entre warburg e borges

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Hernan Ulm

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Entre Warburg e Borges: das palavras para as imagens, a loucura do presente.Texto apresentado no Simpsio Internacional Imagens, sintomas, anacronismos (2013, Rio de Janeiro)Este poderia ter sido um trabalho que estabelecera as coincidncias entre os pensamentos de Warburg e Borges. Por caso, partindo de uma referncia a Frazer e a teoria da magia simptica como chave da arte narrativa onde, alis, Borges faz num rodap, uma longa digresso sobre a linhagem ninftica das sereias mostrando as suas variaes iconogrficas nos textos mitolgicos, num texto muito warburguianamente chamado El arte narrativo y la magia, - Discusin (1932)[footnoteRef:1]. Ou trabalhar partindo do breve relato El etngrafo - Elogio de la sombra (1969)- onde o protagonista depois de ter convivido com os ndios do sudoeste dos Estados Unidos e ter sido iniciado nos secretos tribais, se recusa a escrever o informe reclamado pela universidade. Podamos tambm estabelecer o ponto em que Funes, o memorioso, deixa de lembrar esgotado por um presente absoluto. O ligar as enciclopdias borgeanas com o atlas warburguiano (lembrando, de passagem, que no final de sua vida, Borges escreve um libro de viagens, com textos e imagens chamado Atlas (1984)). Ou, finalmente, procurar as relaes entre algumas iconografias da pintura argentina e mostrar essa presencia nos textos borgeanos: a cativa, o gacho, o malandro... Podamos desse modo, a travs de um trabalho cuidadosamente exegtico, encontrar a Borges em Warburg, a Warburg em Borges. Mas, pelo contrrio, muito longe dessa fadiga pela qual mostraramos como o caminho de um se repete no outro, tentaremos estabelecer o sentido em que os seus pensamentos podem nos servir no intuito de realizar um diagnstico do presente. [1: Borges traduz fragmentos de O ramo de ouro, de Frazer e voltar a trabalhar sobre a obra do antroplogo em Siete Noches (conjunto de conferencias)]

Nesse sentido, hoje um movimento tem aberto uma greta entre as palavras e as imagens. Mas o movimento Deleuze, Bergson- no o espao percorrido e a distncia entre palavras e imagens j no se pode medir nem colmar. Uma fenda as afasta e suas bordas distantes e heterogneas j no podem se tocar. Esse movimento entre as bordas acontece onde elas se transbordam nos permitindo abord-las sem det-las. Se as palavras bordavam o texto da historia, as imagens desbordam as palavras, se derramam sobre os documentos e desfazem os textos, lanando deriva os fios que eles tranavam e nos oferecendo um tempo para alm da histria (as metforas do tecido no atingem s imagens). Se as imagens querem se apresentar numa plenitude de luz sem bordas, as palavras bordam o oceano de luz fixando os sentidos que a imagem recusa. Todo um jogo do que se borda e se transborda, do contorno e do incontornvel passa entre as palavras e as imagens: questes de margens, de fronteiras, de modulaes do tempo e da experincia[footnoteRef:2]. [2: Experincia tem o sentido de percorrer um limite e fazer a prova epistemolgica, tica e poltica desse limite: o que podem saber as palavras e as imagens, qual a potncia que elas tm, como elas nos constituem no que somos hoje?]

Esse movimento, por mnimo que seja, marca a irredutibilidade entre as palavras e as imagens, a tenso que entre elas se compe e o interesse que (nos) as atravessa[footnoteRef:3]. As palavras no explicam as imagens. As imagens no ilustram as palavras. O olho v o que a palavra cala. A palavra diz o que o olho ignora. Imagens e palavras pertencem a regimes que podemos chamar de heautonomos[footnoteRef:4]. Fazer a experincia de nosso presente entrar nesse movimento, nessa fenda, nessa ciso pela qual palavras e imagens tm se deslocado. Temos que movermos no pensamento, percorrer as suas oscilaes[footnoteRef:5], temos que produzir um movimento do pensar. [3: Interesse: o que faz ferida, o que passa entre as coisas, o que chama a ateno e na abertura que produz gera uma ganncia. ] [4: Heauto si mesmo, nomos lei. Para diferenciar autonomia de heautonomia Ferdinand Alquie, sustenta que Kant designa desse modo um regime cujas normas no se dirigem a objetos fora de si, mas ao prprio regime como objeto. Nesse sentido, Gilles Deleuze sustenta tambm que as epistemes foucualtianas, so regimes audiovisuais nos quais o enuncivel e o visvel funcionam heautonomamente.] [5: Oscilar no apenas o movimento que vai de um para outro extremo mas tambm o movimento que se produz na incerteza da verdade. Se oscila na mas absoluta quietude.]

