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MOACIR FRANCISCO DE SANT´ANA BARROS ENTRE VÍDEOS E CERÂMICAS: OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Linguagens Cuiabá – MT 2006

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MOACIR FRANCISCO DE SANT´ANA BARROS

ENTRE VÍDEOS E CERÂMICAS: OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO

Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Linguagens

Cuiabá – MT 2006

2

MOACIR FRANCISCO DE SANT´ANA BARROS

ENTRE VÍDEOS E CERÂMICAS: OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens. Área de concentração: Cultura, Mídia e Política: teorias e práticas.

Orientadora: Prof.ª Dra. Lucia Helena Vendrúsculo Possari

Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Linguagens

Cuiabá – MT 2006

3

B2776e

Barros, Moacir Francisco de Sant’ana.

Entre vídeos e cerâmicas: olhares sobre o ribeirinho. / Moacir

Francisco de Sant’ana Barros. – Cuiabá: o autor, 2006.

135 fl.

Orientadora: ProfªDrª Lúcia Helena Vendrúsculo Possari.

Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso.

Instituto de Linguagens. Campus de Cuiabá.

1. Sociologia. 2. Cultura popular. 3. Identidade. 4. Imagens.

5. Ribeirinhos. 6. Cuiabá. 7. São Gonçalo Beira Rio. I. Título.

CDU 316.7(817.2)

4

DEDICATÓRIA

A minha mãe Joanita de Sant`Ana Barros por sua dedicação aos seus oito filhos, lutando sempre para que todos estudassem, sem esquecer nunca da dose de carinho distribuída igualmente entre todos.

Ao meu pai Luiz de França Barros (em memória).

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço a cooperação enriquecedora da minha orientadora, Lucia Helena, pela paciência e dedicação a este trabalho;

Ao professor Dr. Mário César Silva Leite e as professoras, Dra. Denize Dall`Bello e Dra. Martha Johanna Haug pelas observações pertinentes que fizeram à pesquisa;

Aos meus colegas de mestrado pelas discussões estimulantes;

Ao Sr. Dalmi de Almeida e toda a gente do São Gonçalo pela colaboração a mim dispensada.

A Isa por me aturar e `as crias, Pedro, Gabriel e Maria Luísa por serem a razão disso tudo.

Aos colaboradores: Prof.Dr. Yuji Gushiken, Joubert Evangelista, Mateus Copriva, Carlos Ferreira, Márcia Aparecida.

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RESUMO

BARROS, Moacir F.S. Entre vídeos e cerâmicas: olhares sobre o ribeirinho.

Este trabalho apresenta uma reflexão sobre os aspectos de identidade e cultura popular, através de textos videográficos, pela abordagem dos Estudos Culturais, no bairro São Gonçalo Beira Rio. Analisa-se o conteúdo de vídeos feitos sobre os ribeirinhos e imagens produzidas pelos próprios moradores, observando a produção de sentidos por eles mesmos. Por um lado, mostra-se a preocupação dos videomakers em falar de uma “tradição” cultural a ser preservada. Por outro, a preocupação dos moradores em registrar imagens de um bairro que está mudando em decorrência do processo de urbanização da cidade. Palavras-Chave: Cultura Popular – Identidade – Vídeo .

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ABSTRACT

BARROS, Moacir F.S. Between Videos and Ceramics: looks on the riverain. This work presents thoughts about the aspects of identity and popular culture, through videografics texts, for Cultural Studies teory from São Gonçalo Beira Rio neighbourhood , Cuiabá, Mato Grosso. The results of these videos made about the riverain and the images produced for the living own are analyzed observing the sense by they themselves. For one hand, the observations of videomakers in speaking of one reveals the preoccupation of cultural tradition preservation and, by other hand, the concernments of the inhabitants in registering images from a neighbourhood that is in transformation due the urbanization process of the city . word-Key: Culture - Identity - Video

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................10

CAPÍTULO I – APORTE TEÓRICO METODOLÓGICO.........................................16

1.1 Sobre o Conceito de Cultura ...............................................................17 1.1.1 Cultura Popular e Folclore.............................................................27 1.1.2 Cultura Popular e Comunicação de Massa....................................28 1.1.3 Cultura Brasileira............................................................................29

1.2 Os Estudos sobre Identidade..............................................................32 1.2.1 Identidade e Diferença...................................................................39 1.2.2 Entre o Local e o Global................................................................43

1.3 Os Caminhos da Recepção................................................................47 1.3.1 Recepção e Estudos Culturais.......................................................47 1.3.2 Trama Conceitual.......................................................................... 54

CAPÍTULO II – INVENTÁRIO SOBRE O BAIRRO SÃO GONÇALO ....................57

2.1 Espaços Urbanos X Comunidade........................................................58 2.2 Inventário sobre o São Gonçalo...........................................................62

2.2.1 Detalhamento do Inventário...........................................................70

CAPÍTULO III – VÍDEO E CULTURA.....................................................................85

3.1. O Vídeo como expressão cultural ......................................................86 3.1.1 O Início...........................................................................................89 3.1.2 Vídeo-Arte......................................................................................91 3.1.3 Vídeo Independente.......................................................................92 3.1.4 Vídeo Educação.............................................................................92 3.1.5 Olhar das Minorias.........................................................................94

CAPÍTULO IV – OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO: ANÁLISE DOS VÍDEOS....96

4.1. Caminhos Metodológicos...................................................................97 4.2. Dois Vídeos sobre o São Gonçalo.....................................................98 4.3. O Olhar Ribeirinho...........................................................................114

9

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................128

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS.....................................................................133

OBRAS CONSULTADAS.....................................................................................138

ANEXOS...............................................................................................................140

10

INTRODUÇÃO

Neste início de século XXI estamos diante de uma complexidade de

comportamentos marcados pela problematização do global e do local. As

questões que envolvem processos de produção de sentidos, - neste caso uma

análise de vídeos - identidade e cultura popular passam por essa discussão.

Há um pensamento dominante sobre a expansão do capitalismo pós-queda

do muro de Berlim que teria transformado o processo de globalização numa ação

irreversível. Numa primeira perspectiva, o “mundo sem fronteiras” atuaria como

fator de homogeneização de comportamentos, com reflexos nas percepções

populares. Num segundo ponto de vista, o processo de globalização é visto como

operações complexas que destacam a diversidade cultural, as segmentações

sociais e criam novas diferenças.

A crise na contemporaneidade das instituições tradicionais como Estado,

Família, Escola e Igreja, dentro da sociedade globalizada, permitiu a expansão

dos meios de comunicação que, assim, ditam os comportamentos afunilando a

interpretação do mundo em que vivemos. Nossas percepções são sempre o

resultado de informações filtradas, que no dizer da pesquisadora Maria Aparecida

Baccega (2002) constitui um “mundo editado”, isto é, a realidade que nos

apresenta é sempre o resultado dessa edição que chega até nós.

Nesse contexto, a expansão dos meios de comunicação mina a resistência

de espaços tradicionalistas como resultado do processo de urbanização. Há uma

visível transformação nos comportamentos e no modo de vida dessas localidades.

O consumo urbano de peças artesanais, por exemplo, pode indicar uma alteração

no significado da produção material e simbólica das culturas tradicionais.

11

Esses espaços urbanos também são alvo de investigadores científicos.

Exploradas muitas vezes de forma predatória por intelectuais, que devassam a

intimidade dos moradores, sugam o conhecimento popular e nada retornam

àqueles que serviram de objeto científico.Tornam-se nada mais do que isso:

objetos. A concepção de que podem ser sujeitos de seus destinos e das políticas

culturais fica apenas no discurso acadêmico.

O interesse da presente pesquisa é pela discussão sobre o papel das

identidades e da cultura popular no universo do bairro São Gonçalo Beira Rio,

através da abordagem dos Estudos Culturais. Desse ponto de vista, proponho

reflexões acerca dos textos em vídeo produzidos sobre o espaço São Gonçalo

pelo viés cultural de cada produção; também analiso registros audiovisuais

produzidos pelos próprios moradores, buscando ver a produção dos sentidos por

eles mesmos.

Durante a pesquisa houve um deslocamento dos objetivos propostos, uma

vez que, ao inserir-me no campo, deparei-me com os registros audiovisuais dos

próprios moradores feitos sem a interferência de produtores culturais. Após

negociar com o presidente do bairro, Dalmi Lucio de Almeida, o uso dessas fitas

nesta pesquisa, me propus a analisá-las, pois os sentidos com a câmera já

estariam ali presentes.

Na análise me interessa observar como os ritos são mostrados nos vídeos.

Como os videomakers abordam a questão cultural, o que interessa para eles, o

que interessa para os moradores? Pensar sobre as transformações sócio-culturais

naquele grupo a partir das imagens.

O bairro São Gonçalo Beira Rio foi escolhido por representar as origens da

capital mato-grossense. Sua história está documentada em autores como Lenine

Póvoas (1977 e 1987), Virgílio Correa Filho (1994), Joseph Barboza de Sá (1975),

Rubens de Mendonça (1982) para citar somente os mais antigos.

12

Localizado na margem esquerda do rio Cuiabá, na região sul da capital

mato-grossense, o São Gonçalo Beira Rio pertence ao distrito do Coxipó da

Ponte. Segundo dados do IPDU – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento

Urbano - o bairro tem seus limites com outras áreas urbanas do município

cuiabano que inclui o Parque Geórgia, Vista Alegre, Coxipó, Coophema, Parque

Atalaia e também o rio Coxipó (anexo).

Um levantamento feito pela Regional Sul da cidade, em 2004, apontou 290

moradores em São Gonçalo. Mas, segundo o presidente da associação de

moradores, Dalmi de Almeida, aproximadamente 350 pessoas distribuídas em 75

famílias vivem no bairro, em 2006. A predominância de pessoas idosas é

observável entre os ribeirinhos. Os relatos dos moradores indicam uma tendência

de os mais novos deixarem o lugar para viver em outras áreas de Cuiabá, em

busca de melhores condições de vida. Eles costumam visitar os pais e avós nos

finais de semana.

O processo de urbanização da cidade tem constantemente alterado

aspectos sócio-economicos e de infra-estrutura do lugar. A rua principal possui

asfalto, desde 2003. O bairro está sendo atingido pela pressão imobiliária que

busca novas áreas. Observa-se o aparecimento de peixarias no local, como já

acontece na margem direita do rio Cuiabá, no município de Várzea Grande1.

Até meados do século passado, o São Gonçalo ficava fora do perímetro

urbano de Cuiabá. Seus moradores tinham costumes típicos dos ribeirinhos que

viviam da pesca e da agricultura de subsistência. Outra atividade desenvolvida por

seus habitantes era a produção de cerâmica utilitária, como panelas, potes e

moringas. A região foi rica em argila, que era tirada até dos quintais dos

moradores. Hoje, a retirada é feita cada vez mais longe do bairro, rio abaixo. Os

1 As localidades de Praia Grande, Passagem da Conceição e Bonsucesso são conhecidas pela abundância de peixarias que atraem turistas em busca de saborear a comida local.

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ceramistas enfrentam a concorrência das empresas cerâmicas que também

utilizam a matéria-prima para fabricar tijolos e telhas.

Devotos de São Gonçalo, os antigos moradores eram católicos fervorosos –

herança dos desbravadores bandeirantes que por lá passaram. Esses moradores

ensinaram `as futuras gerações a tradição da dança do siriri e do cururu, durante

as festas do Santo.

Com o processo de urbanização de Cuiabá, intensificado nas décadas de

70 e 80 do século XX, houve mudanças no modo de vida desses moradores. É´ o

que revelam algumas dessas pesquisas feitas em São Gonçalo2. A chegada dos

turistas, por exemplo, levou os ceramistas a mudarem o tipo de produção

artesanal baseada em utensílios domésticos para objetos de decoração,

mostrando, assim, a influência das relações sócio-econômicas e sua ingerência no

cotidiano daquele espaço.

O local é muito freqüentado por cientistas que já escreveram muita coisa

sobre a variedade cultural presente entre seus moradores. A principal delas é o

artesanato de cerâmica, atividade descrita em monografias, dissertações, teses,

livros, vídeos, peças de teatro e reportagens. Mas há também trabalhos

acadêmicos sobre a pesca, plantas medicinais, danças folclóricas, narrações

míticas e sobrenaturais do imaginário dos moradores até assuntos relativos à

educação ambiental, saneamento, etnobotânica e questões indígenas.

Como caminho a seguir, para a construção do conhecimento, a partir do

objeto desta investigação, esta pesquisa apresenta-se como um estudo de

tipologia híbrida de tendência qualitativa. O ângulo da abordagem é cultural. Para

Santaella (2001) a área da Comunicação Social costuma apresentar investigações

de tipologia híbrida, uma vez que o tipo de pesquisa desenvolvida nutre-se de

abordagens mistas, isto é, empírica, trabalho de campo, laboratório etc.

2 Apresento inventário sobre pesquisas já realizadas em SG no capítulo 2.

14

Neste caso, a pesquisa documental (vídeo, monografias, dissertações,

livros etc) vai hibridar com a etnografia, com a observação participante, com

entrevistas, para que se possa desvendar o espaço São Gonçalo. Interessa,

sobretudo, explicitar aspectos culturais - interno ao espaço da pesquisa e os

externos sobre o São Gonçalo. Portanto, o foco da investigação apresenta duas

grandes questões: que olhares são esses sobre o bairro São Gonçalo ? Como os

moradores se olham, através da câmera?

O primeiro capítulo do trabalho aborda as teorias que dão sustentação a

esta discussão sob a ótica cultural. Apresento as idéias de autores que dissertam

sobre a complexidade do tema cultura, como Laraia, Williams e Geertz, passando,

também, pela discussão sobre cultura popular com Gramsci, Bosi, Arantes, entre

outros, e a importância desse conceito para os Estudos Culturais.

Também abordo as teorias de recepção na ótica dos latino-americanos,

como Martin-Barbero e os processos de hibridação cultural na concepção de

Garcia Canclini. A relação entre o global e o local aparece no questionamento

sobre as identidades culturais na contemporaneidade. O assunto é tratado através

das discussões propostas por Stuart Hall sobre o “descentramento” do sujeito e

sua inserção no mundo contemporâneo. O tema também aparece em Escosteguy,

Woodward, Silva e nos latino-americanos citados acima.

No segundo capítulo apresento um inventário sobre pesquisas já realizadas

no universo do São Gonçalo Beira Rio. É um levantamento bibliográfico acerca

dos mais variados assuntos já abordados por pesquisadores que ali estiveram. O

material levantado serviu para um prévio conhecimento panorâmico das riquezas

naturais e culturais do meu objeto de pesquisa. Nesse sentido, fiz alguns

apontamentos sobre as identidades atribuídas ao São Gonçalo por esses

pesquisadores. Aproveito também para uma breve discussão sobre o conceito de

comunidade e o meu posicionamento a respeito. Procuro tratar o São Gonçalo

15

como um espaço urbano, dentro da visão moderna de cidade e urbanismo

apresentado por Lima e Maleque (2004).

Além do material pesquisado em bibliotecas procurei também, junto às

secretarias de cultura municipal e estadual, realizadores de audiovisual e

produtoras de vídeo, registros em imagens sobre o São Gonçalo. Por falta de

conservação, muitos desses registros não são mais possíveis de ser investigados.

Detive-me nos vídeos encontrados a partir do ano 2000 para frente.

No capítulo três, proponho uma discussão sobre o Vídeo como expressão

cultural. Com base em autores que investigam o tema e da minha própria

experiência como profissional de Comunicação Social, disserto sobre os caminhos

que a tecnologia videográfica vem tomando neste princípio do século XXI. Assim,

falo sobre a sua evolução histórica até o formato digital que vem oportunizando a

produção de imagens não só por profissionais inseridos no mercado da indústria

cultural, mas também por grupos sociais subalternos. Moradores de favelas, de

aldeias indígenas, grupos de cultura afro estão se expressando através de

imagens mostrando a sua visão sobre a realidade que vivem.

No quarto capítulo, apresento a análise dos vídeos sobre o bairro São

Gonçalo, tanto os que foram produzidos por videomakers, como os registros

audiovisuais dos próprios moradores, relacionando-os com as teorias dos Estudos

Culturais. Todo o detalhamento do processo de produção audiovisual está

relatado, mostrando como se deu o trabalho. Inicialmente foram recolhidas quinze

fitas gravadas pelos moradores com assuntos sobre festas, mutirões e lazer.

Desse material foram escolhidos dois assuntos para análise: meio ambiente e os

festejos de São Gonçalo.

Por fim, faço as considerações sobre as leituras dos textos em vídeo,

discutindo aspectos da cultura popular e identidade.

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1 - APORTE TEÓRICO METODOLÓGICO

A narração nunca é um dado aparente das imagens, ou o efeito de uma estrutura que as sustenta; é conseqüência das próprias imagens aparentes, das imagens sensíveis enquanto tais, como primeiro se definem por si mesmas.

Gilles Deleuze

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1.1 Sobre o Conceito de Cultura

A idéia de cultura, na contemporaneidade, e particularmente, dentro de uma

pesquisa em Estudos Culturais, leva-nos a um emaranhado de sentidos e

significados oriundos dos estudos antropológicos e sociológicos. A evolução dos

meios de comunicação e a penetração destes nos costumes das sociedades

atuais têm proporcionado mais polêmica ao assunto.

Laraia (2004) investiga o conceito, reconstruindo a idéia de cultura, desde o

iluminismo, afastando-a do determinismo biológico e geográfico. O autor mostra

que na Alemanha do século XVIII a palavra Kultur era usada no sentido de

simbolizar aspectos espirituais, enquanto na França, a palavra civilization

siginificava as realizações materiais de um povo. Em sua leitura de Edward Tylor

(1871) destaca o termo Culture como:

[...] tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui

conhecimentos, crenças, arte, moral, leis costumes ou qualquer outra capacidade ou

hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.(LARAIA, 2004, p.25)

Na busca de um crescente afastamento entre o domínio cultural e o natural,

o autor mostra que Tylor foi seguido por Alfred Kroeber (1947) em seus estudos,

onde afirma que o homem diferencia-se dos outros animais pela “possibilidade de

comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos capazes de

tornar mais eficiente o seu aparato biológico” (Laraia, 2004, p.28). Para Kroeber,

essas duas propriedades permitem afirmar que o homem é o único ser possuidor

de cultura. Ele pensava o ser humano como “eminentemente cultural”,

independente de carga genética, mas que passa por um processo de

aprendizagem. O conhecimento e a experiência são frutos de um processo

acumulativo das gerações passadas. As invenções e inovações são resultados da

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manipulação adequada desse patrimônio cultural por toda uma comunidade e não

a ação isolada de um gênio.

Laraia mostra ainda que Tylor tinha uma visão evolucionista da cultura.

Baseado no pensamento de Charles Darwin, ele acreditava que esta desenvolvia–

se de maneira uniforme, de modo que cada sociedade percorreria as etapas

dessa evolução até chegar as sociedades mais avançadas.

A visão evolucionista, segundo Gonçalves (1996) explica cultura como uma

noção extensiva a toda humanidade, mas diferenciada por hierarquia, havendo

sociedades mais evoluídas culturalmente do que outras. As sociedades européias

do século XIX estariam no ápice dessa escala evolutiva. As outras sociedades

estariam mais ou menos evoluídas de acordo com esse padrão de referência. Os

critérios para essa evolução seriam a presença do Estado, propriedade privada,

família monogâmica, desenvolvimento tecnológico etc. Para os evolucionistas a

noção de cultura estava ligada a noção de evolução biológica uma vez que os

chamados povos primitivos eram considerados assim também no plano biológico.

Os evolucionistas consideravam a cultura uma palavra singular. Não admitiam

“culturas”.

Raymond Williams é um dos teóricos tido como referência para os Estudos

Culturais. Ele se debruçou sobre a dificuldade em se definir o termo cultura. Das

acepções mais antigas, a palavra pode designar o cultivo da terra e da criação de

animais. Também diz respeito ao ativo da mente humana que, na Inglaterra e na

Alemanha, configurou-se como “do espírito” que revela “o modo de vida global” de

determinado povo. Williams (1992) estudou o pensamento de Herder (1784-91),

que foi o primeiro a empregar o termo no plural, “culturas”, com a intenção de não

confundir o termo com “civilização”.

19

Para Gonçalves (1996), a noção pluralista de cultura é obra do discurso

moderno antropológico, do século XX, presente em autores como Boas,

Malinowski, Durkheim e Mauss. Eles elaboraram um vocabulário alternativo

falando em uma noção etnográfica de cultura que inclui noções como “trabalho de

campo”, “observação participante” “etnografia” (Gonçalves, 1996, p. 160)

Nas teorias modernas, o pensamento de Clifford Geertz é considerado de

suma importância para a evolução do conceito de cultura. Em A Interpretação das

Culturas, o autor afirma, logo no início do livro, que está `a procura de um conceito

“justo” para a palavra cultura de modo que esta tenha sua importância continuada.

O pesquisador norte-americano considera o homem dividido em três níveis:

biológico, psicológico e cultural. Ele entende que a cultura deve ser vista como um

complexo de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, programas para

governar o comportamento. Para Geertz a criança nasce apta a ser socializada

em qualquer cultura existente. Mas essas possibilidades são reduzidas ao

contexto real e específico onde de fato ela crescer.

O autor passa a discorrer sobre os vários significados dados a palavra cultura por

Clyde Kluckhohn, no livro Mirror for Man , onde o termo é definido como:

1 – o modo de vida global de um povo; 2 – o legado social que o individuo adquire do seu grupo; 3 – uma forma de pensar, sentir e acreditar; 4 – uma abstração do comportamento; 5 – uma teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente; 6 – um celeiro de aprendizagem em comum 7 – um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recorrentes 8 – comportamento aprendido; 9 – um mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento; 10 – um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens 11- um precipitado da historia. (KLUCKHOHN apud GEERTZ, 1973, p.14):

Para Geertz, os símbolos e significados são partilhados pelos atores - os

membros do sistema cultural - entre eles, mas não dentro deles. Assim, ele

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associa o estudo da cultura ao estudo de um código de símbolos compartilhados

pelos membros dessa cultura.

O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, `a procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por si mesma uma explicação.(GEERTZ, 1973, p.15)

A antropologia de Geertz vai defender a idéia de entender os primitivos a

partir de sua própria perspectiva. Para isso era preciso o estudo da língua falada

nessas sociedades para o entendimento de seus costumes. O uso da palavra

cultura no plural está associado à concepção de linguagem ou linguagens,

enquanto sistemas de signos como empregou Ferdinand de Sausssure. As

experiências humanas vão ser pensadas a partir da metáfora da linguagem. Essa

concepção, conhecida como “relativismo cultural” pressupõe o ser humano

constituído por sistemas de signos diferenciados que permitem o pensamento e a

articulação das experiências com a sociedade e a natureza.

O ponto de vista de Geertz tem sido referência para autores brasileiros

também. Arantes (1990) afirma que a cultura constitui-se por signos e símbolos

que são convencionais e arbitrários. O significado cultural é resultado de uma

articulação, em contextos específicos, e da ação social. Como conseqüência, os

eventos culturais devem ser considerados na sua totalidade, tendo como limites

critérios internos às situações observadas.

Williams (1992) observa que as discussões sobre o conceito de cultura

fazem parte dos estudos da sociologia da cultura. Segundo o autor, este é um

21

ramo da sociologia vista com certa desconfiança pelos mais antigos que a

considera ambígua.

Assim, ela não só parece ser, como é de fato subdesenvolvida. Não há escassez real de estudos específicos, embora em relação a este, como a outros tópicos, haja muito mais a ser feito. Enquanto não é reconhecida como convergência, e como um problema de convergência, a reação habitual diante dela, mesmo quando compreensiva (e isso, numa geração mais antiga e tradicional é relativamente raro), é encará-la com pouco mais do que um agrupamento indefinido de estudos de especialistas, quer em comunicações, em sua forma especializada modernas de ‘meios de comunicação de massa’, quer no campo bem diversamente especializado das ‘artes’. (WILLIAMS, 1992, p.9)

Para Williams, a sociologia da cultura investiga aspectos possíveis e

demonstráveis oriundos dos processos de comunicação, arte e novas linguagens

observáveis na sociedade contemporânea, procurando uma re-elaboração das

idéias mais tradicionais e gerais dos estudos sociológicos, como também

propondo novos questionamentos e evidências para o trabalho das ciências

sociais.

Williams nos fala sobre os significados tanto dentro da antropologia quanto

fora desta, mas que produzem significados convincentes: “a ênfase no espírito

formador – ideal, religioso ou nacional” (Williams, 1992, p.11) – até o emprego

como “cultura vivida” que envolve processos sociais atrelados a questões de

ordem econômica ou política. O autor afirma que cultura ora refere-se

significativamente a questões globais, ora traz referências parciais.

De modo geral, o sentido de cultura está ligado ao cultivo ativo da mente.

Ele mostra que é possível empregar o termo com vários significados. O primeiro

ligado ao “estado mental desenvolvido” – “pessoa de cultura”, “pessoa culta”. Num

segundo momento designa “os processos desse desenvolvimento” – como em

“interesses culturais”, “atividades culturais”. Outro emprego recai sobre “os meios

22

desses processos” – cultura como “arte” e o “trabalho intelectual do homem”. Este

último emprego, referente `a arte e ao trabalho intelectual do homem, é o mais

comum de cultura. Mesmo sendo usual nas outras formas, convivendo muitas

vezes de forma desconfortável com o uso antropológico e sociológico “para indicar

‘modo de vida global’ de determinado povo ou grupo social” (Williams, 1992,p.11).

Diante da dificuldade em fixar um sentido a palavra cultura, Williams propõe

que se encare a discussão de forma mais proveitosa como resultado de uma

convergência de interesses. Do sentido idealista – ênfase no “espírito formador”

que pressupõe um modo de vida global com interesse específico nas atividades

culturais “uma certa linguagem, estilos de arte, tipos de trabalho intelectual”

(Williams, 1992, p.11) – ao sentido materialista – ênfase numa ordem social global

cujas manifestações culturais específicas, estilo de arte e trabalho intelectual é

visto como produto de outras atividades sociais.

O pensamento de Geertz destaca o impacto da noção de cultura sobre o

conceito de homem. O que no pensamento iluminista era visto como imutável,

idêntico, que partilha uma mesma razão em qualquer lugar e sociedade, passa a

ser pensado como um homem descentrado e fragmentado. A concepção

relativista de cultura vai manter uma tensão com a noção universalista. Para esta

última, as chamadas “culturas” são “disfarces”, “máscaras”, “roupas” que

escondem as profundas identidades dos homens. Já na visão relativista as

diferenças culturais revelam pensamentos, emoções e práticas diferenciadas dos

seres humanos, ou seja, culturas e linguagens são parte dos seres humanos.

Segundo Williams, ainda que nas obras contemporâneas mantenha-se e

pratique-se as duas posições, observa-se, a partir da segunda metade do século

XX, o delineamento de uma nova forma de convergência. Cultura passa a ser

encarada como um sistema de significações.

Assim, há certa convergência prática entre os sentidos antropológicos e sociológicos de cultura como ‘modo de vida

23

global’ distinto, dentro do qual percebe-se, hoje, um ‘sistema de significações’ bem definido não só como essencial, mas como essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social, e o sentido mais especializado, ainda que também mais comum, de cultura como ‘atividades artísticas e intelectuais’, embora estas , devido à ênfase em um sistema de significações geral, sejam agora definidas de maneira muito mais ampla, de modo a incluir não apenas as artes e as formas de produção intelectual tradicionais, mas também todas as ‘práticas significativas’ – desde a linguagem, passando pelas artes e filosofia, até o jornalismo, moda e publicidade – que agora constituem esse campo complexo e necessariamente extenso. (WILLIAMS,1992, p.13)

Há, portanto, no entender do autor, um entrelaçamento e uma ampliação

dos sentidos da palavra cultura, cuja investigação dá-se hoje através dos

chamados Estudos Culturais, ramo da sociologia geral sem um caráter reservado

ou especializado, diz Williams, mas que dá ênfase aos sistemas de significações,

`as práticas e produção culturais manifestas.

