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ENTRE O MEDO DA CONTAMINAÇÃO PELO HIV E AS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DA AIDS : O ESPECTRO DO DESESPERO CONTEMPORÂNEO Paolo Meneghin* MENEGHIN, P. Entre o medo da contaminação pelo HIV e as representações simbólicas da AIDS: o espectro do desespero contemporâneo. Rev.Esc.Enf.USP,v.30, n.3, p. 399-415, dez. 1996 Este estudo pretende colaborar para uma melhor compreensão dos sentimentos provocados no ser humano vivendo em plena era da AIDS. A falta de informação e, por conseqüência, o desconhecimento sobre a AIDS, sua dinâmica de transmissão e as medidas preventivas adequadas, transformam a convivência com esta síndrome num fator estressante para muitas pessoas, gerando sentimentos de medo e suscitando a correlação com diferentes representações simbólicas ligadas à contaminação pelo HIV. Vários autores formularam modelos teóricos para explicar esta correlação. Neste trabalho procura-se verificar os sentimentos emergentes e a respectiva vinculação aos significados simbólicos da doença sob o prisma destas teorias. Foram entrevistadas 31 pessoas, sendo 10 estudantes de diferentes cursos superiores da Universidade de São Paulo e 21 detentos do Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo. Os resultados obtidos mostraram que, apesar dos grupos apresentarem características diferentes entre si, ambos atribuíram à AIDS significados simbólicos ligados ao medo da contaminação pelo HIV. UNITERMOS: AIDS. Assistência de enfermagem. Educação em Saúde. 1-INTRODUÇÃO O aparecimento da síndrome de imunodeficiência adquirida - AIDS/SIDA - a partir do início dos anos 80, e a contínua disseminação do vírus da imunodeficiência humana - HIV - na última década, persistindo até os dias de hoje, originou, no mundo todo, respostas de ordem emocional, como o medo da contaminação pelo HIV. 10 Enfermeiro. Professor Doutor do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Membro do Núcleo de Pesquisas em Epidemiologia da AIDS - NUPAIDS - d a Universidade de São Paulo. Membro do Núcleo de Estudos sobre Orientação de Enfermagem ao Cliente Adulto - PRO-CLAD.

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ENTRE O MEDO DA CONTAMINAÇÃO PELO HIV E AS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS DA AIDS :

O ESPECTRO DO DESESPERO CONTEMPORÂNEO

Paolo Meneghin*

M E N E G H I N , P. E n t r e o m e d o da c o n t a m i n a ç ã o p e l o H I V e a s r e p r e s e n t a ç õ e s s i m b ó l i c a s da AIDS: o e s p e c t r o do d e s e s p e r o c o n t e m p o r â n e o . R e v . E s c . E n f . U S P , v . 3 0 , n .3 , p . 3 9 9 - 4 1 5 , dez . 1996

Este estudo pretende colaborar para uma melhor compreensão dos sentimentos provocados no ser humano vivendo em plena era da AIDS. A falta de informação e, por conseqüência, o desconhecimento sobre a AIDS, sua dinâmica de transmissão e as medidas preventivas adequadas, transformam a convivência com esta síndrome num fator estressante para muitas pessoas, gerando sentimentos de medo e suscitando a correlação com diferentes representações simbólicas ligadas à contaminação pelo HIV. Vários autores formularam modelos teóricos para explicar esta correlação. Neste trabalho procura-se verificar os sentimentos emergentes e a respectiva vinculação aos significados simbólicos da doença sob o prisma destas teorias. Foram entrevistadas 31 pessoas, sendo 10 estudantes de diferentes cursos superiores da Universidade de São Paulo e 21 detentos do Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo. Os resultados obtidos mostraram que, apesar dos grupos apresentarem características diferentes entre si, ambos atribuíram à AIDS significados simbólicos ligados ao medo da contaminação pelo HIV.

UNITERMOS: AIDS. Assistência de enfermagem. Educação em Saúde.