No tem sentido, por isso, procurar as possveis identidades e analogias entre Warburg e Borges e tal vez seja melhor permanecer no meio de eles, nas disjunes entre um e outro, no movimento que os diferencia afirmando a insuficincia e ambiguidade do ser e da representao que passa entre eles (Bataille, Blanchot). Diante das formas contemporneas do autoritarismo que tentam deter o movimento do pensar, na tentativa de cancelar a ambiguidade e de tornar plena a insuficincia pela imposio de uma palavra nica ou de uma imagem absoluta ou pela correspondncia fechada entre as palavras e as imagens sem restos e sem excessos o movimento entre Warburg e Borges que passa sem se deter nem em um nem no outro, poda se pensar como sintoma que resiste ao presente, como fora que faz o presente oscilar a cada instante. Sintoma da triple fratura que nos atravessa: a fratura no interior das palavras; a fratura no interior das imagens; a fratura entre as palavras e as imagens. Borges nos revelando os limites da linguagem e nos mostrando que, no tendo a palavra possibilidade nenhuma de nos dizer o mundo, possvel extrair da experincia dessa insuficincia a potncia pela qual h, na linguagem, alguma coisa que as imagens no conseguem ilustrar. Warburg nos mostrando que no h imagem que no seja sempre fragmentria e mltipla e produzindo a partir dessa insuficincia, um acontecimento que as palavras no conseguem atingir.O movimento borgeano para a fabulao: o que as palavras no do para olharSe o destino da linguagem era dizer o mundo, a experincia borgeana da literatura revela a radical pobreza, a extrema indigncia e a inutilidade desse esforo na medida em que a h sempre alguma coisa que excede a potncia da linguagem. Na sua obra, o movimento pelo qual a palavra diz o limite e o seu excesso duplo e esgota a linguagem de modos complementares: por um lado, na elaborao dessas vastas enumeraes, dessas impossveis classificaes que no atingem o seu fim porque o universo sempre est um passo ao frente da palavra. A linguagem, sustenta repetidamente Borges, sucessiva, o universo, simultneo. Desse modo, a palavra colocada em relao com a modalidade do tempo histrico que ela produz. Todas as tentativas da linguagem no servem para ultrapassar esse tempo que pega a linha como modelo de progresso dos instantes. Desse modo Borges mostra que, se a escritura produz a histria, a escritura no pode capturar aquilo que est por fora do tempo histrico: esse o limite de sua experincia. O que quer dizer tambm que a linguagem, como o Homem, tem uma existncia finita e que o mundo aberto pela linguagem, o mundo aberto pelo Homem est destinado a atingir o seu prprio limite e a ignorar, irremediavelmente a exterioridade que ele mesmo produz: a linguagem no pode dizer o outro de si, no pode dizer o outro da Histria[footnoteRef:6]. As classificaes enlouquecem e uma vez comeadas j no podem acabar: esgotar o mundo na palavra querer esgotar a linguagem na linguagem: tarefa que no limite, conduz a anulao da linguagem e do mundo por ele aberto. Por isso, em Borges aparece o movimento complementar a essa escritura sem fim: a procura de uma palavra nica, total, primordial. Mas essa palavra, que se identifica com a magia, quando atingida, no pode se escrever e obriga ao silncio do escritor, dos seus personagens e dos leitores: o segredo no se revelar e se mantem na reserva do seu prprio mistrio, que a reserva do mundo: a palavra mgica no representa o mundo, o mundo. Mas ai onde o silencio da palavra mgica ou a proliferao incessante at o absurdo (as formas do gaguejo como queria Deleuze) poderiam nos fazer renunciar a linguagem e procurar nas imagens essa totalidade impronuncivel Borges inventa para as palavras uma nova potncia, um excesso. Confrontada com sua insuficincia, revelada na sua ambiguidade, a palavra comea a produzir objetos que recusam se mostrar numa imagem e que deixam as imagens no exterior da linguagem, na sua borda, na sua margem, na abertura da fenda. Na borda do enuncivel Borges descobre objetos que estouram o olho porque esto para alm do que se da para olhar, para alm das fronteiras do visual: El Aleph, (El Aleph, 1949): ponto de todos os pontos, ponto impossvel de imaginar na medida em que nele o espao se apaga e o tempo no tem lugar, ponto no qual o universo se condensa e mostra todas as suas variaes, ponto que sem imagem porque a recusa das imagens. O disco que tem apenas um lado (El disco, El libro de arena, 1975) que cai no cho e fica para sempre perdido ao olhar daquele que na sua cobia pretendeu roub-lo. O Zahir (El Aleph, 1949) que mais do que um objeto uma qualidade que muda de objeto em objeto. Os tigres azuis (La memoria de Shakespeare, 1983), essa pedras curiosas de nmero varivel e que se multiplicam ou dividem sem dar-se nunca numa identidade... A listagem poderia ser muito mais exaustiva. So objetos que o olho no consegue olhar, que recusam as imagens visuais e que afirmam a sua existncia num territrio que essas imagens no atingem e que est preservado do olhar apresentando, ao mesmo tempo, a cegueira do olho e a potncia sem medida da palavra. So objetos fabulosos, no sentido que Deleuze tira de Bergson: objetos que ultrapassam a imaginao, que no so produzidos estritamente pela faculdade de imaginar e que apresentam uma verdadeira forma de criao para alm das formas cotidianas e cientficas quer dizer humanas do imaginar. Objetos que transgredem as formas humanas da existncia, colocando-a a prova e fazendo a experincia do seu limite. Objetos ultra-humanos que marcam o limite de nossa humanidade. [6: Flusser, dentre outros, tem mostrado que as imagens produzem um tempo no histrico: elas so superfcies, so planos. Trata-se de mapas, de cartografias do tempo e no da linha de sua progresso]