Martin-Barbero (2003) nos fala de um “descentramento” do conceito de

cultura no seu eixo semântico e pragmático com uma investigação voltada agora

para o popular e das relações deste com a história, os meios de comunicação e a

política. Há, segundo o autor, uma re-elaboração geral das relações cultura/povo e

povo/classes sociais que recupera o pensamento de Gramsci e a idéia de

hegemonia. O lugar do popular é “re-situado” e investigado como “parte da

memória constituinte do processo histórico”(Martin-Barbero, 2003, p.102).

Na obra Literatura e Vida Nacional, Gramsci (1968) analisa a cultura

italiana, investigando as aproximações e afastamentos entre as concepções de

vida culta e popular. Assim, há uma cultura erudita transmitida pela escola e

oficializada pelas instituições. De outro lado, há uma cultura vinda do povo, cujos

costumes não se enquadram nos esquemas oficiais. Do lado erudito há ainda uma

24

relação de oposição entre a visão conservadora e aqueles que defendem as

inovações, ou seja, uma vanguarda que se contrapõe ao pré-estabelecido.

Bosi (1985), em “A cultura do Povo”, afirma que enquanto a cultura popular

não está articulada com a cultura de elite ela é vista como “a outra”, como folclore,

fonte da diferença. Defrontam-se, assim, dois grupos: o primeiro tem suas

realizações culturais significadas socialmente; na outra, as realizações só

assumem significado quando postas em oposição `a cultura dominante.

Fleuri (1998), no estudo sobre Intercultura e Movimentos Sociais, aponta o

monoculturalismo como a perspectiva ligada `a classe dominante, com uma visão

igualitária, singular e universal. Já o multiculturalismo enfatiza a história, leva em

consideração a construção das identidades culturais, das diferenças que devem

ser respeitadas. Ele lembra que os estudos antropológicos mostraram que as

sociedades e classes subalternas também são depositárias de cultura, superando

a idéia de que esta seria um privilégio da classe dominante.

A tolerância `a diferença e a solidariedade aparecem como o

cimento que une os movimentos sociais em uma rede planetária que promova a igualdade com respeito `as diferenças culturais, assim como a luta contra os processo crescentes de exclusão social inerentes `a globalização. (FLEURI, 1998, p.11)

Em Literatura e Vida Nacional, Gramsci conta uma passagem de De Sancti

que trabalhou para a unificação da “classe culta” de Nápolis, mas percebia

também a necessidade de uma nova atitude diante das classes populares. Era

preciso um novo conceito de nacional, mais amplo e menos exclusivista. Gramsci

interpreta a frase de De Sanctis que diz: “Falta a fibra porque falta a fé. E falta a fé

porque falta a cultura”. O autor afirma que o enunciado significa uma concepção

da vida e do homem que é coerente, unitária e nacionalmente difundida. “Uma

‘religião laica’, uma filosofia que tenha se transformado precisamente em ‘cultura’,

isto é, que tenha gerado uma ética, um modo de viver, uma conduta civil e

individual” (Gramsci,1968, p.04).

25

Gramsci fala da necessidade de uma “cultura laica” que nunca houve na

Itália. Segundo o autor, o resultado disso foi a preferência dos italianos pelos

folhetins franceses aos romances nacionais. A literatura francesa representava,

assim, “um humanismo moderno, este laicismo em sua forma moderna” (Gramsci,

1968, p.108)

Nesse estudo do intelectual italiano fica clara a sua defesa por um

reencontro da cultura com os problemas concretos da vida social e nacional em

detrimento (ou afastamento) da cultura cosmopolita “sem raízes”, advinda pela

tradição católica na Itália.

Essa mudança na perspectiva histórica sobre o popular implicava, segundo

Martin-Barbero (2003), numa releitura sobre o popular na cultura da Idade Média.

Apoiando-se em Le Goff, o autor nos fala da Idade Média que deixa de ser o

tempo da lenda negra e da áurea para o tempo “que criou a cidade, a Nação, o

Estado, a Universidade, o moinho, a máquina, o relógio, a hora, o livro...e,

finalmente, a Revolução” (Martin-Barbero, 2003,p.103).

Na investigação dessa outra história, continua o autor, Le Goff pesquisou a

oposição entre cultura erudita e cultura popular. Uma história feita de conflitos e

diálogos. Muitas vezes em nome de uma cultura oficial foram destruídos objetos,

representações de deuses, abolidas práticas e rituais que, de outra forma, foram

recuperadas pela Igreja. Esse embate acabou criando um “diálogo ‘feito de

pressões e repressões, empréstimos e resistências’ entre Cristo e Merlin, santos e

dragões, Joana D´Arc e Melusiana” (Martin-Barbero, 2003, p.105)

A implicação do popular na análise de Martin-Barbero, está na mudança

metodológica, “a partir da qual se deve reler a história não enquanto história da

cultura, mas enquanto história cultural” (Martin-Barbero, 2003, p.104).

26

Gramsci (1999) recupera a questão nos anos 1960, a partir do conceito de

hegemonia, discutindo a dinâmica de dominação como um processo que envolve

a representação de interesses de uma classe, mas que também são reconhecidos

como seus pela classe subalterna. Assim, a hegemonia é um jogo que faz e se

desfaz, permanentemente; que envolve força, apropriação de sentido pelo poder,

mas também sedução e cumplicidade. Em outras palavras, a cultura popular

possui uma representatividade no espaço social que expressa o modo de viver e

pensar das classes subalternas. Mas também a sua sobrevivência e as formas

como absorvem o discurso hegemônico ao mesmo tempo em que fundem e

integram com a sua própria memória histórica.

Nessa trama entre o discurso hegemônico e o discurso popular, Garcia

Canclini (1982) chama a atenção para o fato de que nem todo discurso

hegemônico é assimilado pela classe subalterna, e nem toda recusa significa uma

resistência àquele discurso. Mas existem outras lógicas presentes nessa relação,

além da dominação.

Fleuri (1998) nos lembra que, por outro lado, a vida globalizada tende a

anular as diferenças e atenuar as desigualdades em nome do mercado, do

consumo e das comunicações globais. Assim, uma cultura (singular) poria fim as

especificidades, nivelando o cotidiano das pessoas em nome de uma vida melhor.

Mas nas fissuras da economia de mercado surgem novos comportamentos

marginais e localizados que evidenciam a complexidade das culturas (plural), não

só de classes sociais ou grupos territoriais, como também de faixas etárias,

experiências, instituições, organizações produtivas etc.

Bosi (1996) observa que a cultura popular está em constante re-elaboração.

Nem tudo é herdado, mas os temas se refazem com o passar das gerações.

Existe uma motivação espontânea dos membros de uma comunidade que os

empurra a reviver a dimensão folclórica, atualizando-a.

27

Segundo Laraia (2004) existem dois tipos de mudança cultural: a primeira é

interna - resultante da dinâmica do próprio sistema cultural . A segunda é

resultado do contato de um sistema cultural com outro. Nesse sentido, Laraia

afirma que cada sistema cultural está sempre em mudança. A compreensão dessa

dinâmica é importante para diminuir o choque entre gerações e evitar atitudes

preconceituosas.

Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar seriamente este constante e admirável mundo novo do por vir. (LARAIA, 2004, p.101)

1.1.1 - Cultura Popular e Folclore

Ortiz (2003) situa a questão a partir da assimilação da noção de folclore

como cultura popular. Para o autor nessa dimensão recupera-se a idéia de

tradição, tanto como “forma de tradição-sobrevivência”, como na “perspectiva de

memória coletiva que age dinamicamente no mundo da práxis” (Ortiz, 2003, p.70).

Observa, assim, uma ênfase no caráter conservador desse posicionamento. Ele

afirma, ainda, que no Brasil o folclore está ligado `a vida rural, das camadas

tradicionais agrárias, e menos `a burguesia urbana, como acontece na Europa.

O autor ressalta que a cultura popular como folclore valoriza a tradição

como a presença do passado. Nessa perspectiva, o progresso é visto como forma

de “de-sacralizar” o conhecimento popular. “Concebe-se, assim, uma pretensa

autenticidade das manifestações populares que irá radicalmente se opor a

qualquer movimento de transformação da realidade social” (Ortiz, 2003, p.71)

Observa, ainda, que a atuação dos Centros Populares de Cultura no Brasil,

nos anos 1960, foi fundamental para romper com essa concepção que unia o

28

conceito de cultura popular ao de folclore. Assim, o folclore passou a ser visto

como a representação das manifestações populares conservadoras, enquanto a

cultura popular exprimiria a idéia de transformação, ligada `a tomada de

consciência política, como o momento histórico apregoava na época da ditadura

militar.

Essa visão é criticada hoje, uma vez que pressupunha que os intelectuais

de esquerda deveriam ensinar o povo a ser povo. Ela encerra em seu interior o

entendimento de que o povo era alienado e precisaria de uma elite que lhe abrisse

os olhos para a transformação social do país que só poderia vir através da política.

Assim, o pensamento do CPC traz um paradoxo pois, nega o conhecimento

popular ao mesmo tempo em que se apóia nele para buscar a transformação

social.

Nesse sentido, Arantes (1990) propõe que o debate considere as culturas

efetivamente no que são, nos processos que as constituem e no que expressam,

em detrimento do que foram, seriam ou deverão ser.

1.1. 2 - Cultura Popular e Comunicação de Massa

Ecléa Bosi (1996) apresenta um outro elemento importante para a

compreensão da dimensão cultural na Contemporaneidade. O contexto da

comunicação de massa, no século XX, que expandiu o acesso da informação a

todas as classes sociais. A autora discute a questão dos Meios de Comunicação

de Massa (MCM) servirem, satisfatoriamente, `a cultura popular, uma vez que

possuem como pressuposto o alcance do maior número de pessoas possíveis.

Ecléa Bosi analisa as várias teorias criadas para explicar os MCM: a teoria

funcionalista, o interesse pelos efeitos dos meios sobre o homem; a visão de

Marshal Macluhan, dos meios como extensão do homem; a teoria crítica na visão

dos frankfurtianos. Quando investiga a cultura de massa com a cultura popular, a

29

autora afirma que os teóricos não conseguiram “aclarar” a distinção entre “uma

realidade cultural imposta de ‘cima para baixo’ (dos produtores para os

consumidores) e uma realidade cultural estruturada a partir de relações internas

no coração da sociedade” (Bosi, 1996, p.63).

Diante da indagação sobre uma possível absorção da cultura de massa

pela popular ela argumenta que do ponto de vista histórico e funcional “a cultura

popular pode atravessar a cultura de massa tomando seus elementos e

transfigurando esse cotidiano em arte... pode assimilar novos significados em um

fluxo contínuo e dialético” (Bosi, 1996, p.65).

1.1.3 - Cultura brasileira

Ao refletir sobre a cultura brasileira, Alfredo Bosi (2004) afirma que a cultura

popular se encontra em certas ocasiões com a cultura de massa, esta com a

cultura erudita e vice-versa. Há ainda as imbricações entre as velhas culturas

ibéricas, indígenas e africanas. Cada uma destas também polimorfas pelas fusões

dos contatos interétnicos. E existem ainda as miscigenações mais recentes,

resultantes do contato entre as culturas migrantes (japonesa, italiana, alemã, síria

etc) com as regionais (nordestina, gaúcha, paulista etc).

Alfredo Bosi diz ainda que já houve quem pensasse a cultura brasileira

como unitária e outros que extraíram dessa pretensa unidade uma idéia de

identidade nacional. Ele afirma que não existe uma cultura brasileira homogênea,

geradora dos nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário, é

fundamental admitir o seu caráter plural para a compreensão dos efeitos de

sentido, resultantes de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo

e no espaço.

Segundo o autor, essa multiplicidade causa uma aparência de caos. Daí o

uso corrente de expressões jocosas criadas para definir a mente brasileira como

30

“geléia geral” ou “samba do crioulo doido”. Mas, ao deslocarmos o olhar de

consumidor para o de analista da cultura, é possível definir linhas de força que

remetem a estruturas sociais diferenciadas. A idéia de caos e nonsense fica como

fruto da “civilização de massa”, mas o plural cultural se impõe e é preciso olhar

esse plural detalhadamente.

Alfredo Bosi afirma que um dos princípios diferenciadores para nortear a

análise seja o sentido de tempo. “Os ritmos das culturas no Brasil são diversos”

(Bosi, 2004, p.08). Existe um tempo cultural acelerado, diz o autor, que é o da

cultura de massa. Da mídia que produz cultura para consumo 24h por dia. TV,

rádio, sessão corrida no cinema, internet, publicação de revistas mensais,

semanais, jornais diários e até a pesquisa universitária precisa ser publicada se

não torna-se perene. Tudo ligado ao consumo: tiragem, prazo, lucro. Bens

simbólicos em ritmo industrial.

Essa cultura, segundo o autor, é alimentada pela idéia de novidade. É

imperiosa a substituição de signos de tempos em tempos para redefinir padrões,

modas, comportamentos. Para ele essa cultura industrial ocupa o tempo de relógio

e o interior do cidadão. Em decorrência há uma generalizada perda de memória

social. Para que o cidadão faça uma seleção e adquira um ponto crítico sobre a

sua representação de mundo é preciso que ele conheça ritmos diversos ao da

indústria de signos. Segundo o autor, é isso que tira o cidadão do risco da

massificação.

Alfredo Bosi leva-nos a indagar sobre qual seria essa outra cultura capaz de

resistir `a indústria cultural e enriquecer o cidadão no seu campo de significações.

Para ele a resposta se bifurca: ou é a cultura popular, das classes pobres e

iletradas, ou a cultura erudita conquistada com a escolaridade. Apesar de

cercadas pelos meios de comunicação, as duas alternativas guardam um centro

de resistência intencional ou não. “Resistência pressupõe, aqui, diferença: historia

interna especifica; ritmo próprio; modo peculiar de existir no tempo histórico e no

31

tempo subjetivo” (Bosi, 2004, p.10). Nem a cultura popular nem a erudita

constroem-se sob o regime da produção em série das linhas de montagens ou da

imposição dos horários mecânicos, afirma o autor.

O tempo da cultura popular pressupõe ciclos. Tempo sazonal, lunar, das

marés, do plantio e da colheita, da menstruação, do cio etc. O seu fundamento

está no retorno a situações e atos reforçados pela memória coletiva do grupo,

atribuindo-lhes valor. A inovação penetra a cultura popular traduzida e transposta

em velhos padrões de percepção e sentimentos já interiorizados. “De resto, a

condição material de sobrevivência das práticas populares é o seu enraizamento”

(Bosi, 2004, p11).

Ao nutrir-se da aparência do novo, os meios de comunicação afastam-se do

ciclo, do sazonal, do enraizamento. Caso o público um dia se visse saciado das

excitações televisivas, o sistema entraria em colapso, afirma Bosi. Já nas

manifestações populares o ato de participar cria uma identificação entre todos.

Mas a partir do momento que os meios de comunicação apoderam-se dessas

práticas cria-se um distanciamento e o que é popular torna-se espetáculo,

ocultando o caráter original de enraizamento.

Assim, o autor sustenta que no Brasil os estudos de cultura precisam se

relativizar, pois geralmente nossas fontes de informação têm como origem a

cultura erudita estabelecida na Europa e nos Estados Unidos. Por isso, a tarefa

das ciências humanas no país é aprofundar os estudos históricos-comparativos

sobre a formação social brasileira. Quanto a nossa cultura, Alfredo Bosi observa

que ela é plural, mas não caótica, transpassada pela divisão social.

Fazer o seu levantamento e divisar no claro-escuro do cotidiano as relações entre vida simbólica, economia e política é recusar-se a cair na tentação do absurdo que nos ronda mal deitamos os olhos nas manchetes dos jornais. (BOSI, 2004, p.15)

32

1.2 - Os estudos sobre Identidade

A questão das identidades culturais está entre as principais discussões que

envolvem as teorias sociais hoje. O tema relaciona-se com o sujeito e sua

inserção no mundo, a partir da modernidade, quando o indivíduo centrado e

unificado da era iluminista passa por questionamentos no pensamento ocidental.

Este sujeito é definido historicamente e não mais biologicamente. A análise passa

a ser vinculada `as representações culturais que se multiplicam na

contemporaneidade, o que leva a uma multiplicidade de identidades. A questão

tem uma de suas marcas no questionamento sobre as diferenças.

Para Hall (2004) as identidades modernas estão sendo "descentradas", isto

é, deslocadas ou fragmentadas. Um tipo diferente de mudança estrutural está

transformando as sociedades modernas desde o final do século XX. Isso está

fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e

nacionalidade. Noções que no passado eram consideradas sólidas para o

indivíduo na sociedade. Essas transformações estão abalando as identidades

pessoais, interrogando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos

integrados. Essa perda de sentido de si é chamada de deslocamento ou

descentramento do sujeito. Aí está posta a crise de identidade para o indivíduo.

Woodward (2000) afirma que as identidades adquirem sentido, através da

linguagem e dos sistemas simbólicos que as constituem. A autora apresenta a

questão sob duas perspectivas: a essencialista e a não-essencialista. A primeira

trata a identidade como algo que não se altera com o tempo. Ela é vista como

autêntica, cristalina. A visão essencialista fundamenta-se na história e na biologia.

A autora exemplifica com a maternidade, que seria uma identidade baseada na

biologia do corpo feminino. Por outro lado, os movimentos étnicos e religiosos

reivindicam uma cultura ou história comum para a fundamentação de sua

identidade.

33

Uma visão não-essencialista, segundo Woodward, foca-se nas diferenças,

assim como em características comuns ou partilhadas entre grupos. Mas também

observa as mudanças que tais características adquirem através dos séculos.

Portanto, é atribuída a identidade um caráter de construção social. Nas relações

interpessoais e em grupo existem entrelaçamentos da vida cotidiana com

aspectos econômicos, políticos e culturais ligados `a subordinação e dominação.

Segundo a autora, todas as práticas de significação simbólica incluem relação de

poder, constituindo-se em critérios de inclusão e exclusão social.

Escosteguy (2001) aponta equívocos nas duas correntes. A essencialista

não considera as diferenças do “outro", que é sempre visto de uma perspectiva

universalista. A segunda posição, por ser um produto social que destaca as

diferenças e descontinuidades históricas, olha o 'outro' pela perspectiva da

especificidade cultural única, sem entender a base comum da humanidade entre

as culturas, diz a autora.

Para a autora as duas posições correm o risco de se tornarem

preconceituosas. A universalista descuida da especificidade do "outro" em nome

de uma verdade absoluta e histórica. Assim, tende a julgar outras culturas com

base na sua própria. Por outro lado, a visão historicista ao destacar as diferenças

pode julgar o "outro" como inferior. Para a autora, é diante desse quadro que se

evidencia a problematização das identidades culturais.

Examinando autores como Stuart Hall, Jesús Martin-Barbero e Néstor

Garcia Canclini, que dão sustentação ao texto de Escosteguy, assim como o de

Woodward, observa-se que a discussão sobre identidade e diferença faz-se no

cenário da globalização e da pós-modernidade.

Segundo Hall (2004), globalização refere-se a processos em escala global

que ultrapassam fronteiras nacionais, “integrando e conectando comunidades e

organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo em

34

realidade e experiência mais interconectado” (Hall, 2004, p.67). Essa nova

percepção de tempo e espaço, resultante da compressão de distâncias e escalas

temporais presentes no fenômeno da globalização, reflete sobre as identidades

culturais.

O autor vê como conseqüência do processo de globalização três aspectos

sobre a identidade cultural: 1 - a desintegração das antigas identidades como

resultado da homogeneização cultural e do pós-moderno global; 2 - as identidades

nacionais e outras locais estão se reforçando pela resistência a globalização; 3 -

as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades, híbridas,

estão surgindo.

Hall examina três concepções de identidade. A primeira delas é o sujeito

iluminista que traz uma concepção da pessoa humana como indivíduo centrado,

unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. A

identidade nasce com o sujeito e se desenvolve com ele.

Grande parte da história da filosofia ocidental consiste de reflexões ou

refinamentos da concepção do sujeito, seus poderes e suas capacidades. Muitos

movimentos na cultura ocidental também o foram. A fé guiou os destinos do

homem durante séculos, tendo Deus como o centro do universo. O renascimento,

o iluminismo, confere ao Homem a capacidade para questionar, investigar e

conhecer os mistérios da natureza. O Homem racional, centrado, científico foi

libertado do dogma e da intolerância.

Portanto, o sujeito moderno nasceu do descentramento de Deus do

universo. Para Descartes, a concepção do homem como sendo o centro - "penso,

logo existo" - traz a concepção do sujeito racional, pensante e consciente, situado

no centro do conhecimento, o "sujeito Cartesiano". Para John Locke a identidade

da pessoa alcança a exata extensão em que sua consciência pode ir. Traz a

35

noção de "indivíduo soberano" - um sujeito da razão e das conseqüências das

suas práticas.

A segunda concepção é o sujeito sociológico, cuja noção reflete a crescente

complexidade do mundo moderno e a consciência de que o núcleo interior do

sujeito não é autônomo e auto-suficiente. Na medida em que as sociedades

modernas se tornavam mais complexas, a vida se tornou mais coletiva e social. As

teorias clássicas baseadas nos direitos individuais foram obrigadas a dar conta

das estruturas do estado-nação e das grandes massas que fazem uma

democracia moderna. Emergiu, então, uma concepção mais social do sujeito. O

indivíduo passou a ser visto como parte das estruturas da sociedade moderna, a

partir do século XVIII.

A sociologia forneceu críticas ao "individualismo racional" do sujeito

cartesiano. Localizou o indivíduo em processos de grupo e normas coletivas. Em

conseqüência desenvolveu uma explicação do modo como os indivíduos são

formados subjetivamente, através da participação nas relações sociais mais

amplas. Há uma internalização do mundo exterior no sujeito que depois volta a

exteriorizá-la. A exteriorização do interior. Esse modelo sociológico interativo com

sua reciprocidade estável entre o "interior" e "exterior" é em grande parte um

produto da primeira metade do século XX, quando as ciências sociais assumem

sua forma disciplinar atual.

O sujeito sociológico é formado nas relações com outras pessoas

importantes para o sujeito. Essas pessoas mediam para ele os valores, sentidos,

símbolos - a cultura, do mundo que habitam. O sujeito ainda tem um núcleo

interior, mas este é formado e modificado num diálogo constante com o mundo

exterior, as identidades que o mundo lhe oferecem. Ele abrange o espaço interior

e exterior, o mundo pessoal e o público. Internalizamos valores que passam a

fazer parte de nós, alinhando os sentimentos subjetivos com os lugares objetivos

36

do mundo social e cultural. A identidade, então, costura, “sutura” o sujeito `a

estrutura. Sujeito e mundo cultural são unificados e estáveis.

A terceira concepção é o sujeito pós-moderno cuja identidade previamente

estabelecida como unificada e estável está se tornando fragmentada. Composto

não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não

resolvidas. Mudanças estruturais e institucionais estão na raiz dessa

transformação. Há um colapso das paisagens sociais que asseguravam a

conformidade da vida subjetiva com as necessidades do mundo objetivo. Esse

processo produz o sujeito pós-moderno, que não tem uma identidade fixa,

essencial, permanente.

A identidade torna-se uma "celebração móvel", formada e transformada de

acordo com as representações e interpelações dos sistemas culturais vigentes. Na

medida em que os sistemas de significação e representação cultural se

multiplicam, confrontamos uma multiplicidade de identidades possíveis com as

quais podemos nos identificar, ao menos provisoriamente.

Segundo Hall, a sustentação do pensamento pós-moderno da

fragmentação das identidades passa também por deslocamentos. Primeiro,

através da releitura do pensamento de Marx, nos 1960, sob a luz da afirmação

que "homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhe são dadas"

(Hall, 2004, p.34), quer dizer, os agentes da história só podem agir com base nas

condições históricas criadas pelos seus antecessores, utilizando os recursos

materiais e de cultura que lhes foram fornecidos por gerações anteriores.

O segundo descentramento no pensamento ocidental do século XX vem

dos estudos freudianos sobre o inconsciente. A teoria de que nossas identidades,

nossa sexualidade, e a estrutura dos nossos desejos são formadas por processos

psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona por uma lógica diferente

daquela da razão. O pensamento de Freud nega o conceito de sujeito cartesiano.

37

Para Freud, a subjetividade é o produto de processos psíquicos inconscientes.

Jaques Lacan, interpretando Freud, diz que a imagem do eu como inteiro e

unificado é algo que a criança aprende gradualmente e com dificuldade. A

formação do eu dá-se na relação com os outros. Na relação com os pais, a

chamada "fase do espelho". A formação do eu no "olhar" do outro, de acordo com

Lacan (1999), inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela

mesma e assim se dá a entrada dela nos sistemas de significação, incluindo

língua, cultura, diferença sexual. Os sentimentos contraditórios e não resolvidos

que acompanham a criança são aspectos chave da formação inconsciente do

sujeito. (amor e ódio do pai, o conflito do desejo de agradar e o impulso para

rejeitar, a divisão entre as partes boa e má, a negação da parte masculina ou

feminina).

Tudo o que deixa o sujeito dividido permanece com a pessoa por toda a

vida. Entretanto, embora o sujeito esteja sempre partido, dividido, ele vivencia sua

própria identidade como se ela estivesse resolvida e definida, unificada. Algo que

ele formou na fase do espelho. Essa, de acordo com esse raciocínio psicanalítico

é a origem contraditória da identidade. A identidade, portanto, forma-se ao longo

do tempo, por processos inconscientes. Está sempre em processo, sempre sendo

transformada.

O terceiro descentramento está associado à lingüística estrutural de

Ferdinand de Saussure (1995) para quem a língua é um sistema social e não

individual. Falar uma língua é antes de expressar nossos pensamentos, ativar a

imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em

nossos sistemas culturais. O significado surge nas relações de similaridade e

diferença que as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua.

Por exemplo, a noção do que é "noite" porque sabemos que é diferente de "dia".

O quarto descentramento vem do trabalho do filósofo e historiador Michel

Foucault (2000). Ele destaca um novo tipo de poder que ele chama de poder

38

disciplinar que se desdobra ao longo do século XIX. O poder disciplinar está

preocupado, com a regulação, a vigilância é o governo da espécie humana, de

populações, do indivíduo e do corpo. Seus locais são as novas instituições que

policiam e disciplinam as populações modernas - oficinas, quartéis, escolas,

prisões, hospitais, clínicas. O poder disciplinar é fruto das novas instituições

coletivas. Suas técnicas envolvem uma aplicação do poder e do saber que

individualiza ainda mais o sujeito e envolve mais intensamente seu corpo.

O quinto descentramento é o feminismo, tanto como uma crítica teórica

quanto como movimento social. Faz parte dos novos movimentos sociais que

surgiram nos 1960 - marco da modernidade tardia. O feminismo apelava `as

mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, `as lutas raciais aos negros, o

movimento antibelicista aos pacifistas. Isso constitui o nascimento histórico do que

veio a ser conhecido como política de identidade.

A preocupação de Hall é com a identidade nacional. No mundo moderno, as

culturas nacionais constituem-se em uma das principais fontes de identidade

cultural. Elas são vistas como da natureza essencial do Homem. Mas as

identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são

formadas no interior da representação. Sabemos o que é ser brasileiro pelo modo

como a brasilidade veio a ser representada. A nação não é uma entidade política,

mas algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural. Uma nação

é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu poder para gerar um

sentimento de identidade e lealdade.

