. Novamente pode-se relacionar com o modo que o jovem

Érico Veríssimo informava-se, uma das formas era através da Revista L’Illustration ou de

quando algum viajante que passava pelo boticário do seu pai contando as novidades.

Relatou-se este fato com mais detalhes no capítulo anterior deste estudo.

Rafael Pinto Bandeira, reconhecido como ‘bravo lutador’ no século XVIII, é visto

abstratamente por Antônio, irmão mais velho de Ana, como um herói, mas Maneco Terra,

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pai de Ana, o vê concretamente, sem a heroicidade e patriotismo, acusando-o de defender

interesses próprios, quando o que quer é retomar suas terras que os castelhanos invadiram.

Pela consciência do personagem Maneco Terra, Érico Veríssimo critica a História,

percebendo que a outorga de sesmarias era efetuada só aos que já tinham dinheiro,

formando latifúndios. A outra possibilidade de ganhar sesmarias era quando o governo

precisasse de ajuda militar, então reunia pequenos exércitos e deixava -os à sua disposição.

Os soldados que voltassem vivos e com méritos de heróis, poderiam receber terras pelo sua

distinção e coragem. Convém ressaltar que as terras não eram doadas para todos os

soldados, haviam critérios de seleção, como o desempenho das tarefas no campo de

batalha.

A História relatada acima pode se apresentar como forma de conceber o passado

histórico pelas recordações, como fragmentos, mensagens da cultura, fantasias,

recordações... Por outro lado, o imaginário pode estar relacionado às projeções,

representações e mensagens que se fixam, em virtude não só da eficácia simbó lica mas da

efetiva realidade dos fatos. Deste prisma, fica evidenciado o romance histórico como um

documento verdadeiro para o historiador. O que ainda pode ocorrer é encontrar

historiadores dizendo-se inseridos na História Cultural com pré-conceitos a respeito do

tema que está se tratando, os aspectos que norteiam a História e a Literatura. Nesta

possibilidade, abre-se um questionamento de que algo deve deter o historiador dentro desta

postura. O que, mais uma vez vem à tona, o próprio historiador desfruta do imaginário

para defender seu ponto de vista, que a princípio deveria ser ‘apenas’ do romancista,

entendendo que só ele podia ficcionar.

Recupera-se nestas reflexões a mímese aristotélica . Em ambos os capítulos, A

fonte e Ana Terra , as lembranças de infância evocadas através da memória mantêm uma

relação com o imaginário do autor. Por sua vez, o autor representa o momento histórico da

sua geração. Então o que varia entre a História e o Romance Histórico são os meios de

imitação, segundo a mímese aristotélica .

Quando Érico Veríssimo declara publicamente para os meios de comunicações que

é apenas ‘um contador de histórias’, não especifica de quê história se considera um

contador, o que remete à possibilidade de ser a História entrelaçada com a Literatura. Pois,

segundo Aristóteles, a mímese, analisada amplamente pode ser feita de algo que existiu,

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através do simbólico, ou pode ser feita através do que é meramente ficcional. A chave para

abrir as portas para que o leitor perceba se o romance é histórico está, muito mais, no

compromisso de quem conta do que com a própria realidade. O historiador que reconhece

em Ana Terra a História do Rio Grande do Sul entendeu e aceitou a obra como um

documento que permite a pluralidade de interpretações, através de símbolos.

Nesse sentido, um primeiro ponto a ser considerado diz respeito aos aspectos

culturais aos quais as imagens estão ligadas. Ao formarmos imagens em nossa mente,

partimos sempre de um repertório conceitual associado a outros esquemas conceituais. Em

outras palavras, a maneira como o autor e o historiador são socializados e mantém as suas

redes de relações com outras sociabilidades determinam suas formas de pensar e de encarar

a realidade e também as formas de construir e ordenar as imagens. Em síntese, o

significado da imagem depende tanto do objeto quanto da cultura. As imagens são

construídas e ordenadas no registro da cultura e nunca fora dela.

Se as lembranças, definidas por HALBWACHS (1990), como imagens entrelaçadas

umas às outras, e são regidas por uma seqüência delas, configuradas por elementos e dados

inventados pela cultura, então as imagens não são apenas um modo de conhecer, mas de

refletir os fenômenos e a realidade, uma vez que se fazem presentes e são construídos pelo

imaginário social e pela memória coletiva.

Na obra Ana Terra , a noção de imaginário é tomada na acepção de CASTORIADIS

(1993), não como uma verdade fundadora, como tentam definir as abordagens

funcionalistas e estruturalistas, as quais o sociólogo rejeita, mas o imaginário se define

pelo social-histórico. Isto é, a sociedade é sempre histórica. As suas normas, valores,

linguagens, instrumentos, procedimentos e métodos de realizar as coisas, as instituições,

são que a mantêm reunida. As instituições produzem indivíduos conforme suas normas e

regras de conduta e estes, por sua vez, são obrigados a reproduzi-las. A sociedade é uma

construção, uma constituição, uma criação do mundo. Sua própria identidade nada mais é

que esse sistema de interpretação, esse mundo que ele cria.

No capítulo Ana Terra já se observam os problemas que levariam à Revolução

Farroupilha em 1835, conforme já enumeramos: as arbitrariedades dos governos, a

excessiva centralização em Rio de Janeiro, ficando a província de São Pedro abandonada,

os impostos excessivos às exportações rio-grandenses, a concorrência das importações

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platinas que o governo central não estava disposto a proibir. Como escritor, Érico

Veríssimo demonstra ser bem realista quando apresenta todos estes fatos históricos desde o

ponto de vista da classe que faria a Revolução Farroupilha em 1835, representada pelos

estancieiros. Por outro lado, em Ana Terra , também se apresenta uma crítica a estes. Tudo

isso dá ao capítulo um elemento conflitivo de lutas de classes que poderia colocá-lo em

uma concepção marxista da História. Nota-se claramente na crítica que Ana Terra faz do

lucro dos estancieiros como causante da heroicidade e do patriotismo exagerado que

conduzem às guerras e à conseqüente morte e aleijamento de muitos soldados.

Érico Veríssimo retratou bem, tanto no capítulo Ana Terra , como em Um certo

capitão Rodrigo, como os interesses econômicos dos grandes fazendeiros foram lesados,

mas ao colocar o maior estancieiro de Santa Fé, Ricardo Amaral, contra a Revolução

Farroupilha, a qual em O Continente é apoiada pela classe média e não pela classe dos

fazendeiros, deforma a realidade histórica do movimento Farroupilha. Isto se explica

ideologicamente. Como membro da classe média interessado em fazer do Brasil uma

democracia liberal, Érico Veríssimo vê a Revolução Farroupilha como um antecedente da

Revolução de 30 e de suas medidas políticas contra o despotismo dos senhores rurais. Quer

dizer, a posição social de Érico Veríssimo como escritor democrático-liberal de classe

média, explica sua particular reação perante a história rio-grandense.

Ana Terra reflete, dentro do possível, o mundo histórico-social de Érico Veríssimo

em 1949, período em que produzira a obra. Vê-se, portanto, que a sua interpretação da

história gaúcha não é só ficção, mas é produto da posição social do seu autor na sociedade

brasileira. O escritor metaforiza a necessidade de prender a ficção na vida real.

Érico Veríssimo apelou para a representação da História de forma verossímil

porque a época exigia essa forma literária, o romance histórico como um meio de valorizar

o país reportando-se à tradição literária herdada do período anterior ao modernismo

brasileiro, e percebendo-lhe as potencialidades, o autor precisava entregar-se à temática

histórica como um compromisso ético com a época.

Pensando-se nas circunstâncias de produção que cercaram o período de elaboração

de O Continente , que vai de 1935 a 1948, além de textos de procedência européia, na

biografia do autor, há as questões de sua vida particular, como o nascimento dos filhos em

1935 e 1936. Ocorre em um período posterior, a publicação das séries de literatura

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infantil e juvenil, a primeira tarde de autógrafos em São Paulo, em 1940, as duas viagens

aos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado, onde em 1943 leciona

Literatura Brasileira, e que fornecem matéria para que publique duas narrativas de viagem,

entre outras questões, como a decepção com a política brasileira...

Trata-se de uma época de luta pela sobrevivência como escritor, e é o período em

que Érico Veríssimo, além de secretário da futura Editora Globo, traduzia ficção da língua

inglesa e nos intervalos escreve, com êxito, Olhai os lírios do campo (1938),

fundamentando a sua carreira, pois atinge dimensões internacionais, como a ressalva de

que lhe traz complicações políticas em seu país, como acusações de imoralismo, de

anglofilia, um amor a tudo que seja inglês, e de vender -se às tentações do mercado com

textos fáceis, sentimentais e impregnados de ingenuidade ideológica, etc. Na sua nova

produção literária tinha que ser criativo, não podia colocar em risco, nem pôr a perder os

espaços conquistados em duas décadas de árduo trabalho. Então a verossimilidade da

História na ficção em Ana Terra pressupõe que o romance supria também uma necessidade

financeira.

Baseando-se nos argumentos levantados acima, ainda articula -se a idéia de que a

engrenagem que move a História em Ana Terra pode ser analisada com menos importância

na cronologia dos fatos e mais ênfase na representação das personagens que eram para ser

fictícias.

Historiadores, críticos e literatos enfatizam a personagem Ana Terra como um

símbolo de mulheres de força, perseverança, garra, determinação que, apesar de ter a casa

paterna destruída pelos castelhanos, pai e irmãos mortos e o corpo violentado, parte com

coragem para reconstruir sua vida no pequeno povoado que se transformará na cidade de

Santa Fé, cenário onde se desenvolvem os duzentos anos de história da família

Terra/Cambará. O que impulsiona Ana Terra não é somente o ódio à violência provocada

pelos castelhanos: seu vigor, energia e resistência são sentimentos natos diante da situação:

é preciso criar seu filho Pedro, torná-lo um homem, sobreviver. E é dessa personagem que

depende a vida do menino. Assim, Ana Terra parte com o menino pela mão para

conquistar seu território, e a maternidade é o sentimento, a função que lhe dá essa destreza.

Para ambas, Ana Terra e Bibiana, personagem que aparecerá no capítulo Um certo Capitão

Rodrigo , cuidar dos filhos e da terra é cuidar da descendência e da sobrevivência.