O movimento warburguiano para a fabulao: o que as imagens no do para dizer De uma noite de panos estendidos, surgem brilhos (so planos de luz sobre o plano da escurido) que traam um breve movimento. Apressadamente algum tira uma foto e constru uma imagem das imagens produzindo a visibilidade de uma srie (a fotografia , no final, a condio de possibilidade do percurso warburguiano). Warburg sabe que esse movimento no acaba, que as constelaes se apressuram a desaparecer. No foi isso o que ele tem nos mostrado, que aquilo que aparece se produz se retirando no tempo, se apagando, acossado pelo perigo da noite infinita e da claridade total (como sustenta hoje Pascal Quignard, a luz das estrelas se apaga tanto na noite como no brilho do sol)? Warburg tem trabalhado contra esses dois perigos: aquele que extingue os rostos nas profundezas da escurido, aquele que os apaga na plenitude de uma luz total: as duas formas pelas quais se detm o movimento da memria. As imagens so uma penumbra entre esses os extremos da noite absoluta e o absoluto do dia; as imagens so a luz impura do visvel, o visvel como impureza, o tempo impuro da memria, a memria como tempo de impurezas. essa a fundamental insuficincia das imagens: elas no conseguem nunca nos oferecer a totalidade do visvel, nunca transparecem o real, nunca revelam a verdade do tempo. As imagens, contra toda esperana, no revelam a verdade do ser, mas produzem um sentido ambguo do existir. Por isso cada imagem ela mesma uma constelao em movimento sendo ao mesmo tempo mltipla e fragmentria e levando inscrita assim sua prpria cegueira: mltipla porque apenas tem sentido como conjunto de imagens, fragmentria e cega porque est feita das ausncias que a tem produzido e que ela ignora. Toda imagem movimento e se desfaz e refaz nesse movimento. Warburg sabe que essas constelaes, esses movimentos que ele tem construdo segundo uma ordem conjetural numa srie, longe de responderem a uma vontade de representao e de ilustrao so um modo de resistir, de desviar, de fazer fluir foras, so o resultado inesperado de um combate pela qual tem se extrado um plano ao caos, um pouco de tempo histria (com Nietzsche sabe-se que pensar um movimento trgico de separao e perda, de distanciamento e aproximao, uma toma de perspectiva[footnoteRef:7]). O que sobrevive nas imagens a experincia desse combate o movimento dessa disputa. Diante das imagens, temos que nos perguntar quais foras as fizeram possveis. No o que uma ninfa, mas que foras passam por ela, entre elas, de uma a outra num movimento de diferenciao que as faz sempre distintas, numa singularidade que no se repete e que a linguagem no consegue dizer. Que tipo de existncia precisava da ninfa para sobreviver? Que sobrevive dessas foras para ns, agora que retornamos a ela e quando ela retorna a ns? So essas foras, essas imagens patticas, essas imagens apaixonadas as que expressam o movimento do existente. Nesse instante e diante de sua prpria insuficincia para revelar uma verdade, as imagens atingem o limite que a linguagem no pode ultrapassar. As sries nos apresentam o sistema de uma disperso, sistemas dispersivos: nunca a ninfa, nunca a unidade do pathos, mas suas relaes diferenciais se singularizando na srie num secreto que a linguagem no pode enunciar (a linguagem captura o universal, mas no atinge a singularidade do movimento das diferenas, a linguagem a negao dessas diferenas). As sries se constituem de imagens, mas as imagens no so a causa da srie. A srie que organiza as imagens no encontra nas imagens a causa de seu movimento. A srie um efeito sem causa (de fato uma imagem pode encontrar o seu lugar em vrias sries: por isso to importante, cada vez, tirar uma foto da srie construda: como um corpo sem rgos, essa srie vai se transformar e as imagens vo formar parte de outras sries, de outros movimentos). A srie sempre um movimento descentrado: acfalo seguindo a Bataille. Esse efeito sem causa que fornece para ns outra forma do tempo o que se chama acontecimento. A memria como acontecimento temporal das imagens. O umbral das imagens, do pensamento feito nas imagens, das imagens-pensamento, antes que a palavra chegue e antes que a histria organize os fatos numa sequencia, se mostra como um territrio feito de um misterioso silncio. As imagens apresentam algo anterior e exterior palavra e ao tempo que ela produzia. Uma existncia anterior s palavras e, nesse sentido, uma existncia anterior ao Homem no interior da vida do homem. Nas imagens se produz uma existncia que ainda no humana e que j no humana. A borda que a palavra no pode nomear. Tal vez poderamos dizer que uma serie ninfea (segundo a conjetural linguagem de Tlon Uqbar Orbis tertius), ou, segundo o no menos conjetural linguagem dos estoicos na interpretao de Deleuze, que h o ninfear como acontecimento da srie. Em qualquer caso, no excesso pelo que se nos da o acontecimento como imagem, no excesso pelo que se produz uma existncia sem nomes, aparece para ns a segunda caracterstica da fabulao no eixo do trabalho warburguiano: a fabulao (sempre segundo Bergson-Deleuze) se refere ao ato pelo qual o acontecimento no responde rememorao do passado fixada num monumento, mas celebra o acontecimento como passagem de foras que se lanam para o porvir. As sries, o movimento que entre elas se produz, as constelaes que elas formam fabulam a ninfa, fabulam a serpente para ns. Entre elas se libera um acontecimento, um sentido, que no remete verdade do passado, mas que se afirma como liberdade, como distncia do caos e potncia do porvir, como potncia de sobreviver diante das foras reativas que querem reduzir as paixes (nas formas tirnicas da serpente encerrada nos fios de eletricidade), ou diante das foras reativas que apenas querem se afirmar como paixes, diante das foras que querem fixar a memria no monumento [7: Para a mesma poca, Bergson sustenta que se a vida memria, a memria no se expressa por meio de palavras mas a travs das imagens e que a vida no seno um conjunto de imagens se movimentando]

