entre o ninho e a teia - repositorio.usp.br
TRANSCRIPT
ENTRE O NINHO E A TEIA
Universidade de São Paulo Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes Curso de Especialização “Arte na Educação: Teoria e Prática”
ENTRE O NINHO E A TEIA: A MATERIALIDADE DA MEMÓRIA NO PROCESSO DE
INVESTIGAÇÃO CARTOGRÁFICA
JOSÉ FELIPE LUCENA NETTO
SÃO PAULO 2020
JOSÉ FELIPE LUCENA NETTO
ENTRE O NINHO E A TEIA: A MATERIALIDADE DA MEMÓRIA NO PROCESSO DE
INVESTIGAÇÃO CARTOGRÁFICA
Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de especialista em Arte-Educação.
Orientadora: Profª Drª Maria Carolina
Duprat Ruggeri
São Paulo 2020
Resumo
O presente trabalho visa elucidar a importância da investigação no processo de
criação, considerando a memória e a imaginação como materialidades fundamentais da
experiência estética. Propõe uma reflexão acerca do papel do professor visando a
experimentação de recursos poéticos pedagógicos em consonância dos diferentes processos
que a criança apresenta durante a experiência criativa. O trabalho revisita a obra de alguns
autores, como Fernando Deligny, Gaston Bachelard, Walter Benjamin e Jorge Larrosa. Essa
pesquisa entende que a arte favorece um espaço singular de habitação, onde o professor se
coloca como propositor de experiências ao fazer uma leitura dialética e cartográfica entre o
seu processo de investigação atrelado ao ato criativo da criança.
Palavras-chave: Arte; Educação; Experiência; Investigação.
SUMÁRIO
1. FIO QUE TECE: lugar de invenção………………………………………………………… 06
2. Entre o ninho e a teia: constituindo um diálogo cartográfico……………….. 09
3. Teia: A poética da experiência como fio condutor do processo criativo.. 19
4. Entre o canto, a teia e a aranha: relações entre a criança, o artista e o educador……………………………………………………………………………………………… 29
5. As narrativas de uma cidade em construção: lugar de devaneios, arestas e
lapidações……………………………………………………………………………………………. 35 5.1 O papel do cartógrafo: a criação de um registro sensível………………. 36 5.2 Um espaço em construção: o surgimento da primeira cidade………….39 5.3 A luz dos materiais e as sombras da cidade……………………………………..43
6. RESQUÍCIOS DA TEIA……………………………………………………………………………. 47 REFERÊNCIAS...................................................................................................49
6
Câmeras de ecos
Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino sonho meu.
Na ciência dos cuidados fui treinado. Agora, entre meu ser e o ser alheio,
a linha de fronteira se rompeu.
Waly Salomão
1. FIO QUE TECE: lugar de invenção
O ato criador é atravessado por experiências que nos transformam e nos
impulsionam a estabelecer relações com o mundo e com o outro no mesmo lugar onde
somos afetados, pois não existe uma experiência estética e artística sem o componente
investigativo que nos possibilita inventar a si mesmo e tecer relações com aqueles que nos
cercam.
Este trabalho propõe uma reflexão sobre os processos de investigação e criação do
professor enquanto propositor de experiências estéticas em consonância com o ato criativo
da criança de 04 e 05 anos de idade em uma escola particular de educação infantil. Para isto,
se faz necessário pensar em registros teóricos que possam viabilizar o tema, que é pouco
discutido, sobre o fazer artístico do educador atrelado ao processo de investigação de
7
experiências estéticas da criança, a fim de potencializar novos caminhos para as práticas
docentes.
Para tecer conexões entre o sujeito e o meio dentro do processo de criação artístico,
pretendo enfatizar a importância da investigação como mediadora deste processo. Desta
forma, utilizarei o conceito de rede empregado por Fernando Deligny, em seu livro O
Aracniano (2018), como mediação entre o processo de criação da criança atrelado ao do
educador. Portanto, se faz necessário alicerçar, de forma poética, a experiência como fio
condutor que tece esta relação, utilizando-se das contribuições de Jorge Larrosa, em seu
livro Tremores (2018) e Walter Benjamin (1892-1940).
E na evocação da potência dos espaços de criação habitados pela criança e pelo
educador utilizarei, principalmente, Gaston Bachelard (1884-1962) como forma criativa e
fenomenológica de investigar os espaços internos e externos de habitação do ser criativo.
Por fim, compartilhar um registro sensível do educador em relação ao percurso
cartográfico da criança durante seu fazer investigativo, utilizando-se das contribuições da
Anna Marie Holm (2005) e Fayga Ostrower (2014).
Pretende-se, sobretudo, com as reflexões compartilhadas aqui, possibilitar uma
transformação na prática docente, visando a experimentação de recursos poéticos
8
pedagógicos em consonância dos diferentes processos que a criança apresenta durante a
experiência criativa.
9
2. Entre o ninho e a teia: constituindo um diálogo cartográfico
Descobrir um ninho leva-nos de volta à nossa infância, a uma infância.
A infância que deveríamos ter tido.
G. Bachelard.
O vínculo se constrói em espaços de segurança! Assim como os pássaros que
constroem sua morada, todo ser escolhe onde e como se recolher. Enraizar o ambiente de
afeto é preencher o mundo com a sua identidade, na permissão em estabelecer ações de
afetividade e de confiança, construindo, assim, um ninho no mundo.
