entre segurança e liberdade

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n. 2, p. 561-567, maio/ago. 2006

    ENTRE SEGURANA E LIBERDADE: desafios dacomunidade na contemporaneidade

    por Maria Medrado Nascimento*

    BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurana no

    mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 144 p.

    As palavras tm significado: algumas delas, porm, guardamsensaes. A palavra comunidade uma dessas. assimque o socilogo polons Zygmunt Bauman introduz a sua obra

    Comunidade: a busca por segurana no mundo atual. Com seu estiloprprio de abordar as questes da modernidade, reluzentes no mundourbano, o autor ir centrar a sua anlise na noo de comunidadee o paradoxo que este conceito traz: se por um lado ela emana umasensao boa, de se ter com quem contar, tudo que um citadino imerso em um mundo impessoal precisa para viver tranqiloe confiante, por outro lado limita uma das maiores conquistasmodernas: a liberdade individual. O grande dilema que se abre aqui

    o de que a balana entre segurana e liberdade no encontra umamdia exata e, conseqentemente, uma tende para cima enquantooutra tende para baixo. Segurana e liberdade nunca vm na mesmaproporo e por isso no podemos ter ambas ao mesmo tempo e naquantidade que quisermos.

    O desequilbrio na balana segurana/liberdade no contextocomunitrio ressalta a diferena entre a antiga e a moderna

    * Mestranda em Sociologia na Universidade de Braslia (UnB).

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    comunidade. Sobre a base terica formulada por FerdinandTonnies, Bauman afirma que a antiga comunidade se baseia emum entendimento compartilhado por todos os seus membros e que

    no precisa ser procurado, pois, j est l: entendido sem que nemhouvesse palavras, emanando um sentimento recproco e vinculante,que passa despercebido por sua evidncia e naturalidade. Comodefine o autor, uma negociao prolongada que pode resultar em umacordo que, sendo obedecido cotidianamente, torna-se um hbitoe no precisa mais ser repensado, monitorado ou controlado. Talcomo Tonnies, Robert Redfield acredita que em uma verdadeira

    comunidade no h motivo para reflexo, crtica ou experimentao,pois a unidade da comunidade ou a naturalidade do entendimentotem o mesmo fundamento: a homogeneidade, a mesmidade.

    exatamente essa mesmidade que entrar em conflitoquando os limites entre a comunicao de dentro e de fora setornam mais tnue, tornando ainda mais confusa a distino entrens e eles. Em um contexto de modernidade, onde as bruscas

    mudanas no tempo das comunicaes rompem a fronteira entre odentro e o fora, cabe ento uma outra formatao para a idia decomunidade. Assim, a idia de identidade ganha vigor. Para oautor, identidade significa aparecer, ser diferente e singular. Paraqualquer um dos lados da moeda, h que se pagar um preo, pois damesma forma que segurana sem liberdade equivale escravido, aliberdade sem segurana equivale a estar perdido e abandonado.

    Para elucidar esta questo terica to bem construda, valeconsiderar o estudo realizado por Norbert Elias e John Scotson (2000)no final dos anos 50. Em Winston Parva, nome fictcio da pequenacomunidade estudada, o conflito existente entre os estabelecidose os outsiders, expresso que intitula a obra, evidencia as diferenasentre os dois grupos. Enquanto que os estabelecidos apresentavamum alto grau de homogeneidade, coeso social e objetivos comuns

    referentes defesa dos seus padres morais, os outsiders erammarcados pelos fracos laos de solidariedade social que deixavamo terreno frtil para que o estigma lanado pelos estabelecidos

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    fosse internalizado pelo grupo e evidenciado numa falta de orgulhoe baixa estima coletiva.

    Entretanto, o alto grau de coeso social presente no grupodos estabelecidos no custou barato. Para tal aquisio um altopreo foi pago: a submisso e a conformidade dos indivduos snormas comunitrias e a relativa perda de espontaneidade de seusmembros. Essas caractersticas do grupo dos estabelecidos fogem mdia encontrada na sociedade da atualidade, uma vez que aindividualizao tornou-se a sua marca registrada. Nesta perspectiva,Bauman analisa o processo de industrializao, em que as massas

    foram tiradas da rgida rotina da interao comunitria governadapelo hbito e colocadas na rgida rotina do cho da fbrica governadopelo desempenho de tarefas. Desmorona-se a comunidade onde asintrincadas teias de interaes humanas que dotava o trabalho desentido e objetivo passam a se posicionar como equipes de fbricaregidas por uma rotina artificial imposta.