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127

Esta valorização do sexo feminino pelo imaginário de Érico Veríssimo, analisada

pela ótica da mímese aristotélica , desloca a história tida como ‘romance’ para a História

entendida como instrumento de controle social, coincidindo com a posição de BACZKO,

quando coloca o imaginário a serviço da razão manipuladora nos conflitos sociais e

políticos da época em uma historiografia romântica.

Outra abordagem que se pode atribuir à valorização do sexo feminino é o caráter

épico na narrativa de Ana Terra , resultante de um conjunto de circunstâncias particulares: a

adaptação do homem ao meio, a interação cultural, a acomodação acidentada das diferentes

camadas sociais, a instintividade da conduta, a rudez de certas figuras femininas, tudo isso

configura um estilo de vida, surpeendido justamente pelo lado de fora, através das formas

grupais de comportamento e condicionamento. Chama -se a atenção para o que aqui se

afirma: não que o romance seja épico, mas possui um fundo épico. Nesse sentido, clareia -

se a apropriação que o autor faz da mímese aristotélica para contar o que o historiador

VELLINHO (1974), no texto Conquista e povoamento do Rio Grande do Sul afirmou:

As tensões de uma fronteira duramente controvertidas, em constante estado de guerra, mais a rudeza primitiva da campeiragem, explicam as transformações responsáveis pela cunhagem do padrão social que vingou no Rio Grande sob o designativo regional de gaúcho. ... O Rio Grande do Sul é, desde as raízes até a construção de sua legenda heróica, fruto de uma laboriosa empresa exclusivamente luso-brasileira. ... Eis, em rápido balanço, os nosso legítimos pioneiros, indistintamente portadores da mesma herança cultural, quer por extração histórica, que por absorção ou contágio, o que quer dizer que aí se acham compreendidos, além dos descendentes diretos daqueles que durante séculos tinham vivido e sofrido rijas experiências nas campanhas da Península e nos mares, mais os elementos que aqui, na surda promiscuidade do mato e da senzala, foram botando seus flancos (VELLINHO: 1974, pp. 15 / 16).

Outro historiador, que, de igual modo considera as personagens da História

verdadeiros heróis, é Guilhermino CÉSAR (1974) ao apontar “a colonização européia, no

extremo meridional do Brasil, te ve uma idade heróica, sobre a qual muitos já escreveram,

nem sempre com a necessária clareza” (CÉSAR: 1974, p. 25) admite equívocos por parte

de historiadores, que, na ânsia de tornar a História ‘verdadeira’ narram-na, transformando

seus personagens em he róis.

Com base em tudo o que já se refletiu neste estudo, ao cruzar-se o modo de

escrever História de um escritor, apenas ‘contador de histórias’, com a escrita da

historiografia tradicional por um historiador ‘oficial’ enfatiza-se uma preocupação comum,

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128

a de explicar o passado, incentivando as pesquisas e abrindo novas perspectivas para a

análise dos fatos, pois ambos deixam implícito, em seus esboços, articulações a partir de

uma problematização histórica de sentimentos e vontades trabalhadas na produção de um

personagem.

Recusando-se a tomar a literatura como mero suplemento da História, onde ela só

cumpre a função de reconfirmar algo já dito por outras fontes, ou de ilustrar o que se toma

por consensualmente dados como fato histórico e, negando-se a entrever nela um recurso

para complementar as lacunas deixadas por outras fontes, interpreta-se a obra Ana Terra

como uma dimensão simbólica da História.

Tomando-se o livro como reelaboração da experiência histórica do autor, é possível

compreender a idéia de que a recente utilização de textos literários pelos historiadores, não

invalida a sua natureza literária para ser reconduzido ao estatuto de documento. Torna -se

claro que nenhum texto, mesmo aparentemente mais documental, mesmo o mais objetivo,

mantém uma relação transparente com a realidade que apreende. O texto literário ou

documental, não pode nunca anular-se como um texto, como uma narrativa sob esquemas

de percepção e de apreciação. A relação do texto com o real se constrói, segundo modelos

discursivos e delimitações intelectuais próprias de cada situação de escrita. O que leva a

não tratar as ficções como simples documentos, reflexos realistas de uma realidade

histórica. Então, um texto literário não é um documento, mas um conjunto de textos

escritos do mesmo modo num período determinado com as mesmas características podem

expressar a realidade e portanto considerar-se documento. O real assume assim um novo

sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é, ou não é apenas a realidade visada pelo

texto, mas a própria maneira como ele cria, na historicidade da sua produção e na

intencionalidade da sua escrita.

Para exemplificar o que se pesquisa, após várias atentas leituras excluiu-se da

narrativa de Ana Terra o que se pode nominar ‘romance’, isto é, passou-se um crivo na

obra para entrelaçar a história extraída do livro com a História que se julga ‘oficial’. Para

que o texto se torne fluente usa-se conectivos e o número acima de cada trecho refere-se ao

capítulo onde esse se encontra na obra. Opta-se por não indicar número de página do

trecho selecionado conforme indicou-se, porque há muitas edições da obra Ana Terra e a

paginação poderia diferenciar de uma editora e edição para outra. Também não é objetivo

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129

localizar estaticamente a cópia do texto. Os recortes são feitos tendo em vista os objetos

de estudo da História Cultural: imaginário, símbolos e representações. Portanto só foram

retirados do texto original Ana Terra os parágrafos de interesse neste estudo. O propósito

é a análise da História no contexto e não os aspectos formais do texto, para o qual

necessitaria o parágrafo no conjunto do capítulo.

A fim de orientar o leitor, aclara-se que, quando do recurso histórico, o texto está

redigido em Times New Roman, número 12, cor azul, mantendo-se em fonte Times New

Roman, número 12, na cor utilizada ao longo do texto, as observações que se realiza.

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A N A T E R R A

1

[...] Bom, devia ter sido em 1777: ela (Ana Terra) se lembrava bem porque esse

fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente. Mas na estância onde

Ana vivia com os pais e os dois irmãos, ninguém sabia ler, e mesmo naquele fim de mundo

não existia calendário nem relógio. Eles guardavam de memória os dias da semana; viam

as horas pela posição do sol; calculavam a passagem dos meses pelas fases da lua; e era o

cheiro do ar, o aspecto das árvores e a temperatura que lhes diziam das estações do ano.

Ana Terra era capaz de jurar que aquilo acontecera na primavera, porque o vento andava

bem doido, empurrando grandes nuvens brancas no céu, os pessegueiros estavam floridos e

as árvores que o inverno despira, se enchiam outra vez de brotos verdes.

[...] Não que sentisse muita falta de homem, mas acontecia que casando poderia ao

menos ter alguma esperança de sair daquele cafundó, ir morar no Rio Pardo, em Viamão

ou até mesmo voltar para a Capitânia de São Paulo, onde nascera. A princípio tinham

sofrido os castelhanos, que dominaram o Continente por uns bons treze anos e que de

tempos em tempos surgiam em bandos, levando por diante o gado alheio, saqueando as

casas, matando os continentinos, desrespeitando as mulheres.

[...] Havia também as “arriadas”, partidas de ladrões de gado, homens malvados

sem rei nem roque, que não respeitavam a propriedade nem a vida dos estancieiros.

[...] A povoação mais próxima ali da estância era o Rio Pardo, para onde de tempos

em tempos um de seus irmãos ia com a carreta cheia de sacos de milho e feijão, e de onde

voltava trazendo sal, açúcar e óleo de peixe .

[...] Agora em seus pensamentos um homem falava de cima de seu cavalo. Tinha

na cabeça um chapéu com um penacho, e trazia à cinta um espadagão e duas pistolas. E

esse homem dizia coisas que a (Ana Terra) deixavam embaraçada, com o rosto ardendo.

Era Rafael Pinto Bandeira, o guerrilheiro de que toda gente falava no Rio Grande.

Corriam versos sobre suas proezas e valentias, pois era ele quem pouco a pouco estava

livrando o Continente do domínio dos castelhanos...

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131

Ana Terra guardava a lembrança daquele dia como quem entesoura uma jóia.

Estava claro que ventava também na manhã em que o Major Pinto Bandeira e seus homens

passaram pela estância, a caminho do forte de Santa Tecla onde iam atacar o inimigo.

(Quando um filho de Maneco Terra manifestou sua vontade de acompanhar os

‘soldados’) [...] O velho respondeu:

- Não criei filho pra andar dando tiro por aí. O melhor é vosmecê ficar aqui

agarrado ao cabo de uma enxada. Isso é que é trabalho de homem.

- O major é um patriota, meu pai. Ele precisa de soldados para botar pra fora os

castelhanos.

O velho ergueu a cabeça e encarou o filho:

- Patriota ? Ele está mas é defendendo as estâncias que tem. O que quer é retomar

suas terras que os castelhanos invadiram. Pátria é a casa da gente.

[...] Maneco Terra era um homem que falava pouco e trabalhava demais. Severo e

sério, exigia dos outros muito respeito e obediência, e não admitia que ninguém em casa

discutisse com ele .

2

(Neste capítulo há a descrição do índio ferido, assim como Érico Veríssimo viu as

pessoas entrarem feridas na Farmácia Brasileira, que pertencia a seu pai, falou-se sobre isto

na biografia, vide capítulo 2).

(Dona Henriqueta pensava) [...] Seria mil vezes preferível viver como pobre em

qualquer canto de São Paulo a ter uma estância, gado e la voura ali naquele fundão do Rio

Grande de São Pedro.

Dona Henriqueta olhava desconsolada para a velha roca que estava ali no rancho,

em cima do estrado. Era uma lembrança de sua avó portuguesa e talvez a única recordação

de sua mocidade feliz. Casara com Maneco Terra na esperança de ficar para sempre

vivendo em São Paulo. Mas acontecera que o avô de Maneco fora um dos muitos

bandeirantes que haviam trilhado a estrada da serra Geral e entrado nos campos do

Continente, visitando muitas vezes a Colônia do Sacramento. Quando voltava para casa,

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132

tantas maravilhas contava aos filhos sobre aqueles campos do Sul, que Maneco crescera

com a mania de vir um dia para o Rio Grande de São Pedro criar gado e plantar. Antes

dele seu pai, Juca Terra, também cruzara e recruzara o Continente, trazendo tropas. Todos

diziam que o Rio Grande tinha um grande futuro, pois suas terras eram boas e seu clima

salubre.