Hall apresenta aspectos sobre a narrativa da cultura nacional como fonte

de significados.

1 - Narrativa da Nação como é contada na história, na literatura, na mídia e

cultura popular. Dá importância e significado a nossa existência, conectando

nossas vidas cotidianas com o destino nacional que preexiste a nós e continua

existindo após nossa morte (idéia de continuidade).

39

2 - Estratégia da Tradição, mesmo que certas vezes essas práticas façam

parte de um passado recente e algumas vezes inventadas, busca inculcar valores

e normas de comportamento pela repetição, implicando a continuidade.

3 - O Mito Fundacional: uma estória que localiza a origem da nação, do

povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que se perdem nas

brumas do tempo, não o tempo real mas o tempo mítico.

4 - A identidade nacional é também baseada muitas vezes numa idéia de

povo puro, original (folk).

Assim, o discurso de cultura nacional constrói identidades que são

colocadas de forma ambígua, entre o passado e o futuro. Ortiz (2003) observa a

questão do ponto de vista da autenticidade. O fato da identidade ser uma

construção simbólica elimina as dúvidas sobre a falsidade ou veracidade do que é

produzido. O autor entende que não há uma identidade autêntica, “mas uma

pluralidade de identidades construídas por diferentes grupos sociais em diferentes

momentos históricos” (Ortiz, 2003, p.08).

1.2.1 - Identidade e Diferença

De acordo com Ortiz (2003) toda identidade se define por algo que lhe é

exterior, isto é, a diferença. Daí a preocupação em constituir a idéia de uma

cultura nacional. Por outro lado, o autor observa que a questão envolve também

uma dimensão interna. Não basta dizer que somos diferentes, mas mostrar com o

que identificamos.

Para Hall (2004) a idéia de cultura nacional constitui uma "comunidade

imaginada": as memórias do passado, o desejo por viver em conjunto, a

perpetuação da herança. Para os defensores desse posicionamento uma cultura

nacional busca unificar classe, gênero ou raça numa identidade cultural que

represente a grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma

40

identidade desse tipo unificadora que anula e subordina a diferença cultural?

Indaga-nos Hall.

Essa idéia gera dúvidas, segundo o autor, por várias razões: as nações são

constituídas de culturas separadas que foram unificadas após longo processo de

conquista violenta. Segundo, que as nações são constituídas de diferentes classes

sociais, etnias, gêneros. Terceiro, os países colonizadores exerceram influências

nas culturas colonizadas, exercendo uma hegemonia cultural.

Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, Hall observa que

deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo que representa a

diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas

diferenças internas, sendo unificadas através do exercício de diferentes formas de

poder cultural. Como no pensamento lacaniano do "eu inteiro" as identidades

nacionais continuam a ser representadas unificadas.

A etnia é o termo utilizado para nos referirmos `a língua, ` a religião, aos

costumes, `as tradições e aos sentimentos de lugar. Mas é um mito tentar usar a

etnia como algo fundacional no mundo atual. As nações modernas, no entender

de Hall, são todas “híbridos culturais”. Seria mais difícil unificar a identidade

utilizando-se da noção de raça. Esta não é uma característica biológica,

contrariamente a crença generalizada. Raça é uma categoria discursiva,

organizadora das formas de falar, sistemas de representação e práticas sociais

(discurso) que utilizam um sistema frouxo em termos de diferenças de

características físicas. As nações européias são geralmente de sangue misto:

França (célticos, ibéricos e germânicos), Alemanha (célticos, germânicos e

eslavos).

Portanto, a idéia de nação como identidade cultural unificada perde sentido

quando se constata que as identidades nacionais não subordinam todas as outras

formas de diferença e não estão livres do jogo do poder, de divisões e

41

contradições internas, de lealdades e diferenças sobrepostas. É importante ter em

mente a forma como as culturas nacionais costuram as diferenças numa única

identidade.

Para Hall (2004), sob a perspectiva desta fábula pode-se caracterizar

melhor o que entendemos por um sujeito múltiplo: ele se inscreve na ordem do

mestiço, do impuro, do entrecruzamento, do nem isso nem aquilo, da incerteza, da

instabilidade. Hall fala por experiência própria já que ele mesmo é fruto desse

hibridismo cultural por ser africano e viver na Inglaterra.

Martin-Barbero (1995) identifica, na América Latina, a presença de

movimentos diferenciados de negociação de sentidos que incorporam “imagens”

dessa “cultura de massa global”, mas com marcas de uma outra identidade

construída numa outra história. É a diferença que rege essas relações. Para o

autor, a América Latina é o resultado de várias temporalidades e de histórias

plurais que impedem uma visão unificada dos processos de desenvolvimento dos

países da região. Assim, sociedades mais avançadas convivem com outras menos

modernas e outras mais tradicionais. Por isso não se pode pensar a América

Latina por um esquema de oposição rural/urbano, universal/ local ou

erudito/popular.

A América Latina é entendida por Martin-Barbero como espaço de

mestiçagens, onde na construção do massivo, a identidade cultural na

modernidade tardia é resultado de cruzamentos, fusões e mesclas entre popular,

massivo e culto. Para ele o popular é o principal lugar das mestiçagens e das

apropriações de significados. Isso evidencia a contradição em que se vive no

continente, com sua heterogeneidade e descontinuidade de tempos, memórias e

imaginários.

Ao contrário da Europa que entrou na modernidade através dos livros, na

América Latina, Martin-Barbero (2003) identifica a modernidade como o resultado

42

de uma tradição oral que continuou evidenciada através do rádio e se mesclou

com a cultura visual do cinema e da televisão.

No mesmo caminho de Martin-Barbero encontra-se o pensamento do

argentino Néstor Garcia Canclini. Ao analisar a América Latina como uma

articulação entre tradição e modernidade, onde coexistem múltiplas formas de

desenvolvimento, o autor utiliza o termo “hibridismo cultural” para explicar a

identidade cultural latino-americana.

Garcia Canclini (1995), ao estudar a presença dos meios de comunicação

na formação das identidades latino-americanas, afirma que o rádio e o cinema

foram importantes para organizar os relatos da identidade e cidadania nacional, na

primeira metade do século XX. Eles agregaram, `as narrativas de heróis, o falar

popular e os hábitos comuns que diferenciavam os povos. Então, num primeiro

momento, programas de rádio, por exemplo, serviram para conectar os grupos

que viviam no mesmo país em zonas distantes.

Na década de 1960, os meios massivos renovaram sua função, quando

aliados à televisão ajudaram a organizar o imaginário desenvolvimentista dessas

sociedades. Criaram costumes cosmopolitas ao incentivar o uso de aparelhos

domésticos eletrônicos, unificando o consumo. A publicidade difundia, assim, os

produtos nacionais na tentativa de fortalecer a indústria nacional.

Na década de 1980, observa Garcia Canclini, a abertura das economias

nacionais para o mercado global e os processos de integração regional reduziram

o papel das culturas nacionais. Na perspectiva do mundo sem fronteiras a

comercialização de bens culturais interferiu na significação das identidades

tradicionais, criando novas formas de percepção do mundo.

Para Martin-Barbero (2003) a presença dos meios de comunicação de

massa no cotidiano latino-americano desvaloriza a visão sobre o nacional. Assim,

43

encarnam uma posição mediadora na construção de outras identidades: urbanas,

regionais e locais. O autor acredita num esfacelamento das identidades

tradicionais pelos meios massivos e redes eletrônicas uma vez que veiculam um

multiculturalismo.

Dessa forma, Martin-Barbero observa que os processos de comunicação

atuam na produção de identidades, na reconstituição de sujeitos e atores sociais.

O autor não vê os meios de comunicação como simples fenômeno comercial ou

de manipulação ideológica, mas um espaço onde as pessoas vivem a constituição

do sentido da vida.

Para Garcia Canclini (1997) o processo de hibridização é principalmente

urbano e definido pelos meios de comunicação. Há uma oferta simbólica

heterogênea que se renova na interação do local, com o regional e o global.

Assim, culturas híbridas envolvem toda a produção onde não é possível separar o

culto, o popular ou o massivo.

Sua análise observa também a importância do mercado e seu poder na

constituição de identidades, inferiorizando a influência do Estado nos processos

atuais de consumo. Garcia Canclini (1995) propõe em Consumidores e Cidadãos

que os problemas de consumo não se relacionam apenas com a eficácia

comercial ou a publicidade, mas é uma questão de gosto pessoal. Sua justificativa

passa por questões como a “oposição entre o próprio e o alheio; as intersecções

do global mediado pelo local; a necessidade de definição de políticas culturais em

tempos de integração cultural e globalização”.

1.2.2 - Entre o local e o global

A compressão de espaços e tempos no processo de globalização acentua

as tensões entre o local e o global. Para Hall (2004), ao invés de pensar o global

substituindo o local é mais certo pensar numa nova articulação entre os dois

pólos. Este local não deve ser confundido com velhas identidades tradicionais,

44

bem delimitadas. Há uma possibilidade de negociação das relações de origem, do

tradicional, com a modernidade sem a ilusão de um retorno ao passado. O local

atua na lógica do global.

Garcia Canclini (1995) observa que nas artes o fenômeno da globalização

não impediu que a indústria cultural mantivesse nichos mercadológicos para

produtos que valorizam as identidades locais ou nacionais. Ao mesmo tempo em

que há uma força em direção a uma “desterritorialização das artes” o autor indica

uma outra, de reação, a favor de uma “reterritorialização”. Esta é representada

“por movimentos sociais que afirmam o local e também por processos de

comunicação de massa” (Garcia Canclini, 1995, p.170)

Ortiz (2000) observa que uma cultura mundializada não significa o fim de

outras manifestações culturais. “Ela cohabita e se alimenta delas” (Ortiz, 2000, p.

27). A língua inglesa, por exemplo, está espalhada pelo planeta por causa do

colonialismo inglês, do poderio da indústria cultural norte-americana no séc. XX,

do avanço da informática. Mas não se pode pensar apenas como uma imposição

da língua, algo rígido. A língua inglesa se adapta aos territórios em que habita

criando espaços “transglóssicos” no qual outras expressões lingüísticas se

manifestam. Há portanto, um enraizamento no cotidiano das práticas sociais.

Para Ortiz, não há uniformidade quando se discute as questões culturais.

Ao invés de pensarmos num mundo dividido entre homogeneidade e

heterogeneidade é melhor discutir como os diversos grupos que vivem no cenário

da globalização compartilham gostos, atitudes, estilos de vida. Então, o consumo

é estimulado dentro de uma lógica global, mas mantendo sua promoção entre

grupos específicos.

Garcia Canclini (1995) observa que nações e etnias continuam existindo,

mas com influência diferenciada sobre os grupos sociais, pois diversos sistemas

simbólicos se entrelaçam nesse cenário. Elas não serão exterminadas no

45

processo de globalização, mas é preciso analisar como as identidades étnicas,

nacionais e regionais se comportam nos processos de hibridização intercultural.

Para o autor a reflexão atual deve considerar a diversidade de

possibilidades artísticas e dos meios de comunicação que contribuem para a

reconstituição das identidades. No espaço da “cultura histórico-territorial”, ou seja,

dos saberes mais enraizados - como nas zonas rurais -, os efeitos da globalização

são menores pela limitação da abertura econômica.

Nos espaços dos meios de comunicação de massa, Garcia Canclini

observa que países como o Brasil e o México possuem uma tecnologia própria

que gera certa autonomia dos padrões impostos pela globalização. Mas a situação

de dependência se aprofunda na maioria dos países da região, em relação ao

padrão global, principalmente o imposto pela cultura norte-amercana.

Garcia Canclini analisa ainda que o enfraquecimento das identidades

nacionais é maior no terreno das tecnologias de informação, como satélites e

redes óticas. Nesse aspecto há uma remodelagem dos comportamentos em

empresas e no entretenimento baseada nos padrões globais.

Nesse cenário de trabalho e de consumo, o autor afirma que os conceitos

de hegemonia e resistência continuam úteis, pois os conflitos de identidade e

cidadania estão no centro dessa discussão. Mas sem perder o olhar para os

processos de negociação de sentidos, na medida em que as interações são

híbridas e multiculturais.

Para Hall (2004) a globalização também impulsionou o processo migratório,

principalmente, em direção aos países produtores de bens de consumo. Ondas de

migrantes que fogem das condições precárias de seus países de origem, tanto

econômica quanto socialmente. O resultado é a formação de enclaves étnicos

46

minoritários no interior dos estados-nação do ocidente que leva a uma pluralização

de culturas nacionais e de identidades nacionais, num mesmo território.

Assim, num mundo de fronteiras dissolvidas, as velhas certezas e

hierarquias da identidade são postas em cheque. O fortalecimento de identidades

locais pode ser visto como uma reação defensiva `a presença de outras culturas

em determinada região. Também há evidências do surgimento de novas

identidades advindas com a globalização como o sentido de black para o inglês -

asiáticos e afrocaribenhos são considerados de cultura black na Inglaterra,

segundo o autor.

Parece que a globalização tem sim o efeito de contestar e deslocar as

identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Tem um efeito

pluralizante sobre as identidades, produzindo novas possibilidades, tornando as

identidades mais posicionais, políticas, mais plurais e diversas. Em toda parte

estão surgindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas,

em transição, entre diferentes posições.

Há ainda uma outra possibilidade: a da tradução. A formação de identidade

de pessoas que ultrapassam a fronteira natural, pessoas que foram dispersas para

sempre da sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares

de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Nas

novas culturas em que vivem são obrigadas a negociar. Elas são produtoras de

várias histórias e culturas interconectadas e pertencem a várias "casas" ao mesmo

tempo. È o que Hall (2004) chama de “hibridismo”. Pessoas traduzidas pelas

diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Pessoas que habitam em si duas

identidades, pertencem a duas culturas diferentes ao mesmo tempo e estão

constantemente traduzindo-se e em processo de negociação cultural.

Para Hall, o ressurgimento de movimentos puristas mostra uma virada

bastante inesperada dos acontecimentos na época da globalização e dessa busca

47

de homogenização global. Tanto o liberalismo como o marxismo, em suas

diferentes formas, davam a entender que o apego ao local e ao particular daria

lugar, gradativamente, para valores e identidades mais universais. Entretanto, a

globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do global nem a

persistência de versões nacionalistas do local. Os deslocamentos ou os desvios

da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que

sugerem seus protagonistas e seus oponentes, afirma Hall.

1.3 - Os Caminhos da Recepção

Uma das questões atuais mais debatidas no meio acadêmico e até

mesmo pelos próprios mass media é a supremacia dos meios de comunicação na

sociedade contemporânea. O que muitos chamam de uma sociedade mediática3 é

a constatação da forte presença dos meios de comunicação no cotidiano das

pessoas, levando a indagações sobre o papel que desempenham na sociedade.

Muitas vezes, de forma equivocada, há uma supervalorização do poder de

atuação dos mass media4 sobre os consumidores/receptores, como se estes

fossem incapazes de possuir opinião própria. Dentro dos Estudos Culturais

entendo que a pesquisa de recepção ocupa um lugar de destaque nas análises

sobre os meios de comunicação, uma vez que mostra as formas socialmente

diferenciadas de apreensão de sentidos pelo leitor/espectador. Este passa a ser

entendido como sujeito ativo e crítico, passível de interpretações diferenciadas do

texto mediático ( verbal e não-verbal).

1.3.1 - Recepção e Estudos Culturais

Nos Estudos Culturais, a temática que envolve a relação

cultura/comunicação massiva, com foco nas estratégias de interpretação popular,

passou por transformações a partir dos anos 1960. Segundo Escosteguy (1999) ,

3 Mantenho a forma original da palavra que vem do latim media.

4 Meios de massa em inglês

48

num primeiro momento com a atenção voltada para a recepção e o consumo

mediático, principalmente a televisão. A autora observa que Stuart Hall – do

Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham - identificava três

posições hipotéticas de interpretação do conteúdo televisivo no seu estudo

“Enconding and decoding in television discourse”, publicado em 1973. A posição

“dominante”, quando a audiência decodifica a mensagem com referências em

quem construiu tal discurso; uma segunda posição “negociada”, onde o sentido da

mensagem está “em negociação” com as condições particulares do grupo

receptor; e ainda uma terceira via, de contraposição ao discurso dominante.

Nos anos de 1970, os Estudos Feministas na Inglaterra dão uma nova

dimensão à recepção ao introduzir questões de identidade pensadas através de

novos ângulos, onde a cultura de classe é colocada em segundo plano, passando-

se a observar fenômenos ligados a gênero, raça e etnia. Mattelart e Neveu (2004)

destacam a pesquisa de Laura Mulvey, em 1975, que, baseada na psicanálise,

analisou como filmes hollywoodianos identificavam o prazer com o “olhar

masculino”.

Nos anos de 1980 e 1990, tanto Escosteguy quanto Mattelart e Neveu

observam uma multiplicação das análises dos meios de comunicação que se

espalham por academias de todo o mundo, com destaque ao pensamento latino

americano. Também há um re-posicionamento quanto aos métodos investigativos,

com atenção maior ao trabalho etnográfico.

Mattelart e Neveu (2004) destacam o trabalho do britânico David Morley

que foi pioneiro no uso de grupos focais para observar a audiência de programas

de televisão. De certa forma ele recupera o modelo de codificação-decodificação

de Stuart Hall, mas exibe um posicionamento crítico a esse método.

49

[...] Centrado sobre a importância das posições de classe, ele não permite perceber a importância do quadro doméstico de percepção, das relações no seio da família e mais especialmente o lugar das mulheres. O trabalho com os focus groups faz nascer interrogações inovadoras sobre o papel da mídia na produção de diversos registros identitários. O deslocamento das problemáticas iniciado por Morley aqui se acentua, ruma `a dimensão do “gênero” (gendered) nos processos de recepção e na relação com os instrumentos técnicos de comunicação. (MATTELART E NEVEAU, 2004, p.98)

Em seu estudo intitulado América Latina e os Anos Recentes : o estudo da

Recepção em Comunicação Social, Martin-Barbero (1995) defende a idéia de que

a recepção não é apenas uma etapa do processo de comunicação, mas um lugar

novo, de onde deve-se repensar os estudos e a pesquisa de comunicação. O

autor sugere a explosão do modelo mecânico, isto é, emissor – mensagem –

recepção:

Entendo modelo mecânico como sendo aquele em que não há nem verdadeiros atores nem verdadeiros intercâmbios. É o modelo em que comunicar é fazer chegar uma informação, um significado já pronto, já construído, de um pólo a outro. Nele, a recepção é um ponto de chegada daquilo que já está concluído. Ele leva a uma confusão epistemológica muito grave. Estaríamos confundindo, permanentemente, a significação da mensagem com o sentido do processo e o das práticas de comunicação, como também reduzindo o sentido destas práticas na vida das pessoas ao significado que veicula a mensagem. (MARTIN-BARBERO, 1995, p.40)

O autor considera que esse modelo “condutista” concentra todo o

significado da mensagem do lado do emissor enquanto ao receptor caberia

apenas reagir aos estímulos enviados pelo emissor. Uma epistemologia que vê o

receptor sempre como o que recebe, lugar de chegada. Mas Barbero afirma que é

preciso ver a recepção também como um lugar de partida, de produção de

sentidos.

50

A concepção “condutista” aliou-se a epistemologia iluminista “segundo a

qual o processo de educação, desde o século XIX, era concebido como um

processo de transmissão do conhecimento para quem não conhece. O receptor

era “tábua rasa”, apenas um “recipiente vazio para depositar os conhecimentos

originados, ou produzidos, em outro lugar”. (Martin-Barbero,1995, p.41)

Segundo o autor as duas concepções, condutista e iluminista – aliam-se

ainda a idéia moralista de que o receptor é uma vítima, um ser manipulado,

condenado “ao que se quer fazer com ele”. Uma visão que coincidiu com o avanço

da crítica de esquerda na América Latina, uma visão crítica política e social.

Dos anos 60 para os anos 90 conviveram na América Latina essas duas

visões, segundo Martin-Barbero, da “politização absoluta das análises de

mensagem com a despolitização, a dessocialização do receptor pensado

individualmente, como um coitado, exposto `as manipulações dos meios”.(Martin-

Barbero,1995, p.42)

Martin-Barbero (2003) traz uma releitura do conceito de hegemonia de

Gramsci. Ele afirma que a dominação não se dá apenas pela imposição da força,

mas passa também pelo consentimento das classes subalternas.

Está em primeiro lugar o conceito de hegemonia elaborado por Gramsci, possibilitando pensar o processo de dominação social já não como imposição a partir de um exterior e sem sujeitos, mas como um processo no qual uma classe hegemoniza, na medida em que representa interesses que também reconhecem de alguma maneira como seus as classes subalternas. E “na medida” significa aqui que não há hegemonia, mas sim que ela se faz e desfaz, se refaz permanentemente num processo vivido, feito não só de força, mas também de sentido, de apropriação do sentido pelo poder, de sedução e de cumplicidade. (MARTIN-BARBERO, 2003, p.116)

Para Martin-Barbero esses conflitos são articulados no espaço da cultura.

Daí a necessidade de, nas ciências sociais, observar também o conceito

51

gramsciano de folclore como cultura popular, no sentido de “concepção do mundo

e de vida” que está em contraposição ao modo de vida culta, `as concepções de

vida oficiais estabelecidas ao longo da história. Para Barbero, Gramsci liga cultura

popular a subalternidade, mas de um modo que identifica nessa cultura “uma

tenacidade, uma espontânea capacidade de aderir `as condições materiais de vida

e suas mudanças, tendo `as vezes um valor político progressista, de

transformação”.(Martin Barbero,2003, p.117)

Mas, observa que não se pode exagerar na interpretação e considerar toda

ação popular como extremamente positiva, de resistência ou revolucionária. Ele

cita Garcia Canclini que já havia notado tais excessos entre pensadores de

esquerda em concluir, apressadamente, que entre a cultura hegemônica e a

subalterna a tarefa da primeira é a dominação e da segunda é a resistência.

Em todo caso, ver o popular a partir da ótica gramsciana redunda totalmente contrário ao facilismo maniqueísta que Garcia Canclini critica. Se algo nos ensinou é a prestar atenção `a trama: que nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e que nem tudo que vem “de cima” são valores da classe dominante, pois há coisas que vindo de lá respondem a outras lógicas que não são as da dominação. (MARTIN-BARBERO, 2003, p.119)

Pensando a recepção como lugar e não como etapa vislumbra-se,

inicialmente, as mediações. A primeira delas é a questão das anacronias e das

diferentes relações com o tempo, pois na reflexão sobre a pós-modernidade há

uma crítica radical a essa visão unidirecional da história, buscando um resgate da

“heterogeneidade de temporalidades”.

A concepção progressista da história de que ela vai apenas para uma direção, impediu de ver a multiplicidade de temporalidades, a multiplicidade de histórias, com seus próprios ritmos e com suas próprias lógicas. Assim, a primeira questão que se introduz na investigação da recepção é a de que não há mais só uma história, nem sequer naquele sentido em que Marx pensava, isto é, a burguesia como classe universal que unificava

52

os tempos.Parece-me importante na pós-modernidade essa nova sensibilidade, envolvendo a multiplicidade, e a heterogeneidade de temporalidades que combinem. (MARTIN-BARBERO, 1995, p.43)

Segundo o autor, a concepção de oposição entre modernidade e tradição

está mudando porque na sociedade atual há grupos moderníssimos e outros

menos modernos e tradicionais.”Não há mais passo da tradição à modernidade

como se não houvesse aspectos absolutamente contraditórios, mas sim formas de

articulação entre diversos processos de modernidade e tradição”.(Martin-

Barbero,1995, p.44)

Um segundo aspecto de mediação é sobre as novas fragmentações sociais

e culturais. Os meios de comunicação cada vez mais investem na programação

diferenciada buscando um público específico. Para Martin-Barbero essa

fragmentação não tem nada de novo uma vez que aprofunda as velhas divisões

de classe e que apenas inova na forma de produzir a fragmentação. Uma

fragmentação causada pela tecnologia que cria novas sensibilidades, novos

modos de relação de jovens com a tecnologia, diferentemente dos mais velhos,

para quem a tecnologia causa um certo medo.

As novas tecnologias reorganizam a experiência das pessoas, criam uma

nova sensibilidade. Então, as relações sociais hoje são fragmentadas por sexo,

idade, etnia etc. Há também uma nova organização entre o espaço público e o

privado. Não é somente a privatização da economia, mas também a

desprivatização da vida íntima, vide programas como Big Brother. Há também as

fragmentações dos públicos cada vez mais especializados, voltados para estratos

sociais como mulheres urbanas, mulheres rurais etc.

53

A segunda questão polêmica colocada pelo autor é sobre a reorganização

cultural na modernidade5. Martin-Barbero indaga-nos sobre como estamos

pensando essa nova estrutura quando ainda convivemos na sociedade com altos

índices de analfabetismo na América Latina. Ele observa que para os que não

lêem há uma passagem da cultura oral para modernidade por meio da gramática

do rádio, do cinema e da televisão. “Enquanto nós estamos pensando na

modernidade ligada `a ilustração, ao livro, como o grande meio ilustrado, nossas

maiorias não apenas estão sendo incorporadas à modernidade, estão

apropriando-se da modernidade”. (Martin-Barbero,1995, p.50) Essa apropriação

faz-se sem deixar a cultura oral, pois a maioria continua não lendo.

Cria-se então novas fragmentações e rearticulações das relações entre

culto e popular, massa e vanguarda. Para o autor não dá para pensar a cultura

Latino-Americana nos moldes dos europeus, pensando em pureza cultural, pois a

nossa história é a história das mestiçagens. Não existe mais a pureza cultural do

tempo das colônias dos séculos 18 e 19. Então, segundo o autor, não há como

culpar a Televisão se os jovens não lêem mais. Há uma nova sensibilidade aí que

os mais antigos não estavam captando e que agora é preciso rever.

Outro aspecto da recepção destacado por Barbero diz respeito à exclusão

cultural. Tudo o que é de gosto popular é desqualificado, deslegitimado,

considerado vulgar. “Não podemos estudar a recepção sem analisar essas

dimensões de exclusão que hoje continuam vivas em nossa sociedade, por mais

transformações que tenha havido”.(Martin-Barbero,1995, p.52)

Mas há também outra reflexão a ser feita. A recepção não pode tudo, não é

tudo. Não se pode confiar no slogan publicitário de que o consumidor tem a

palavra e ponto final. A reação do receptor depende do que é emitido, num

processo de mediação. Também não se pode desligar o estudo da recepção dos

5 Martin-Barbero considera que na América Latina vivemos a modernidade tardia e não a contemporaneidade, termo que eu prefiro para definir as relações culturais na atualidade.

54

processos de produção. “Eu não poderia compreender o que faz o receptor, sem

levar em conta a economia de produção, a maneira como a produção se organiza

e se programa, como e por que pesquisar as expectativas do receptor.” (Martin-

Barbero,1995, p.55)

Portanto, o autor não abdica da ideologia na sua análise sobre a recepção,

mas muda o olhar em relação a ela. Ressalta que é preciso considerar na análise

a economia de produção, a maneira como a produção se organiza e se programa;

a concentração econômica e o poder político. Isto é, não se pode pensar que o

receptor é uma vítima manipulável como também desconsiderar os saberes cada

vez mais especializados dos produtores de mídia. São dois extremos perigosos.

Há, portanto, uma interação entre esses dois pólos da comunicação.