    A partir destas anlises, Bauman conclui que duas tendnciasacompanharam a histria do capitalismo moderno. A primeirafoi um esforo consistente de substituir o entendimento naturalda comunidade, seu ritmo e sua rotina por uma outra rotinaartificialmente projetada e monitorada. A segunda, uma tentativade recriar um sentido de comunidade adaptado nova estruturade poder pautada na dinmica e na rotinizao do processo deproduo, na impessoalidade da relao entre trabalhador e mquina,

    na fixao das tarefas de produo e na homogeneidade das aesdos trabalhadores.

    Os pontos de orientaes firmes e slidos de uma sociedadepr-industrial se decompem e o tempo de uma vida individualinsegura se abre. Os laos sociais se enfraquecem na mesma medidaem que enfraquecem as lealdades pessoais. Bauman afirma que neste contexto que a comunidade entra em decadncia e a unio

    do que foi rompido parece no mais se suceder. Esta idia de elorompido, imerso em um mundo de incertezas, converge com aanlise sociopsicanaltica que Eric Fromm faz sobre as necessidades

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    humanas. Fromm (2000) argumenta que, ao nascer, o homem tirado de uma situao definida e jogado numa situao indefinida,incerta e aberta. A conscincia tanto de ns mesmos como dos

    outros permite que nos entendamos como seres separados domundo, desamparados e incapazes. Este estado de separao fontede uma ansiedade imensa que acarreta vergonha e sentimento deculpa, tal como expresso na histria bblica de Ado e Eva que, apso pecado inicial que os transformou em humanos, se emanciparamda harmonia animal original com a natureza e conceberam para si umsentimento de solido. Mas, como superar esse estado de separao?Como alcanar a unio? Como transcender sua vida individual eencontrar a conciliao? Segundo Fromm, as respostas dependemdo grau de individuao alcanado.

    O sentido de comunidade tratado por Bauman decorrejustamente desta busca por segurana e proteo, de estar nomundo unido e podendo contar com os outros. Os diferentes grausde individuao apresentam uma relao com as diferentes classes

    sociais. Carregando certa ironia em suas linhas, dedica um captulodo livro a uma anlise sobre a secesso dos bem-sucedidosreferindo-se ao novo distanciamento, indiferena, desengajamentoe, em verdade, extraterritorialidade mental e moral daqueles queno se importam de ficar ss, desde que os outros, que pensamdiferente, no insistam em que se ocupem e muito menos partilhemsua vida por conta prpria (p. 49).

    Ou seja, o grupo de privilegiados sociais elite global formado pelos que no precisam mais dos servios da comunidade,no conseguindo compreender o que ganhariam permanecendona e com a comunidade, mas no que poderiam perder seeles se submetessem s demandas da solidariedade comunitria,formariam as comunidades cercadas, eletronicamente protegidase controladas. Essa elite global formada pelos que podem serdenominados tambm de globalizados integra-se com a idia de

    um cosmopolitismo seletivo. A principal celebrao deste estilode vida, segundo o autor, a irrelevncia do lugar, uma condiointeiramente fora do alcance das pessoas comuns, dos nativos

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    estreitamente presos ao cho e que (caso decidam desconsideraros grilhes) vo encontrar no amplo mundo l fora funcionriosda imigrao pouco amigveis e severos em lugar dos sorridentes

    recepcionistas dos hotis (p. 54).