[...] Maneco era um homem direito, um homem de bem, e nunca a tratara (a esposa)

com brutalidade. Seco, calado e opiniático, isso ele era. Mas quem é que pode fugir ao

gênio que Deus lhe deu ?

3

[...] Maneco Terra e seus filhos viram-lhe nas mãos (do índio Pedro) um punhal

com cabo e bainha de prata lavrada. (objeto que perpassa toda a trilogia, bem como a

tesoura de costura da mão do autor que é representada simbolicamente pela tesoura com a

qual Ana Terra cortará o cordão umbilical dos recém nascidos).

4

[...] No seu português com espanhol, Pedro contou que fugira da redução quando

ainda muito menino e que depois crescera nos acampamentos militares dum lado e doutro

do rio Uruguai; ultimamente acompanhara os soldados da Coroa de Portugal em suas

andanças de guerra; também fizera parte das forças de Rafael Pinto Bandeira e fora dos

primeiros a escalar o forte castelhano de San Martinho...

5

[...] O papel que lhes fora lido, assinado por Pinto Bandeira, podia ser autêntico

mas também podia não ser. (na narrativa, o próprio autor questiona a autenticidade do

documento trazido com o índio, o que remete o leitor para o questionamento da história ou

da História ? )

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133

8

(Neste capítulo, a narrativa se dá pela seqüência de fatos. Os fatos estabelecem o

tempo, é importante salientar que não é uma História serial, e sim uma narrativa de fatos).

Antônio Terra voltou com a carreta de Rio Pardo. [...] Assistira aos festejos de

entrada do Ano Novo, o 1778. [...]Falou com entusiasmo nos uniformes oficiais da Coroa

e louvou o conforto de certas casas assoalhadas de madeira.

(A imigração já havia chegado). [...] Antônio começou a contar das estâncias que

vira, de suas vastas lavouras de trigo, do número de peões e escravos que certos

estancieiros ricos possuíam. Tivera ocasião de beber o excelente vinho feito pelos colonos

açorianos com uva nascida do solo de Rio Pardo!

[...] Pensou no pai, que passara metade da vida a viajar entre São Paulo e o Rio

Grande de São Pedro, sempre às voltas com tropas de mulas, que vendia na feira de

Sorocaba.

[...] Mas, Maneco olhava a arca de couro dentro da qual guardava a carta de posse

da terra que ele, a mulher e os filhos nesse momento pisavam...

[...] - Ora! No momento do aperto eles chamam os paisanos. Quem foi que mais

ajudou a expulsar os castelhanos? Foi Pinto Bandeira. É um oficial de tropa? È um

estancieiro. E assim outros e outros...

[...] Maneco recordava sua última visita a Porto Alegre, ... Maneco ouvira muitas

histórias. Pelo que contavam, todo o Continente vinha sendo aos poucos dividido em

sesmarias. Isso seria muito bom se houvesse justiça e decência. Mas não havia. Em vez de

muitos homens ganharem sesmarias pequenas, poucos homens ganhavam campos demais,

tanta terra que a vista nem alcançava. Tinham lhe explicado que o governo fazia tudo que

os grandes estancieiros pediam porque precisava deles. Como não podia manter no

Continente guarnições muito grandes de soldados profissionais, precisava contar com esses

fazendeiros, aos quais apelava em caso de guerra. Assim, transformados em coronéis e

generais, eles vinham com seus peões e escravos para engrossar o exército da Coroa, que

até pouco tempo era ali no Continente constituído dum único regime de dragões.

[...] Maneco vira também em Porto Alegre as casas de negócios e as oficinas dos

açorianos.

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134

[...] Era verdade que tinha admiração pela habilidade dos açorianos no trato com a

terra e no exercício de certas profissões como a de ferreiro, tanoeiro, carpinteiro, seleiro,

calafate...

11

[...] Pedro (o índio missioneiro) estava ausente, tinha ido com Horácio (irmão de

Ana) levar uma tropa à estância de Cruz Alta do Rio Pardo. E deu-lhe (a Ana Terra) o

punhal de prata que trazia à cinta.

(Observe o punhal como um símbolo já tratado na dissertação).

13

(Antônio) [...] Contou que aquele ano os índios tinham atacado os colonos

açorianos nas vizinhanças da vila: ele vira algumas la vouras devastadas e muitas cruzes

novas no cemitério. Falou também das festas da inauguração da nova Matriz em meados de

1779.

[...] Naquela noite nasceu o filho de Ana Terra. A avó cortou-lhe o cordão umbilical

com a velha tesoura de podar. (Esta tesoura de podar, remete o leitor a associar com a

tesoura que a mãe de Érico Veríssimo, Dona Abegahy, usava para cortar tecidos, pois era

costureira, e esta tesoura a acompanhava, tema igualmente já desenvolvido).

14

[...] Aquele inverno Maneco Terra foi ao Rio Pardo com um dos filhos e voltou de

lá trazendo três escravos de papel passado. Dois deles eram pretos de canela fina, peito

largo e braços musculosos; o outro era retaco, de pernas curtas e um jeito de bugio. No

dia em que eles chegaram Ana foi até o galpão levar-lhes comida. Antônio, que estava

irritado porque o pai apesar de lhe ter aprovado a escolha da noiva aconselhara-o marcar o

casamento para dali a um ano, exclamou ao ver a irmã entrar:

- Vê agora se vai dormir também com um desses negros!

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135

15

[...] De quando em quando chegavam notícias do Rio Pardo pela boca dum

passante. Contaram um dia a Maneco Terra que Rafael Pinto Bandeira tinha sido preso,

acusado de ter desviado os quintos e direitos da Coroa de Portugal e de ter ficado com as

presas apanhadas nos combates de São Martinho e Santa Tecla. Ia ser enviado para o Rio

de Janeiro e submetido a conselho de guerra. Estava no comando o Governador José

Marcelino.

[...] O ano de 1781 trouxera um acontecimento triste para o velho Maneco: Horácio

deixara a fazenda, a contragosto do pai, e fora para o Rio Pardo, onde se casara com a filha

dum tanoeiro e se estabelecera com uma pequena venda. Em compensação nesse mesmo

ano Antônio casou-se com Eulália Moura, filha dum colono açoriano dos arredores do Rio

Pardo, e trouxe a mulher para a estância, indo ambos viver no puxado que tinham feito no

rancho.

[...] Foi em 1786 mesmo ou no ano seguinte que nasceu Rosa, a primeira filha de

Antônio e Eulália ? Bom. A verdade era que a criança tinha nascido pouco ma is de um

ano após o casamento. Dona Henriqueta cortara-lhe o cordão umbilical com a mesma

tesoura de podar com que separara Pedrinho da mãe.

[...] Dona Henriqueta morre. Não teria mais que cozinhar, ficar horas e horas

pedalando na roca, em cima do estrado, fiando, suspirando e cantando as cantigas tristes de

sua mocidade.

[...] Sim, Ana agora ouvia o ruído da roca a rodar, ouvia as batidas do pedal, bem

como nos tempos em que sua mãe ali se ficava a fiar e a cantar.

16

Em princípios de 1789 Maneco Terra realizou o grande sonho de sua vida. Foi a

Rio Pardo, comprou sementes de trigo. Rafael Pinto Bandeira, ouvira dizer no Rio Pardo,

tinha sido absolvido no Rio de Janeiro e voltara de lá com glórias e honrarias. E depois de

ter sido durante alguns anos gover nador do Continente havia casado, na vila do Rio

Grande, com uma dama natural da Colônia de Sacramento.

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136

17

[...] Um tropeiro que passava pela estância, rumo do Rio Pardo, contou-lhes,

alarmado, que um grupo de bandidos castelhanos se encaminhava para ali, saqueando

estâncias, matando gente, violentando mulheres.

[...] Um dia (Ana Terra) surpreendeu o menino a brincar com o punhal de prata.

- Posso ficar com esta faca, mãe?

Ela sorriu e sacudiu a cabeça afirmativamente.

18

(Este capítulo narra o ataque dos castelhanos, não se ousou separar a ficção da

realidade temendo cometer equívocos, tamanha é a cumplicidade da narrativa entre

ambas.)

20

(Ana Terra) [...] Começou a catar em meio dos destroços do rancho as coisas que os

castelhanos haviam deixado intatas: a roca, o crucifixo, a tesoura grande de podar, que

servia para cortar o umbigo de Pedrinho e de Rosa, algumas roupas e dois pratos de pedra.

(Surge, a partir deste capítulo, a Ana Terra com características de heroína, que talvez faça

com que muitos julguem a obra como sendo um romance épico, mas é importante trazer à

tona que o romance épico constitui uma narrativa de aventuras e acontecimentos heróicos

que são relatados pelo narrador, e que, em vários momentos, cede a palavra às

personagens; outra definição aceitável no meio literário é o de se referir a uma narrativa

com ações heróicas.)

21

Na manhã seguinte o sol já estava alto quando as mulheres viram aproximar-se

duas carretas, conduzidas por três homens a cavalo.

[...] - Marciano Bezerra, criado de vosmecês.

[...] - Vamos subir a serra. Já ouviu falar no Coronel Ricardo Amaral?

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[...] - Vosmecê não disse que esse seu parente ia fundar um povoado?

[...] - O Jacuí... (Indício de localização)

(Os viajantes) [...] Aproximaram-se das margens, acamparam, e ali ficaram muitos

dias, porque o Jacuí não dava vau, e os homens tiveram de fazer uma balsa.

(Após muitos dias de viagem) [...] – Estamos entrando nos campos do velho

Amaral!

22

Aquele agrupamento de ranchos ficava à beira duma estrada antiga, por onde em

outros tempos passavam os índios missioneiros que os jesuítas mandavam buscar erva -

mate em Botucaraí. Por ali transitavam também, de raro em raro, pedindo pouso e comida,

viajantes que vinham das bandas de São Martinho ou dos campos de Baixo da Se rra.

[...] Contava-se que o Coronel Amaral nascera em Laguna e viera, ainda muito

moço, para o Continente com paulistas que negociavam com mulas. Chegou, gostou e

ficou. Sentou praça no exército da Coroa e em 1756 tomou parte na batalha de monte

Caibaté, em que as forças portuguesas e espanholas aniquilaram o exército índio dos Sete

Povos das Missões. Contava-se até que fora Ricardo Amaral quem numa escaramuça

derrubara com um pontaço de lança o famoso alferes real Sepé Tiaraju, a respeito do qual

corriam tantas lendas.