Finalmente, há que se considerar ainda os modos de interação com o

próprio meio, no uso desses aparatos socialmente reconhecidos e comercialmente

legitimados. Assim, é preciso observar a recepção como “espaço de interação”,

processo de negociação de sentido. Na interação há uma circulação de

significados, mas não podemos cair nos extremos: quem sabe sobre comunicação

é o emissor ou pensar o receptor como aquele que faz o que quer com a

mensagem. A proposta de Barbero é que se faça uma interação não só com a

mensagem, mas com a sociedade, com outros atores sociais, não só com os

aparatos.

1.3.2 - Trama conceitual

Para Martin_Barbero (2003) as investigações sobre a recepção possuem

quatro caminhos a ser seguidos: os estudos da vida cotidiana, os estudos sobre o

consumo, os estudos sobre estética e semiótica da leitura, e sobre a história social

e cultural dos gêneros. Sobre os estudos da vida cotidiana, destacam-se os

autores brasileiros. Essa pesquisa rompe com a visão puramente reprodutiva da

vida diária como espaço da reprodução da força do trabalho. Mas a vê como

espaço em que se produz. “A sociedade está sendo ativamente produzida, pela e

55

para a maioria das pessoas[...] A vida cotidiana é o lugar em que os atores sociais

se fazem visíveis do trabalho ao sonho, da ciência ao jogo” (Martin-Barbero,1995,

p.59).

É preciso resgatar o viver cotidiano como espaço de produção do

conhecimento e de troca de sensibilidades. Segundo o autor é interessante notar

que Habermas, um continuador do marxismo da Escola de Frankfurt, tenha

admitido que a categoria da comunicação é hoje mais importante nas relações

sociais que a categoria do trabalho. Então, em que medida a vida cotidiana é o

espaço de reconhecimentos socialmente importantes?

Outra categoria para análise é o consumo que pode ser observado como

ponto de organização da diferença, da distinção social, dos modos de consumir.

Barbero cita como exemplo o cartel de Cali, que ao invés de tentar tomar o poder

na Colômbia tomou a maneira de organizar as casas, os mobiliários e as

edificações, impondo o seu gosto. Então o consumo além de ser prática de

apropriação dos produtos sociais é ainda lugar da diferenciação social. Também

pode ser analisado como modo de circulação e popularização de sentido, pois

para haver a diferenciação social os grupos precisam comunicar essa diferença.

Em quarto lugar, o consumo é cenário de objetivação de desejos, pois muitas

vezes consumimos sem levar em conta aspectos econômicos, mas pelo prazer de

consumir. Por último está a dimensão do ritual do consumo que fixa tempos,

modelos, pauta etc.

Por último é preciso falar do gênero como estratégia de comunicação

ligada aos diversos universos da cultura. A partir dos trabalhos de semiótica do

russo Yuri Lotman, o autor latino-americano verifica a existência de duas culturas

na sociedade: uma interessada em conhecer a gramática dos textos culturais e

outra em que o prazer está no próprio texto. Como exemplo, Martin-Barbero cita a

pessoa que vê um filme policial, se apaixona e passa a conhecer esse gênero pelo

fato de sempre assistir a filmes policiais. Ele acaba se especializando naquilo.

56

Como acontece com o brasileiro em relação `as novelas. Por entender assim o

gênero essas pessoas acabam sendo expressão dessa cultura.

Assim, é possível avançar as análises da relação dos meios com os

consumidores culturais. A questão não é mais reconhecer os meios, nem a

pluralidade cultural, nem afirmar a relação de dominação. O aparato ideológico

está presente, diariamente, em noticiários, novelas, filmes e programas de

variedades. Mas é possível acreditar que se os efeitos produzidos pelos meios

não são homogêneos nos receptores então é possível acreditar que na recepção

está o germe da mudança, afirma Martin-Barbero.

No processo de comunicação a recepção não pode mais ser entendida

como lugar de chegada. Esta deve ser vista sob uma nova dimensão como

apontam os estudos de Jesus Martin-Barbero. Um lugar de partida, de produção

de sentidos, mas que leve em consideração a economia de produção e o

conhecimento dos produtores culturais.

A afirmação de que “não é o meio que é ruim, mas o uso que o homem faz

dele”6 talvez nos revele uma saída sobre o domínio dos meios de comunicação na

sociedade atual.

Com o aporte teórico apresentado neste capítulo acredito ter pavimentado o

caminho que continuo a trilhar.

6 Ouvi o termo numa aula com o professor Mauro Wilton de Souza, durante um curso ministrado aos professores de Comunicação Social da UFMT, num convênio com a ECA-USP, em 1997.

57

2 - INVENTÁRIO SOBRE O BAIRRO SÃO GONÇALO

Nenhum milagre é permitido agora... E lá se iria o resto de prestígio Que no meu bairro eu inda possa ter!... Mário Quintana

58

2 .1 - Espaços urbanos x comunidade

Antes de mergulhar nas pesquisas sobre o São Gonçalo creio ser

importante posicionar-me diante de uma discussão já posta em outros trabalhos

que o situam como uma comunidade ribeirinha. Consultando vários desses

pesquisadores, percebi que a maioria utiliza-se do conceito de comunidade para

definir a convivência entre seus moradores. Outros simplesmente o apresentam

assim, sem um questionamento sobre o que é ser ou não comunidade.

Entre esses trabalhos me chamou a atenção a pesquisa de Torezan (2000)

que coloca em discussão o fato de o São Gonçalo ser tratado como comunidade,

tanto pelo senso comum como em pesquisas acadêmicas.

Januário (1997) é um dos pesquisadores que emprega o conceito de

comunidade para o São Gonçalo baseado no pensamento de Rocher Guy (1979)

para quem:

A comunidade é formada por pessoas unidas por laços naturais ou espontâneos, assim como por objetivos comuns que transcendem os interesses particulares de cada indivíduo. Um sentimento de ‘pertença’ `a mesma coletividade domina o pensamento e as ações das pessoas, assegurando a cooperação de cada membro e a unidade ou união do grupo. A comunidade é, pois, um todo orgânico no seio do qual a vida e os interesses dos membros se identificam com a vida e o interesse do conjunto. (GUY, 1979, pp.168-169)

Da mesma forma, a historiadora Neuza Kerche, baseada na

definição acima, afirma que o São Gonçalo é uma comunidade “pois entre seus

moradores existe, apesar do tempo e das mudanças, este sentimento de

pertencimento e união que é visível a qualquer pessoa que converse com os

mesmos” (Kerche, 2004, p.13).

59

Ao questionar tal definição, Torezan afirma que o conceito de comunidade

em Ciências Sociais recebeu muitas críticas pela sua insuficiência metodológica,

apesar de muito presente nos estudos das décadas de 1940 e 1950. Ao pretender

a compreensão da sociedade como um todo, através do estudo de um grupo

isoladamente, os estudos de comunidade utilizavam o método da descrição das

partes para se chegar ao todo. As relações de dependência externa eram

desconsideradas, importando os estudos das estruturas fechadas e autônomas.

Para Torezan, a falha conceitual está na abordagem do objeto que

desconsidera qualquer relação deste com a realidade externa. Para a autora, essa

interpretação resulta numa realidade social fragmentada por não dar conta de

todas as relações ali imbricadas.

Não podemos dizer que o São Gonçalo, em algum tempo, foi uma comunidade – no sentido teórico do termo – por sabermos que desde a sua ocupação as pessoas que ali moravam mantinham relações de interdependência com outras localidades. Hoje esta interpretação é mais pertinente do que nunca, pois o que podemos constatar é que o grupo social em questão está totalmente voltado para o mercado de trabalho urbano. (TOREZAN, 2000, p.08)

Ela justifica seu posicionamento, mostrando que mesmo os

ceramistas e os pescadores precisam de um mercado consumidor externo ao

espaço do São Gonçalo. Além disso, a agricultura - que foi atividade importante

entre os ribeirinhos e abastecia o mercado urbano - é hoje quase inexistente entre

os moradores. As transformações sociais levaram aqueles ribeirinhos a procurar

emprego na cidade, principalmente na construção civil e serviços domésticos,

mesmo mantendo as atividades de pesca e artesanato. Segundo a autora, essa

constatação leva os moradores a um paradoxo entre a “estrutura microssocial” –

com sua cultura “tradicional” e a “macroestrutura” com as atividades dentro do

perímetro urbano e suas conexões com o mundo exterior.

60

Sua opção é por tratar a população do São Gonçalo como um “grupo social”

para que não haja equívocos na teoria adotada por ela. Para a autora o grupo

passou por mudanças profundas no modo de vida, desde a ocupação pelos

bandeirantes até o processo de urbanização de Cuiabá. Ela considera o São

Gonçalo uma “estrutura social que se mantém enquanto microestrutura na medida

em que reforça a sua cultura perante a estrutura macrossocial à qual está

inserida” (Torezan, 2000, p.29). Torezan observa ainda que entre os ribeirinhos

permanece uma tendência de considerar as atividades tradicionais como a

essência das relações sociais, ao mesmo tempo em que se percebe uma

dependência crescente das atividades externas ao São Gonçalo.

Ao constatar a presença cada vez maior da macro-estrutura social no bairro

São Gonçalo busquei referências em Sanchez (2004) para explicar a cultura e a

renovação urbana. A autora - baseada em autores que pensam os espaços

urbanos dentro da Contemporaneidade, como Debord (1995), Arantes (2000),

Bienenstein (2000) e Jameson (1995), entre outros - afirma que a reestruturação

urbana está ligada a dinâmica econômica do mundo capitalista. Assim, as cidades

seguem um receituário que inclui parcerias do setor público com o setor privado,

com realizações de projetos urbanísticos que inserem esses espaços no processo

de mercantilização das cidades. A autora questiona tal postura dos

administradores urbanos pois, muitas vezes, a experiência beneficia apenas o

capital imobiliário sem mudanças significativas, por exemplo, na geração de

empregos para a população.

Sanchez discute também a relação do capitalismo com a cultura em sua

“versão urbana contemporânea”. A autora mostra como a cultura se insere no

mundo dos negócios. Investimentos em museus, centros culturais, contratação de

arquitetos internacionais, preservação de monumentos e outras estratégias de

negócios transformam os centros urbanos em cidades-espetáculos, lembrando

Debord (1995) para quem a Sociedade do Espetáculo teria a cultura como a

vedete do capitalismo.

61

Não se pode afirmar que Cuiabá se insere dentro dos padrões do que a

autora descreve como cidade-espetáculo, é verdade. Mas é possível observar que

há uma tendência, por parte da administração local, em criar projetos urbanísticos

para aumentar a mercantilização dos espaços urbanos. É o caso do estudo sobre

a implantação do plano conjunto de urbanização entre Cuiabá e Várzea Grande

(aglomerado urbano), das estratégias de revitalização da cidade com a

proliferação dos parques – Parque Mãe Bonifácia, Parque Massairo Okamura,

Parque da Cidade, Parque da Saúde no Coxipó, e mais recentemente o Parque

Nair Nigro e o Parque das Águas7. E ainda os espaços destinados a grandes

monumentos. Segundo o secretário de cultura da cidade, Mário Olimpio, a

prefeitura pretende construir dez monumentos até o final de 2007. Entre eles estão

o Monumento ao Boi, do artista plástico Umberto Espíndola - no mirante do Centro

de Eventos do Pantanal - e a Casa da Manga, de Gervane de Paula, no Museu do

Rio.8

Dentro dessa visão da cultura nos espaços urbanos contemporâneos é

interessante notar também a contratação da empresa do renomado arquiteto

Jaime Lerner para desenvolver projetos urbanísticos em Cuiabá. Entre eles estão

a revitalização do cais do Porto da cidade com cafés e teatros; a Barra do Pari, `as

margens do rio Cuiabá, ganhará uma praia de arame para preservar sua

vegetação, e o Farol do Minhocão, para relembrar seu mais famoso mito; e a

reurbanização do Beco do Candieiro, que receberá tons de ouro para lembrar sua

formação histórica da época da exploração aurífera da cidade no século XVIII. O

próprio São Gonçalo ganhará também espaços de visitação turística com a

construção de um planetário no local onde se encontram as águas do rio Coxipó

com as do rio Cuiabá.9

7 O Parque Nair Nigro e o Parque das Àguas são projetos previstos para inaugurar até dezembro de 2007. Fonte: Prefeitura de Cuiabá. 8 Fonte: secretaria de Cultura de Cuiabá 9 Fonte: IPDU, prefeitura de Cuiabá.

62

Mas não é meu interesse discutir com profundidade tal assunto por não ser

esse o objetivo desta pesquisa. Toda esta retórica é para justificar a minha

posição em situar o São Gonçalo Beira Rio não como uma comunidade, mas

como um espaço urbano que está em interação com outros espaços da cidade e

totalmente inserido na vida urbana de Cuiabá.

Complementando, Maciel da Silva (2002) mostra no seu Estudo da

Percepção em Espaços Urbanos Preservados como a cidade se tornou um

espaço indispensável para a sociedade por estar inserida no processo de

produção capitalista:

No sistema capitalista a cidade se tornou um fenômeno que aglutina em torno de 80% da população mundial e acabou se tornando um espaço condicionante da sociedade, pois viabiliza a continuidade da sua produção; é também, local de relacionamento das classes sociais ou grupos e por isso tem uma dimensão simbólica, uma vez que envolve o cotidiano; é cenário e objeto das lutas sociais cujos grupos sociais visam os seus direitos. (MACIEL DA SILVA, 2002, p.08)

2.2 - Inventário sobre o São Gonçalo

Para a melhor compreensão da relação do espaço São Gonçalo com

os pesquisadores, eu fiz um levantamento das investigações científicas realizadas

ali nos últimos anos, principalmente, da década de 1990 em diante. Após a

listagem inicial, dissertei sobre aqueles trabalhos que considerei mais importantes

do ponto de vista cultural e que, assim, trariam mais contribuição para esta

incursão no universo do São Gonçalo. Para situá-los, enquanto obras acadêmicas,

eu ordenei as pesquisas pela hierarquia de titulação a que seus autores aspiravam

na época. No resumo da obra a minha preocupação foi manter a idéia de seu

autor, principalmente, daqueles trabalhos que tratam de assuntos técnicos

distantes da minha formação profissional. Por último listei os trabalhos

63

audiovisuais e cênicos encontrados sobre o São Gonçalo (SG). Num segundo

momento, detalhei os trabalhos acadêmicos com maior ênfase na discussão

cultural envolvida no universo do bairro, na perspectiva de entrelaçar as

considerações apresentadas por esses pesquisadores com a minha experiência

nesta incursão ao São Gonçalo.

TRABALHOS ACADÊMICOS

1 – KEUTZ, Irene. Cuidado Popular com Ferida: representações e

práticas na comunidade de São Gonçalo. São Paulo: USP, 1999. Tese de

Doutorado, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 1999.

Estudo etnográfico da comunidade de SG com o objetivo de compreender o

cuidado com feridas nesse contexto sócio-cultural. A pesquisa mostrou que os

moradores têm modos peculiares de explicar as feridas, revelando uma

concepção etiológica de multicausalidade, admitindo causas naturais, sociais e

sobrenaturais que orientam seus procedimentos terapêuticos. As representações

e conceitos diversos em oposição às práticas dos profissionais do sistema oficial

de saúde. Há então um hiato entre esses profissionais e a população. Barreiras

lingüísticas e culturais. Frente a estas constatações discute-se a importância e a

necessidade do estabelecimento de um diálogo intercultural ente os dois grupos, o

que poderá ser conseguido por meio de mudanças nos paradigmas que orientam

o ensino, a pesquisa e a prática dos enfermeiros e demais professores da área de

saúde.

Hemeroteca: TES/ 709

2 – ARRUDA, Maria Lúcia de Mello. Plantas Medicinais: conhecimento

popular x conhecimento científico. Cuiabá: UFMT, 1997. Dissertação de

Mestrado em Educação, Cultura e Sociedade, Instituto de Educação, Universidade

Federal de Mato Grosso, 1997.

64

O trabalho enfoca a relação paradigmática entre conhecimento científico e

conhecimento popular. Pretende aproximar a prática dos raizeiros do SG da

prática dos cientistas da UFMT.

Biblioteca setorial de Educação: 09/97 DIE

3 – JANUÁRIO, Elias Renato da Silva. As vidas do Ribeirinho: meio

ambiente, cotidiano e educação na comunidade ribeirinha do São Gonçalo.

Cuiabá: UFMT, 1997. Dissertação de Mestrado em Educação e Meio Ambiente,

Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, 1997.

O trabalho se propõe a conhecer o universo do ribeirinho do SG na

perspectiva etnográfica; coloca em evidência a dinâmica sócio-cultural do

ribeirinho, apontando para os elementos cotidianos que integram a relação

homem-natureza.

Biblioteca setorial de Educação: 20/97 DIE

4 – LOPEZ, Mariângela Solla. Com a Cara e a Coragem – para ouvir as

vozes da comunidade ribeirinha de São Gonçalo. Cuiabá:UFMT/USP, 2000.

Dissertação de Mestrado interinstitucional em Comunicação),Escola de

Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2000.

O trabalho articula dois eixos de ação: o rádio como objeto de estudo para

compreender a cultura de uma sociedade e os estudos de recepção, como

perspectiva de análise. A pesquisa aborda a lógica da produção de mensagens

radiofônicas e a lógica do consumo dos meios pela audiência para estudar o

processo de recepção do programa “Com a cara e a Coragem”, na comunidade

ribeirinha SG. Um estudo qualitativo de interpretação da audiência que parte da

recepção e toma como mediações a cultura e o território para entender como

65

aconteceu os processos de negociação de sentidos e de apropriação de

significados pelos ouvintes. Hemeroteca: TMT 00865

5 – ANDRADE, Ivanilza Vanusa. Gosto de Tauá – a cerâmica de São

Gonçalo: suas mudanças e ressignificações. Cuiabá: UFMT, 2000.

Especialização em Antropologia: teoria e métodos, Centro de Ciências Sociais,

Universidade Federal de Mato Grosso, 2000.

O trabalho tenta compreender o motivo da permanência e aumento da

produção de objetos artesanais e indagar-se a respeito dos motivos que o

“sistema social” oferece para tanto. Analisar o agrupamento ribeirinho de SG

enfocando sua interação com a produção artesanal de cerâmica tanto pelo

condicionamento econômico como pela representatividade sócio-cultural que esta

ocupação traz. Esclarecer como o consumo urbano altera o significado da

produção material e simbólico das culturas tradicionais.

Hemeroteca ESP/2259

6 – BORGES, Luiz Oliveira. O Discurso e a Materialização

Organizacional. Cuiabá: UFMT,1986. Especialização em Administração,

Universidade Federal de Mato Grosso, 1986.

Na introdução do trabalho o autor versa sobre a produção das organizações

modernas tendo como objetivo verificar a organização da produção no hospital

Julio Muller. Sobre o significado das teorias no trabalho cita o exemplo da

comunidade SG falando sobre o modo de produção artesanal de cerâmica

Hemeroteca: ESP/302

7 – PALMA, Lucia C. Na Boca do Forno a Forma de um Povo.

Cuiabá: UFMT, 1986. Especialização em Educação e Cultura -

Fundamentação didático-metodológica de Formação Docente em nível superior,

Faculdade de Direito, Universidade Federal de Mato Grosso, 1986.

66

O trabalho analisa o trabalho da mulher na produção da cerâmica. Aborda a

questão produção/circulação/consumo do artesanato de São Gonçalo. Tenta ainda

mostrar a importância de políticas culturais voltadas para as camadas populares.

Finaliza o trabalho mostrando o papel fundamental que o próprio produtor tem em

conduzir seu próprio destino; e que o futuro das culturas populares depende da

força conjunta de toda a sociedade.

Hemeroteca: ESP/ 286

8 – TOREZAN, Ariane Patrícia Domingos. São Gonçalo: uma análise das

transformações nas formas de obtenção da subsistência da população

ribeirinha. Cuiabá: UFMT, 2000. Especialização em Antropologia, Departamento

de Antropologia, Universidade Federal de Mato Grosso, 2000.

Propõe uma discussão sobre a situação paradoxal entre a estrutura

microssocial – cultura tradicional X macroestrutura que abrange o perímetro

urbano e toda a conexão que possa proporcionar com o mundo exterior. Esta

tensão entre o micro/local e o macro/global se traduz na maior preocupação da

Antropologia Contemporânea. Pretende fazer uma discussão a respeito das

formas de obtenção da subsistência e as transformações que esta tem sofrido

levando em conta os problemas que os ribeirinhos enfrentam, atualmente, para

conseguir sobreviver.

Hemeroteca: ESP / 2275

9 – SOUZA, Luzia Francisca de. Levantamento Etnobotânico na

Comunidade São Gonçalo. Cuiabá: pesquisa do programa inter-institucional

CNPq/UFMT/UNIR/UFAC, 1992. Departamento de Botânica e Ecologia,

Universidade Federal de Mato Grosso, 1992.

Estudo realizado em 1991 para obtenção de dados etnobotânicos através

do contato com moradores e coleta de material botânico. Foram evidenciados 07

itens de utilização da flora do cerrado e da mata ciliar que delimitam a localidade

como: medicina caseira, frutos comestíveis, curandeirismo, trabalho ceramista,

artefatos de madeira e similares, plantas utilizadas na pesca.

67

Hemeroteca: MT/ 794 – MA

10 – ARRUDA, Maria Lucia de Mello. Cultura Popular: a arte cerâmica de

São Gonçalo. Revista Leopoldianum – revista de estudos e comunicações vol.

XVI. Cuiabá, 1989.

Pesquisa realizada em 1982, abordando o artesanato da cerâmica feito em

SG. Através de entrevistas com moradores, a pesquisadora revela o

desenvolvimento do processo artesanal. A manifestação folclórica da cerâmica foi

registrada desde o seu início, que a busca da matéria prima, o barro, a

modelagem até a venda dos objetos artesanais. Estes permanecem na sociedade

como resquícios da uma cultura herdada que aos poucos vão se transformando

com o reflexo e como espelho do modo de vida urbano atual. Hemeroteca: MT /

1599

11– ARRUDA, Maria Lucia de Mello. Cultura Popular: a dança de São

Gonçalo. Coleção Pesquisa nº 1, Departamento de Artes, UFMT, Cuiabá, 1982.

Pesquisa sobre a dança de SG partindo do processo de urbanização no

BR, MT, até chegar a Cuiabá e as transformações do universo habitacional em

zona urbana nas décadas de 60, 70, com um modo de vida diverso do provinciano

o que determinou mudanças estruturais. Procurou-se mostrar o fenômeno que se

apresenta em Cuiabá como causador do enfraquecimento das manifestações

folclóricas e da substituição destas por outras manifestações que se caracterizam

como populares, nascidas em grupos pertencentes a uma nova realidade social,

englobando as características do desenvolvimento moderno e absorvendo suas

modificações, como é o caso das escolas de samba.

Hemeroteca: MT/ 906

12 – MONTEIRO, Nancy B. A. L. Avaliação de Ações Antrópicas e dos

Impactos Sedimentológicos na sub-bacia do Córrego São Gonçalo. Cuiabá:

68

UFMT, 1997. Monografia, Depto Eng.Sanitária, Universidade Federal de Mato

Grosso, 1997.

O trabalho de conclusão de curso propõe uma avaliação do mau uso e ocupação

do solo e o comprometimento dos impactos sedimentológicos na sub-bacia do

córrego SG, em função da forma desordenada do seu uso na área de estudo

envolvida e no seu entorno. Hemeroteca: TCC/ 771

13 – ROSA, Ana Carla. Avaliação dos Impactos Antrópicos e

sedimentológicos na sub-bacia do córrego são Gonçalo - perímetro urbano.

Cuiabá: UFMT, 1996. Monografia, Depto. Engenharia Sanitária, Universidade

Federal de Mato Grosso, 1996.

Trabalho de conclusão de curso cujo objetivo é avaliar o grau de impacto

hidrossedimentológico na sub-bacia do córrego SG, em função das ações

antrópicas antropogênicas e do mau uso e ocupação do solo na parte envoltória

do sistema conectado.

Hemeroteca: TCC/1201

LIVROS

1 - KERCHE, Neuza M. E. Comunidade São Gonçalo, História, Lendas e

Tradições. Cuiabá: ed. Centro América, 2004.

O livro é destinado, principalmente, para alunos de 1º e 2º graus. Os temas

são tratados de forma bastante superficial. A autora afirma que buscou

informações no trabalho de mestrado de Elias da Silva Januário. Utiliza dados

históricos para falar sobre a posição geográfica do bairro. Defende a idéia de que

o SG é uma comunidade. Conta histórias sobre a origem do povoado e do nome,

a procedência de seus moradores, as atividades desenvolvidas no local. Dá um

destaque maior ao artesanato da cerâmica. Nas transformações ocorridas no

bairro ressalta o papel da televisão como meio desagregador do local, de inserção

de novos costumes.

69

2 - SANTOS, Abel. Viola-de-cocho: novas perspectivas. Cuiabá: ed.

UFMT,1993.

O livro tem como objetivo despertar o interesse das pessoas pela viola-de-

cocho. Segundo o autor, a pesquisa serve também para uma aproximação da

música com as escolas de 1º e 2º graus, com o propósito de reintegrar a música

ao currículo escolar. O livro conta histórias sobre a viola-de-cocho e descreve

aspectos técnicos dela, a fabricação, seus acordes, afinação e até um repertorio

musical regional. Como proposta para a introdução da música na grade curricular

das escolas, o autor defende que a viola-de-cocho é o instrumento adequado para

essa tarefa, pela importância que tem para a cultura mato-grossense e para a

sua reintrodução ao cotidiano das pessoas. O autor não cita o São Gonçalo como

local de sua pesquisa. Em alguns momentos, Abel Santos se refere a entrevistas

com violeiros ligados a Associação Folclórica de Mato Grosso.

VÍDEOS

1 - COMUNIDADE de São Gonçalo “Ora viva meu São Gonçalo, oi torna

reviva”. Produção Alailton Campos e Marcio Moreira. Direção Geral Kátia

Meirelles. Cuiabá: Imagem e Som, 2001. 1 fita de vídeo

(17 min. Aprox.), miniDV, son. Color.

O vídeo tem como tema a Festa de São Gonçalo realizada no início de

janeiro. Através dos preparativos para o festejo mostra o cotidiano dos moradores

e sua ligação com a pesca e o artesanato da cerâmica. Tenta passar a idéia da

necessidade da preservação das tradições locais.

2 - O BAIRRO perdido do São Gonçalo. Produção Marcelo Okamura.

Direção Marcelo Okamura. Cuiabá: MTO, abril 2001. 1 fita de vídeo (19 min),

Betacam, son. Color.

O vídeo mostra o SG numa perspectiva saudosista, do lugar das origens de

Cuiabá que está sendo esquecido pela população. Destaca a produção da

cerâmica, mas fala também sobre a pesca e a viola-de-cocho como riquezas do

70

lugar que estão passando por transformações com o progresso da cidade. É

enfático na idéia da necessidade de um certo “resgate” das tradições locais.

PEÇA DE TEATRO

1 - O HOMEM do barranco. Texto e Direção Carlos Ferreira, 1991.

Texto dramático baseado na Bíblia (Gêneses) e nas histórias contadas

pelas mulheres do SG. Uma narrativa feita através das personagens da lavadeira,

da ceramista, Mãe Oxum e do Homem do Barranco, todas interpretadas pelo

próprio Carlos Ferreira. Na peça estão presentes os principais elementos do

universo do ribeirinho, como a fé, as crendices, o sofrimento com as enchentes do

Rio Cuiabá, a natureza, a lida com o barro para a confecção de cerâmicas, as

danças e cantos típicos dos moradores do SG.

2.2.1 – Detalhamento do Inventário

Este inventário de pesquisas científicas constitui-se num olhar externo

sobre o São Gonçalo. A Ciência tem essa característica de olhar sobre um objeto

e extrair dele muito mais do que a simples aparência real nos revela. Nesse

contato com o Outro a revelação se faz pelo olhar. É preciso ver o invisível, como

observou Merleau-Ponty (1971). É isso que todos esses pesquisadores se propõe

a fazer quando analisam o modo de vida dos ribeirinhos, procurando sentidos que

nem sempre se revelam na superfície das relações sociais.