Concluso Pensar um acontecimento escasso. um ato poltico de resistncia ao presente e contra o presente. Contra aquilo que no presente quere passar como verdade nica, contra aquilo que quer passar como unidade de sentido. Entre Warburg e Borges quis apresentar o movimento da fabulao feita de palavras sem imagens e de imagens sem palavras: na insuficincia entre elas na ambiguidade sem correspondncias emerge a potncia da criao que faz oscilar o presente produzindo outros sentidos e ultrapassando nossas verdades. No movimento que abre essa fenda entre as palavras e as imagens, no movimento que abre nossa fenda, fica a distncia que temos que manter com nosso presente. O presente enlouquece e quer se fixar num dos extremos. Quer deter o movimento das palavras, fixar as oscilaes das imagens e clausurar o tempo. Entre Warburg e Borges, no que de um se perde no outro, se abre o movimento, embora seja escasso, do pensar. Na escassez desse movimento sem medidas (movimento mnimo de uma palavra sem imagem, movimento mnimo de uma fotografia sem palavras) emerge a resistncia s palavras e s imagens. De Warburg a Borges e de Borges a Warburg, no meio de suas disjunes, se traa o movimento de uma oscilao que fica, abre, fratura e interessa as detenes do porvir e do sobrevivncia ao pensar.