[...] Depois da Guerra das Missões, Ricardo saíra a burlequear pelos campos do

Continente, e as más-línguas afirmavam que ele andara metido numas arriadas, assaltando

estâncias e roubando gado por aqueles descampados.

[...] Sempre que havia alguma guerra o comandante militar do Continente apelava

para ele e lá se ia o senhor da estância de Santa Fé, montado no seu cavalo, de espada e

pistolas à cinta, seguido da peonada, dos escravos e dum bando de amigos leais.

Quando os castelhanos invadiram o Continente comandados por Pedro Ceballos,

Ricardo lutara como tenente nas forças portuguesas, tendo tomado parte no ataque

fracassado à cidade do Rio Grande; apesar de ter recebido no peito uma bala, continuara

brigando, protegendo a retirada dos compa nheiros.

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[...] Anos depois, quando Vertiz y Salcedo invadiu de novo o Continente com suas

tropas, Ricardo Amaral e seus homens se juntaram às forças do Tenente-General João

Henrique de Bohm que assaltaram e retomaram a vila do Rio Grande.

[...] Como recompensa pelos serviços, o governo lhe ia dando além de

condecorações, terras. Murmuravam-se histórias a respeito da maneira como ele

conseguira seus muitos campos. A lei não permitia que uma pessoa possuísse mais de três

léguas de sesmarias, mas Ricardo Amaral, seguindo o exemplo astuto de muitos outros

sesmeiros, recebera as suas três léguas e pedira mais sesmarias em nome da esposa, dos

filhos e até de netos que ainda estavam por nascer.

Depois da expulsão dos espanhóis e do Tratado de Santo Ildefonso, Ricardo

retirara-se para a estância e, segundo sua própria expressão: “sossegara o pito”.

[...] - Criação é que é trabalho pra homem. Lavoura é coisa de português.

Falava com certo desdém dos açorianos que vira em Rio Pardo, Porto Alegre e

Viamão, com suas barbichas engraçadas, seus olhos azuis e sua fala esquisita.

[...] Quando um dia o Governador José Marcelino de Figueiredo lhe mandou um

ofício, que Ricardo considerou ofensivo, sua resposta foi pronta, lacônica e altiva: apenas

um bilhete com estas palavras: “Sou potro que não agüenta carona dura de ninguém”.

Casara-se com a filha dum curitibano residente no Rio Pardo.

[...] 1784. Falara-lhe, prosseguiu Ricardo, primeiro nas arbitrariedades de José

Marcelino, o antecessor de Veiga Cabral no governo do Continente.

[...] Ricardo manifestara também a Veiga Cabral suas dúvidas quanto à “Feitoria do

Linho Cânhamo”, que a Coroa criara.

[...] - Então cheguei onde queria. Disse: “General, preciso que o governo me

conceda mais sesmaria para as bandas do poente. Vossa me rcê precisa saber que meus

campos ficam a dois passos do território inimigo. Mais cedo ou mais tarde os castelhanos

nos atacam de novo. E quem é que sofre primeiro? São os povos que estão perto da

fronteira. Preciso ter gente pronta pra brigar”. O homem sacudia a cabeça e estava

impressionado. Vai, então, eu disse: “Para le ser franco, acho que o território das Missões

nos pertence de direito”. Veiga Cabral respondeu que estava tudo muito bem, mas que a

gente não devia se precipitar, pois o Continente ainda não estava para a guerra. “Está bem,

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retruquei, está muito bem, Mas vamos nos preparar”. Fiquei sério, meio que me ergui na

cadeira e falei: “General, preciso de mais terras, pois quanto mais campo eu tiver, de mais

gente precisarei. E quanto mais gente eu tiver, mais soldados terá o Continente no caso de

necessidades”.

[...] O único móvel que possuíam era a velha roca de Dona Henriqueta. Ana

conservava sempre junto de si, à noite, a velha tesoura, pensando assim: Um dia inda ela

vai ter a sua serventia. E teve. Foi quando uma das mulheres da vila deu à luz uma criança

e Ana Terra foi chamada para ajudar. Ao cortar mais um cordão umbilical, viu em

pensamentos a face magra e triste da mãe. Enrolava-se no xale, amarrava um lenço na

cabeça, apanhava a velha te soura e saía.

23

[...] Nos dias que se seguiram todos ali ficaram no temor dum ataque dos coroados,

que tinham sido vistos pelas redondezas em grande número. Avisado disso, o Coronel

Ricardo armara seus homens e saíra à caça dos índios, que fugiram para as bandas de São

Miguel.

[...] De vez em quando ela saía com sua tesoura para cortar algum cordão umbilical.

[...] Exatamente no dia em que Pedro Terra anunciou seu noivado com Arminda

Melo, chegaram ali os primeiros boatos de guerra.

[...] Chegara à sua estância um próprio trazendo um ofício em que o governador do

Continente lhe comunicava que na Europa, Portugal e Espanha estavam em guerra.

[...] Estava recrutando gente, pois Veiga Cabral precisava de muitas forças para

guarnecer as fronteiras. O tordilho escarvava o chão, desinquieto. E em cima do animal o

Coronel Ricardo estava também excitado. Apesar dos setenta anos era um homem

desempenado e forte, e seus olhos brilhavam quando ele falava em guerra.

- Faz muitos anos mesmo que a gente não briga – acrescentou. Já era tempo.

Pediu a Marciano que começasse o recrutamento. Tinha armamento para uns

quarenta homens. Levaria de sua estância vinte escravos e dez peões, e esperava

arregimentar mais uns doze ou quinze soldados ali nos ranchos. Os habita ntes do lugar

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escutaram-no em silêncio. Antes de se retirar, o Coronel Amaral gritou, de cabeça

erguida, como se estivesse falando com Deus:

- O recrutamento é obrigatório. São ordens do governo !

As mulheres então desataram o pranto. (Aproximadamente, em 1798.)

[...] Ana Terra sentiu uma revolta crescer-lhe no peito. Teve ganas de dizer que não

tinha criado filho para morrer na guerra nem para ficar aleijado brigando com os

castelhanos. Guerra era bom para os homens como o Coronel Amaral e outros figurões que

ganhavam como recompensa de seus serviços medalhas e terras, ao passo que os pobres

soldados às vezes nem o soldo recebiam. Quis gritar todas essas coisas mas não gritou.

24

[...] O mensageiro não pôde contar-lhe muito. Deu-lhes notícias gerais e vagas...

Ricardo Amaral e seus soldados estavam com as forças do coronel de cavalaria ligeira

Manuel de Sousa. Tinham invadido o território inimigo e tomado as guardas de São José,

Santo Antônio da Lagoa e Santa Rosa, e estavam agora se fortificando em Cerro Largo.

[...] E Ana Terra ficou sozinha em casa. E quando se punha a fiar, a pedalar a roca,

freqüentemente falava consigo mesmo por longo tempo e acabava concluindo, a sorrir, que

estava ficando caduca.

[...] Olhava para a roca e lembrava -se dos tempos lá na estância, quando a alma de

sua mãe vinha fiar na calada da noite. A roca ali estava, velha e triste, e Ana Terra sentia-

se mais abandonada do que nunca, pois agora nem o fantasma da mãe vinha fazer -lhe

companhia.

[...] Muitas pessoas, velhos e mulheres, aproximaram-se dele e ouviram o homem

contar que um tal Santos Pedrozo com uns vinte soldados derrotara a guarda castelhana de

San Martinho e apoderara-se das Missões.

[...] - Agora todos esses campos até o rio Uruguai são nossos!

[...] No princípio dum novo verão chegou um mensageiro com a notícia de que o

Coronel Ricardo tinha sido morto num combate e que os filhos estariam de volta a Santa

Fé dentro de três meses, com os soldados que tinham “sobrado” da guerra.

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25

Um dia Chico Amaral chegou com seus homens.

[...] Contava-se que o inimigo estava acampado nas proximidades do rio Jaguarão

com cerce de duzentos homens. Marques de Sousa mandou uma divisão dumas duzentas

praças fazer reconhecimento.

[...] Os castelhanos foram completamente derrotados; os que não fugiram

morderam o pó.

[...] Marques de Sousa mais tarde declarou que aquela vitória do Passo dos Perdizes

tinha sido decisiva. Assim os castelhanos perderam Rio Pardo, Batovi, Taquarembó, Santa

Tecla. Mas contava-se também que na Europa, Portugal e Espanha tinham feito as pazes, e

que no Continente tudo continuaria como estava. 1803.

[...] O General Veiga Cabral morrera havia uns dois anos, fora substituído por um

brigadeiro, que governara apenas quatorze meses, e agora quem estava na comandância do

Continente era o Chefe-de-Esquadra Silva Gama.

[...] - Queixou-se do abandono em que vive o Continente, continuou o estancieiro, e

de que não pode fazer nada sem consultar o Rio. Assim as coisas ficam mui demoradas e

difíceis. O remédio me disse ele , é tomas as iniciativas sem consultar.

[...] Chico Amaral mostrava-se satisfeito pela maneira com que fora recebido. O

governador concedera-lhe as três léguas de sesmaria que ele requerera e, quando lhe

contara de seus projetos de fundar um povoado, Silva Gomes lhe dissera: “Faça uma

petição ao comandante das Missões. Eu vou recomendar-lhe que a despache

favoravelmente”.

Foi assim que um dia, alguns meses depois, o novo senhor de Santa Fé chegou a

cavalo e, bem como fazia o pai, postou-se debaixo da figueira, chamou os moradores dos

ranchos e contou-lhes que o administrador da redução de São João lhe mandara um ofício

concedendo o terreno necessário para a edificação do povoado.

[...] E quando a capela ficou pronta, foi ela dedicada a Nossa Senhora da

Conceição, veio um padre de Santo Ângelo e disse a primeira missa. E o major mandou

comprar nas Missões, a peso de ouro, uma imagem da padroeira do povoado.

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[...] Tropeiros que vinham de Sorocaba comprar mulas nas redondezas, gostavam

do lugar e iam ficando por ali. E o nome de Santa Fé começou a ser conhecido em todo o

município do Rio Pardo e fora dele.