Durante seis anos, mensurados no “tempo” dos pés descalços, terra no chão e
principalmente no corpo, com as poucas roupas que usava, brincava de bicho d’água, da
terra e do ar. Vivia subindo em árvores, jogando bola no mato, nadando em bica,
descobrindo esconderijos, abrindo caminhos com o olhar, pegando peixes na beira do rio e,
às vezes, por engano, alguns girinos que ensinavam, por espanto, a surpresa da
transformação.
Na medida em que vivenciava a construção de um espaço íntimo, seguro e
aconchegante - que pulsava a vitalidade das relações mais íntimas - foi possível construir
10
laços afetivos que, de fato, preencheram as camadas de habitação dos meus espaços interno
e externo. Conforme Bachelard (2008, p. 116), “O ser começa pelo bem-estar e na sua
contemplação do ninho”. Por meio deste sentimento de segurança, ele faz uma afirmação
poética e fenomenológica sobre as relações humanas, enfatizando a importância do espaço
afetuoso e seguro como sustentação de vivências transformadoras para o indivíduo
enquanto habitação no mundo.
Lembro-me do gigantesco canavial (Fig.1) que se iniciava no final da rua e se estendia
pelos meus olhos e só definhava com a fuligem da queima da cana no entardecer, quando o
céu ficava laranja do pôr do sol e vermelho do fogo esvaindo a cana e deixando um rastro de
vazio no chão queimado. Até os seis, vivi a infância do meu interior, no interior de São Paulo,
em Catanduva.
11
Fig.1. Desenho de memória sobre o canavial da minha infância.
12
Carrego na minha memória engavetada de lembranças, o vagão do trem onde
sentado alternava entre o banco e o chão, porque desde menino já sabia que não cabia mais
em um só canto. A viagem durou a noite toda, pelo menos foi a impressão que tive, pois me
lembro de chegar ao amanhecer, inundado de deslumbre na cidade dos brinquedos de
ferro.
A periferia da cidade de São Paulo se tornou a extensão do meu interior, nunca pude
e nunca fui de viver o centro das coisas, e pela falta delas, aprendi no amor materno que as
coisas não palpáveis são as mais raras. Com ela, também aprendi a guerrilha de sonhar
apenas pelo prazer de transcender a realidade.
Foi assim que fui arrebatado pela música, materializada em um objeto de madeira,
couro e ferro. Assim como um poema que não se encerra na palavra, ainda acesso as
sensações da primeira experiência em “Ser” descoberto por um instrumento musical. E
quando isso acontece, a gente se reconhece e, durante um certo tempo, o mundo fica
suspenso... É nessa dimensão que a vida se transforma. E tinha apenas onze anos de idade.
Neste lugar de transcender a vida, o instrumento musical me permitiu brincar com a
liberdade em sentir novamente de corpo inteiro: memória e imaginação, no fazer e na
13
apreciação dos sentidos. O som provocado por um movimento primário reverbera no espaço
e nas coisas novas relações de mundo.
Entre as primeiras notas rítmicas e pessoas que comungavam do mesmo
encantamento em vibrar ações para além das ruas do bairro onde moravam, aprendi o
sentido de comunidade. Quando dei por mim, já estava mergulhado por inteiro, respirando
música, teatro, escrita automática, amigos, amores da adolescência, lugares engavetados da
cidade e um bocado de segredo e silêncio.
Viver as manifestações do mundo no corpo foi a forma que encontrei de não perder
o acesso ao fio que me conectava entre o menino do interior ao adolescente periférico. Me
sentia salvo pela simples ideia de construir um manto de experiências que pudesse
preencher com o ato criativo. Cavar espaços férteis de criação é o ofício para quem não quer
simplesmente sobreviver no tempo cronológico da carteira assinada.
Acredito que a imagem da palavra casa, tenha em sua etimologia o mesmo sentido
da palavra ninho, que por sua vez remete ao instinto de segurança, proteção, aconchego e
pertencimento. Bachelard diz em seu livro A poética do Espaço (1989), que para o homem o
ninho é o mundo. Me juntar aos meus camaradas para fundar uma Casa de Cultura no
bairro de Sapopemba, me fez sentir ainda mais potente para enraizar o meu espaço de
14
vitalidade e encontros. Foi nessa Casa que eu ouvi pela primeira vez o poema de Vladimir
Maiakóvski (1892-1930), “A Extraordinária Aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no Verão
na Datcha”, e entendi que, para exercer o ofício de viver toda sua cosmicidade, era preciso
suar a camisa, ficar com tinta no corpo e gosto de café na boca aos dezoito anos.
Neste espaço, aprendi que o ato de educar é sempre um gesto de afeto. Lembro-me
dos “Saraus”, das rodas de música, sentado na escada da Casa de Cultura, brincando de
jogar palavra ao vento. Foi assim que realmente identifiquei a minha relação com a
educação, em espaços de informalidades. Pois, brincar vêm do mesmo lugar da criação e
fruição do artista, e conseguir enxergar as coisas como se fosse sempre a primeira vez,
requer um desprendimento do tempo cronológico e uma apropriação do tempo de
processo, diante das coisas mundanas. Ser professor da educação infantil é mergulhar na
minha alma brincante, lugar de criação de espaços para inspiração, provocação e
encantamento.