Abaixo, passo a descrever algumas das obras listadas acima, nas quais o

meu olhar de pesquisador observa elementos mais representativos para um breve

diálogo com este trabalho. Não que as outras pesquisas não os tenham, pois é

impossível a todas essas incursões ao São Gonçalo separar o aspecto cultural da

Medicina, da Educação, da Botânica ou da Biologia. Mas foi preciso delimitar as

observações, principalmente, às Ciências Sociais, para que a minha pesquisa

não desviasse do seu foco principal, que é a análise de imagens. Também levei

71

em consideração o fato de que determinados aspectos abordados por um autor

estão mais detalhados em outro, não sendo necessário, então, a repetição.

Assim, exponho a seguir cinco trabalhos, nos quais centrei-me na

observação de como esses cientistas estabelecem identidades para os ribeirinhos.

Minha intenção não é dissecá-los, com análises profundas sobre a obra, sua

abordagem metodológica, sobre a própria Ciência. Faço apenas apontamentos. É

importante destacar também que esses trabalhos apresentam aspectos de

interdisciplinaridade, quando falam de Educação, Antropologia, Comunicação,

Sociologia e Cultura. Interdisciplinaridade que está presente nos Estudos

Culturais.

Em Palma e Januário é possível observar outros trabalhos, mais antigos,

citados por esses autores, que foram feitos em São Gonçalo, desde meados do

século XX. Os vídeos serão analisados no capítulo quatro, pois constituem o foco

principal desta pesquisa. A intersecção destes trabalhos com o objeto estudado

aparecerá nas considerações finais.

AS VIDAS DO RIBEIRINHO

Elias Renato da Silva JANUÁRIO, 1987.

A pesquisa toma como objetivo compreender as transformações que vêm

ocorrendo na “comunidade” e suas implicações ambientais; identificar as

alterações no ambiente ribeirinho; verificar a forma de ocupação do espaço e uso

dos recursos naturais da região; observar o conhecimento dos ribeirinhos em

relação `a natureza e o papel da educação formal quanto aos princípios da

educação ambiental. O problema parte da relação homem-natureza.

O autor entende ribeirinho como pessoa que vive próxima a rios ou ribeiras

e que se relaciona com o ambiente local (perspectiva etnográfica). Ao descrever

trabalhos realizados em comunidades ribeirinhas, Januário afirma que na esteira

desta e outras pesquisas o universo das comunidades assentadas na depressão

72

cuiabana passou a ser estudado com um caráter mais profundo, com reflexões

sobre a relação homem-natureza-educação.

Na perspectiva etnográfica, o autor se propõe a observar o cotidiano dos

ribeirinhos, descrevendo o universo deste grupo e respeitando a sua diversidade

cultural. Januário compreende cultura como um texto que pode ser lido e

interpretado, sendo que estas interpretações aguardam novas indagações e

formulações sempre mais densas.

O autor diz que usou a história como instrumento de domínio científico. Na

busca de compreender os acontecimentos pelos caminhos da memória, procurou

“evidenciar o papel relevante das lembranças das mulheres, exímias

observadoras, não desconsiderando contudo, os depoimentos proporcionados

pelos senhores da comunidade” (Januário,1987, p.10). O autor diz que não

identificou as entrevistas para preservar os informantes e que encontrou

resistência nos moradores no início por causa de uma reportagem que saiu na

imprensa na época.

O trabalho está dividido como se segue: no capítulo I, Januário descreve a

localização, limites, geografia, flora, fauna, população e o rio Cuiabá. No capítulo II

fala sobre o uso dos recursos naturais na região de SG com depoimentos de

agricultores.; como é o cotidiano do agricultor; as práticas domésticas para

combater pragas na lavoura. O autor afirma que o agricultor de SG “vive uma

situação de desequilíbrio econômico, marcada pelas alterações de ordem

ambiental que se processaram na região como efeito do desenvolvimento urbano

de Cuiabá, desintegrando as relações comerciais com a cidade e transformando a

região em subúrbio da capital” (Januário, 1987, p.102). Enfoca também a redução

da produção agrícola nas décadas de 1960/70 com a urbanização. Fala sobre a

usina de SG; a criação de animais, a pesca, dos tipos de pescadores, situação

econômica, relação dos danos ecológicos com a pesca; aborda o artesanato:

73

sobre quem faz, onde vende, os 30 artesãos da comunidade, detecta problemas

no mercado consumidor. Por último fala das doceiras de SG.

Em seguida, passa a descrever a atividade ligada a cerâmica. Conta que o

trabalho era feito basicamente por mulheres. O assunto e´ abordado com mais

detalhes “não apenas pelo condicionante econômico, mas pela representatividade

sócio-cultural que esta ocupação traz imbuída, respondendo pela conservação de

várias tradições peculiares do povo ribeirinho mato-grossense” (Januário,1987,

p.119).

Januário conta sobre o processo de elaboração da cerâmica, da retirada do

barro, a secagem, a confecção de peças , o polimento, a queima. O autor diz que

pesquisou em cadernos cuiabanos da prefeitura de Cuiabá, 1978 . Januário se

mostrou detalhista, num trabalho criterioso de observação e estudo bibliográfico

sobre o tema. Descreve o forno, a extração da lenha, consumo de lenha por forno,

custos, fala sobre o impacto ambiental com a queima da madeira , fala sobre

loteamentos e propriedades em torno da comunidade. Os efeitos do progresso

sobre a cerâmica. Cita Garcia Canclini em “As culturas populares do capitalismo”.

Segundo o autor, a Casa do Artesão possibilitou a mudança das peças

produzidas como objetos utilitários (moringas, panelas, pratos) para peças

decorativas (vasos, pássaros, fruteiras etc). Depois discute o futuro de tal costume

com o declínio, a concorrência, o cotidiano do ceramista, os jovens que não

prosseguem a tradição.

O capítulo III aborda a organização social e as práticas culturais como

“imagens do cotidiano”. Januário faz uma narração sobre o que é observado no

local: o ambiente, as habitações. Como é a moradia, disposição de móveis,

divisão de quartos, objetos, higiene pessoal. Cita a infra-estrutura do lugar,

telefone, água encanada, segurança, energia elétrica.

74

O autor passa a discutir as transformações ocasionadas com a chegada da

TV e as mudanças de valores. O medo de sair `a noite, violência nas ruas do

bairro. Aborda aspectos como abuso sexual entre pai/filha/enteada; a entrada das

drogas a partir da década de 1970; estrutura social; família, a solidariedade

(prática do muxirum para assuntos de coletividade, mas não se ajuda mais uma

pessoa em particular); a divisão do trabalho e a educação em casa.

Januário aborda também sobre o conhecimento e o respeito à natureza,

prática transmitida “ao longo da formação dos filhos por meio da observação

participante” (Januário,1987, p.175). Afirma que comunidades como a de SG são

“conservadores da natureza” consciente ou não. Fala sobre casamento, filho, mãe

solteira, prostituição, homossexualismo; o cemitério, o sepultamento. Segundo o

autor “a morte para o ribeirinho está relacionada com os presságios, ou seja, as

pessoas mais próximas do morto pressentem, mesmo estando distante...”

(Januário,1987, p. 189).

A pesquisa revela ainda aspectos sobre alimentação, religião, as festas

religiosas. Discute as necessidades dos grupos folclóricos, passando por

dificuldades financeiras por causa do crescimento urbano. Analisa através de

causas sócios-economicas baseadas nos cadernos de folclore matogrossense,

n°3, prefeitura Cuiabá.

Januário entra também nas questões relacionadas a mitos e crenças

populares; benzição; narrativas míticas; assombração. O autor faz relação entre

imaginário ribeirinho e conservação do meio ambiente; cita os mitos sobre pedra

21, boi do rio, poço do pari etc

No capitulo IV a pesquisa de Januário discorre sobre o ensino formal em

SG como um parâmetro para estudo do meio ambiente. Fala da escola rural mista

de SG, sua criação em 1909; o ensino na zona rural; analisa o período estudado

82 a 92 – a experiência educacional no ensino rural na planície do médio rio

75

Cuiabá. Depois fala sobre a escola estadual Hermelinda de Figueiredo (HF); o

conhecimento das crianças sobre meio ambiente, através de questionário e

desenhos. A prática educacional sobre meio ambiente na escola HF. Por último,

descreve os trabalhos já feitos sobre comunidades ribeirinhas.

Nas considerações finais, o autor afirma que a pesquisa descreve com

detalhes o universo do ribeirinho, através da pesquisa etnográfica. Ele procurou

contribuir para o entendimento das transformações sócio-ambientais ocorridas. A

abordagem etnográfica foi fundamentada na teoria Interpretativa da cultura de

Clifford Geertz. A abordagem culturalista, a partir da observação direta dos

comportamentos dos indivíduos. Segundo o autor, o estudo evidencia um

saudosismo que enseja um desejo de conservação das coisas belas ocorridas

num passado imaginário. Pesquisa feita principalmente com idosos (olhar do

pesquisador). O autor diz que procurou fazer uma leitura dos diversos aspectos

culturais do grupo estudado. Ele discute algumas questões levantadas ao longo da

trajetória do estudo que permite discorrer sobre “a identidade do ribeirinho em

meio a tantas aspectos contraditórios criados pelo avanço do progresso”.

Ambiente físico: observa a diminuição da biodiversidade (fauna e flora);

afirma que a educação informal é importante para a conservação do meio

ambiente,que a ocupação sempre foi extrativista; que a urbanização favoreceu a

opressão ao meio ambiente e a descaracterização desse ambiente físico e das

relações sócio-econômicas do ribeirinho; desintegração da relação homem-

natureza.

Oferece propostas adequadas para os problemas sócio ambientais; que as

ações do Estado estão afastadas da realidade educacional dos moradores; que a

escola urbana fequentada pelos moradores não leva em consideração os saberes

do ribeirinho, só o siriri e o cururu.; que o ensino é monoculturalista e reproduz a

ordem social do grupo hegemônico. Não leva em consideração a diversidade

cultural.

76

A pesquisa encontrou também a presença de elementos regionais típicos

dos grupos ribeirinhos, por exemplo, as danças e festas de santo, artesanato,

práticas de subsistência, medicina caseira, crença no sobrenatural. O autor

caracteriza o SG como área tradicional que está perdendo suas características por

causa do progresso (encontro do tradicional e do moderno).

Apontamentos sobre o trabalho

Como se percebe, a pesquisa de Januário é extremamente rica na

descrição dos aspectos culturais que envolvem a região do São Gonçalo Beira

Rio. Destaco a forma como o autor elabora a identidade do ribeirinho ligada a

natureza. Ele afirma que os moradores do São Gonçalo são “conservadores da

natureza”. Esta talvez seja a principal característica apontada por Januário, pois

estabelece uma relação das ações do cotidiano do ribeirinho com o meio

ambiente. Uma interação que está em transformação por causa do progresso da

cidade que penetra naquele espaço, modificando os costumes locais.

A identidade do ribeirinho como ceramista é outro aspecto apontado pelo

autor. Mas sem perder de vista a relação com a natureza, analisando o impacto

ambiental da queima da madeira, por exemplo, com a atividade. Januário analisa

também o consumo das peças artesanais e as transformações nos valores

projetados sobre as peças que deixaram de ser objetos utilitários para se tornar

peças decorativas. Assim, o que era de uso diário passa a ser de interesse

turístico.

O autor mostra também a relação do ribeirinho com o imaginário mitológico

e das crenças populares, mas sempre estabelecendo um contato entre mitos e

meio ambiente. Januário identifica ainda as relações do bairro com as festas e a fé

dos moradores.

77

É importante destacar ainda que Januário caracteriza o bairro São Gonçalo

como um local tradicional que vem sendo invadido pela urbanização,

principalmente, pelo que esta tem de ruim, como a violência, a poluição e,

principalmente, a descaracterização do modo de vida ribeirinho. Mas, mesmo

afirmando que a sua pesquisa evoca um saudosismo, as considerações finais do

autor não revelam uma ilusão de um retorno ao passado.

COM A CARA E A CORAGEM

Mariângela Solla Lopez, 2000.

A proposta da autora é discutir a recepção radiofônica e identificar como os

processos culturais determinam o modo de consumo, através de conteúdos

emitidos pelo rádio. O São Gonçalo é considerado por ela “uma comunidade

ribeirinha importante pela referencia histórica e social” para Cuiabá e que por isso

foi escolhido para a pesquisa, que analisa a recepção do programa popular “Com

a Cara e a Coragem”, da Rádio Cultura.

O trabalho foi dividido em dois capítulos. O primeiro fala sobre as teorias de

recepção, com destaque para os autores latino-americanos como Garcia Canclini

e Martin-Barbero. Mas também utiliza-se de conceitos encontrados em Michel

Maffesoli como a idéia de tribo. O segundo capitulo versa sobre o rádio no

contexto sócio-histórico de Cuiabá. A autora caracteriza o programa Com a Cara e

a Coragem e sua audiência. Parte, então, para a abordagem da recepção, através

das práticas culturais dos moradores de SG. Lopez trabalhou com grupos de

ouvintes que fizeram a audição de seis programas escolhidos por ela e depois

discutiram os temas apresentados no programa, material que foi utilizado para a

sua análise de recepção.

Nas considerações finais a autora volta a afirmar que a ‘comunidade’ SG,

pela forma “particular de viver, permeada por construções simbólicas

extremamente ricas, constitui-se em um espaço único” (Lopez, 2000, p.109). Ela

78

afirma ainda que as manifestações culturais do local estão em “constante

processo de hibridização” com a população cuiabana, hoje formada por migrantes

de várias regiões do país,”o que significa estar interagindo com uma oferta

simbólica heterogênea” (Lopez, 2000, p.109).

Sobre o programa analisado Lopez observa que o seu conteúdo atende,

além da lógica comercial, aspectos da “trama cultural e dos modos de ser da

comunidade” SG. Para ela, se isso não ocorresse seria difícil encontrar ouvintes

do programa entre os ribeirinhos.

A autora destaca também que o programa Com a Cara e a Coragem

funciona como elemento que reafirma a identidade dos ouvintes por abordar

temas ligados a realidade dos moradores de SG. Afirma ainda que os traços

culturais marcantes da “comunidade” foram influentes na audição do programa,

pois a apropriação de significados foi mediada pela cultura e pelo território.

Apontamentos sobre o trabalho

A pesquisa de Lopez torna-se interessante por abordar aspectos ligados a

Cultura de Massa. Sua análise de recepção de um programa radiofônico identifica

os ribeirinhos como pessoas de “hábitos originados de uma tradição” que se

constitui em “símbolos culturais da comunidade” (Lopez, 2000, p.111)

A autora destaca a mediação territorial que os ribeirinhos fazem das

mensagens radiofônicas, incorporando a elas os seus costumes. Mas não há uma

preocupação de detalhar esses costumes. O São Gonçalo é visto por Lopez como

um local que possui uma forma particular de viver, um espaço único – com o qual

os moradores se identificam, estabelecem um sentimento de pertencimento ao

lugar – e que é rico em construções simbólicas. Mas observa que as

manifestações culturais estão em constante processo de hibridização com as

79

outras regiões da cidade e do país. Percebe-se nessa consideração que a autora

identifica uma tensão entre o tradicional e o moderno.

NA BOCA DO FORNO A FORMA DE UM POVO

Lúcia Palma, 1986.

O trabalho tem como objetivos: analisar a participação da mulher na

produção da cerâmica; aborda a questão produção/ circulação/ consumo do

artesanato de SG; tenta mostrar a importância de políticas culturais voltadas para

as camadas populares. Finaliza o trabalho mostrando o papel fundamental do

próprio produtor em conduzir seu próprio destino e que o futuro da cultura popular

depende da força conjunta de toda a sociedade.

Na metodologia a autora destaca que em vários momentos coloca

observações pessoais porque “vivenciou os fatos”. Palma faz um trabalho que

aborda questões históricas, depois sobre a produção da cerâmica – técnica,

modelagem, divisão social do trabalho, participação da mulher na economia

domestica, a comunidade, festas – comercialização/consumo e a conclusão.

No corpo da pesquisa a autora começa por um breve histórico do

lugar. Aborda aspecto histórico da colonização do Brasil até a fundação de

Cuiabá. Fala sobre as civilizações amazônicas, colonização e características

culturais que persistem. Uma entrevista com Hildes Dorileo narra a história das

comunidades do Coxipó e do São Gonçalo. A autora afirma que não tem

bibliografias sobre o SG, daí a entrevista com o senhor Hildes.

Em seguida, ela passa a abordar a produção e o consumo. Na

produção fala do processo, desde o apanhador do barro até a queima das peças.

Depois aborda a técnica utilizada para fazer as cerâmicas. Segundo a autora, o

objetivo “foi demonstrar o extenso trabalho das ceramistas como o valor social do

trabalho e a pouca valorização por parte do governo”.

80

Palma dá um enfoque cronológico da penetração urbana no lugar e também

do contato dos artistas locais com o bairro. A pesquisadora elenca projetos / ações

desenvolvidas em SG como se segue:

1968 – exposição cerâmica com a participação de artistas locais; foi

destruída pela PF. (Assunto está no dicionário de artes de Aline Figueiredo.);

1974 gravação de depoimentos de ceramistas – núcleo de documentação

histórica Terezinha Arruda;

1975 – filmagem do núcleo SG – depoimentos Cândido Alberto da Fonseca

(roteiro e execução);

1978 – documentação audiovisual – núcleo de documentação histórica

regional – Edir Pina de Barros.

A autora também observa o local, de onde pegam a lenha para a queima,

tipos de cerâmica produzida etc. Palma dividiu o processo do trato com barro em

etapas, descrevendo seus passos: da massa, da louça, o bojo, acabamento, lisa a

louça, a pintura, a queima;

Ao abordar aspectos do consumo do artesanato, Palma fala da questão

econômica que envolve a retirada do barro. Trabalha com depoimentos de

pessoas de meia idade para frente. Observa a vida das crianças, cita a relação

com a natureza e com a televisão. Afirma que o São Gonçalo é uma comunidade;

fala sobre transporte, ensino, luz elétrica, saúde. A pesquisadora toma partido dos

moradores no caso da disputa de terra no local onde ficava o cemitério da

localidade10.

Palma trabalha com conceitos de Garcia Canclini (1983) em “As culturas

populares no capitalismo”, quando aborda as questões que envolvem consumo de

peças artesanais. Apresenta lista anexa de perguntas feitas em cada etapa do

trabalho. A referência parece ter sido de Maria Arruda Mello em ”A dança de SG”.

10 Ver `a pagina 99 da citada pesquisa.

81

Tem ainda um glossário de termos visto também em Januário “As vidas do

Ribeirinho”.

Na conclusão ela começa citando a falta de políticas culturais consistentes.

Palma fala sobre “a descontextualização e ressignificação que ocorre com o

artesanato, através de estratégias que a cultura hegemônica cumpre diante das

culturas subalternas, deslocando seus produtos do espaço nativo para outro: loja

urbana, museu, butique artesanal. Discute também a descaracterização das

danças siriri e cururu transformadas em “espetáculos” descontextualizados; Fala

sobre a influência dos meios de comunicação nos valores locais; aponta para a

questão da urbanização. Num outro momento afirma a autora que “o espírito

desconfiado para dar entrevistas parecem suspeitar que todos querem tirar

apenas proveitos da comunidade”. Isso, segundo Palma, afeta os pesquisadores

sérios.

A autora fala também sobre a ingerência de órgãos públicos no processo

produção/circulação/consumo. Aborda ainda a questão das cerâmicas que

estouram na queima, fazendo um alerta para pesquisadores da área química,

geológica, sanitarista etc que poderiam contribuir para diminuir o problema.

Palma aponta ainda a necessidade de lazer para os moradores - praça,

parque para crianças com escorregadores, campo de futebol - necessidade de

hortas; aparelho telefônico, veterinários, melhoria da escola, solução para

transporte coletivo, barco a motor para facilitar o transporte do barro. Calçamento

e asfalto como necessidade; arrumar ponte, iluminação pública; capacitação nas

áreas de saúde, educação, agricultura. Resolver o problema do cemitério X

loteamento;

A autora encerra citando Garcia Canclini sobre a importância do produtor

ser protagonista nas políticas culturais como conseqüência de uma

democratização radical da sociedade civil.

82

Apontamentos sobre o trabalho

Na Boca do Forno a Forma de um Povo aborda uma questão de gênero: a

participação da mulher nas atividades desse grupo social. Esse é o ponto principal

da pesquisa de Palma. O trabalho feminino orienta as discussões sobre a

produção cultural do São Gonçalo, reforçando a identidade local como núcleo

ceramista de Cuiabá.

Toda a discussão de Palma é em torno da atividade do artesanato, apesar

de não se deter só na descrição dessa atividade. Ela analisa as transformações na

relação produção/circulação/consumo de peças cerâmicas, assim como nas

mudanças da construção do valor simbólico das mesmas que deixaram de ser

utensílios domésticos para se tornar peças decorativas.

É importante destacar também como a autora toma posição em defesa dos

ribeirinhos, estabelecendo um sentimento de apreço e simpatia pelas questões

culturais do bairro. Assim como em Januário, Palma - como representante da

classe culta da cidade – reconhece o valor da cultura popular. Não há um

distanciamento entre o culto e o popular, mas uma aproximação, quando

reivindica melhorias para o bairro, critica o descaso do Estado e defende o direito

dos ribeirinhos de serem sujeitos das políticas culturais.

A DANÇA DE SÃO GONÇALO

Maria Lucia de Mello Arruda, 1982.

Este pequeno livro começa situando a cultura em pequenas comunidades

do Brasil. Fala sobre o processo de urbanização na Humanidade até Mato

Grosso e Cuiabá. Aborda também as escolas de samba como manifestação

popular advinda com o processo de modernização. Os dois aspectos -

manifestação popular e urbanização – são discutidos no mesmo capítulo. Depois

83

fala sobre a teoria do folclore. A dança no Brasil e um histórico da dança do SG.

Em seguida, descreve como se dá a dança de SG em Cuiabá.

Conclui falando que o fato da cidade ter se urbanizado enfraquece “a

manifestação folclórica de SG”. Indaga se esta vai sobreviver ou será substituída.

Diz que o folclore está perdendo espaço para as escolas de samba que é uma

manifestação popular advinda com a urbanização.

Apontamentos sobre o trabalho

Este trabalho mostra uma outra identidade relacionada com o bairro. A de

lugar que preserva os costumes mais antigos da dança de São Gonçalo. A Autora

revela aqui aspectos importantes para a discussão da cultura popular, que é o

contato com a urbanização e as transformações que esta impõe aos costumes de

grupos subalternos. Mas o assunto é tratado superficialmente.

Outro aspecto interessante abordado pela autora é a questão da

substituição das danças folclóricas pelas escolas de samba. Observo que o

assunto permite uma nova investigação já que as décadas se passaram e as

escolas de samba não se destacaram como cultura popular em Cuiabá.

O HOMEM DO BARRANCO

Carlos Ferreira, 1991.

Apontamentos

A peça teatral trabalha a relação da mulher ribeirinha com as águas do

Rio Cuiabá. A história só se torna possível por causa do rio. Ele é visto como a

fonte da subsistência dos moradores, de onde é retirado o barro para a fabricação

da cerâmica e o alimento através da pesca. Mas, o mesmo rio que dá o sustento

84

para o ribeirinho, traz também o sofrimento quando chegam as enchentes. O rio

aparece, ainda, como fonte das crenças populares como o Minhocão e Homem do

Barranco, protetor dos ribeirinhos. Está presente aqui o imaginário popular.

A encenação apresenta, ainda, a relação da mulher ribeirinha com a

natureza que lhe dá o barro e a água. Aparece aí uma outra identidade local, que

é o fazer cerâmico, descrito através da personagem ceramista que fala sobre a

lida com o barro, as formas das peças e a venda do artesanato.

A relação do bairro com os pesquisadores aparece também na peça de

Carlos Ferreira. Em determinado momento da encenação a personagem

ceramista é entrevistada, revelando, assim, essa particularidade do bairro como

local de intensa movimentação de investigadores do costume de seus moradores.

85

3 - VÍDEO E CULTURA

O olhar deseja sempre mais do que o que lhe é dado a ver.

Adauto Novaes

86

3.1 - O Vídeo como Expressão Cultural

No início do século XXI o Vídeo se consolidou como instrumento de

expressão e criatividade. De uma certa forma, ele tem contribuído para uma

diversificação técnica, de conteúdo e de linguagem na Televisão e também no

Cinema. Mas conquista a cada dia novos espaços atuando como um fomentador

de informação – nem só difundida pela indústria cultural – como a escola, os

bairros, aldeias indígenas, presídios etc

Neste trabalho pretendo mostrar os caminhos que o Vídeo percorreu, como

meio de criação, nos seus primeiros trinta anos de existência e sua atual difusão

entre os diversos grupos sociais brasileiros como forma de expressão. Antes de

qualquer coisa é preciso definir o que é Vídeo para entendermos como este

aparato está presente na cultura contemporânea.

Segundo Machado (1995), Vídeo pressupõe todas as modalidades de

mensagens através de imagens eletrônicas vistas pelo receptor de tevê. Aí se

inclui a programação convencional dos canais de televisão transmitida por ondas

eletromagnéticas, por satélite ou cabo (broadcasting). Mas não é só isso. O

monitor de tevê também serve como ”olho” de sistemas fechados de videoteipe

utilizados com câmaras de segurança e como receptor para o videocassete

doméstico. Machado vê ainda o aparato vídeo e monitor de tevê presente em

terminais de saída de sistemas digitais como computadores, videogames,

videodiscos etc...

O termo vídeo abrange o conjunto de todos esses fenômenos significantes que se deixam estruturar na forma simbólica da imagem eletrônica, ou seja, como imagem codificada em linhas sucessivas de retículas luminosas. Nesse sentido, abrange também isso que convencionalmente nós chamamos de televisão, ou seja, o modelo broadcasting de difusão de imagem eletrônica. ( MACHADO,1995 p.06)

87

Entendo Vídeo como um complexo eletrônico e/ou digital formado por

videocassete, monitor de tevê e câmara. Tanto pode ser o videocassete e a tevê

como equipamentos de exibição, quanto à câmara como equipamento de

captação de imagens. Os três juntos formam o aparato que cria infinitas

possibilidades de linguagens e de interação com o público. Antes, porém, de falar

sobre as diferentes formas de produção em Vídeo presentes na sociedade é

preciso situar alguns aspectos técnicos e históricos para melhor entender o

fenômeno da produção de imagens na atualidade.

Como os termos Cinema e Vídeo estão cada vez mais unidos por causa

das novas tecnologias é interessante observar também algumas diferenças e

aproximações que os dois veículos possuem. A captação de imagens, por

exemplo. No cinema o processo é físico-quimico, isto é, a imagem é captada pela

câmara, impressa numa película fotossensível (o filme) e depois revelada num

laboratório, através de banhos químicos. No vídeo ou televisão, o processo pode

ser analógico ou digital. No primeiro deles, a câmara capta a imagem e a

transforma em impulsos elétricos impressos em fita magnética. No segundo caso,

a câmara capta a imagem que é codificada em dígitos binários. Em ambos os

casos, o resultado pode ser visto imediatamente ao tirar a fita da câmara e inseri-

la num videocassete, observando pelo monitor de tevê, sem a necessidade de

revelação em laboratório.