Em princípios de 1804 Chico Amaral fundou uma charqueada e comprou mais um

lote de escravos. Nesse mesmo ano, numa noite morna de março, nasceu o primeiro filho

de Pedro e Arminda Terra. Era um menino e deram-lhe o nome de Juvenal.

[...] No inverno de 1806 Ana ajudou a trazer para o mundo seu segundo neto, uma

menina que recebeu o nome de Bibiana.

[...] Bibiana já tinha quase três anos quando certo dia um trope iro chegado do Rio

Pardo contou a Pedro que havia grandes novidades no Rio de Janeiro. A rainha e o príncipe

regente tinham fugido de Portugal porque esse país havia sido invadido pelos franceses...

ou ingleses, ele não sabia ao certo; mas a verdade era que a família real já estava no Brasil.

No Rio Pardo todos achavam que as coisas iam mudar para melhor.

O Major Amaral agora dava audiências no seu sobrado às gentes do lugar que lhe

iam levar seus problemas ou pedir-lhe conselhos.

Duma feita, Pedro ouviu o senhor de Santa Fé conversar, indignado, com um

estancieiro de Viamão que lhe viera comprar uma tropa.

- Assim não é possível! dizia ele, caminhando dum lado para outro na sala. Nosso

charque só pode ser vendido no Rio de Janeiro a setecentos réis a arroba e o charque dos

castelhanos chega lá por quatrocentos. Isso tem cabimento? Me diga, tem?

O visitante limitava-se a sacudir a cabeça e a murmurar:

- São dessas coisas, major, são dessas coisas...

- E a todas essas, o preço do nosso gado na tablada vai baixando.

O viamonense começou a picar fumo reflexivamente. Depois, com sua voz calma,

perguntou:

- E no que deu aquele pedido que fizeram ao governo pra proibir a entrada do

charque castelhano?

- Deu em nada! Está claro que o governo tem interesse no caso, pois não quer

perder o imposto de importação.

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- É o diabo... E agora ainda inventaram esse imposto de trezentos e vinte réis por

cabeça de rês abatida...

Chico Amaral cuspiu no chão.

- Eu só quero ver como é que eles vão arrecadar. Eu só quero ver...

- É o diabo...

- Os castelhanos têm tudo que querem, fácil e ligeiro. Nós temos que depender das

ordens do Rio. De nada nos adiantou elevarem o Rio Grande a capitania. Não vai adiantar

nada também a gente ter a Corte no Rio de Janeiro. Vamos continuar aqui embaixo

abandonados e esquecidos como sempre. Mas na hora do aperto eles vêm com esses

pedidos de auxílio, porque o país está mal, porque isto e porque aquilo. Vosmecê se

lembra da arrecadação de donativos que fizeram em 1805? Foi o mesmo que pedir

esmolas a particulares. Onde se viu?

- É o diabo... murmurou de novo o visitante, enrolando o cigarro.

- E na hora de pegar no pau furado, na hora de brigar com os castelhanos a Corte

apela é para nós.

Parado junto da porta sem coragem de entrar, Pedro escutava o estancieiro, com os

olhos fitos em suas botas embarradas.

Chico Amaral, que agora mascava com fúria um naco de fumo, começou a falar no

problema do contrabando. Silva Gomes fizera o possível para acabar com aquele abuso

mas não conseguira na da. Os contrabandistas traziam negros das colônias portuguesas da

África, tiravam guias para a Capitania do Rio Grande, mas na verdade seguiam viagem

para Montevidéu e Buenos Aires, onde trocavam os pretos por charque, trigo, couro e sebo

e iam depois vendes estas mercadorias em outros pontos do Brasil, como se elas tivessem

sido produzidas no Rio Grande.

[...] Foi no ano de 1811. Contava -se que na Banda Oriental havia barulho, porque

os platinos queriam se ver livres da Espanha. Quem é que ia entender aque la confusão?

Diziam também que Dom Diogo de Sousa, o comandante das forças portuguesas na

Capitania do Rio Grande, estava acampado em Bagé com seus exércitos.

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[...] Dom Diogo de Souza apelava para o Major Francisco Amaral, pedindo-lhe que

se reunisse o quanto antes com seus homens às forças portuguesas que iam invadir a Banda

Oriental.

Assim termina a História Ana Terra , que se colocou como objeto desta pesquisa.

Prossegue-se com a análise de aspectos que ainda se julga importante salientar.

Ana Terra é um dos capítulos e parte publicada separadamente mais consagrada de

Érico Veríssimo quando se fala de O Tempo e o Vento. Não há um só estilo ou enfoque

narrativo ao longo das linhas que se copiou ipsis literis da obra. Há múltiplas enredos

correspondentes à História de formação do Rio Grande do Sul.

O leitor-historiador, poderá encontrar subsídios no Anexo 4 , onde há um quadro

com fatos / acontecimentos em correlação ocorridos na História do Rio Grande do Sul em

Ana Terra , no mundo, no Brasil, e em terra sul-rio-grandense. Aceita-se que a diferença

seja o tom da narrativa, mas os fatos / acontecimentos são os mesmos e os protagonistas

são estereótipos, provavelmente de antepassados do escritor e desta autora, que ora registra

este estudo.

A consagração popular e crítica da obra, nacional e internacionalmente, pois nem se

contabilizou as tantas traduções que O Tempo e o Vento já teve, combinada com o espaço

histórico gaúcho nela retratado leva a ser considerado uma reafirmação, vale dizer, uma

legitimação de instituições de uma cultura.

Cumprindo-se o objetivo desta pesquisa evitou-se o termo ‘estória’, no sentido de

relato ficcional, como possível forma diferenciada de ‘história’, no sentido de relato

verídico, dada a fusão da História, grafada propositadamente com inicial maiúscula,

denotando a versão oficial e aceitando a ótica de Érico Veríssimo como verdadeira. Não

que Ana Terra seja a única História do Rio Grande do Sul, mas faz parte dos documentos

desta história.

Recapitulando alguns pontos destacados, analisa -se o questionamento da História

dos historiadores e a História do escritor, e paralelamente se reflete se esta não é uma

mímese aristotélica e se não é a mesma História ?

O interesse em legalizar e legitimar a História, no sentido de valorizar o sexo

feminino, manifesta -se na cultura ocidental moderna em forma de narrativa, a qual

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estabelece relações de prioridade e posterioridade entre dados específicos. Numa análise

social, observa -se que, enquanto as mulheres da obra Ana Terra testemunham a injustiça

constante do meio sócio -político dominante, ao mesmo tempo elas subvertem a suposta

grandeza das ações deliberadas apenas aos homens, favorecendo os valores mais ligados à

vida familiar.

O pai de Ana Terra constitui-se no primeiro personagem da família na narrativa em

termos cronológico. Maneco Terra representa qualidades que contrastam quase por

completo com a personalidade dos patriarcas:

Maneco era um homem direito, um homem de bem, e nunca tratara (a esposa) com brutalidade. Seco, calado e opiniático, isso ele era. Mas quem é que pode fugir do gênio que Deus lhe deu ? (Cf. citação acima cap. 2)

Ele levou a família para o Continente do Rio Grande de São Pedro para construir

um novo lar e plantar trigo. Evitando qualquer envolvimento político ou aventureiro,

“Maneco Terra era um homem que falava pouco e trabalhava demais”

Quando aparece um “herói da pátria”, a personagem histórica Major Rafael Pinto

Bandeira, um dos filhos fica animado com a idéia de ir à guerra com as tropas de Bandeir a.

Em resposta, Maneco mostra um código de valores que diferencia daquele personificado

por Bandeira.

- Não criei filho pra andar dando tiro por aí. O melhor é vosmecê ficar aqui agarrado ao cabo duma enxada. Isso é que é trabalho de homem. ( Cf. citação acima cap. 1).

Ao mesmo tempo Maneco desmente a imagem do major como um patriota:

- Patriota ? Ele está é defendendo as estâncias que tem. O que quer é retomar suas terras que os castelhanos invadiram. Pátria é a casa da gente. (Cf. citação acima cap. 1).

Com estas declarações, Érico Veríssimo estabelece o questionamento da versão da

História registrada nos livros ‘oficiais’, a História apoiada e mantida pelos governos e o

status quo. Em vez de idolatrar o chamado herói, as declarações que o autor põ e na boca

da personagem desmitificam o papel de Bandeira no desenvolvimento histórico do estado,

revelando motivos menos nobres da atividade militar deste. Colocado como quem

simplesmente luta por seu próprio benefício, arriscando a vidas de muitos outros , Bandeira

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perde a grandeza. Ao mesmo tempo, o escritor faz de Maneco um indivíduo mais sensato

por perceber a realidade e evitar a perda do filho.

Encontra-se desde o início da narrativa, e ao longo dela, diversos exemplos de

diferença de classe social. Seguindo a História do Brasil, os capítulos de O Tempo e o

Vento correspondentes às épocas de escravidão no país incluem uma presença significativa

de indivíduos escravizados, para complementar o que se diz. O Anexo 3 informa sobre a

relação dos capítulos de toda trilogia O Tempo e o Vento e a data histórica da narrativa do

mesmo. No espaço do rancho de Maneco Terra, o autor introduz três escravos comprados

pelo pai de Ana Terra para servir de mão-de-obra agrícola. Este primeiro aparecimento

indica a importância da escravidão no Rio Grande do Sul.

É também nesta primeira menção no texto de escravos africanos que surge a

indicação de racismo contra os negros. Antônio, irmão de Ana, em uma referência ao

filho ‘ilegítimo’ dela, exclama: - ‘Vê agora se vai dormir também com um desses

negros!’ (Cf. citação acima cap. 14). A conotação desta declaração é da baixeza que seria

tal ato, aos olhos de Antônio. Estes escravos trabalham lado a lado com a família Terra, e

morrem juntos com os homens branc os ao massacre que termina este momento inicial da

trajetória da família Terra na História. Porém, fiel à intenção mimética aristotélica, o

autor ressalta a divisão sócio-racial da época descrita.