Com os meus alunos, o jogo acontece quando a troca é de igual, mas os lugares
nunca são os mesmos, o ponto do olhar sempre é singular e metamórfico. E isso me fez
revisitar linguagens que nunca tinham tomado frente do meu diálogo com o mundo, no meu
trabalho como artesão dentro de um ambiente educacional. Com as crianças, o desenho e a
pintura são sempre um lugar de jogo livre, que materializa a imagem de um gesto,
15
transcende o sentido da palavra e gera movimento de diferentes corpos permeados pela
mesma teia da experiência.
No exercício diário em tecer uma dialética entre aquilo que vejo no mundo e aquilo
que o mundo me vê, observo o meu ofício juntamente com as crianças imersas em suas
produções. No sutil e minucioso gesto de grafar, nas mãos que brincam com os traços e
dançam com o olhar, das linhas ritmadas e sonorizadas pelas narrativas que evocam e me
convidam a tecer um diálogo propositor de novas experiências.
Segundo Gaston Bachelard (2008, p. 167): “É preciso amar o espaço para descrevê-lo
tão minuciosamente como se nele houvesse moléculas de mundo, para enclausurar todo o
espetáculo numa molécula de desenho.”
É na relação entre afetar e ser afetado que criamos um diálogo entre os espaços
internos de habitação em consonância com os espaços externos de criação. Pois, nós não
modelamos somente com o barro, também modelamos por meio de nossas ideias e
sensações, damos formas aos nossos pensamentos. É uma intrínseca relação entre as
motivações e provocações internas do sujeito em relação ao manuseio e exploração da
materialidade externa contida no mundo para visualizar aquilo que queremos dar contorno.
16
Fernando Deligny, em seu livro O Aracniano (2018), evoca, metaforicamente, a
imagem de uma teia como elemento de mediação entre a aranha e a parede. Pois, ele
acredita que é na teia em si, que se tece as conexões entre o sujeito e o mundo, da mesma
forma que o mundo tece conexões de encontro com o sujeito.
E para isso, acredito que o elemento central de mediação que unifica esses dois
pontos entre o fazer artístico e a forma em si, está a investigação. Como educador, dentro
do ambiente escolar, acredito que a potência do estado investigativo faz com que a criança
experimente e crie conexões com o meio, da mesma forma que o educador necessita criar
um diálogo sensível e direto com o fazer artístico da criança. Pois, ambos são sujeitos que
utilizam o mesmo fio que tece a rede das experiências em sua pluralidade e de forma
singular.
17
Fig. 2. Desenho representativo sobre conceitos que permeiam a experiência dentro do
processo de investigação e habitação do ser.
18
O excesso de informação, a ausência de conhecimento, o acúmulo de trabalho e a
falta de tempo, nos impede de viver uma experiência real e significativa para o ser. Assim
afirma Jorge Larrosa quando escreve sobre o conceito de experiência, e talvez seja esse o
meu maior propósito como educador. Utilizar-se do tempo cronológico a favor do tempo de
processo, não somente como sujeito ativo das minhas escolhas, mas também pensando na
minha singularidade e como este fator é crucial para ecoar e afetar todos que me cercam,
principalmente enquanto educador que tece por meio das experiências estéticas um diálogo
no mundo.
19
3. Teia: A poética da experiência como fio condutor do processo criativo
Das brincadeiras que costuravam a minha infância, lembro-me das vezes em que me
juntava a mais alguns pares de pés descalços para trilhar caminhos e descobrir esconderijos
das casas abandonadas do interior. Em particular, lembro-me das aventuras que uma
estrada férrea desativada nos oferecia. A imersão cartográfica em relação ao espaço nos
provoca espanto e novas descobertas que nos impulsiona a dar novos sentidos enquanto
sujeitos em constante movimento e construção.
Em um determinado tempo percorrendo as linhas dos trilhos, dividia-se em dois
caminhos: a bica d´água em que brincávamos de virar peixes, com o corpo quente do sol, e a
imensidão do campo de futebol, onde a voz se escondia do outro lado do gramado. A
sensação de atravessar o campo correndo era o sentimento liberdade atravessando meu
corpo, mudando a minha respiração, assumindo a minha microexistência em um macro
tempo e espaço da infância.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
20
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2018, p. 25)
Nunca me senti, de fato, um jogador de futebol dentro do campo de terra, gostava
mesmo era de acompanhar meu irmão mais velho que sempre foi muito habilidoso em
driblar tudo o que se apresentava em sua frente, era bonito vê-lo se mover e esgueirar mais
rápido que o ar. Inclusive, nessa parceria, ele sempre foi muito generoso em compartilhar
suas paixões: da bola para o desenho, do desenho para o instrumento, do instrumento para
os livros, dos livros para a poesia. Tenho o privilégio de estar ombro a ombro na vida com
um sujeito apaixonado em compartilhar suas camadas de linguagens. Mas, essas coisas de
criar fissuras de vitalidade em espaços não férteis, é em si a potência criativa em transformar
e ressignificar a própria existência.