Com a tecnologia da TV Digital ou TV de Alta Definição Cinema e Vídeo

estão se unindo num mesmo aparato que elimina a necessidade do uso de

película, passando a captação de imagens para o processo de dígitos binários

com a mesma qualidade de imagem produzida por película. O resultado pode ser

visto, por exemplo, na novela da TV Globo, Sinhá Moça, uma das produções

televisivas pioneiras no uso da TV Digital, no ar entre março e setembro de 2006.

88

A contribuição do Vídeo com o Cinema, porém, começou bem antes em

experimentos nos anos 196011 consolidando-se na década de 1980, quando

modificou aspectos importantes do processo cinematográfico. O vídeo Assist 12,

por exemplo, permitiu ao diretor uma nova forma de ver o filme sem precisar

esperar o copião do laboratório. Com isso introduziu a possibilidade de ver o

registro no momento da captação, economizando tempo e dinheiro. Pelo recurso

do playback o Vídeo permitiu também a análise da imagem quantas vezes fossem

necessárias sem precisar se deslocar do set de filmagem.

O norte-americano Francis Ford Coppola é considerado um dos grandes

incentivadores do registro eletrônico no processo cinematográfico. Em “A Arte do

Vídeo”, Machado descreve o método Coppola utilizado no filme One From the

Heart ( O Fundo do Coração, 1981). O filme foi concebido como um programa de

televisão e antes mesmo de ter as primeiras cenas filmadas já possuía uma

versão editada baseada nos desenhos do storyboard, o que Coppola chamou de

storyboard eletrônico. Em todo o tempo das filmagens de One From the Heart,

continua Machado, o storyboard eletrônico era alimentado por imagens captadas

em vídeo. Assim, o diretor pôde observar o ritmo das cenas ao mesmo tempo das

filmagens. Em outros momentos, o emprego do suporte videográfico antes de

filmar a cena permitiu verificar se determinados movimentos de câmara seriam

acertados para a cena ou não, dando mais segurança ao diretor. Ele utilizou ainda

recursos em vídeo para compor determinadas cenas com sobreposição de

imagens, método repetido também no seu filme Rumble Fish (O Selvagem da

Motocicleta, 1986), mostrando as possibilidades da imagem eletrônica em

convergência com a captação em película.

Na televisão, programas como “Brasil Legal”, da TV Globo, surgiram da

experiência de videomakers como Sandra Kogut, criadora de vídeo-instalações,

11 Credita-se ao cineasta Jerry Lewis em 1961 o pioneirismo no uso de um VTR como auxiliar na filmagem de “O Terror das Mulheres”. Segundo Arlindo Machado( 1995, p.181) em “A Arte do Vídeo” , Lewis registrava os ensaios em vídeo que depois eram analisados em um monitor. 12 O vídeo assist é um monitor de TV acoplado à câmara de cinema que mostra ao diretor a imagem que está sendo captada no momento da filmagem.

89

uma forma de expressão que tem como objetivo mostrar as possibilidades de

linguagens do Vídeo, muito além daquilo que costumamos ver na Televisão.

3.1.1 - O início

Quando surgiu em 1956 o vídeoteipe13 era um meio de armazenar imagens

produzidas em estúdio, já que o seu tamanho era muito grande. O primeiro

formato, da empresa Ampex, trazia uma fita de duas polegadas de largura

acondicionada em rolo ou carretéis. Por causa do tamanho não se pensava em

captação externa de imagens nessa época. Mas o avanço tecnológico foi

importante para as emissoras de televisão que passaram a contar com a

possibilidade de gravar programas que antes eram transmitidos ao vivo como

única opção disponível.

Daí para frente a tecnologia diminuiu o tamanho das fitas e criou a

possibilidade de armazenagem da mesma em caixa plástica, os chamados

cassetes. Em 1969, a Sony lançou o formato U-Matic cuja largura da fita era de ¾”

de polegada. O aparato composto de uma câmara e um vídeoteipe acoplado, o

VT, possibilitou a captação externa de imagens já que poderia ser operado por

duas pessoas: um cinegrafista para manusear a câmara e um auxiliar para acionar

o VT, uma caixa grande, de aproximadamente doze quilos, ligada à câmara por

um conjunto de cabos.

A novidade só foi superada na década de 1980 com a entrada no mercado

dos formatos que continham a câmara e o VT num mesmo equipamento.

Surgiram, então, uma variedade de possibilidades tanto para consumo caseiro

como profissional. Entre eles os que alcançaram mais sucesso foram o VHS, para

produções amadoras, e o Betacam, para as redes de televisão e produtoras de

vídeo. Na década de 1990 apareceram os primeiros formatos digitais, com uma

nova tecnologia para a captação de imagens, que resultaram na TV de Alta

Definição.

13 Em inglês o termo é video tape.

90

Não pretendo aqui discorrer sobre esses diferentes formatos, suas

vantagens e desvantagens, assunto que possui vasta bibliografia a disposição dos

interessados. Meu objetivo é mostrar as possibilidades de discursos que o Vídeo

introduziu na sociedade como forma de socializar mensagens e democratizar a

produção, sem perder de vista a dimensão cultural presente com essa tecnologia

e sua contribuição para o universo audiovisual, como nos fala Almeida (1985).

Como um veículo que está entre a Televisão e o Cinema, o Vídeo permite a

circulação de conteúdos desses dois meios de comunicação que o antecederam.

Nos anos 1970 chegou-se a afirmar que o Vídeo seria um mero repassador de

imagens. Mas logo opiniões contrárias surgiram, mostrando que havia sim

possibilidades de linguagens surgindo pelas mãos de artistas.

Tais possibilidades foram se ampliando a partir do momento que a indústria

passou a produzir o aparato em grande escala para o consumo das massas. A

diminuição de tamanho e peso das câmaras e as vendas de videocassete

domiciliar mudaram a relação do próprio espectador com a circulação de imagens.

O aparato permitiu a gravação de programas de televisão até então disponíveis

para serem vistos somente no momento da transmissão. Também fez crescer uma

indústria de entretenimento paralela ao cinema e derivado deste: os filmes para

aluguel em locadoras.

A princípio essas foram as duas principais contribuições do Vídeo para o

mercado consumidor. Mas com o barateamento dos equipamentos cresceu

também o uso caseiro das câmaras, sucessoras das antigas máquinas de Super

8, restritas `as famílias mais abastadas. Assim, o espectador passou também a

produtor de imagens, mesmo que muitas vezes sem um brilho criativo, ao registrar

as festas de família, batizados, aniversários e casamentos. Mas não ficou só

nisso, permitindo também colocar a produção de imagens ao alcance das mãos de

produtores culturais que se lançaram em experimentos artísticos.

91

Segundo Almeida, o Vídeo não apareceu para disputar com o Cinema e a

Televisão, mas possibilitou uma “unificação de um discurso fragmentado” ao servir

como meio alternativo de “corporificação de um universo de códigos dispersos”.

Almeida vai além ao afirmar que o vídeo possibilitou a socialização da mensagem.

[...] surge como um canal de dinamização do produto cinematográfico, ampliando o seu raio de amostragem e sintetizando sim, a televisão e o cinema, mas sem jamais prescindir de ambos, e atuando na verdade como elemento de interação neste grande projeto de democratização do audiovisual. (ALMEIDA,1985, p.08)

Diferente do Super 8, a câmara de vídeo permitiu ao fazedor de imagens -

videomaker - o resultado imediato do que estava sendo gravado, uma vez que o

aparato eletrônico dispensa o processo de revelação do filme.

3.1.2 - Vídeo-Arte

A idéia de vídeo-arte surgiu com o coreano, exilado nos EUA, Nam June

Paik e um grupo de artistas plásticos que buscaram no vídeo recursos para

experimentalismo. Almeida (1985) afirma que eles usavam o vídeo como um

suporte material, da mesma forma como se aproveita o spray ou a madeira. A

perspectiva foi mudando na medida em que se percebeu a penetração e o impacto

visual que tal aparato conseguia junto ao público. A princípio o movimento dirigiu

suas críticas a Televisão vista como a inimiga da criação artística.

Segundo Almeida, a vídeo-arte lida “com o conceito estimulando a

participação intelectual do público dentro do processo de decodificação da

mensagem” (Almeida, 1985, p.44). Essa forma de expressão busca espaços

alternativos de exibição, uma vez que os trabalhos não são vinculados nos canais

de televisão. Também podem ganhar a forma de vídeo-instalações, onde o espaço

de exibição se divide em vários ambientes cênicos. Neles o público interage com

92

experimentos baseados no conjunto câmara, vídeo e monitor de tevê. Outra forma

de se apresentar é através das vídeo-perfomances, onde a presença física de um

ator relaciona-se com o aparato de vídeo.

3.1.3 - Vídeo Independente

Segundo Almeida o vídeo independente é “um produto audiovisual que,

além de ter sido gerado fora das empresas comerciais de televisão, busca manter

um compromisso mais definido com aspectos culturais ou ideológicos”

(Almeida,1985, p.78).

A grande luta dos produtores independentes é por um circuito de exibição já

que poucos deles conseguem fechar acordos comerciais para exibição de seus

produtos audiovisuais em canais de televisão. Mesmo os canais por assinatura

não abriram as portas para a produção independente como se imaginou na

década de 1980. As exibições ficam restritas a canais educativos, festivais de

cinema e vídeo ou mostras alternativas nos guetos culturais das cidades.

Hoje, a luta pela democratização dos meios de comunicação tem como uma

de suas metas a regulamentação de horários para a exibição de produção

independente regional dentro da grade de programação das emissoras,

principalmente no horário nobre das redes de sinal aberto.

3.1.4 - Vídeo Educação

Aos poucos, o Vídeo ganhou a sala de aula. Passou a ser companheiro

indispensável de professores como um motivador dos mais diversos conteúdos.

Ciência, História, Literatura, Geografia etc. Para os governos fica cada vez mais

clara a necessidade de voltar-se para os meios de comunicação como um

fenômeno de massa que influencia na aprendizagem, mesmo que nem sempre

reconhecido formalmente pelos órgãos competentes.

93

Citelli (2001) lembra que como resposta ao avanço da tecnologia e sua

presença no cotidiano dos estudantes, as secretarias de educação passaram a

dotar as escolas de equipamentos audiovisuais como aparelho de som, antena

parabólica, televisão, videocassete e computadores. Daí surgiu um problema:

como fazer com que professores usassem tal material incorporado à escola para

ensinar?

Citelli, numa leitura de Martin-Barbero14, afirma que os meios de

comunicação passaram a funcionar como “mediadores dos processos educativos”,

isto é, a escola não é a única a promover o ensino. A informação está disponível

através de outros mecanismos até pouco tempo atrás privativo do espaço escolar.

A discussão envolve o significado dos meios de comunicação e as tecnologias da

informação como um desafio cultural para a escola. Há uma distância crescente

entre a cultura ensinada pelos professores e a aprendida pelos alunos. O motivo

está nos meios de comunicação que descentram as formas de transmissão e de

circulação do saber. Assim, funcionam como um decisivo aparato de “socialização

ao atuarem por mecanismos de identificação/projeção de estilos de vida,

comportamentos e padrões de gosto” (Martin-Barbero apud Citelli, p.22). Os meios

de comunicação passam a ser vistos como de caráter estratégicos para o

entendimento do processo cultural na atualidade.

Orozco Gómez (1997) acredita que a tecnologia deve funcionar na escola

como mecanismo de transformação e não para reforçar o processo educativo

tradicional. Para que essa ressignificação da escola ocorra é preciso implementar

um “diálogo” com as novas tecnologias na perspectiva da ampliação cultural,

vencendo a barreira conceitual e operacional.

Citelli entende como barreira conceitual o fato dos professores não se

sentirem seguros para empregar os recursos mediáticos em sala de aula pelo

14 MARTIN-BARBERO, J. Heredando el Futuro. Pensar la educación desde la comunicación. Revista Nómadas. Bogotá, Fundación Universidad Central, 1996.

94

pouco conhecimento de seus sistemas e processos. Mesmo reconhecendo o forte

impacto que os meios de comunicação provocam em alunos e professores.

O precário conhecimento acerca dos mecanismos de funcionamento das linguagens institucionalmente não-escolares, bem como, evidentemente, as carências estruturais da escola brasileira, que, em muitos casos, impossibilitam tanto a superação do déficit conceitual como a própria modernização física das salas de aula, terminam por afastar os agentes educadores do campo das comunicações. (CITELLI,2001, p.23)

No plano operacional, o autor entende que a formação profissional dos

professores é um entrave para operar com os meios de comunicação. Há um

desconhecimento das novas linguagens ou complicadores operacionais que estão

fora da estrutura dos cursos de qualificação do magistério. O ensino de graduação

continua pautado em balizas fora de sintonia com a dinâmica social, diz Citelli. Ele

observa que os cursos de magistério e as licenciaturas estão orientados,

basicamente no sentido das operações com as linguagens verbal ou numérica

tendo como referencia algarismos, palavras geralmente formatadas em textos.

Portanto, há uma perda quando se pensa em outras dimensões discursivas, a

maioria ancorada nos códigos imagéticos que possibilitam mecanismos de

produção de sentidos.

Nesse aspecto, o uso do Vídeo na educação pode funcionar como um

mediador entre o ensino formal e os meios de comunicação, no sentido de

despertar novos olhares, criando uma consciência crítica sobre a produção

mediática.

3.1.5 - Olhar das minorias

O Vídeo hoje está ao alcance de todos. Fugiu do controle das grandes

corporações e empresas de Televisão e Vídeo. Os espaços de produção se

multiplicaram. Várias Organizações Não Governamentais estão criando núcleos

95

de produções de cinema e vídeo, oferecendo oficinas em comunidades pobres. A

Revista Raiz (2006) dedicou uma edição ao que chamou de “visões periféricas”.

Olhares distantes das elites e das escolas feitas com “uma câmera barata na mão

e uma identidade na cabeça”.

O despertar de favelas, aldeias indígenas, grupos de cultura afro, entre

outros, para a produção de imagens dá a oportunidade para milhares de jovens

mostrar a sua visão sobre a realidade que vivem. O interesse no audiovisual virou

profissão para muitos que estão repassando os conhecimentos adquiridos nas

próprias oficinas para os mais jovens, formando, assim, novas gerações de

fazedores de imagens.

No Rio de Janeiro, a ONG “Nós do Cinema” ensina literatura e discute

filmes com os alunos da oficina, filhos da Favela Vidigal. No bairro de Heliópolis,

em São Paulo, a associação cultural local estimula a produção de vídeos que

discutem os problemas de seus moradores como a falta de acesso a saúde, ao

lazer e ao trabalho. O projeto Vídeo nas Aldeias, de Vicent Carelli, começou em

1987 estimulando os Nambiquara a se retratarem com imagens. Hoje, com apoio

financeiro internacional, o projeto ensina audiovisual nas aldeias e estimula a

produção. Os filmes tratam da situação do índio contemporâneo, aproximando os

jovens das tradições e fazendo o intercâmbio entre nações indígenas.

Todos esses exemplos mostram o que observa Martin-Barbero sobre o

novo lugar da recepção frente aos meios de comunicação social. É pensar a

relação da recepção com os meios e não mais a suposição do que os meios

querem ou podem fazer com a recepção. São exemplos também das

possibilidades de novas produções culturais estimuladas pelos meios de

comunicação social.

96

4 - OLHARES SOBRE O RIBEIRINHO: ANÁLISE DOS VÍDEOS

O olhar perscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de ‘ver de novo’ (ou ver o novo) como intento de ‘olhar bem’.

Sérgio Cardoso

97

4.1 – Caminhos metodológicos

Este trabalho partiu da pesquisa bibliográfica sobre o São Gonçalo. Após o

levantamento da literatura sobre o bairro e a realização do inventário passei para a

definição de um método para a pesquisa de campo. A tipologia mais adequada

para cumprir meus objetivos é de natureza híbrida com tendência qualitativa e

abordagem cultural.

As visitas ao São Gonçalo começaram em 2005. O primeiro contato foi com

a moradora, Domingas Leonor da Silva, conhecida por seu envolvimento com a

cultura local. Ela é uma das fundadoras do grupo folclórico, Flor Ribeirinha.

Através dela fui procurar o presidente do bairro, Dalmi Lucio de Almeida.

A principio, a idéia era realizar um vídeo com os moradores do São

Gonçalo, onde os próprios ribeirinhos iriam roteirizar e gravar o que fosse do

interesse deles sobre o bairro em que vivem. Para isso, o planejamento inicial

previa a realização de oficinas onde eu daria lições preliminares da função da

câmera e sobre a linguagem audiovisual. Os trabalhos deveriam se iniciar no final

de 2005. Mas, na terceira visita ao bairro, o presidente da associação de

moradores, Dalmi de Almeida, falou sobre a existência de fitas gravadas a seu

pedido por jovens moradores do São Gonçalo, sobre o cotidiano daquele espaço

urbano. Percebi, então, que tais registros dos moradores já continham o “olhar

sobre si mesmo” que eu desejava investigar.

Assim, resolvi dar a esta pesquisa um novo encaminhamento, partindo

desse olhar de dentro do espaço São Gonçalo sobre as atividades deles mesmos,

através dos registros em vídeo. Por outro lado, analiso o que os produtores

culturais da cidade registraram em vídeo sobre essa mesma população,

observando as aproximações e afastamentos entre os olhares interno e externo,

do ponto de vista dos Estudos Culturais.

98

Nesse caminho metodológico a coleta de dados incluiu, então, além

dos citados trabalhos pesquisados em bibliotecas, secretarias de cultura do estado

e do município e produtoras de vídeo, a coleta das fitas gravadas pelo Seo Dalmi.

No delineamento da pesquisa incluo a observação participante das conversas com

moradores a fim de conhecer melhor o universo investigado, assim como a

etnografia, descrevendo a realidade atual do bairro. Por fim, faço um tratamento

analítico dos dados, através da análise dos processos de construção da cultura e

das identidades, presentes nos registros audiovisuais feitos pelos moradores do

São Gonçalo.

4.2 – Dois Vídeos sobre o São Gonçalo

Vídeo 1 - ORA VIVA MEU SÃO GONÇALO, OI TORNA A REVIVA´

roteiro: Luiz Carlos Ribeiro direção: Kátia Meirelles, 2001.

As primeiras imagens do vídeo mostram um lugar bucólico, calmo, com moradores

em rede, outros na porta de casa, imagens do rio e animais . A trilha sonora entoa

“Oi viva meu São Gonçalo oi torna reviva´”, enquanto vemos também imagens de

cerâmicas, argila, fornos de barro e crianças. A narrativa é conduzida em primeira

pessoa pelos entrevistados. São moradores e a pesquisadora Aline Figueiredo,

que assina também a pesquisa do vídeo. Ainda na introdução, rapidamente, temos

três depoimentos: a moradora Domingas Leonor diz: “o São Gonçalo faz parte da

minha vida”. Depois outra moradora, Maria Conceição, diz: “eu me criei aqui e

meu pessoal também”. Em seguida, vem Aline Figueiredo que afirma: “se quiser

saber a história de Cuiabá é possível pegar um ônibus via São Gonçalo”. Fim da

introdução.

A primeira entrevista é com a moradora, Domingas Leonor. Ela fala sobre

as ceramistas deixarem de ser artesãs para tornarem-se domésticas por causa da

falta de apoio para continuar na atividade tradicional. Domingas reclama dos

políticos, do governo, dos pesquisadores que estão sempre por lá e até dos

turistas que vão ao São Gonçalo, mas não compram sequer uma peça de

99

cerâmica de cinqüenta centavos. Afirma que os moradores do bairro são

explorados por essa gente. Ela lembra da enchente de 1974 e daqueles que

ajudaram os ceramistas na época. Cita a professora Terezinha Arruda e Aline

Figueiredo como as únicas pessoas que tiveram “dó das ceramistas”. Enquanto

fala, Domingas aparece amassando a argila, depois moldando e criando uma

cesta com um caju dentro.

Na seqüência, vem o depoimento do artesão Clinio Moraes. Ele fala que já

foi pescador, lavrador e marinheiro. Depois conta como virou artesão e que sua

família só lida com o artesanato cerâmico. Esta primeira parte do vídeo destaca,

em vários momentos, imagens de peças cerâmicas, uma das atividades mais

famosas do local.

A terceira entrevista é com a artista plástica e pesquisadora Aline

Figueiredo. Ela é a personagem que várias vezes aparece no vídeo explicando a

vida no São Gonçalo. No inicio, diz que a história de Cuiabá está ali. Depois, Aline

afirma que a comunidade é festeira, característica que une os moradores. As

festas possibilitam encontros para danças e cantos (siriri e cururu). Aline enumera

as festas comemoradas no bairro: São Gonçalo, dia do Artesão (no mesmo dia do

ìndio), dia das Mães, dia dos Pais, São João, São Pedro, Santo Antonio.

Depois, aparecem imagens dos preparativos para a festa de São Gonçalo.

Os homens pintando o salão, arrumando o aceiro para o churrasco, cortando

lenha. Um outro grupo de moradores enfeitando o centro comunitário com

bandeirolas. Crianças aparecem fazendo pandorgas. As mulheres carregando

vasilhas, preparando bebidas e comidas.

Aline continua seu depoimento, afirmando que os moradores

desempenham vários papeis. Ora são ceramistas, ora são pescadores, ora são

cantadores, enfim, que são vários personagens ao mesmo tempo.

100

Na seqüência, é dia, início da manhã. Moradores e músicos chegam para a

festa de São Gonçalo. A trilha sonora utilizada na edição para acompanhar estas

imagens é o Hino de São Benedito. Em seguida, vemos uma multidão guiada por

Domingas e um cantador com viola-de-cocho. Os dois iniciam a cantoria com as

seguintes estrofes da canção tema do Santo:

Quando vós for a Bahia me traga um São Gonçalinho. Se não puderes um grande, me traga um pequenininho.

A cantoria é repetida depois por todos os que acompanham a procissão. A

cena seguinte é a chegada ao local da celebração, ainda com todos cantando a

mesma música tema do Santo. Depois começa a missa. Destaque para o áudio

natural da celebração, onde o padre pede a proteção de São Gonçalo a todos.

Em seguida, vemos uma mesa recheada de salgados e doces típicos. Um

chá com bolo que faz parte da festa. As imagens seguintes cortam a conexão com

a comilança da manhã. A idéia é fazer uma passagem de tempo. Para isso

mostra-se o rio Cuiabá, crianças soltando pipa, homens de bicicleta com varas de

pescar, jovem carpindo e paisagens do lugar.

Em seguida, ainda de dia, as imagens são de um grande churrasco. O

preparo da carne nos espetos, churrasqueiros, panelas imensas de carne e os

convidados comendo na festa. A seqüência traz imagens noturnas da festa de

São Gonçalo. Fogos de artifício no céu. Entra uma entrevista com o morador Ivo

Antunes que fala sobre a festa do Santo ser uma tradição. São Gonçalo é para Ivo

o padroeiro do lugar e um santo milagroso. Ele diz que nasceu e se criou no local

e não quer o fim dessa tradição. Então, aparecem pessoas beijando a bandeira

do Santo e as danças ao redor do mastro erguido no meio do pátio do centro

comunitário, ao som de viola-de-cocho e de mocho.

Depois volta ao depoimento da Aline Figueiredo, afirmando que ali está o

berço do falar cuiabano; que o local é uma fonte de cultura popular; que “a cidade

precisa reconhecer isso”; ali está a raiz do povo mato-grossense: branco, negro e

101

índio. O vídeo encerra mostrando vários momentos da festa de São Gonçalo `a

noite com as danças típicas.

A trilha sonora utilizada no vídeo mistura o áudio ambiente dos rituais

captados no lugar com outras canções pesquisadas. E´ um som desconectado

das imagens, inserido na edição do vídeo. Na cena da chegada de moradores e

músicos da banda `a festa, no inicio da manhã, as imagens são embaladas pelo

Hino de São Benedito como anteriormente descrito. Nos créditos finais há a

indicação desta melodia ao compositor cuiabano, Bolinha. Em outros trechos, o

mesmo recurso é utilizado com as seguintes canções creditadas na ficha técnica:

Cururu Siriri, Dança de São Gonçalo, Cuiabá Cidade Verde (Muxirum Cuiabano);

Rincão Guarani, Fim de Baile, Mercedita (Helena Meirelles); Teu Lencinho (versão

Delio e Delinhas).

Leitura possível

Aqui me parece indispensável responder a uma interrogação baseada nos

estudos apontados por Hall (2004) sobre o sentimento do que significa ser do São

Gonçalo? E também observar Woodward quando afirma que as identidades criam

sentidos através “da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são

representadas” (2000, p.09).

O vídeo de Kátia Meirelles apresenta elementos simbólicos que ganham

diferentes significados pelo olhar dos moradores, o olhar da pesquisadora e o

olhar da própria diretora do vídeo, uma vez que sua função é ordenar as imagens

e entrevistas captadas dando sentido ao material audiovisual.

De modo geral, o olhar de Kátia Meirelles é impregnado do sentimento de

manter viva as tradições do local, ou seja, o artesanato cerâmico e a festa de São

Gonçalo. As imagens da natureza, dos homens de canoa, dos moradores

sentados a beira do rio conversando, a criança deitada na rede sob as copas das

árvores frondosas, dos animais pelos quintais, são imagens que invocam um

102

comportamento típico daqueles ribeirinhos. De um lugar calmo, onde o tempo

demora a passar, o que torna a localidade um paraíso.

Já em seguida, o depoimento de Domingas Leonor traz a discussão da

cultura popular para o plano do econômico e do político, mas com um certo

sentimento de assistencialismo. Ela reclama da falta de apoio para que os

ceramistas possam sobreviver do artesanato. E´ possível entender que sem o

financiamento governamental as artesãs são obrigadas a deixar o ofício para

trabalharem como domésticas.

Ao afirmar que os políticos só aparecem no bairro São Gonçalo na época

de eleição, Domingas mostra que os moradores percebem a intenção daqueles

que não fazem parte do cotidiano do bairro. Ela fala de um sentimento de

exploração do local por políticos e pesquisadores. Há na fala dela um tom de

revolta. Mas observando de forma mais atenta é possível concluir também que a

moradora faz na verdade um jogo de intenções. A fala de Domingas,

aparentemente ingênua, logo se transforma na sua arma de contra ataque. Ela

sabe que a divulgação do vídeo pode ser um meio das artesãs conseguirem o

apoio que desejam. Domingas faz esse jogo, chegando mesmo a criar uma certa

performance diante da câmera ao amassar o barro para fazer a cerâmica e no tom

de voz utilizada.

Domingas é uma liderança no bairro e faz questão de deixar isso claro no vídeo.

Ela representa a fala da experiência imediata dos moradores. Domingas aparece à

frente das cenas da procissão do Santo no dia da festa de São Gonçalo. E´ ela

quem puxa a música, ao mesmo tempo em que toca o ganzá. Também aparece

socando o pilão nos preparativos para a festa. O seu discurso revela que como

liderança política do bairro ela anseia receber as benesses da sociedade.

Aparece, então, no discurso de Domingas um distanciamento entre os anseios dos

moradores e o descaso daqueles que estão do outro lado da cidade, onde se

103

encontra a cultura dos socialmente reconhecidos. Estaríamos, assim, diante de

um embate entre a cultura de elite e a cultura popular.

Ecléa Bosi (1985), em texto sobre a cultura das classes pobres, afirma que

enquanto a cultura popular não está articulada com a cultura da elite ela é vista

como “a outra”, como folclore, fonte da diferença. Estariam, assim, se defrontando

dois grupos: o das realizações culturais significadas socialmente e um segundo

cujas realizações só adquirem significado quando postas em oposição à cultura

dominante.

Domingas deseja ser reconhecida como igual pela diferença, ou seja, como

representante do lugar que deu origem ao falar cuiabano e que mantém vivo os

mais antigos costumes desta terra. Há aqui uma aproximação com as

observações apontadas por Woodward (2000) quando afirma que a identidade é

marcada pela diferença, ao mesmo tempo em que é uma construção simbólica e

social.