Outra observação que cumpre destacar é o forte símbolo representado pelo punhal

que apareceu no primeiro capítulo do primeiro volume da trilogia como pertencendo ao

índio Pedro Missioneiro, mas que anteriormente era de um padre espanhol que ia usá-la

para matar o marido de sua amante antes de assumir a vocação religiosa. Além do

simbolismo violento inerente em qualquer tipo de faca, este objeto passa a representar a

violência da traição que perdurará até o final da trilogia, duzentos anos de História.

CHAVES, em relação à qualidade da História destaca que o autor teve a ‘intenção

de problematizar a História’ (1981, p. 75). Érico Veríssimo explica em Solo de Clarineta

sua mudança de perspectiva histórica e seu objetivo em escrever O Tempo e o Vento a qual

foi parafraseada na biografia do autor.

Nossos livros escolares [...] nunca nos fizeram amar ou admirar o Rio Grande e sua gente. Redigidos em estilo pobre e incolor de relatório municipal, eles nos apresentavam a História do nosso Estado como uma sucessão aborrecível de nomes de heróis e batalhas entre tropas brasileiras e castelhanas. Ganhávamos todas.

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[...] Parece incrível, mas só depois de adulto é que vim a descobrir que Rafael Pinto Bandeira [...] era na realidade um mirífico aventureiro, cujas façanhas guerreiras e amorosas nada ficavam a dever em brilho, audácia e colorido às dos mais famosos espadachins da ficção universal. Concluí então que a verdade sobre o passado do Rio grande devia ser mais viva e bela que a sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidade de desmitificá-la. (VERÍSSIMO: 1973, p. 289).

O autor enfrenta a tarefa reconstruindo toda uma cultura e seu desenvolvimento,

incluindo elementos descritivos do ‘herói’, mas enfatizando imagens alternativas mais

valorizados no texto. Este processo narrativo mostra as outras Histórias que não entraram

naqueles livros escolares. E será que as distinções de classes sociais entram nas

‘Histórias’ dos livros didáticos de hoje ? Deixa-se em aberto para um próximo trabalho de

pesquisa.

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CONCLUSÃO

A temática da relação entre História e Literatura, sob a perspectiva de documento,

imaginário e simbólico foi ricamente examinada por muitos pesquisadores, não só na área

historiográfica como literária, mas também filosófica, antropológica, sociológica, entre

outras.

O que se expôs neste estudo é uma construção, vale dizer, um enquadramento de

conceitos, visando o objetivo de articular a Literatura como um documento oficial, tão

válido quanto outros utilizados pelo historiador, para a histor iografia.

A Literatura revisada revelou que as concepções sobre conceitos específicos

abordados: documento, imaginário, representação e simbólico, acompanham o momento

histórico dos autores de tais concepções, mas que todos deixam transparecer em suas

teor ias a mímese aristotélica defendida pelo filósofo, Aristóteles, no século IV a.C.

A partir deste enfoque infere-se que na elaboração de uma obra literária, o mundo

real é sempre tomado como ponto de partida. Por mais fecunda que seja a imaginação de

um autor, é quase de todo impossível criar alguma coisa que não tenha amarras com as

experiências já vividas, vistas ou conhecidas. Mesmo quando essas amarras permanecem

subentendidas na massa da fantasia, elas existem.

Na literatura verissiana a História repousa em três elementos básicos: a vida do

autor, a realidade da narrativa e a realidade histórica vivida. O cotidiano vivido pelo

autor, constiuído pelas características essenciais da sociedade da qual participava, está

sempre presente. Todavia, essa realidade não é aproveitada na íntegra, com toda a crueza

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e o prozaico do dia a dia, e sim, filtrada, para apresentar uma visão da sociedade de acordo

com o que julga que a História oficial omite.

O imaginário que aflora nos mais diferentes tipos de discursos é um elemento

revelador de sentidos, de identidades, de coerências ou incoerências, se o autor pensar que

o mundo em que vive assim o é. Segundo as leituras realizadas como metodologia para

desenvolver este estudo, não se pode separar os agentes de seus atos, as representações de

suas imagens de si e do outro, que, de fato, definem comportamentos, inculcam valores,

atribuem méritos, corroboram ou condenam atitudes e decisões.

O imaginário trabalha um horizonte psíquico habitado por representações e imagens

canalizadoras de afetos, desejos, emoções, esperanças, o próprio tecido social é tramado

pelo imaginário, reproduzindo a tessitura do fio que os engendrou. O imaginário seria

condição de possibilidade da realidade instituída, solo sobre o qual se in staura e

instrumento de sua transformação.

Para Aristóteles, era evidente que o grau máximo de realidade está em se perceber

ou sentir com os sentidos a natureza na qual o homem interage. O filósofo chama a

atenção para o fato de que não existe nada na consciência que já não tenha sido

experimentado antes pelos sentidos e que todas as idéias e pensamentos entram na

consciência, através do que se vê e se ouve.

As imagens são, igualmente como acima, enunciados produzidos pelas formações

discursivas, e as s ignificações homogêneas se concretizam nas práticas sociais. O processo

de significação se faz historicamente, produzindo a institucionalização do sentido

dominante. Dessa decorre a legitimidade e o sentido legitimado fixa-se então como centro:

o sentido oficial, literal. Deste modo, para Aristóteles, toda mudança observada na

natureza é de uma possibilidade mimética para uma realidade.

O imaginário opera, portanto, em dois registros: o da paráfrase, a repetição do

mesmo sob outro revestimento; e o da polissemia, na criação de novos sentidos, de um

deslocamento de perspectivas que permite a implantação de novas práticas. Assim, o

imaginário, em suas duas vertentes, reforça os sistemas vigentes / instituídos e ao mesmo

tempo atua como poderosa corrente transformadora. Esta é uma conclusão vista e revista

por historiadores citados neste estudo.

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Os símbolos e sua manipulação literária são, assim, inseparáveis da produção do

imaginário social, povoado de energias afetivas, igualmente inseparáveis do assentamento

dos intrincados desenhos que constituem a definição dos poderes em qualquer sociedade.

O século XX lançou novos olhares e novas abordagens referentes ao sentido de um

olhar no processo de contemplação do real ou de sua aparência, do seu simbólico. Está-se

reafirmando a possibilidade de novos objetos como documento, por exemplo, a Literatura.

A História é, por excelência, uma narrativa de conhecimentos divulgada pelo

historiador, mas não por ele. O fato / acontecimento pode apresentar novas dimensões em

que o presente projeta esclarecimentos sobre o passado. A pertinência do estudo

historiográfico está na sua proposta de pesquisa, mesmo quando se trata de microtemas, de

fragmentos, de narrativas ou de um novo documento: a Literatura.

De tudo o que já se expôs, com o propósito de enquadramento e reflexão, reforça -se

algumas premissas: a de que a História literária prende-se, então, à História Cultural

porque ela é uma História dos objetos de cultura, do imaginário e do simbólico. Ela pode

incorporar as aquisições e as lições do curso seguido pela História e enriquecer o que lhe

vem de sua tradição, através dos questionamentos mais recentes na análise dos discursos,

ou pelas colocações em perspectiva de uma estética de recepção, e a outra premissa é: o

modo como um indivíduo ou um grupo se apropria de uma forma cultural são mais

importantes do que a distribuição estatística desse motivo ou dessa forma.

Os historiadores acrescentam uma nova visão, ao pensarem as relações entre as

obras literárias e a sociedade, apresentam uma acepção do representativo não fundada na

quantidade por reflexão ou tradução, o que significa afirmar a sua independência face ao

social, e colocar essa relação em termos de semelhanças estruturais ou de correspondências

globa is.

Quando os documentos o permitem, é inteiramente lícito apreender, como um

homem comum pode pensar e utilizar os elementos intelectuais esparsos que, através dos

seus livros e da leitura que deles faz, lhe advêm de uma cultura letrada.

A representação do consumo cultural se opõe à representação intelectual, pois o

historiador reintroduz, a maior parte das vezes, o seu próprio consumo e eleva -o sem ter

exata consciência disso, é a categoria universal de interpretação.

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Restituir essa historicidade exige em primeiro lugar que o consumo cultural ou

intelectual seja tomado como uma produção, que evidentemente não fabrica nenhum

objeto, mas constitui representações que nunca são idênticas às que o produtor, o autor ou

o artista, investiram na sua obra, mas há uma verossimilhança. Anular o corte entre

produzir e o consumir é afirmar que a obra só adquire sentido através da diversidade de

interpretações que constróem as suas significações.

É necessário lembrar que todo texto é produto de uma leitura, é uma construção do

seu leitor. Combinar os seus fragmentos e criar o ‘desconhecido’ permite uma pluralidade

indefinida de significados. Os textos são espaços abertos a múltiplas leituras, aqui a

escrita, ela própria, é a leitura de uma outra escrita, que se situa no cruzamento de uma

intenção, a dos produtores de textos, com uma leitura, a do seu público. É o que se prega

na mímese, um empírico deriva todo o seu conhecimento do mundo daquilo que lhe dizem

os seus sentidos. A formulação clássica de uma postura empírica vem de Aristóteles, para

quem nada há na mente que já não tenha passado pelos sentidos.

Observa-se que o essencial já não está em distinguir os graus de realidade em uma

narrativa histórica ou literária do imaginário, mas em compreender como a articulação dos

regimes de prática e das séries de discursos produz o que é lícito designar como realidade.

Para isso acontecer é necessário reconhecer o inverso, isto é, a plena pertença do fato /

acontecimento da História, em todas as suas formas, mesmo as mais estruturais, ao

domínio da narrativa.

Toda a escrita propriamente histórica constrói-se a partir do relato ou da encenação

em forma de intriga. A História é sempre relato, mesmo quando pretende desfazer -se da

narrativa, e o seu modo de compreensão permanece tributário dos procedimentos e

operações que asseguram a encenação em forma de intriga das ações apresentadas.

A oposição que pretende pôr em contraste as explicações sem relato e os relatos

sem explicações têm uma compreensão histórico construída no e pelo relato, pelos seus

ordenamentos e pelas suas composições.

A História singulariza-se por manter uma relação específica com a ‘verdade’, ou

antes, pelas suas construções narrativas reconstituírem um passado que existiu. Esta

referência a uma realidade situada fora e antes do texto histórico, e que este tem por função

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reconstituir à suas maneira, não foi dispensada por nenhuma das formas do conhecimento

histórico, melhor ainda, ela é aquilo que constitui a História na sua diferença mantida com

o real e o irreal. Daí, uma mudança de critérios de identificação dos modos de discursos

narrativos.