Pois, de tantas aventuras que vivemos juntos, eu gostava mesmo era de correr e
passar o máximo de tempo possível livre. Fora do quintal descobria o mundo todo em um
dia, voltava somente de noite, quando o céu dava sinais de recolhimento. Fazer esse relato é
uma forma de materializar essas sensações de encantamento, descobertas e frio na barriga
que carrego ainda hoje e que, por vezes, me leva ao exercício de olhar no cerne das minhas
21
camadas e não perder os veios que ajudam a lapidar memórias que me fazem dar corpo, o
sentido da palavra.
E isto a partir da convicção de que as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. (LARROSA, 2018, p,16).
Entre aquilo que podemos formar e ser transformado está o sujeito da experiência,
aquele que é capaz de estar disponível e arrebatado por algo que o transforma e que faz da
sua essência uma afetação no mundo. A dualidade entre intercambiar a percepção de si na
relação sensível com o meio faz da coragem o ofício do sujeito da experiência que pretende
promover relações de forma singular.
Tecer relações é uma prática que demanda tempo de processo, é um trabalho
manual que se assemelha à construção de um ninho e seu abandono. É necessário habitar o
espaço, sentir-se pertencente a ele, criar sentido, visto que somente depois dessas
construções consolidadas, o ser consegue criar sobreposições em torno da sua esfera para
além do seu refúgio.
22
Percorre no sentido contrário das relações que o mundo contemporâneo estabelece
com o sujeito. Pois, cada vez mais somos mensurados pela quantidade de coisas que
fazemos, atrelados ao tempo cronológico em que transitamos na produção massiva de
experimentos e esvaziamento de sentidos contidos nelas, uma casca oca em solo infértil.
Não é preciso permanecer muito tempo nos bosques para conhecer a impressão sempre um pouco ansiosa de que “mergulhamos” num mundo sem limites. Em breve, se não soubermos aonde vamos, já não saberemos onde estamos. (BACHELARD, 2008, p. 191).
Fazendo uma relação sobre as diferentes formas de se estabelecer conexões que se
retroalimentam entre os diferentes tempos, sejam eles cronológico ou de processo. Tomo-
lhe emprestado a imagem de um caleidoscópico e um monóculo. Para ambos, é necessária a
observação para capturar e evocar os elementos contidos nas imagens. Porém, o tempo do
mergulho da atenção são distintos, principalmente pelas dinâmicas contidas nas duas
estruturas.
A etimologia da palavra caleidoscópio o define como um instrumento óptico que
serve para criar efeitos visuais simétricos com o auxílio de um conjunto de espelhos
angulares. Possibilita um jogo de infinitas combinações de cores e formas, em rápidas
sucessões de imagens de acordo com o movimento sincronizado do objeto em relação ao
olhar.
23
Etimologicamente, a palavra caleidoscópio se originou a partir da junção dos termos
gregos kallós (“belo”, “bonito”); eidos (“imagem”); e skopeo (“olhar para”, “observar”).
Assim, o significado original da palavra grega seria “ver belas imagens”.
Para que o sujeito possa promover um mergulho do olhar em relação a este
instrumento, é necessário lidar com uma dinâmica acelerada da atenção, onde o movimento
durante a relação e apreciação das imagens dialoga diretamente com a natureza do objeto,
proporcionando um fascinante jogo em criar a ilusão do belo por meio das imagens.
Por sua vez, a origem da palavra monócula (Fig. 3 e Fig. 4) vem do grego: mónos,
único e do latim: oculu, olho. É constituída por uma lente circular, geralmente com um fio ao
redor da circunferência do anel que pode ser associado a uma corda. Seu adjetivo o
denomina como uma luneta com apenas uma lente ou que possui “um olho só”. O monóculo
também serve para ver ao longe coisas que não conseguimos avistar.
Em particular, as minhas memórias afetivas em relação a este objeto são de um
tempo remansoso, a imagem não se entrega no instante. É necessário desacelerar o tempo e
promover uma relação minuciosa entre o olhar e o objeto para capturar as partículas de
sentidos contidas na relação entre o sujeito que se entrega atentamente na microscopia
24
inteireza do olhar e a imensidão íntima da imagem poética que se apresenta para ele. Nessa
dinâmica constituída pelos dois corpos, o objeto também tece com o sujeito o mergulho
interno de imagens que evocam lembranças, memórias e novas sensações no
reconhecimento cartográfico do agora possibilitando novas experiências.
25
Fig. 3. Monóculo utilizado durante o processo de apreciação das produções das crianças.
Fig. 4. Imagem contida dentro do monóculo de crianças de 04 a 05 anos produzindo
dentro do ateliê.
26
Todo olhar aprecia um instante, que se transforma pela ação do tempo e
amadurecimento no contato e encontro com as “Coisas” em seu firmamento. Neste sentido,
é necessário transcender a realidade para perceber o que há de grande no pequeno.