Dos quatro moradores entrevistados no vídeo, a fala de Domingas, Maria

Conceição e Ivo Antunes apresenta o sentimento de pertença àquele lugar como

uma marca da identidade local. Um traço de enraizamento observado por Ecléa

Bosi (2004). Os três se referem ao fato de terem nascido e se criado naquele

bairro. Para eles, os mais antigos, a comemoração da festa de São Gonçalo e a

tradição do artesanato cerâmico funcionam como uma reação defensiva aos

tempos modernos, no sentido de preservar a cultura ameaçada, como nos fala

Hall (2004).

Também aparece no vídeo a identidade do ceramista como uma marca do

lugar. Este sentimento está presente na fala do morador Clinio Moraes que conta

como se tornou um ceramista, uma vez que é esta identidade profissional que lhe

garante o sustento e o da sua família. No vídeo, a representação da família

ceramista está ancorada nas imagens de Seo Clínio trabalhando nas peças.

104

Domingas também reforça essa identidade, pois ela aparece amassando a argila e

falando das dificuldades de se manter como artesã da cerâmica por causa da

falta de apoio oficial.

Já o olhar da pesquisadora Aline de Figueiredo traz novos elementos para

reforçar as identidades locais presentes no bairro São Gonçalo. Local onde os

moradores moldam a argila, fazem e tocam a viola-de-cocho, recitam versos,

dançam e são festeiros. Ela afirma que os moradores desempenham vários

personagens ao mesmo tempo. Ora na pesca, ora na lida com o barro; ora na

dança, ora no canto. Nesse sentido é possível uma referência entre

“personagens”, como afirma Aline, e as identidades fragmentadas, como invoca

Hall (2004). A fragmentação das identidades desempenhadas pelos moradores do

São Gonçalo todas ligadas a uma tradição.

Mas a preocupação do vídeo, encarnada no discurso de Aline, de que a

sociedade cuiabana e mato-grossense precisa reconhecer os valores do São

Gonçalo, denuncia que essas mesmas identidades ligadas a uma tradição hoje

estão ameaçadas ou em processo de transformação. Daí a necessidade de

reforçar as identidades locais como reação defensiva aos avanços da urbanização

de Cuiabá e, conseqüentemente, a entrada de novas culturas naquele espaço.

Outro aspecto abordado é a devoção dos moradores. O vídeo é construído

em torno da fé de homens e mulheres ao Santo milagroso e da tradição católica.

Nesse sentido é interessante observar o que fala Arantes (1990) sobre cultura

popular, quando afirma que práticas e concepções tradicionais são vistas, muitas

vezes, como resquícios de cultura culta de outras épocas “filtrada ao longo do

tempo pelas sucessivas camadas da estratificação social”. (Arantes, 1990 p.16).

Assim, a Festa de São Gonçalo, com o seu ritual de procissão, missa, o chá com

bolo, o almoço e demais danças ao longo do dia e da noite, pode ser vista como o

tradicional que está ligado a um passado da origem cuiabana. Então, enquanto

105

cultura popular, tal festejo se justifica por ser uma forma de preservar a suposta

origem desse modo de vida dos ribeirinhos.

Mas no aspecto da fé é importante notar ainda que em momento algum as

falas dos entrevistados se referem ao aspecto religioso. A fé se justifica apenas

pelas imagens do ritual da Festa, ou seja, o andor com o Santo, a missa, o beijo

na bandeira do Santo, as velas acesas.

Também é possível observar que o vídeo trabalha, superficialmente, a

idéia de que o estar juntos é uma característica da identidade local no preparativo

das festas. O que Araújo (1977, p15) chama de “coesão social”, despertada com

as festas de santo, isto é, um espírito de cooperação. As imagens de homens e

mulheres preparando as comidas, arrumando as bandeirolas no salão, pintando o

lugar, realçam a idéia de que o trabalho é feito em mutirão, com a participação dos

antigos e dos mais novos também, mesmo que estes estejam mais interessados

na fabricação de suas pipas ou pandorgas.

Há ainda a observar, a presença marcante da artista plástica e

pesquisadora Aline Figueiredo. Ao pontuar o vídeo, explicando o modo de vida

daqueles moradores, Aline funciona como a personagem culturalmente superior

cuja tarefa é interpretar o sentimento dos moradores do São Gonçalo para os

espectadores. Mas, ao mesmo tempo, Aline não representa o ser “culto” que se

contrapõe ao que é considerado “popular”. Pelo contrário, a artista legitima o saber

popular para a sociedade que vai assistir ao vídeo, mostrando-se afetuosa e

aliada dos ribeirinhos. Na sua fala final ela reivindica o reconhecimento da

sociedade “culta” ao São Gonçalo como berço do falar cuiabano.

Nesse ponto, destaca-se um fator marcante para a identidade local: a

língua. Silva (2005) nos lembra que a língua faz parte do processo de fixação de

106

uma identidade. Ao ser referir a forma peculiar como os ribeirinhos falam15, Aline

estabelece uma raiz para esse linguajar típico. Este, fruto de um hibridismo, uma

miscigenação ligada `a colonização mato-grossense entre índios, portugueses,

espanhóis e africanos.

Podemos concluir, então, que o vídeo tem sua narrativa pontuada por duas

personagens centrais. De um lado, Domingas Leonor, a moradora que representa

a fala da experiência imediata do São Gonçalo. Do outro, Aline Figueiredo é uma

espécie de voz do saber que não está ligada a experiência, mas sim a pesquisa, a

observação antropológica de quem visita o lugar, constantemente, e conhece seus

moradores. Domingas, a ceramista, está ligada ao “fazer”. Aline, a pesquisadora,

ao “saber”.

Como nos ensina Bernadet (2003) as imagens do vídeo em análise não

podem ser consideradas uma expressão dos moradores do São Gonçalo, mas sim

uma manifestação da relação que se estabelece entre produtores, pesquisadores ,

videastas e o povo do lugar.

Vídeo 2 - O BAIRRO PERDIDO DO SÃO GONÇALO

roteiro e direção: Marcelo Okamura, 2001.

O vídeo começa com imagens da fachada do Museu do Rio e de

bandeirolas penduradas. Em efeito visual aparece a logo do governo do Estado.

Depois, uma bandeira do Brasil. Da bandeira sai em efeito a bandeira de Mato

Grosso e, novamente, em efeito, a logomarca da Lei de Incentivo `a Cultura.

Aparece, então, a imagem de uma menina manuseando o barro, criando uma

peça em cerâmica. Outro efeito visual e, desta vez, do meio da peça sai a

logomarca da Secretaria de Cultura. Depois mostra-se um homem fabricando um

15 Heug (2000, p.49) faz uma análise dessa peculiaridade do falar dos ribeirinhos,

exemplificando assim: “a pronúncia do j, g, x e ch, antes de vogais tem o som de dj, dg tx e tch, a exemplo de adjuda, dgente , tchão”.

107

jacá. Das tranças de palha sai a logomarca do patrocinador, a Telemat. Todo esse

trecho ao som de uma canção tocada na viola-de-cocho. Fim da introdução.

O vídeo começa com a voz off16 da moradora Domingas Leonor da Silva,

apresentando o local, ao som de músicas de cururu e siriri. As imagens que

acompanham a voz de Domingas destacam o rio Cuiabá e sua paisagem.

Domingas, em off, fala que o lugar tem o rio e os ceramistas. Ela fala sobre a

pesca e a cerâmica como duas atividades essenciais do São Gonçalo, citando

moradores ilustres do local e seus ofícios. Para Domingas eles são os maiores

artesãos de Mato Grosso. Corta.

Em seguida, aparece um pescador que caminha até a beira do rio, arruma

a canoa, tira a água empossada de dentro da pequena embarcação e sai pelo rio

Cuiabá para mais um dia de pesca. Corta.

Na próxima cena vemos Domingas. Ela está diante de um altar com

santos. Uma das imagens, grande e ao fundo, é a de São Benedito. Domingas diz

que o bairro São Gonçalo é a vida dela. Que ali todos formam uma família, são

todos parentes. Ela fala que trabalha pela “comunidade”, que essa é a vida dela.

O depoimento de Domingas continua, mas volta a ser uma voz em off,

falando sobre o trabalho de ceramista, enquanto vemos outro morador, seo Cândi,

lixando um vaso grande no colo e imagens de um forno de barro. A voz off de

Domingas segue, afirmando que o trabalho dos ceramistas é manual, “puro”. Que

jamais ela vai trocar esse ofício por técnicas modernas porque seu desejo é que o

São Gonçalo continue do jeito que é.

O depoimento seguinte é de seo “Cândi”, Candido Manoel da Silva, que fala

sobre suas atividades. Ele conta que a arte da cerâmica vai passando da gente

16

Voz off é empregada aqui, no sentido telejornalístico, como a voz de um entrevistado que não aparece na

imagem mostrada.

108

velha para a gente nova. Ele começou no ofício aos 15 anos e está com 60 anos.

Seu cândi diz que pesca numa época do ano e na outra faz cerâmica, quando o

pescado fica escasso. A imagem mostra o forno de barro e as peças sendo

retiradas após a queima. Depois ele fala de siriri e cururu. Que é uma tradição e

que enquanto ele “tiver perna vai continuar farreando”. Volta-se a mostrar as

cerâmicas.Tudo ao som de músicas cantaroladas por violeiros e cantadores do

local. Sobressaem as seguintes estrofes:

Quem quer ver mulher bonita vai na casa de capim Na casa de teia tem mas não é bonita assim...

Em seguida, vemos um homem limpando um peixe e, então, mostra-se o

jacá, o cesto típico dos ribeirinhos que era usado para guardar o peixe vivo dentro

do rio. Entra entrevista com o pescador Expedito Valdir da Silva. Ele diz que desde

criança gostou do ramo ao qual foi acostumado junto com o pai. Do avô herdou a

arte de fazer o jacá. Ele fala que o cesto não é mais utilizado como antigamente;

que ele só faz a peça por encomenda para exposição, mas que os pescadores

não usam mais no rio porque “o peixe some no outro dia” (referência ao furto de

peixes). Corte.

A próxima cena é uma roda de viola-de-cocho em baixo de uma árvore,

onde está um trio de dois senhores e uma senhora. Eles cantam as seguintes

estrofes:

Passarinho verde só Maracanã Vestido de seda só pra me assanha´

A entrevista agora é com Gerônimo Rodrigues de Arruda, um desses

senhores, que conta sobre o seu contato com o instrumento, desde a infância na

zona rural, em Mimoso, antes de mudar para a cidade. Ele fala sobre o uso do

instrumento nas danças típicas como o siriri, nas rodas de cururu e na festa de

São Gonçalo; que a viola-de-cocho é um divertimento sadio que o acompanha

desde a infância. Seo Gerônimo conta que deixou a roça para dar estudo a seus

filhos, instrução que ele e a mulher não tiveram. Agora, 36 anos depois de vir para

109

a cidade, gostaria de voltar para a roça, onde acha que tem mais fartura. Mas não

tem como porque os filhos estudaram e não querem deixar a cidade. Geronimo

afirma que não esquece da viola-de-cocho e que sente a necessidade de “uma

pessoa grande” se interessar por ela porque a viola é muito boa.

A fala de Gerônimo é interrompida pelo depoimento de Maria Joana da

Silva que completa a frase do amigo: “pra viola não acabar”. Ela diz que hoje o

instrumento é mais usado em baile do que no cururu. Joana conta que cresceu em

roda de siriri e que gosta de escutar as cantorias e participar das danças típicas.

Depois é a vez do artesão Clínio de Moura ( no outro vídeo ele é creditado

como Clinio Moraes) que conta como se tornou um ceramista (a mesma história

contada no vídeo anterior). Ele fala sobre a venda de peças, atividade difícil no

início dos anos 1970, quando só amigos da Universidade e do governo

compravam o artesanato. Segundo Clinio, a divulgação melhorou com a criação

da Casa do Artesão em 1975. Aí ele ficou conhecido e melhorou sua situação

financeira. Sua família, então, voltou-se ao trabalho. Toda a entrevista é dada

enquanto trabalha fazendo um peixe de cerâmica.

Em seguida volta a voz off da moradora Domingas Leonor, dizendo que a

cerâmica é a sobrevivência da comunidade; que é um trabalho artístico passado

de pai para filho e que eles hoje têm o dever de continuar a tradição; que é preciso

preservar tais costumes. Enquanto isso, vemos imagens de peças de cerâmica -

de jacarés, galinhas e potes – e imagens de São Gonçalo. A fala em off de

Domingas termina com a moradora dizendo que recebeu essa herança da avó,

mas que nem todos preservam e que ela tem medo que isso acabe. Enquanto

isso, aparecem imagens do preparativo de um andor e de São Gonçalo.

Vemos imagens noturnas da procissão do Santo pelas ruas do bairro do

Porto e a chegada até o Museu do Rio. Lá o grupo folclórico encena trechos do

ritual da festa de São Gonçalo e apresenta danças típicas ao som de “olha viva

110

meu São Gonçalo, oi torna reviva´”. Depois de vários momentos da dança no

Museu do Rio volta a imagem para a Domingas falando que o bairro está sendo

esquecido pelo povo.

O vídeo termina com o trio de velhinhos cantando ao redor de uma rede, onde um

deles está sentado e tocando viola-de-cocho. A senhora em pé canta:

a lua clareia e o sol alumeia menina caçando amor que não bambeia

Os letreiros finais expressam a necessidade de preservar a cultura local

com os seguintes dizeres: “agradecimento especial `a toda a comunidade do

bairro São Gonçalo pela preservação da cultura matogrossense”.

Leitura Possível

O vídeo de Marcelo Okamura, como o de Kátia Meireles, expressa o

mesmo sentimento de preservação de uma cultura popular. A manifestação dos

ribeirinhos - no trato com o artesanato, a pesca, as cantorias e danças - aparece

como representações do folclore cuiabano. Assim, para cada manifestação

cultural o vídeo trabalha com um elemento simbólico da cultura local: para o

artesanato, a cerâmica. Para a pesca, o jacá. Para o siriri e o cururu, a viola-de-

cocho.

Neste vídeo o único olhar externo ao São Gonçalo é o do próprio videasta.

A narrativa é pontuada pelos depoimentos dos moradores que vão esclarecendo

sobre as transformações nos costumes do lugar. O videomaker Marcelo Okamura

é mais explícito ao provocar o espectador, no sentido de mostrar o São Gonçalo

como um bairro esquecido que corre o risco de desaparecer com suas tradições.

O “berço da cuiabania” é retratado com nostalgia. Esse sentimento está presente

nas falas de seus moradores, a maioria mulheres e homens idosos, que falam

com verdadeira devoção ao lugar.

111

Como no vídeo anterior, o sentimento de pertencer ao bairro é mostrado

como uma identidade dos moradores. Quando fala com orgulho sobre os

ceramistas, Domingas introduz a outra identidade do São Gonçalo, como o lugar

que possui os melhores artistas do ramo. Na sua fala ela não admite que haja

transformações no fazer desses artistas, situando a arte dos ceramistas como

“pura”, “manual”, sem interferência das tecnologias modernas.

Neste ponto observamos uma aproximação com o que diz Woodward

(2000), quando aponta que a identidade reivindica um essencialismo sobre quem

pertence ou não a um determinado grupo identitário, no qual “a identidade é vista

como fixa e imutável” (Woodward, 2000, p13).

É´ como se Domingas quisesse congelar o tempo, impedir as

transformações do cotidiano nos costumes locais. Na fala dela não há lugar para o

futuro, só para o passado “como forma de preservar uma suposta origem daquele

modo de vida” (Arantes, 1990, p.16).

Mas o próprio vídeo mostra a interferência dos novos tempos nos costumes locais.

O pescador Expedito esclarece que o jacá não é mais um utensílio do pescador

porque pessoas de fora do bairro furtavam o peixe que ali ficava (essa explicação

é bem superficial no vídeo. Só fica clara para quem conhece o bairro). Então, hoje

o pescador não usa mais. A fabricação do objeto ganhou um novo significado

como peça de exposição. E´ feita sob encomenda para o consumo do turista,

portanto, com um valor de troca.

O mesmo sentimento de transformação está nos depoimentos do trio de velhinhos

sobre a viola-de-cocho. Seo Gerônimo e Dona Joana afirmam que o instrumento

agora é usado para animar os bailes, mas estão cada vez mais raras as rodas de

siriri e cururu que eles viveram tempos atrás. Os dois exemplos confirmam o que

diz Arantes (1990), quando observa a dinâmica cultural da sociedade. Para o autor

112

é possível a preservação de gestos, objetos, palavras e características plásticas

exteriores, mas os significados se alteram no contexto da produção cultural.

A fala de Seo Gerônimo traz um outro elemento interessante. Ele diz que deixou a

roça para viver na cidade para dar instrução aos filhos. A personagem quer voltar

para o lugar de onde veio, mas não é possível o retorno por causa dos filhos que

aprenderam na cidade um novo modo de vida. Em Eclea Bosi (1996) é possível

observar como a busca de instrução subverte a cultura do próprio povo. "A

concepção de cultura como necessidade satisfeita pelo trabalho da instrução leva

a atitudes que reificam, ou melhor, condenam `a morte os objetos e as

significações da cultura do povo porque impedem ao sujeito a expressão de sua

própria classe” (Bosi, 1996, p.17).

O vídeo deixa que os próprios moradores expressem os seus costumes. Ao

contrário do vídeo de Kátia Meirelles, não há uma personagem externa áquele

ambiente para explicar o cotidiano dos moradores do São Gonçalo. A voz do

“saber”, o outro, esta´ligada ao próprio autor do vídeo na montagem do material,

na organização dos depoimentos, criando sentido `a historia.

Mesmo que os dois vídeos sejam carregados de um sentimento de

preservação da cultura popular do bairro São Gonçalo há uma diferença entre eles

neste sentido. Enquanto Kátia Meirelles legitima sua posição através da

personagem de Aline Figueiredo, Marcelo Okamura deixa explícito seu sentimento

a favor da preservação das tradições locais no letreiro final.

No depoimento do Seo Gerônimo chama a atenção o fato do velho violeiro

reivindicar o apoio, ainda que implícito, de uma “pessoa grande” para ajudar na

preservação da viola-de-cocho. A expressão “pessoa grande” pode ser entendida

como alguém ou instituição de fora daquele ambiente, mas com prestígio

113

suficiente na sociedade mato-grossense para legitimar o que ele e seus amigos

consideram como um caráter essencial, que é a sobrevivência da viola-de-cocho.

Seo Gerônimo reivindica um reconhecimento da sua cultura, a popular, por

parte do outro, a elite. Para ele a viola-de-cocho merece apresentar-se como uma

“realização cultural” com um “significado social”, aspectos geralmente

considerados apenas nas atividades ligadas `a cultura dominante. “Enquanto não

articulada com a nossa, aquela cultura é a outra para nós, o folclore, a fonte vital

do diferente”, afirma Bosi (1996, p16). Nesse sentido, o que Seo Gerônimo deseja

é uma articulação entre a cultura dele e a outra, o que retiraria da cultura popular o

seu caráter de diferente.

O depoimento de Seo Cândi fala sobre dois tempos: o da pesca e o do artesanato.

Essa divisão em ciclos é encontrada em culturas rurais do Brasil ou áreas pobres

das cidades, afirma Alfredo Bosi (2004). A fala do morador revela essa dimensão

cíclica presente nos costumes de quem vive no bairro São Gonçalo. A pesca e a

cerâmica são atividades reforçadas pela memória coletiva do lugar e adquire valor

num constante ir e vir.

O depoimento do Seo Clinio põe em discussão a dimensão econômica do

artesanato cerâmico. Quando fala das peças que fabrica, do envolvimento da sua

família com a melhora das vendas, do que os turistas mais compram, ele

comprova o que outras vezes foi observado sobre as mudanças de significação

ocorridas com o tempo. A cerâmica, que foi utensílio de uso diário, hoje é objeto

de ornamentação. Houve uma alteração no seu valor simbólico como resultado do

processo de urbanização da cidade e da expansão do capitalismo.

O vídeo termina com uma encenação no Museu do Rio dos rituais da festa de São

Gonçalo. Neste ponto é possível interpretar como as transformações sociais

operam no interior das culturas populares. O fato de encenar os rituais aponta

114

para uma ressignificação das danças e cantorias, deslocadas do seu ambiente

natural. Assim, torna-se espetáculo para o turista, para o de fora daquela cultura,

para o outro, ao mesmo tempo em que, aos olhos externos, o ritual é visto como

mera curiosidade, reforçando o distanciamento do popular ao erudito.

Segundo Ecléa Bosi (2004) o espetáculo é a forma como o capitalismo se apropria

do popular, subvertendo o seu caráter original de enraizamento. Até o fato de a

encenação ter como palco um “Museu do Rio” pressupõe a condição de que o

que está sendo visto pertence a um passado e dessa forma só pode ser visto

como folclore.

4.3 – O olhar ribeirinho

A análise a seguir é uma forma de oportunizar reflexões acerca dos textos

em vídeo produzidos sobre o São Gonçalo, na ótica dos moradores. Este trabalho

partiu das conversas com o presidente do bairro, Dalmi de Almeida, durante visita

feita ao local em 2006, quando dos preparativos para a festa de São Gonçalo que

acontece no dia 10 de janeiro.

Sentados `a beira do rio Cuiabá numa tarde da semana, `as vésperas da

festa, foi que Seo Dalmi me contou sobre o costume dele de registrar em vídeo as

atividades festivas dos moradores. Até então eu desconhecia a existência dessas

imagens. Ele disse ainda que deixou de fazer as gravações porque o equipamento

está com defeito. Indagado sobre quem faz as imagens, ele respondeu apenas

que é “os meninos, a moçada mais jovem” sem alongar a resposta.

Por várias vezes tentei em vão conseguir essas imagens. Somente em Abril

de 2006, tive finalmente acesso ao material. São dezesseis fitas em formato VHS-

Compacto ou VHS-C, como é mais conhecido. As fitas ficam guardadas na casa

do Seo Dalmi. Ele contou que nunca foram exibidas para os moradores. O

115

material captado não possui uma identificação apropriada, o que dificulta precisar

a época de sua realização. Mas a maioria dos registros identificada é dos anos de

1999 e 2000.

Eu assisti `as imagens, pela primeira vez, junto com o Seo Dalmi - ele

gentilmente me recebeu em sua casa em abril de 2006. Aos poucos fui

entendendo o enredo daquelas imagens. Trata-se de registros em estado bruto,

isto é, sem ter passado por processo de edição, contendo atividades dos

moradores em momentos festivos.

Assim é possível ver imagens sobre uma manhã de limpeza no rio Cuiabá

(campanha Salve o Peixe, Salve o Rio Cuiabá); Festa do dia das Mães; Festa do

dia dos Pais; Festa de Natal; Festa de São Gonçalo; Dia das Crianças; Mutirão e

Horta Comunitária; Dança de Quadrilha; Gincana em 1999; Encontro de Ciriri (sic);

Futebol; Reunião, Inauguração de Barragem; viveiro. Cada fita tem em média

trinta minutos de gravação.

Diante de vasto material e a impossibilidade de analisar tudo, o

questionamento seguinte foi sobre como escolher aqueles registros mais

significativos para esta pesquisa. Escolhi analisar as imagens sobre a festa de

São Gonçalo e sobre a limpeza do rio Cuiabá. A primeira por permitir traçar um

paralelo com os vídeos sobre o SG que também enfocam a festa e a devoção dos

moradores. A segunda opção por se tratar da preocupação com o meio ambiente,

algo que também é descrito nos trabalhos acadêmicos sobre o São Gonçalo. Na

análise, primeiro descrevo as imagens desses vídeos e depois faço a leitura sobre

o texto videográfico com aporte nos Estudos Culturais.

O São Gonçalo hoje é um bairro integrado a cidade de Cuiabá. Sua

principal via de acesso está asfaltada até o local onde se localiza o restaurante

Regionalíssimo. A pavimentação foi entregue `a população em 2003 pelo governo

estadual. Segundo o presidente da associação de moradores, Seo Dalmi, a luta

116

junto aos políticos ainda é o asfaltamento de mais 500 metros de estrada de chão

no bairro e melhorar o transporte coletivo, pois são poucos ônibus e sem linha

direta para o centro de Cuiabá.

Boa parte da população trabalha na cidade. As hortas comunitárias não

existem mais, segundo o Seo Dalmi, por desinteresse dos moradores em fazer o

cultivo de forma coletiva. Muitos ainda pescam, mas não é uma atividade

econômica determinante para o sustento de todos os ribeirinhos. È´ comum ouvir

dos moradores queixas sobre a escassez do peixe nas águas do rio Cuiabá. Ao

longo da rua principal do bairro, muitas casas mantêm na entrada a placa

informando sobre a venda de cerâmicas, objetos que podem ser encontrados

também na “loja” do artesão, aberta no bairro em 2003, ao lado do restaurante

Regionalíssimo. Turistas e moradores de Cuiabá vão ao local para almoçar e,

muitas vezes, compram souvenires do artesanato expostos `a venda.

Segundo os moradores, a “loja”, situada no centro comunitário, deu um

novo impulso `a produção de artesanato. Famílias que haviam abandonado o

ofício voltaram a produzir pelo aumento da demanda. Com o apoio do Sebrae os

ceramistas do São Gonçalo estão introduzindo novas técnicas que permitem

ampliar a produção e melhorar a qualidade. É o caso de formas de gesso que

ajudam a padronizar as peças para o mercado consumidor. Os moldes diminuem

o tempo de produção, mesmo com o acabamento ainda sendo feito manualmente.

O resultado é o aumento das encomendas. Algumas chegam a cinco mil peças, o

que significa uma média dois meses de trabalho.

Dona Alice, que coordena a venda de peças na loja de artesanato, diz que

o consumo de cerâmicas fez com que muitos jovens se interessassem pelo ofício

dos pais e avós. A motivação vem pelo fator econômico por causa do aumento

das vendas.

117

Com o aumento da produção os ceramistas necessitam de mais argila. A

forma tradicional de extrair a matéria prima, descendo o rio de canoa, não é

suficiente. Segundo os moradores esta modalidade acontece ainda, mas de forma

esporádica. A associação de moradores consegue argila com os empresários das

cerâmicas da cidade. Uma “tombeira” é suficiente para meses de trabalho dos

artesãos. Segundo o seo Dalmi, ao ano são quatro “tombeiras” que descarregam

o material nas casas dos ceramistas.

Também percebe-se no local um interesse comercial por peixarias, que

começam a aparecer ao longo do rio, na avenida principal do bairro. Algumas

casas estão se adaptando como restaurantes especializados no cardápio, como já

acontece do outro lado do rio Cuiabá, nas localidades de Bom Sucesso , Praia

Grande e Passagem da Conceição, no município de Vázea Grande.

Recentemente, a prefeitura de Cuiabá anunciou um projeto de incentivo ao

turismo que prevê a construção de um planetário indígena no São Gonçalo, num

local conhecido como “caminho das estrelas”. E também a construção de um

monumento em homenagem ao encontro das águas do rio Cuiabá com o Coxipó.

Vídeo 1 – Festa de São Gonçalo

Ano de produção: 2000

O vídeo começa com uma procissão ao longo da estrada de acesso

ao bairro ainda sem asfalto. A tomada é feita em Plano Geral (PG), localizando o

lugar. A mesma tomada fecha-se em Zoom17 até a imagem do santo, que está

num andor carregado por quatro pessoas. Nessa tomada é possível ver as duas

da frente. Como a câmera está à longa distancia da procissão, o uso da Zoom faz

17

A Zoom é um falso movimento de câmera, através da mudança de ângulo de visão da objetiva da lente, dando a sensação de aproximação ou afastamento de um objeto focalizado.