De posse das idéias acima, Ana Terra, reflete, dentro do possível, o mundo

histórico-social de Érico Veríssimo, seu autor, em 1949, período que produzia a obra. Vê-

se, portanto, que a sua interpretação da História gaúcha não é só ficção, mas é produto da

posição social do seu autor na sociedade brasileira. O escritor metaforiza a necessidade de

prender a ficção na vida real. Após tantas le ituras feitas, pode-se dizer que Érico

Veríssimo faz uma releitura da História da Província de São Pedro, recuperando as

opiniões díspares de historiadores e estudiosos que refletem as sobre as dimensões do fazer

da História e as possibilidades de utilização da Literatura como fonte para a História.

A obra Ana Terra , de Érico Veríssimo, foi uma opção para análise, tendo em vista

que há muito tempo já a percebia como um documento sobre a História da formação do

Rio Grande do Sul.

Por mais ambíguo que seja o conceito de mímese, de acordo com alguns

historiadores selecionados para se citar no corpus deste estudo, a mímese aristotélica

continua testemunhando a História.

O leitor de Ana Terra se afasta da possibilidade de ser um alienado da História,

porque a obra garante seu estatuto de documento pelo horizonte de expectativa que abre ao

leitor e ao mesmo tempo prende. Constata -se que na ficção, tida como alienada,

justamente por ser imaginário não respaldado em documentos, sempre terá em si uma

História implícita.

Aristóteles entendia que um fato / acontecimento reproduzido pela verossimilhança

na Literatura era a logicidade que autenticava a mímese na História. A reinterpretação que

se faz neste momento permite fundamentar a produção de Ana Terra. Érico Veríssimo

conquistou a credibilidade de leitores nacionais e internacionais justamente por desnortear

uma História que não era contada por todos ou por qualquer um.

Ao longo dos três capítulos, acentuou-se o entrelaçamento da História com a

Literatura em um processo dinâmico que envolve duas obviedades: a consciência de que

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quase nunca possuir-se-á todos os testemunhos do passado, portanto, as respostas serão

sempre limitadas, as dúvidas temporárias e as certezas provisórias, e a segunda idéia óbvia

é a clareza de entendimento de que a História igualmente estuda imaginários, pois também

se constrói com eles, mas exige muita atenção para o fato de que História e imaginário não

se equivalem na sua totalidade.

A obra Ana Terra é gerada com a intenção de uma saga familiar do próprio autor

com o intuito de resgatar o passado sul-rio-grandense. Para despistar esta intenção

apoiou-se em imagens simbólicas que permitidas pela mímese aristotélica podem ser

perfeitamente utilizadas. O motivo que o conduziu a um despistar foi, segundo tudo o

que se pesquisou, a censura política do período ditatorial pelo qual passou o Brasil na

época em que Érico Veríssimo escreveu a obra, aproximadamente no ano de 1949 ou

imediatamente antes deste. Se escrevesse abertamente o que pensava talvez ele ou a

própria família sofresse algum tipo de repreensão, ou na pior das hipóteses, a violência

física. E isto jamais seria permitido pelo escritor, como homem, pai de família, então

precisava preservar seus entes queridos. E assim o fez através da mímese aristotélica.

Historiadores contemporâneos preenchem as lacunas da História, na ausência de

dados documentais, usando a mímese, bem como o fez o literato com o imaginário e o

simbólico.

Todas essas direções, imbricadas em narrativas, convergem para o simbólico, que

só pode ser compreendido no contexto da História. Uma das propostas de Érico

Veríssimo, e como alternativa à historiografia oficial era permitir que os vencidos, que não

tiveram a vez de se pronunciar, de vido a uma estrutura de desigualdades sociais, agora

receberam este direito a fim de chegar à História não contada, a qual enganosamente, em

forma de romance teve a liberdade de poder constituir até a mímese da vida do autor da

História do Rio Grande do Sul.

Para finalizar, toma-se emprestado o embasamento teórico de Aristóteles, aplicando

a mímese: ao tomar o termo imaginário em seu sentido mais forte, a intenção simbólica é

certamente o aspecto dominante da criação artística.

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A N E X O S

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ANEXO 1 - Origens familiares de Érico Veríssimo

Manoel Veríssimo da Fonseca emigrou de Portugal para o Brasil em 1810. Casou-

se com Maria Quitéria da Conceição, natural de Ouro Preto / MG. Do tronco materno,

também de origem portuguesa não se encontrou dados precisos, apenas breves

apontamentos no sentido de ser descendente de tropeiros de Sorocaba / SP.

O filho do primeiro casal citado, Domingos Veríssimo da Fonseca casou-se com

Marianna Annes da Fonseca, dos quais não se conseguiram dados.

Dos oito filhos que tiveram, para essa genealogia interessa Franklim Veríssimo da

Fonseca (*1858 +1918). Este senhor foi estancieiro, dentista e médico homeopata, apesar

de não ter terminado o curso ginasial. Casou-se com Adriana Pilar de Melo na cidade de

Cruz Alta / RS. Esta família construiu o Sobrado, nome dado para uma casa grande nesta

época. Sobre o Sobrado há muitos detalhes na trilogia O Tempo e o Vento e na obra Solo

de Clarineta volume 1, que trata das memórias do escritor.

Um dos filhos deste casal, Sebastião Veríssimo da Fonseca (*? +1935), foi

farmacêutico obrigado pelo pai. Casou-se com Abegahy Lopes Veríssimo, que tinha como

qualidade ser excelente costureira. Abegahy era filha do estancieiro Aníbal Lopes da

Silva, natural de São Borja / RS. Foi tropeiro que levava tropas para o Paraná, Argentina e

Paraguai. Sua esposa, Maurícia Leite de Moraes era filha de um bandeirante paulista. O

Sebastião e Abegahy tiveram dois filhos: Érico e Ênio Veríssimo.

Érico Lopes Veríssimo (*1905 +1975) nasceu em Cruz Alta. Segundo ele mesmo,

o que melhor soube fazer em toda a sua vida foi ‘contar histórias’. Casou-se com D.

Mafalda Halfen Volpe, filha de Vicente Volpe, viajante e Ema Halfen Volpe, todos

residentes em Cruz Alta. Érico e D. Mafalda, hoje residente em Porto Alegre / RS,

tiveram dois filhos: Clarissa Veríssimo casada com um senhor norte-americano, David

Jappe, com quem tem três filhos: Mike, Paul e Ed. Esta família reside nos Estados Unidos.

E, Luís Fernando Veríssimo casado com D. Lúcia Helena Maria Veríssimo, com quem

também tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro. Todos residentes em Porto Alegre.

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ANEXO 2 - Érico Veríssimo no contexto modernista

Notas para o leitor:

Não há concordância em muitos dos vocábulos que se usou para formar este anexo.

Por exemplo, alguns literatos classificam os movimentos literários como escolas, como

período, como movimentos, etc. Há outros que classificam as vertentes como fases,

como tendências, etc. E ainda outros que não fazem classificaçõ es, apenas agrupam

autores e obras por características comuns, entre outras possibilidades. Note que se usa

várias vezes reticências ou o termo ‘entre outros’, pois não é objetivo citar todos autores,

nem todas as obras e sim apenas situar o leitor no universo literário e histórico.

O movimento literário: Modernismo, ocorrido em 1922, com a Semana de Arte

Moderna, em São Paulo, caracterizou-se por três vertentes literárias, vale dizer, direções

distintas provocadas pelo próprio movimento:

1ª vertente: experimentalismo formal: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, entre

outros. Érico Veríssimo acompanhou o movimento através da imprensa, em Cruz Alta /

RS, com aproximadamente 17 anos.

2ª vertente: estágios psicológicos: Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, entre outros.

Nesta fase Érico Veríssimo escreveu romances sobre o cotidiano urbano, apresenta pouca

identificação com as obras dos modernistas do centro do país: Fantoches, Clarissa,

Caminhos Cruzados, Música ao Longe...

3ª vertente: universos regionalistas : Graciliano Ramos, José Lins do Rego,

Rachel de Queiroz, entre outros. Esses autores produzem uma literatura de caráter mais

construtivo, de maturidade, aproveitando as conquistas da geração de 1922 e sua prosa

inovadora. Neste período, Érico Veríssimo marcou presença com temáticas que abordam

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o regionalismo, conceituado no capítulo dois deste estudo, apresentando a trilogia O

Tempo e o Vento, no qual se destaca o volume Ana Terra

Na década de 30, o país sofria efeitos de uma crise, passava por grandes

transformações, fortemente marcadas pela Revolução de 30 e pelo questionamento das

oligarquias tradicionais. Não havia como não sentir os efeitos da crise econômica mundial,

os choques ideológicos que levavam a posições mais definidas e engajadas. Tudo isso,

formou um campo propício ao desenvolvimento de um romance caracterizado pela

denúncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo um elevado grau

de tensão nas relações do indivíduo com o mundo.

Nessa busca do homem brasileiro "espalhado nos mais distantes recantos de nossa

terra", no dizer de José Lins do Rego, o regionalismo ganha uma importância até então não

alcançada na literatura brasileira, levando ao extremo as relações do personagem com o

meio natural e social.

4ª vertente: questões socias, políticas, entre outras do mundo contemporâneo:

Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, Fernando

Sabino... Nesta vertente, Érico Veríssimo questiona em suas obras, sutilmente, a

participação social e política do leitor: O Senhor Embaixador, O Prisioneiro, Incidente em

Antares...

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ANEXO 3 - Ana Terra na trilogia O Tempo e o Vento

Relação dos capítulos que compõem a trilogia O Tempo e o Vento com a época que

representa, a fim de se situa r nestas duas mil, duzentos e quarenta e sete páginas, onde se

encontra Ana Terra.

Notas para o leitor:

Este levantamento de datas e edições foi feito pela autora deste estudo ao longo do

período de pesquisa. O momento histórico de O Tempo e o Vento aparece coberto pela

data de cada capítulo, o número de edições em que se encontram em 2002 e o ano das

últimas edições. Sempre se teve em mente que não se tem a verdade absoluta, portanto se

admite novas possibilidades de datas. Há inúmeras pesquisas sobre Érico Veríssimo,

sendo um grande número de qualidade ímpar, o caráter de novidade está aberto à

discussões.