A palavra coisa, em sua etimologia, existe para saciar o desejo da racionalidade
humana em nominar tudo aquilo que não se tem forma definida ou preestabelecida. É sobre
essa “coisa” que me refiro, onde o nosso olhar aponta nas subjetividades onde somente o
instante pode capturar uma vivência, seja nas imagens que se apresentam para o pintor, no
objeto sonoro onde o músico evoca sua musicalidade ou na memória dos sentidos onde
guardamos as nossas camadas de pertencimento enquanto exercitamos o ofício em dar
corpo ao não visível. Pois, todo olhar é arraigado de histórias e, nessa mesma medida, existe
uma materialidade subjetiva de revelar o mundo diante dos nossos olhos. Merleau-Ponty
apud Marilena Chauí, em seu texto
“A filosofia como interrogação interminável”, diz que esses trabalhos são criadores é justamente porque tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser. [S.d]
Mas a palavra também nos ajuda a intercambiar experiências, faculdade essa advinda
do fio que tece as histórias orais contadas pelos narradores. Walter Benjamin exemplifica
27
usando dois grupos de narradores que se interpenetram na experiência de narrar a
sabedoria histórica do homem. O marinheiro como o estrangeiro que percorre o mundo e
tem nele saberes de terras distantes e o camponês que vive seu país, que conhece suas
histórias e tradições.
Existe uma reciprocidade entre ancestralidade contida em nossa essência e as
novidades de um mundo distante. Somos um compilado entre as memórias que nos
conectam ao nosso âmago e a coragem de quem se lança no mundo para ser arrebatado por
ele. Em outras palavras, em relação às minhas narrativas, existe um fio que unifica o menino
camponês que tem como ninho o interior de uma cidade pequena em constante diálogo
com o homem imerso na cidade grande.
Pois, a vida, metaforicamente, exige uma transformação contínua. Tudo que é vivo se
modifica ao longo do tempo. E, para que possamos acolher o que é novo, é necessário
coragem, sensibilidade e prazer em reinventar-se constantemente.
Assim, como os poetas que fazem das palavras sua morada, as memórias que
guardamos em nosso corpo em consonância com as experiências que tivemos são matérias
brutas para o ser que busca novos significados para se comunicar com o mundo. Portanto, as
nossas experiências se tornam objeto de investigação, criação e invenção de nós mesmos.
28
Fig. 5. Narrador: desenho que tem como fundamento explorar os conceitos de experiência apresentados pelo autor Walter Benjamim em seu texto “Narrador”.
29
4. Entre o canto, a teia e a aranha: relações entre a criança, o artista e o
educador
Apreciar uma obra de arte requer tempo para que o olhar siga os vestígios deixados
pelas marcas de quem a produziu. Perceber a força das pinceladas, as camadas de tintas
impregnadas na tela, o caminho que o movimento das mãos fazem ao encharcar o mundo
com a materialidade da criação, entre tantos outros aspectos para serem levados em
consideração na relação artista e obra.
Penso que ambos existem de forma singular, conectados e, ao mesmo tempo,
separados pelas diferenças que os preenchem e unificam. Reafirmo, faço dessa relação o
exercício em tecer a leitura histórica do meu passado materializado em memórias, para criar
e recriar de forma dinâmica, linguagem e realidade, o ato criativo de estar no mundo.
Quando penso na imersão de um espaço íntimo onde posso materializar as
sensações do devaneio, me vem as narrativas das ocupações que fazia nas casas
abandonadas que junto às outras crianças denominávamos de esconderijos. Os cômodos
vazios, os quais o eco da minha voz percorria, davam movimento durante a ocupação. As
marcas de mãos e pés, em todos os cantos das casas abandonadas, mostravam os rastros de
quem já cravou sua existência naqueles espaços.
30
A empatia de perceber a presença de outros seres menores assim como eu,
ocupando o mesmo lugar, afirmava a necessita em dar vitalidade ao abandono. As aranhas,
ao depender da espécie, tecem de forma singular e cartográfica sua teia, constroem sua
morada para se alimentar de outros seres que por ali transitam. Eu, no entanto, junto a
outras crianças utilizava espaços de abandono para me alimentar de brincadeiras em que o
enredo central culminava em narrativas de ocupação no mundo. E, assim, o ser anônimo que
ali viveu, me autorizava secretamente habitar em um lugar de intimidade e sonho.
Investigar espaços e transformá-los em lugares secretos para habitação de pequenos
sonhadores era tema de brincadeiras na minha infância. Aventura era o nome que dávamos
para o ofício de sair perambulando pelas ruas do pequeno bairro de Catanduva. Passávamos
horas a fio andarilhando e apreciando casas, fábricas, campos, pessoas até encontrar um
canto. A adrenalina que se instaurava durante o nosso trajeto representava, de fato, o nome
dado à brincadeira. Se aventurar no encontro do desconhecido necessita coragem e estar
disponível para o novo; é um dos estados mais sensíveis que podemos vivenciar.
Particularmente, nunca abandonei o exercício de me aventurar e investigar os
componentes que estruturam os espaços de criação. Como educador/artista, busco
constantemente entrar em contato com as camadas de habitações, no desejo de me manter
conectado com o ser indivisível que procura incessantemente na criação uma forma de
externalizar espaços internos.
31
Desta forma, o processo de investigação é em si o próprio ato criador, é o ser que
está em uma constante deriva. Conceito que visa proporcionar para o sujeito que vivencia
um determinado tipo de mergulho interno cartográfico na relação direta com o meio e nas
relações que os indivíduos constroem enquanto ocupa este determinado espaço,
possibilitando para aquele que observa matéria bruta de transformação, proposição e
intervenção do mesmo.