    A bolha em que a elite cosmopolita global se aparta domundo real uma zona livre de comunidade, ou seja, uma fuga dacomunidade. Gerada em uma sociedade globalizada e desregulada, anova elite cosmopolita se localiza em uma extraterritorialidade ondea certeza e a segurana entraram em colapso e a idia de comunidadenunca existiu. Nesse mundo da elite global dos negcios e da indstriacultural s quem tem espao no palco quem tem capacidade departicipar do jogo do consumo, no havendo espao para realidadesfeias e duras.

    bastante interessante a forma utilizada por Bauman paraalertar o leitor sobre as diferentes concepes de comunidade,no que se refere a quem a utiliza e como construda. Assim, acomunidade da elite global inteiramente diferente daquelaoutra comunidade dos fracos e excludos e, conseqentemente,a noo de comunidade para cada um desses grupos correspondea experincias inteiramente diferentes e a aspiraes contrastantes.Quanto sua construo, o autor afirma que a comunidade deveser to fcil de decompor como foi fcil de construir: criao edesmantelamento como resultados das escolhas feitas pelos queas compem. Na modernidade, os vnculos com a comunidade so

    volteis, formando comunidades instantneas, de consumo imediato.O autor traz a idia de comunidades estticas que se formam em tornode dolos e se caracterizam por sua natureza superficial e transitria,pois os laos que surgem entre os seus integrantes so descartveise pouco duradouros.

    A comunidade esttica se contrape comunidade tica,de compromissos de longo prazo, de direitos inalienveis e

    obrigaes inabalveis que reafirmam o direito de todos a umseguro comunitrio contra os erros e desventuras que so os riscosinseparveis da vida individual. Desta forma, o sentido de justia

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    entre os povos na atualidade deve ser pensado tanto no que se refere redistribuio quanto ao reconhecimento. Bauman, a partir dascontribuies de Castoriadis, ir afirmar que o reconhecimento

    do direito um convite para um dilogo onde as vantagens edesvantagens das diferenas em questo possam ser discutidas eacordadas. Este reconhecimento da pluralidade de formas que ahumanidade pode assumir e o grau de tolerncia sustentado por umapoltica multiculturalista cria defesas contra a homogeneizaoopressiva e a indiferena soberba.

    Em contraposio a este caminho do reconhecimento, muitos

    espaos sociais, como os bairros de luxo, optam pela separao emlugar da negociao da vida em comum, evidenciando a formaoda nova concepo de comunidade onde a ausncia do outro queteima em ser diferente e capaz de causar surpresas desagradveis uma forte caracterstica. O gueto parece mostrar bem este espao.Loic Wacquant afirma que o gueto combina o confinamento espacialcom o fechamento social, sendo ao mesmo tempo territorial e social,

    e onde se mistura a proximidade/distncia fsica com a proximidade/distncia moral. Os guetos, para Bauman, so lugares reais de ondeno se pode sair; verdadeiras prises que implicam a negaoda liberdade para aqueles excludos e marginalizados. Assim,a vida no gueto no contribui para a comunidade, uma vez que ocompartilhamento do estigma alimenta o desprezo e o dio. Emsntese, o gueto representaria a impossibilidade de comunidade.

    Nas pinceladas finais de seu livro, Bauman ir desenvolveruma anlise-sntese colocando como ponto central os limites epossibilidades da coexistncia e beneficiamento mtuo de umavida compartilhada por culturas diferenciadas. Em um mundo demulticulturalismo, a questo se lana em como conciliar, porum lado, o direito de uma comunidade proteo contra forasassimiladoras administradas pelo Estado ou pela cultura dominantee, por outro, o respeito ao direito dos indivduos proteo contra

    presses comunitrias que negam ou suprimem a escolha. O autorintroduz a questo: Qual dos dois direitos o mais forte forteo bastante para anular ou pr de lado as demandas que invocam

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    o outro? e, como resposta sugere que proteger o indivduo tantodas presses no-comunitrias quanto das presses comunitrias essencial realizao de qualquer das duas tarefas. A universalidade

    da cidadania, segundo Bauman, a condio preliminar de qualquerpoltica de reconhecimento significativa.

    Enquanto a segurana uma condio bsica para que umdilogo entre as culturas seja frutfero, a comunidade representao lugar paradisaco desta to esperada segurana. A partir destarelao entre comunidade e segurana, o livro Comunidade: a buscapor segurana no mundo atual fornece uma rica anlise sobre os

    motivos de a comunidade ser procurada como abrigo contra assucessivas correntezas de turbulncia global em um mundo cadavez mais individualizado.

    Referncias bibliogrficas

    ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: socio-

    logia das relaes de poder a partir de uma pequena comunidade.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

    FROMM, Erich.A arte de amar. So Paulo: Martins Fontes, 2000.