118

a imagem tremer, não fixando-se exatamente sobre o santo. Mas parece ser essa

a intenção. É possível observar também a presença de um cinegrafista de um

canal de televisão local (TV Record), fazendo imagens bem próximo a multidão.

(corte)

Novamente, a estrada é vista em Plano Geral18. Um leve movimento

panorâmico à esquerda e volta-se a abrir em Zoom, mostrando a procissão em

PG. (corte) Agora mostra a procissão de perfil tendo ao fundo o rio Cuiabá. A

imagem mostra crianças e jovens; homens e mulheres carregam o santo. A

moradora Domingas, figura conhecida no meio cultural local, vai à frente tocando

ganzá acompanhada de um homem tocando viola-de-cocho. O cortejo é

acompanhado por uma banda e por pessoas que soltam fogos de artifício. Os

presentes usam “roupas de festa” isto é, nota-se que estão produzidos para a

procissão. A câmera se aproxima em Zoom das pessoas que carregam o santo e

rapidamente volta-se a abrir para PG. (corte)

No plano seguinte, a banda pára de tocar. Quem entoa a canção agora é

Domingas e o violeiro. O som não é captado com clareza, mas é possível

entender a seguinte estrofe: “quando voltar da Bahia me traga um são

gonçalinho”. A estrofe é repetida pela multidão que canta e bate palma

sincronizada com a batida da viola-de-cocho. (corte) Na tomada seguinte, a

câmera mostra a procissão chegando a associação dos moradores, onde vai se

celebrar a missa. (corte) Durante a celebração as tomadas são na maioria em

Planos Abertos19, movimentos Panorâmicos20 e alguns movimentos de Zoom, sem

exatamente aproximar em Close. Ouve-se o padre falando e as orações dos fiéis

entrecortadas por músicas de louvor a Deus. (corte)

18 Na nomenclatura clássica para vídeo, em Santos (1995), o PG representa o enquadramento feito de corpo inteiro com destaque para o ambiente da ação. 19

O mesmo que Plano Geral, destacam o ambiente da ação. 20 Nos movimentos panorâmicos a câmera gira em torno do eixo do seu tripé na horizontal ou vertical.

119

Numa outra tomada aparece o presidente do bairro, Dalmi de Almeida,

falando para os fiéis. Enquanto fala, a câmera percorre o ambiente em Pan e

fecha em Zoom numa imagem de São Gonçalo. Depois retorna até Dalmi. Ele diz

o seguinte: “... e pedir a Deus uma benção pra todos eles. E que ano que vem, se

Deus nos der saúde, pra que nós pudermos estar aqui mais uma vez orando ao

nome de nosso senhor Jesus Cristo e de São Gonçalo aqui na nossa comunidade.

Nossa intenção como presidente da associação é divulgar a nossa comunidade e

fazer com que ela cresça; e que as crianças passem a gostar daquilo que é a

cultura que é o artesanato que é a vida da comunidade. Porque o dia que acabar a

cultura, o artesanato, acaba o São Gonçalo. E também deixar uma mensagem

para essas crianças, esses jovens que seguem ... ( não dá pra entender) esses

mais velhos de luta pela nossa cultura e crescimento do nosso bairro e

desenvolvimento. E pedir a Deus que abençoe todos nós”. (corte)

Ainda na celebração as imagens mostram outras pessoas fazendo

agradecimentos, enquanto a câmera passeia em Close sobre o altar, onde se

encontra a imagem de São Gonçalo. Novamente os fiéis passam a cantar para

São Gonçalo e bater palmas. A câmera passeia pelos fiéis e em Zoom fecha até a

imagem do santo. (corte) Em seguida, vem o chá com bolo. A imagem mostra a

mesa farta e as pessoas comendo. Vê-se equipes de TV colhendo imagens

também. Noutra tomada vê-se a banda tocando, enquanto as pessoas encostadas

num muro estão comendo. O cinegrafista mexe com um casal que está próximo

ao muro. O casal tenta se esconder da câmera. Em outra tomada, o cinegrafista

,agora na rua, pede aos moradores que sorriem e falem alguma coisa para a

câmera. As pessoas olham meio desconfiadas. (corte)

A tomada seguinte é feita`a noite. Aparecem violeiros tocando e cantando

cururu enquanto mostra a imagem do santo. Novo plano aberto de tocadores. Em

seguida plano de pessoas segurando velas seguindo em Pan e Zoom dos

presentes. Aparece a cova, onde será fincado o mastro com a bandeira do

120

santo21. Seo Dalmi e Domingas amarram a bandeira de São Gonçalo na ponta do

mastro enquanto os cururueiros tocam. Vê-se então, em um novo plano, a figura

de um menino, de cinco anos aproximadamente, tocando ganzá. A câmera

aproxima dele em Zoom (mais tarde descobri que o menino chama-se

Marcelinho). Mostra-se outros meninos segurando velas. Em seguida, a colocação

do mastro erguido no meio do salão da associação dos moradores. Na próxima

tomada os presentes formam uma fila e seguram velas. A câmera passeia entre o

público. As mulheres dançam e batem palma. A fila segue até um canto do local

onde está uma mesa com a imagem do santo. Eles entoam cantos a São Gonçalo.

Noutra tomada, aparece uma roda interna de mulheres dançando e cantando e

por fora uma outra roda de homens tocando viola de cocho, ganzá e batendo

palmas. FIM.

Vídeo 2 – Limpeza do Rio

Ano de produção: não identificado

O vídeo começa no cartaz onde está escrito “Socorro... Preciso continuar

vivendo – Rio Cuiabá”. Depois a câmera mostra outro cartaz onde se lê: “Rio

Cuiabá... Essência da Vida”. Em seguida aparece em plano fechado sacos

plásticos com alevinos dentro. Os sacos estão dentro de um caminhão. A câmera

passeia entre os sacos em Pan. Na tomada seguinte aparecem crianças seguindo

em direção ao rio, todas com camisetas da campanha “Salve o Peixe Salve o Rio

Cuiabá”.

As crianças carregam sacos e elas são mostradas retirando entulhos, lixos

e sujeiras da beira do rio e depositando nos sacos. Em seguida vê-se o lixo

amontoado com as crianças em volta. Aparece, então, mulheres e crianças

alegres dançando e requebrando. Na tomada seguinte vê-se em Plano Geral

crianças caminhando ao longo de um estrada de terra. Elas vêm com uma faixa na

frente escrita: ”Rio Cuiabá e Coxipó: Patrimônio Cultural Ecológico. Preserve-o

21

Segundo pesquisa de Haug (2000), a cova é chamada de Sepultura de Jesus, ou no linguajar típico dos ribeirinhos sepurtura de jesuis.

121

(sic)”. Mais uma tomada em PG da caminhada. Nesse ponto descobre-se que as

crianças são alunos de uma escola e estão acompanhadas de professores. Noutra

imagem aparece o político Murilo Domingos, idealizador da campanha de

preservação, chegando ao local. Em seguida mostram-se as crianças em fila para

pegar o lanche na associação de moradores do São Gonçalo. Depois várias

tomadas das crianças comendo e bebendo.

As cenas seguintes são externas. Os presentes estão aglomerados e

ouvem os discursos de autoridades. A câmera está longe, num ponto superior e

não mostra muito as pessoas. Tenta focar apenas aqueles que discursam. Seu

Dalmi, o presidente do bairro, fala que a comunidade vive do peixe e do

artesanato; que as crianças devem defender a natureza para preservar o futuro.

Na sua fala identifica-se a escola cujos alunos, da 1ª a 4ª séries, estão ali naquela

atividade. É´o colégio Hermelinda de Figueiredo, do bairro Cophema. Aparece,

então, outro morador discursando pela preservação. As professoras também

discursam agradecendo. Por último fala o político. Ele conta sobre como surgiu a

campanha Salve o Peixe Salve o Rio; que está empenhado em trazer mais

recursos de Brasília para investir na preservação do local e faz agradecimentos.

Em seguida aparecem as crianças plantando árvores na região e depois os peixes

no rio. FIM

Leituras possíveis

As imagens dos dois vídeos têm um caráter documental, uma vez que se

enquadram como registros de uma realidade com sentido informativo, não

ficcional. O primeiro vídeo capta uma manifestação popular que se repete no

bairro São Gonçalo todos os anos. O segundo enfoca um problema ambiental com

conseqüências sociais.`A princípio, é possível notar que os vídeos não

apresentam uma preocupação formal com a linguagem. Sua intenção é registrar

um acontecimento, utlizando-se de um aparato técnico que hoje não está restrito

ao uso de profissionais. Nesta análise, detive-me ao seu caráter temático – na

relação entre o discurso verbal e/ou não-verbal - e menos na forma como esse

122

discurso é construído. Mesmo porque as imagens apresentam-se em estado

bruto, sem ter passado por processo de edição e pós-produção.

Bernadet (2003) enfoca o problema do documento visual em estado bruto

“como se um fragmento da realidade tivesse sido transportado sem elaboração do

mundo para a tela” (Bernadet, 2003, p.285). O autor afirma, em seguida, que a

noção de fragmento bruto é discutível. Para ele o melhor seria dizer “fragmento da

cotidianidade” que pouco elabora e apronta, referindo-se a imagem em movimento

quando se torna espetáculo.

Quanto aos paradigmas da produção de imagem, o registro em vídeo

enquadra-se no paradigma fotográfico, pois são “imagens produzidas por conexão

dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível, ou seja, imagens que

dependem de uma máquina de registro e que implicam necessariamente a

presença de objetos e situações reais preexistentes ao registro” (Santaella, 2002,

p.112)

A própria condição do vídeo como suporte de captação de imagens que se

presta ao registro em movimento – para diferenciar-se da fotografia tradicional -

dá conta do caráter referencial que lhe cabe, no sentido semiótico. Portanto, a

imagem videográfica documental22 é o real em um tempo passado.

O primeiro vídeo, sobre a Festa de São Gonçalo, apresenta alguns

elementos que merecem ser destacados: a procissão, a missa, o chá com bolo, a

fincada do mastro à noite, os instrumentos musicais. É´ a partir deles que seguirei

minha análise.

A procissão e a missa são momentos em que se observa a representação da fé

dos moradores ao padroeiro do local. E´ durante a procissão que escutamos a 22 Falo em imagem videografica documental porque é possível produzir imagens videográficas não documentais, de forma sintética, através da computação gráfica que se enquadram no paradigma pós-fotográfico.

123

entoação da música tema da festa, o canto a São Gonçalo. A toada é

acompanhada de ganzá, viola-de-cocho e das palmas do cortejo. Há momentos

em que o ritual torna-se um unívoco, um coral, que ora dá vivas a São Gonçalo,

ora repete as estrofes do canto ao Santo, ora bate palmas no ritmo da música.

Esse é um ritual de enraizamento, como nos fala Ecléa Bosi (2004), uma vez que

constituí-se em cantos, gestos e toques de instrumentos que guardam a memória

dos antigos moradores. Quem participa da procissão revive um costume do

passado. “Sentimento enraizador e portador de esperança é cantar de novo os

cânticos das festas comunais. Um dos atrativos desses hinos é a convicção de

que os homens de ouros tempos assim os cantaram” (Eclea Bosi, 2004, p.39).

A celebração é o momento em que os fiéis se juntam para agradecimento,

regozijo e pedidos de proteção. Mas é possível observar na fala do presidente do

bairro, Seo Dalmi, que a missa é momento também para outras reflexões dos

ribeirinhos. No trecho em que ele aparece falando aos fiéis, o líder local diz que

sua intenção como presidente do bairro é “divulgar a comunidade e fazer com que

ela cresça”. Percebe-se, então, a importância da imprensa estar presente na

Festa. Para Dalmi a imprensa representa esse “divulgar” que ele acredita ser

necessário para a perpetuação do bairro de São Gonçalo.

Então, é possível afirmar o que Martin-Barbero (1995) observa sobre o

entrelaçamento entre a cultura popular e a cultura de massa. Uma necessita da

outra num jogo de interesses. Essa condição parece ser indispensável na

Contemporaneidade. Por trás do fato de se fazer a Festa, de se reviver a tradição,

há os interesses ocultos entre as próprias lideranças locais. A divulgação da Festa

na imprensa representa, pelo menos para o Seo Dalmi, que a associação de

moradores está trabalhando para a perpetuação dos costumes do bairro São

Gonçalo.

Seo Dalmi ainda diz na sua fala, durante a missa, que é preciso fazer com

que as crianças admirem o que é a cultura do lugar ligada ao artesanato cerâmico,

124

sob pena de se acabar o bairro. Ou seja, os moradores antigos do São Gonçalo

acreditam que a sobrevivência do local está ligada aos costumes dos seus

antepassados que vêm se transformando com o passar dos anos, mas que ainda

permanecem vivos.

Então, a mesma televisão que interfere nos costumes locais produzindo

novas formas de percepção do cotidiano é o meio de comunicação que pode

ajudar os moradores a perpetuar a tradição da Festa de São Gonçalo. Há um

paradoxo nessa posição que representa o paradoxo da cultura hoje.

Araújo (1977) observa que as festas populares têm como características

uma coesão grupal, um sentido de cooperação entre homens e mulheres que se

unem, principalmente, nos momentos dos preparativos. O autor afirma que as

festas populares foram incorporando, com o passar dos tempos, o padroeiro e o

santo, por causa da influência da igreja católica no Brasil. As comemorações

também foram adicionando a gastronomia, a procissão, o baile, a liturgia etc.

As festas tiveram uma origem comum: uma forma de culto externo tributado a uma divindade, realizado em determinados tempos e locais desde a arqueocivilização. Recebeu, porem, roupagens novas após o evento do cristianismo. A Igreja Católica Romana determinou certos dias para que fossem dedicados ao culto divino, considerando-os dias de festa, formando o seu conjunto o ano eclesiástico (ARAÚJO, 1977, pp.11-12)

Assim, é possível observar no vídeo nº 1, além do ritual litúrgico, o

momento dedicado à comezaina, que é o chá com bolo. O alimento e a música

são dois princípios enraizadores, segundo Ecléa Bosi (2004). A autora afirma que

ao falar de enraizamento não significa pensar um grupo social isolado de

influências externas. Mas o termo refere-se a uma forma de defesa cultural e

sobrevida dessa cultura em contato com os antagonismos da sociedade em que

tal grupo está inserido.

125

A Festa de São Gonçalo pertence a um ciclo. Ela se repete todos os anos,

no dia 10 de janeiro. Para Alfredo Bosi, o tempo da cultura popular pressupõe

ciclos. “O seu fundamento é o retorno de situações e atos que a memória grupal

reforça atribuindo-lhes valor” (Bosi, 2004, p.11).

É´ uma festa de calendário, principalmente ligada `a tradição da zona rural.

Segundo Araújo, “o grupo social repetindo em consonância com essa

periodicidade nos ciclos agrícolas, as reuniões, acabou dando `a festa uma função

comemorativa” (Araújo,1977, p.11)

É´ preciso pensar também sobre a construção das identidades que o vídeo

sugere. Segundo Silva (2005) a identidade e a diferença são criações culturais e

sociais. São resultados da criação de significados e que, portanto, não são ligadas

ao mundo natural. São resultados da produção simbólica e discursiva. Ao afirmar

a sua identidade, um grupo marca a sua diferença em relação ao outro, expondo

o desejo de ter acesso privilegiado a determinados bens sociais. Portanto,

segundo o autor, “a identidade e a diferença não são nunca inocentes” (Silva,

2005, p.81).

O jogo das identidades está presente nas relações no bairro São Gonçalo.

Ao afirmar sua identidade local, ligada a uma tradição, os moradores querem na

verdade benefícios para o bairro. Seo Dalmi refere-se na homilia `a luta pelo

desenvolvimento do lugar. Então, ele expõe ali um sentimento de que o bairro

precisa se modernizar, receber as benesses da vida urbana, como transporte,

asfalto, mas, ao mesmo tempo, sem se desligar do passado que dá a eles a

condição de diferentes e que, por isso mesmo, eles precisam ser valorizados pela

tradição da cerâmica, da Festa de São Gonçalo, do cururu e da viola-de-cocho. E

isso só será preservado se as autoridades investirem em benefícios para o bairro.

Eles querem se sentir incluídos nas benesses.

126

O vídeo nº 2 se constrói através das representações que o Rio Cuiabá

desperta nos moradores do São Gonçalo. Segundo Ortiz (2003), cultura significa

também adequação ao meio ambiente. A idéia inicial do vídeo relaciona-se a

morte do rio devido `a poluição de suas águas. As imagens das crianças retirando

os entulhos reforçam essa posição que nos foi apresentada pela faixa inicial

“Socorro... preciso continuar vivendo – Rio Cuiabá”.

Ao descobrirmos que o movimento de retirada de lixo é feito por alunos de

uma escola de um bairro vizinho ao São Gonçalo aparece aí um processo de

identificação com a causa em favor da preservação do rio. Essa identificação na

perspectiva do senso comum, como nos fala Hall (2005), no vídeo se caracteriza

pelo reconhecimento de uma causa comum, compartilhada por grupos que

defendem um mesmo ideal, ou seja, salvar o rio ameaçado pela poluição. Então, o

que vemos é uma representação de uma solidariedade entre alunos de uma

escola, professores e políticos por uma causa que seria pertinente aos ribeirinhos,

pois estes vivem `as margens do Rio Cuiabá.

Então, o olhar de fora se junta aqui ao olhar do ribeirinho sobre a fonte de

sobrevivência, tanto dos de dentro como dos de fora. É possível identificar nessas

imagens uma outra referência ligada a existência humana: está ali a idéia da

sobrevivência da própria localidade e indiretamente da cidade cortada pelo rio

Cuiabá. Constróe-se, assim, uma identidade coletiva, politicamente correta, em

favor da natureza. Mas ela também é construída por causa da ameaça,

estabelecendo um jogo dicotômico entre vida e morte do rio.

A morte lenta do rio Cuiabá e de seu afluente, o rio Coxipó, está

diretamente relacionada com as práticas dos ribeirinhos, isto é, a pesca e o

artesanato, como diz no vídeo o presidente do bairro, Dalmi Almeida. No caso da

pesca, a redução da sua importância para a sobrevivência dos moradores tem

como fato a escassez do peixe por causa da poluição das águas. O rio também

fornece a matéria-prima para a produção do artesanato cerâmico, isto é, a argila.

127

No vídeo, Seo Dalmi fala que as crianças devem defender a natureza para

preservar o futuro. Então, os moradores articulam a possibilidade do fim do

costume artesanal caso o rio morra.

É interessante notar que a luta pela sobrevivência do rio é apropriada pelo

olhar de fora. Isto é, existe uma campanha Salve o Peixe Salve o Rio Cuiabá cuja

criação é atribuída a um político de Várzea Grande. Identidade que é reforçada

pelos meios de comunicação e que se constitui na principal bandeira eleitoral do

mesmo político. O apoio da população ribeirinha a essa “causa” funciona como

uma ação que legitima o seu caráter de homem público sério que possui

responsabilidades com o seu eleitor. Portanto, a identidade do ribeirinho ligada ao

rio não é mais somente dele. Passa a ser uma causa coletiva, de toda a sociedade

cuiabana, que depende do rio.

128

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os processos de construção da cultura constituem-se num campo aberto

para múltiplas investigações. A pretensão deste trabalho é ser mais um olhar

sobre a questão, cuja discussão envolve uma reflexão sobre a importância da

dimensão simbólica na constituição do mundo social.

Como vimos, o conceito de cultura é polissêmico. Todavia, pode-se

canalizar para duas grandes concepções. A primeira delas relaciona-se com os

aspectos da vida social. A interação do homem com a natureza, a produção de

idéias e artefatos que são dotados de sentidos. É´ nas relações sociais que os

artefatos significam e re-significam. Na segunda concepção, cultura se apresenta

como manifestação do espírito, desvinculada da vida material. Nesse sentido, ela

opera na esfera do sagrado , separando o culto do popular.

A dimensão cultural é um processo em constantes transformações que

acontecem no nível mais elementar, que é o cotidiano. Então, é na investigação

dos diferentes modos de vida dos grupos sociais que se busca a compreensão de

sua existência e da sua própria sobrevivência, como nos revela Ecléa Bosi (1996).

As leituras de imagens dos olhares sobre o bairro São Gonçalo Beira Rio

indicam que há uma preocupação em significar o lugar como originário de uma

tradição popular expressa pelo artesanato cerâmico, pelas festas de santo, pelo

siriri e cururu. Daí é possível algumas considerações sobre a valoração do popular

na relação estabelecida entre pesquisadores, videomakers e os moradores do São

Gonçalo Beira Rio.

Nas representações atribuídas ao universo do bairro nos vídeos analisados,

observa-se que a cultura espiritual do lugar é associada `a Festa de São Gonçalo.

A cultura material está ligada, principalmente, ao artesanato cerâmico. Ao fazer

uma aproximação do que foi mostrado nos vídeos de Kátia Meirelles e Marcelo

Okamura, com as obras acadêmicas citadas neste trabalho é possível afirmar que

129

a identidade do bairro ligada ao fazer cerâmico é muito forte em todas as

abordagens científicas.

Em Januário e na peça teatral Homem do Barranco, aparecem em

destaque também duas outras representações: a mitológica presente nas crenças

populares e a de que o ribeirinho é um ser protetor da natureza.

O vídeo de Marcelo Okamura dá `a viola-de-cocho um destaque como

expressão popular ligada aos moradores locais, através das cantorias, da dança

de São Gonçalo, do siriri e do versejar. O instrumento traz uma relação histórica

com as regiões de cultura caipira, mas que vem sofrendo transformações em seu

uso. Assim, nesse vídeo, os depoimentos traduzem esse sentimento de perda, de

desenraizamento, na medida em que os moradores afirmam que a viola-de-cocho

hoje está mais presente em bailes do que nas rodas de cururu. Portanto, as

construções materiais de um povo permanecem, mas mudam-se seus significados

com o passar do tempo. O mesmo se aplica ao fazer cerâmico, na medida em que

as peças deixam de ser utilitárias passando a ornamentais. Há aí uma re-

significação da cultura material.

Sobre as mudanças na simbologia das cerâmicas estas podem ser

interpretadas como a penetração do global no local, uma vez que novas técnicas

de produção da cerâmica têm sido introduzidas – o uso de fôrmas de gesso - para

diminuir o tempo de produção e aumentar o número de peças. Por sua vez, a

criação de peças de peso e tamanho padrão e, em série, dá uma dimensão

industrial ao trabalho, projetando a atividade para a dimensão da cultura de

massa.

Em trabalhos como o de Januário e Palma há uma aproximação entre o

culto e o popular. Esses autores expressam um sentimento de respeito e

valoração pelos costumes locais. Eles representam, de alguma forma, a sociedade

intelectual da cidade que cumpre uma função social: a de legitimar as práticas

130

culturais dos ribeirinhos. Ao legitimar essa outra cultura eles reconhecem a

pluralidade do conceito de cultura.

O mesmo acontece com a pesquisadora e artista plástica, Aline Figueiredo,

no vídeo “Oi viva meu São Gonçalo ou torna reviva´”. Essa personagem

representa a sociedade culta cuiabana que reconhece os costumes dos

ribeirinhos como um modo de vida importante para a história da cidade.

Existe nesses intelectuais uma preocupação com as transformações que

esses costumes vem sofrendo com o avanço da urbanização de Cuiabá e a

penetração intensa dos meios de comunicação, gerando novos comportamentos

entre os ribeirinhos. Mas, mesmo o respeito com que esses intelectuais lidam com

o modo de vida dos ribeirinhos, suas práticas culturais continuam vistas pela

sociedade cuiabana como a outra, o folclore, o curioso, o histórico, algo que

pertence ao passado.

Os meios de comunicação, principalmente a televisão, trabalham

reforçando as identidades do bairro São Gonçalo como origem da cidade, núcleo

de ceramistas e mantenedor das raízes cuiabanas do siriri e do cururu. Existe uma

memória coletiva que vincula as tradições do são Gonçalo `a ”aquilo que é

nosso”. A televisão regional opera no sentido de divulgar essa representação. “A

memória coletiva se apresenta como tradição”, como nos fala Ortiz (2003, p.133).

Ela se vincula ao grupo social que celebra a revificação de antigos costumes,

como a Festa de São Gonçalo. Ao preservar a sua memória os moradores

preservam o grupo. Mas a memória coletiva só pode existir enquanto vivência do

grupo, enquanto prática diária do moradores.

Existe aí uma tensão entre cultura de massa e cultura popular. Essas

práticas são reforçadas pela mídia, mas por um interesse que também é dos

moradores. Entendo que nesse caso “os meios de comunicação de massa estão

servindo satisfatoriamente `a cultura popular”, com diz Ecléa Bosi (1996, p.33).

131

Nesse jogo de interesses negociados a imprensa também é interessante

por revelar os costumes do ribeirinho para “os de fora”, o Outro, aproximando o

local do global. Por outro lado, mostrar o modo de vida dos moradores do São

Gonçalo como o “o reviver da tradição”, o folclórico, o curioso, torna-se

interessante para a mídia na medida em que atrai a audiência.

É preciso atentar para o fato de que entre os moradores existem aqueles

que alcançaram uma consciência militante pelos anos de embates com as

autoridades locais, buscando reconhecimento pela luta dos que vivem no São

Gonçalo. O ribeirinho não é um ser ingênuo, despolitizado, como poderiam alguns

supor.

Existe um jogo entre o folclore e a vida real desses moradores. Quando se

apresentam para os turistas no Museu do Rio ou nos eventos governamentais o

que se vê é uma encenação de antigos costumes dos ribeirinhos. O que era o

modo de vida deles passou a ser espetáculo para os olhos dos turistas. Essa é

uma identidade que convém a eles, ou seja, os ribeirinhos querem ser vistos

assim pelo olhar do Outro.

Mas, reconhecê-los como diferentes, como berço da cuiabania, só se torna

interessante na medida em que essa identidade possa ajudá-los naquilo que eles

mais precisam no bairro, que é as melhorias de infra-estrutura, isto é, mais

transporte coletivo, a conclusão do asfalto no bairro e o fortalecimento do

artesanato como fonte de economia. A identidade torna-se uma garantia.

Assim, a cultura é uma dimensão simbólica que se articula com o político.

Identidade e diferença precisam ser representadas, como diz Silva (2005). E é por

meio da representação que a identidade e a diferença se ligam `as relações de

poder. Estas também estão presentes na dimensão interna ao São Gonçalo. O

registro audiovisual feito pelos moradores não é só um arquivo do cotidiano do

132

bairro. Aí também existe uma relação de poder, pois as imagens constituem-se

num documento sobre o trabalho de um líder comunitário, à frente de ações em

benefício do bairro, como representa as imagens do mutirão de limpeza do rio e a

organização da Festa de São Gonçalo.

Aí está o meu olhar sobre os outros olhares...

Outros olhares ainda virão...

133

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140

ANEXOS

VÍDEO 1 - “FESTA DE SÃO GONÇALO”

figura 1

Procissão pela manhã. Nota-se um cinegrafista da imprensa local, acompanhando o cortejo.

141

figura 2

Roda de cururu .

figura 3

Presença da imprensa na Festa de São Gonçalo

142

figura 4 Chá com bolo durante a Festa de São Gonçalo

figura 5 Missa de São Gonçalo

143

figura 6 O presidente do bairro, Seo Dalmi, na celebração. VIDEO 2 – “ LIMPEZA DO RIO”

figura 7 Passeata pelas ruas do bairro em defesa do meio ambiente.

144

figura 8 Mutirão de limpeza na beira do rio Cuiabá.

figura 9 Presença de políticos e da imprensa durante o mutirão de limpeza.

145

figura 10 Passeata em defesa do meio ambiente.