É a experiência, enquanto concepção fundamental da expressão humana, que visa
dar sentido às coisas que nos passam e nos acontecem e que também pode orientar a
prática educativa se a entendermos como ato de criação e invenção. Pois é na experiência
que emerge a poética durante o ato criador, é a fissão do ser que busca decifrá-la nela
mesma.
Marilena Chauí em seu artigo “A filosofia como interrogação interminável” (1941),
cita o conceito de experiência que Merleau-Ponty (1908-1961) defende. Neste artigo, diz: “A
experiência é o ponto máximo de proximidade e de distância, de inerência e diferenciação,
de unidade e pluralidade em que o Mesmo se faz Outro no interior de si mesmo”.
Seria a experiência, então, a teia que faz a mediação inseparável entre a aranha e a
parede, o dentro e o fora, aquilo que olhamos e aquilo que nos olha? É nessa relação que se
faz a fissão do ser, por meio da criação?
32
Acredito que, sim, o artista e a criança estão em diálogo constante em tornar visível o
invisível, com a força singular em que o ser se apresenta enquanto linguagem primária. Do
mesmo modo que o invisível se torna visível nos espaços internos de ocupação do ser, em
uma dialética que se retroalimenta e reverbera na fruição do fazer estético.
E, neste fazer estético, a minha relação histórica foi de nunca depender da qualidade
dos espaços e diversidades de materiais. Mas, sim, em ressignificá-los por meio da
investigação criadora, formas de dar sentido útil enquanto vitalidade com aquilo que o
mundo me apresentava de forma precária e originária.
Sempre apreciei visitar espaços que continham objetos que, de certa forma,
sofreram abandono e perderam sua utilidade. Tenho decorado em meu corpo os caminhos
que fazia para visitar ferros velhos. Lugar este em que as pessoas depositam coisas que não
necessitam mais e perderam o seu interesse. Gostava de observar o tanto de coisas
abandonadas que já não tinha o ofício de exercer sua função social e se apropriar delas para
ressignificar o insignificante, em uma relação empática com a materialidade da criação.
Rolimãs, fio coloridos, hélices de ventoinhas, engrenagens, entre outros objetos se tornavam
um banquete para minha imaginação e uma possibilidade de invenção.
33
Segundo Fayga Ostrower, em seu livro Criatividade de Processo da Criação (2014, p.
33),
a materialidade transcende questões meramente físicas, pois para o homem ela se coloca no plano simbólico, visto que na manipulação e ordenação como modo singular e subjetivo é inserida na linguagem material de modos a serem comunicadas.
Assim, os ferros velhos e as ruas dos bairros onde morei eram meu lugar de
laboratório, um espaço de ateliê permanente em relação à busca incessante de dar forma ao
espanto, dinâmica ao tédio e refinamento ao precário.
Fig. 6. Frente de um ferro velho em que frequentava na infância.
34
Portanto, defendo que a investigação no ato criativo é o propulsor das experiências
estéticas, é ela que faz a mediação entre o dentro e fora, a obra e o artista. Acredito também
que a educação emancipatória se faz na leitura de mundo do sujeito autônomo que cria e
recria possibilidades em ressignificar a sua história, enquanto materialidade central de sua
criação.
A palavra causo tem em sua etimologia popular a definição e potência em relatar um
determinado fato, em que os exageros em determinados pontos dos fatos costumam
transcender o acontecido, fazendo com o que sujeito exercite a escuta e leve um
determinado tempo psicológico para entender o ocorrido.
E, nesse sentido, gostaria de compartilhar um relato (causo) enquanto educador,
juntamente com um grupo de crianças de 04 a 05 anos de idade que se colocam no mesmo
lugar do artista, para fazer do ato entre ensinar e aprender o processo de uma obra. Pois, o
ser que expressa na sua inteireza, apresenta a poética que transcende o real, enquanto
explora, investiga e inventa o seu diálogo por meio da materialidade do mundo por meio da
criação da sua própria linguagem.
35
5. As narrativas de uma cidade em construção: lugar de devaneios, arestas e
lapidações
Brincar de construir uma cidade inteira cheia de personagens inusitados, lugares
fantásticos feitos de materiais não estruturados como blocos de madeiras, tampinhas de
plásticos, latas e garrafas, tornou-se o trabalho de artes de um grupo de crianças entre 04 a
05 anos de idade. Pegar, organizar, empilhar, equilibrar, imaginar, experimentar, descobrir,
dialogar, observar e compartilhar, esses são alguns verbos que elucidam este trabalho onde
evocam diversas narrativas, enquanto a linha do imaginário se constrói por meio das ações e
investigações das crianças.
Após construir uma cidade inteira com materiais não estruturados, as crianças
projetam a luz sob suas construções e, por detrás dos blocos de madeira, eis que surgem
desenhos sombreados sinalizando casas, prédios, pontes, parques e pessoas. Todos os
elementos que fazem parte do repertório de cada criança sobre o que é uma cidade e como
se relacionar com estes espaços construídos por elas mesmas.
36
Fig. 7. Construção de uma cidade feita por crianças de 04 e 05 anos de idade.
37
5.1 O papel do cartógrafo: a criação de um registro sensível
No início deste trabalho, o principal objetivo estava em proporcionar um ambiente
mais rico e acolhedor para que as necessidades das crianças pudessem emergir diante de
suas investigações e produções. Um lugar onde comportasse suas ações criativas e as
transformassem em situações comunicativas a favor da sua relação com o mundo. Para isto,
foi necessário levar em consideração algumas questões que estão atreladas ao processo
criativo das crianças: como elas pensam o espaço, como interagem com os materiais e como
trabalham coletivamente com os parceiros de criação.