O Tempo e o Vento

O Continente I O Sobrado I 1895

34ª ed. - 1997 A Fonte ............................................ 1745 – 1756

O Sobrado II .................................... 1895, 25/06 madrug.

Ana Terra ....................................... 1777-1811

O Sobrado III ................................... 1895, 25/06 tarde

Um certo Capitão Rodrigo ...............1828-1836

O Sobrado IV ................................... 1895, 25/06 noite

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O Continente II A Teiniaguá ..................................... 1850-1855

27ª ed. - 1995 O Sobrado V .................................... 1895, 25/06 manhã

A Guerra .......................................... 1869-1870

O Sobrado VI ................................... 1895, 26/06 noite

Ismália Caré ..................................... 1884

O Sobrado VII .................................. 1895, 27/06 manhã

O Retrato I Rosa-dos-Ventos .............................. 1945

24ª ed. - 1997 Chantecler ........................................ 1899-1910

O Retrato II Chantecler (continuação) ................. 1899-1910

21ª ed. 1995 A Sombra do Anjo ........................... 1914-1915

Uma Vela pro Negrinho ................... 1945

O Arquipélago I Reunião de Família I ........................ 1945, 27/11

19ª ed. - 1997 Caderno de Pauta Simples ............... 1945

O Deputado ..................................... 1922

Reunião de Família II ...................... 1945, 27/11

Caderno de Pauta Simples ............... 1945

Lenço Encarnado ............................. 1923

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O Arquipélago II Lenço Encarnado (continuação) ...... 1923

18ª ed. - 1997 Reunião de Família III ..................... 1945, 30/11

Caderno de Pauta Simples ............... 1945

Um Certo Major Toríbio ................. 1927

Reunião de Família IV .................... 1945, 01/12

Caderno de Pauta Simples .............. 1945

O Cavalo e o Obelisco .................... 1930

Reunião de Família V ...................... 1945, 14/12

O Arquipélago III Caderno de Pauta Simples ............... 1945

19ª ed. - 1997 Noite de Ano Bom ........................... 1937

Reunião de Família VI ..................... 1945, 16/11

Caderno de Pauta Simples ............... 1945

Do Diário de Sílvia .......................... 1941/1943

Encruzilhada .................................... 1945, 18/12 – 31/12

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ANEXO 4 - Ana Terra no tempo:

ocorrências de ordem mundial, brasileira e sul-riograndense (1777-1811)

Painel de fatos / acontecimentos em correspondência no Mundo Ocidental, Brasil, Rio Grande do Sul com os apresentados em Ana

Terra , sendo que estes aparecem no início do painel.

DATA ANA TERRA MUNDO BRASIL RIO GRANDE DO SUL

1777 Ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente.

Tratado de Santo Ildefonso: em suas cláusulas estipula-se que a Espanha fique com a Colônia do Sacramento e Sete Povos das Missões, devolveria terras que havia nos atuais estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Tratado de Santo Ildefonso: Missões Orientais do Uruguai, Sacramento, Ilha São Gabriel e Sete Povos passam aos espanhóis; Cevallos devolve Santa Catarina e o Rio Grande para os portugueses.

Instituem-se os campos neutrais, entre as lagoas Mangueira, Mirim e costa marítima; mercantilização da economia gaúcha, produz-se charque e trigo, mão-de-obra escrava; sesmarias ao sul.

Campos neutrais se transformam em estâncias de gado atendendo às charqueadas, são ocupados por portugueses.

1778

Brigadeiro José Marcelino de Figueiredo – Governador da Capitania desde 1773 até 1780.

Portos: Montevidéu e Buenos Aires fazem livre comércio.

Brigadeiro José Marcelino de Figueiredo – Governador da Capitania desde 1773 até 1780.

1779 Índios atacam colonos açorianos, comercializa-se escravos.

1780 Sebastião Xavier da Veiga Cabral Camara, governador: concede sesmarias.

Construção da charqueada por José Pinto, no Arroio Pelotas, próximo a Rio Grande.

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1781 Rafael Pinto Bandeira é preso por desvio de quintos da Coroa Portuguesa.

1783 Chegam famílias de escravos do RJ à Real Feitoria do Linho Cânhamo.

1784 Demarcação de novas fronteiras no Rio Grande.

1787 Governador José Marcelino Figueiredo: arbitrariedades na Feitoria.

Promulgada a Constituição dos Estados Unidos.

1789 Rafael Pinto Bandeira é absolvido e volta ao RS como herói.

Revolução Francesa; queda da Bastilha; George Washington eleito 1º Presidente americano, até 1796.

Inconfidência Mineira e Conjuração Mineira.

1798 Veiga Cabral recruta gente para guarnecer as fronteiras do RS.

Conjuração Baiana, na Baia, participam camadas populares.

1799 Napoleão Bonaparte: poder na França, até 1815.

Morte de Tiradentes: 21/abril 1799.

1801 Marquês de Sousa declara vitória no Passo dos Perdizes ao expulsar os espanhóis.

Tratado de Badajós: a Espanha renuncia à posse dos Sete Povos das Missões, Portugal confirma o direito espanhol à colônia do Sacramento.

Tratado de Badajoz incorpora Sete Povos, focos de disputas entre portugueses e espanhóis; apossamento das Missões por civis e desertores portugueses.

1803 Toma-se conhecimento das pazes entre Portugal e Espanha.

Governador da Capitania: Paulo José Silva Gama, o Barão de Bagé.

1804 Fundam-se charqueadas, compram-se escravos, chegam tropeiros de Sorocaba / SP.

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1805 Rio Grande é elevado a Capitania.

1806 Napoleão Bonaparte decreta o Bloqueio Continental contra a Inglaterra.

1807 Notícias de que a Família Real vem fugindo de Portugal.

Recusando adesão ao Bloqueio Continental, Portugal é invadida por tropas franco-espanholas; em novembro, a Família Real abandona Portugal, transferindo-se para o Brasil.

Elevação do RS a Capitania Geral, desvinculando-se do RJ.

1808 Simon Bolívar toma o poder em Caracas.

D. João chega ao Brasil: Pressionado pela Inglaterra, aceita a abertura dos portos, rompendo com o monopólio do comércio colonial.

1809 Don Diogo de Sousa, primeiro Conde de Rio Pardo.

Delineada fronteira atual RS: divisão administrativa: 4 municípios: Porto Alegre, Rio Pardo, Rio Grande, e Santo Antônio da Patrulha.

1810 Portugal e Inglaterra: tratado de comércio – fixa em 15% a taxa alfandegária sobre produtos ingleses vendidos ao Brasil; demais países pagavam 24% e Portugal, 16%.

Independência do vice-reinado do rio da Prata.

Porto Alegre torna-se vila; fim do domínio colonial espanhol.

1811 Diogo de Sousa prepara-se para invadir a Banda Oriental.

Independência do Paraguai.

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ANEXO 5 - Produção literária de Érico Veríssimo

A listagem bibliográfica seleciona as obras de Érico Veríssimo cujos conteúdos

podem ser identificados como o compromisso que autor teve com a História, divulgando e

esclarecendo-a, muitas vezes disfarçadas na forma de produção literária.

Fantoches. Porto Alegre: Globo, 1932.2ª ed., Porto Alegre, Globo, 1972. Edição anotada e

comentada pelo Autor.

Clarissa. Porto Alegre: Globo, 1933.

Caminhos cruzados. Porto Alegre: Globo, 1935.

Música ao longe. São Paulo: Nacional, 1935.

Um lugar ao sol. Porto Alegre: Globo, 1936.

Olhai os lírios do campo. Porto Alegre: Globo, 1938.

Saga. Porto Alegre: Globo, 1940.

As mãos de meu filho. Rio de Janeiro: Meridiano, 1942.

O resto é silêncio. Porto Alegre: Globo, 1943.

O Continente. Porto Alegre: Globo, 1949. 1ª parte de O Tempo e o Vento.

O Retrato. Porto Alegre: Globo, 1951. 2ª parte de O Tempo e o Vento.

Noite . Porto Alegre: Globo, 1954.

O Ataque. Porto Alegre: Globo, 1958.

O Arquipélago I e II. Porto Alegre: Globo, 1961. 3ª parte de O Tempo e o Vento.

O Arquipélago III. Porto Alegre: Globo, 1962. Conclusão de O Tempo e o Vento.

O Senhor Embaixador . Porto Alegre: Globo, 1965.

Ficção completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1966. 5v.

O prisioneiro. Porto Alegre: Globo, 1967.

Incidente em Antares. Porto Ale gre: Globo, 1971.

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Literatura infantil e infanto-juvenil

A vida de Joana d’Arc. Porto Alegre: Globo, 1935.

As aventuras do avião vermelho. Porto Alegre: Globo, 1936.

Os três porquinhos pobres. Porto Alegre: Globo, 1936.

Rosa Maria no castelo encantado. Porto Alegre: Globo, 1936.

Meu ABC. Porto Alegre: Globo, 1936.

As aventuras de Tibicuera. Porto Alegre: Globo, 1937.

O urso com música na barriga. Porto Alegre: Globo, 1938.

A vida do elefante Basílio . Porto Alegre: Globo, 1939.

Outra vez os três porquinhos. Porto Alegre: Globo, 1939.

Viagem à aurora do mundo. Porto Alegre: Globo, 1939.

Aventuras no mundo da higiene. Porto Alegre: Globo, 1939.

Gente e bichos. Porto Alegre: Globo, 1956.

Livros de viagem

Gato preto em campo de neve. Porto Alegre: Globo, 1941.

A volta do gato preto. Porto Alegre: Globo, 1946.

México. Porto Alegre: Globo, 1957.

Israel em abril . Porto Alegre: Globo, 1969.

Autobiografia

O escritor diante do espelho. In: Ficção completa . Rio de Janeiro: José Aguilar, 1966. v. 3

Biografia

Um certo Henrique Bertaso. Porto Alegre: Globo, 1972.

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Memórias

Solo de clarineta I. Porto Alegre: Globo, 1973.

Solo de clarineta II. Porto Alegre: Globo, 1976. 2ª parte, póstuma, organizada por Flávio

Loureiro Chaves.

Ensaios

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Rio Grande do Sul. São Paulo: Mercator / Brunner, 1973.

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Glória Bordini.

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