Desta forma, o trabalho desenvolvido com grupo de crianças de 04 a 05 anos de
idade da educação infantil de uma escola particular, surgiu da ideia de explorar diversos
materiais que fazem parte das brincadeiras e do cotidiano das crianças, e transpor para aulas
de arte, no intuito de fazer diversas construções coletivas onde pudessem vivenciar, dialogar
e ampliar cada vez mais suas ações coletivas construindo um espaço livre para comunicar
suas expressões.
Nas primeiras propostas, foram oferecidos ao grupo diversos materiais denominados
aqui como “não estruturados” por apresentar características onde as crianças possam
38
utilizar da imaginação e criatividade para construir, representar e significar de acordo com
seu desejo e necessidades.
Os materiais selecionados pelas crianças foram: blocos de madeiras de várias formas
e tamanho, cones, Lego e outros objetos de encaixe, a fim de que brincassem e
experimentassem suas possibilidades de exploração. A partir da experimentação e
investigação, as crianças começaram a construir ambientes dominados por elas como
castelos, cidades, armadilhas de monstros, entre outras construções.
Fig. 8. Construção de uma casa sonora feita por crianças de 05 anos (esquerda).
Fig. 9. Construção de uma pequena casa feita por crianças de 05 anos (direita).
39
Durante o processo de exploração com os materiais, foi importante compreender
como cada criança se expressa, considerando alguns aspectos: tempo para pensar e explorar
os materiais, as estratégias e habilidades para construir as narrativas incorporadas nas
construções e a interação com o outro para ampliar a investigação e contribuindo com
ideias, no momento das construções coletivas.
A partir desses aspectos, surgiu a necessidade de ampliar as pesquisas de exploração
com os materiais não estruturados e criar um espaço onde as crianças tivessem maior
liberdade de fazer com que suas construções habitassem o espaço durante um tempo de
permanência considerável para apreciar o trabalho e suscitar novas ideias. Por meio da
necessidade de expandir o tempo e manter uma pesquisa permanente, que surgiu a
necessidade de criar um ateliê permanente, que comportasse de fato o estado investigativo
das crianças.
5.2 Um espaço em construção: o surgimento da primeira cidade
No momento de propor um espaço que fizesse sentido com os trabalhos de
construções das crianças, se fez necessário contemplar os três aspectos citados acima:
tempo de criação, relação com os materiais e suas múltiplas possibilidades e, ainda, a
disseminação das manifestações culturais entre os pares.
40
As crianças foram convidadas a escolher os materiais que iriam utilizar nas oficinas,
em sua maioria solicitaram os mesmos objetos que costumavam explorar nos momentos de
brincadeiras. Após a escolha dos materiais, pensamos em categorizá-los para facilitar as
escolhas de acordo com as ideias que poderiam surgir ao longo das propostas. Então,
acordamos em juntar todos os blocos de madeiras, cones de papelão ao lado dos bambus,
tampinhas de garrafas, perto de sementes e potes de plásticos, junto com as latas de
alumínio. Foi a partir da organização das crianças que percebi, neste processo de criação, o
quanto a forma plástica dos materiais chamava muito mais a atenção do que a propriedade
da matéria constituída nos materiais.
A cada objeto escolhido, uma forma de dialogar e agir sobre os materiais tornou-se
um meio de comunicação com o outro. Pequenos grupos foram se formando e todos eles
trouxeram diferentes narrativas de como transformar a criatividade em um combustível
inesgotável de expressão, potencializando suas experiências com o mundo.
Ao término das oficinas, começamos a apreciar todos os trabalhos. Cada parte das
construções comunicava múltiplas formas de lidar com os materiais, empilhando os blocos
de madeira, equilibrando os potes de plásticos em tubos de papelão, encaixando os bambus
em garrafas, enfileirando tampinhas, guardando sementes dentro dos potes, brincando de
preencher o vazio dos objetos com gestos encharcados de imaginação.
41
Na medida em que as crianças eram convidadas para descrever suas construções, o
restante do grupo ficava atento não só para a fala dos amigos, mas, principalmente, em
como os trabalhos dialogavam diretamente com elas.
Neste momento, o espaço, juntamente com os materiais que as crianças utilizaram
para a construção, comunicava diretamente, todos os verbos que constituíam as múltiplas
expressões das crianças.
A miniatura estende-se até as dimensões de um universo. O grande, mais uma vez,
está contido no pequeno (BACHELARD, 2008, p. 165).
Foi por meio do olhar atento de uma das crianças que surgiu o tema disparador que
redirecionou o trabalho coletivo. Enquanto todos estavam apreciando os trabalhos
finalizados, uma das crianças disse: “A minha construção parece uma cidade! (sic)”. E, como
uma onda que arrebata tudo que encontra pela frente, esse comentário inundou as ideias
das crianças e, a partir daquele instante, tínhamos encontrado um tema em comum para
criar uma cidade inteira feita de gestos e objetos comunicativos.
42
Fig. 10. Primeira construção em ateliê que as crianças denominaram de cidade.
43
5.3 A luz dos materiais e as sombras da cidade
A arte é uma criação de uma ilusão. Inclusive ilusão de realidade e transcendência.
Baravelli
Daquele momento em diante, todas as construções tinham o mesmo tema
norteador: uma cidade em constante construção. Naturalmente, começaram a surgir casas,
prédios, pontes, parques, carros, pessoas e, até mesmo, foguetes.
O imagético das construções foi tecendo um diálogo que modificou completamente a
dinâmica do grupo, fazendo com que as crianças gradativamente ampliassem seu interesse
pelos trabalhos dos colegas, identificando aspectos que lhe interessavam e dialogando entre
o que viam e o que produziam.
“Nesse caminho do devaneio da imensidão, o verdadeiro produto é a consciência
dessa ampliação. Sentimo-nos promovidos à dignidade do ser que admira (BACHELARD,
2008 p. 190).”
Após o término de suas construções, as crianças iniciaram uma apreciação e
interação com suas produções. Em uma dessas situações de apreciação dos trabalhos no
44
espaço de ateliê da escola, levei um retroprojetor no intuito de promover e instigar novas
experimentações, relacionando os trabalhos de construções do tridimensional
para propostas que envolvessem desenhos de luz e sombras no bidimensional.
45
Fig.11. Exploração de imagem do retroprojetor com objetos de encaixe.
Fig. 12. Apreciação das cidades e produções de desenho com luz e sombra.
46
A partir dessas propostas, surgiram diversas investigações na utilização dos materiais
que estruturam uma cidade, tanto para fazer novos ambientes de cidades, quanto para
projetar a sombra desses materiais em seus próprios trabalhos.
As crianças começaram a trazer novas narrativas por meio do imaginário, o corpo
também se tornou arquitetura enquanto desenho nas construções, o tempo cronológico das
investigações se tornou cada vez mais longo, contribuindo para que tempo de processo
torna-se mais remanso.
Este trabalho de construir espaços de habitação estabeleceu um diálogo que sugere
diversas camadas de linguagens. Reverberando, assim, a grandiosidade de um espírito
brincante que investiga, experimenta, observa e se encanta ao descobrir a potência de vida
que contém no desejo de criar e se reinventar. Assim, a criação, metaforicamente, exige
uma transformação contínua. Pois, tudo que é vivo se modifica ao longo do tempo. E, para
que possamos acolher o que é novo, é necessário coragem, sensibilidade e prazer em
reinventar-se constantemente.
47
6. RESQUÍCIOS DA TEIA
Os espaços de nossa infância marcam profundamente a forma como nós nos
relacionamos com o mundo. Determina a maneira de agir, sentir e pensar sobre ele. Por essa
razão, é de fundamental importância que o educador, enquanto ser investigativo, faça
preposições sensíveis diante dos diferentes processos de aprendizagens, acolhendo as
manifestações e ações das crianças em relação ao seu olhar enquanto sujeito da experiência
que produz e vive um diálogo direto com o outro por meio do ato criador.
Ao longo deste trabalho, pude entender a importância do meu papel enquanto
observador e propositor no fazer criativo das crianças, atrelado ao meu processo de criação
enquanto educador que vivencia a experiência. Ajudando a construir e organizar o espaço,
oferecendo diferentes materiais e assessorando-os em suas escolhas, visando enriquecer
suas construções lúdicas e materializando, por meio de registros descritivo e fotográfico,
ações durante o processo inventivo.
Na medida em que as crianças foram instigadas a refletir gradativamente sobre os
espaços que constituem a infância, pude entender a grandiosidade dos pequenos gestos,
desde as ações mais concretas como: manipular os objetos, empilhar, equilibrar, juntar,
48
unificar e transformar, até as ações mais subjetivas, imaginando, observando, dialogando,
entre outros verbos que compõem este trabalho.
Observar as oficinas de construções de cidades imaginárias e analisar o quanto
reverberaram outras nuances de criação e interação no grupo, em consonância ao meu
papel de educador. Entendi que a potência deste trabalho não está somente em investigar
as diferentes materialidades e muito menos se encerra na construção de um ambiente que
comporta as ações criativas das crianças. Mas, sim, na importância em fazer deste espaço
coletivo, situações de trocas prazerosas entre os pares, ampliando suas relações sociais e
culturais, fazendo com que o sujeito crie autonomia nas escolhas de seus caminhos, por
meio da arte e do brincar.
E, por fim, sigo refletindo e tecendo sobre a importância da experiência como
propositor no processo de investigação, atrelado ao fazer estético como forma de tecer um
diálogo direto entre as camadas internas do ser em consonância com as diferentes
linguagens expressas no mundo.
49
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
CAMARGO, Iberê. Gaveta dos guardados. São Paulo: Edusp, 1998.
CHAUI, Marilena. Merleau-Ponty: a obra fecunda. “A filosofia como interrogação interminável”. Disponível em: https://filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2013/10/chaui-a-filosofia-como-interrogacao-interminavel.pdf. Acesso em: 07/10/2019.
DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Tradução de Lara de Malimpensa. São Paulo: n-1 edição, 2018.
LAROSSA, Jorge. Tremores: escritos sobre a experiência. São Paulo: Ed. Autêntica, 2018.
MAIAKÓVSKI: Poemas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2014.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2014.