1-INTRODUÇÃO

O aparecimento da síndrome de imunodeficiência adquirida - AIDS/SIDA - a pa r t i r do início dos anos 80, e a cont ínua d isseminação do ví rus da imunodeficiência humana - HIV - na última década, persistindo até os dias de hoje, originou, no mundo todo, respostas de ordem emocional, como o medo da contaminação pelo HIV. 1 0

Enfermeiro. Professor Doutor do D e p a r t a m e n t o de E n f e r m a g e m Médico-Cirúrgica d a Esco la d e E n f e r m a g e m da U n i v e r s i d a d e de S ã o Paulo . M e m b r o do N ú c l e o d e P e s q u i s a s e m Epidemiologia da AIDS - N U P A I D S - da U n i v e r s i d a d e de São Paulo. M e m b r o do N ú c l e o de Estudos sobre Orientação d e E n f e r m a g e m ao Cliente Adul to - PRO-CLAD.

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A par t i r dos primeiros casos registrados, a AIDS alastrou-se rapidamente por todos os continentes como verdadeira pandemia, de elevado índice de letalidade, causando um verdadeiro estado de pânico entre a população. 1 5

Este sentimento surge no momento em que as pessoas identificam a AIDS como uma séria ameaça à integridade física e à própria vida.

Por ser entidade nosológica recente a AIDS recebeu, por par te da mídia, os mais variados enfoques, desde a divulgação de novas descobertas científicas ao anedotário sensacionalista característico dos meios massivos de comunicação, abordando o tema de forma pejorativa, preconceituosa e, na maioria das vezes, contraditória. 1 5

Em meio a este cenário de confusão e divergências, a ignorância e a desinformação sobre a AIDS foram um legado prejudicial à comunidade que continua desinformada, principalmente pela ausência de programas educativos sobre esta síndrome. Tal si tuação é responsável pelo aparecimento da um sentimento de impotência e insegurança definido como o espectro do desespero contemporâneo. 1 0 1 4 - 1 5

A falta de conhecimento sobre a AIDS associada à forma geralmente preconceituosa de se encarar este problema leva as pessoas a expressar, deformas as mais variadas, seus sentimentos em relação a esta síndrome.

As informações incompletas e deturpadas veiculadas pelos meios de comunicação de massa, aliadas ao fato que a AIDS 6 uma doença sexualmente transmissível, sem cura até o momento, evoca crenças e valores relacionados à sexualidade, ao uso de drogas e à morte como castigo, contribuindo para que as pessoas desenvolvam, com diferentes manifestações e in tens idades , um sentimento de medo irracional quanto à contaminação pelo HIV. ^ 1¾ 1 4- 2 0

Alguns modelos teóricos procuram explicar o surgimento deste sentimento de medo que as pessoas desenvolvem em relação à AIDS, fazendo uma integração das teorias cognitivas, psicoanalíticas e fisiológicas da tensão e do "stress " que, segundo seus autores, provém de um estímulo ambiental percebido como sendo superior aos mecanismos de adaptação do indivíduo. 1 0 1 9 2 0

O medo do contágio da AIDS é visto como uma ameaça à integridade física do ser humano desencadeando operações mentais de memória, códigos, signos, símbolos abstratos e a formação de conceitos individualizados. Esta atividade neurocognitiva resulta em uma resposta afetiva expressa pelo sentimento do medo, como apresentado na Figura 1.

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PROBLEMA: HIV/AIDS

u INFORMAÇÕES INCORRETAS

li ESTÍMULO

( CONTAMINAÇÃO PELO HIV )

ATIVIDADE NEUROCOGNITIVA ( AMEAÇA À INTEGRIDADE FÍSICA )

u u RESPOSTA AFETIVA RESPOSTA FISIOLÓGICA

COMPORTAMENTO

ATITUDES NEGATIVAS

PROBLEMAS PSICO-SOCIAIS

Figura 1. O medo como resposta a um fator estressante.

O medo do contágio pelo HIV, portanto, não percorre os caminhos da evidência científica sobre a doença, mas perpassa pelos meandros dos valores individuais e das crenças da população evidenciando os significados simbólicos da doença, ligados intimamente à contaminação.As representações simbólicas mais ligadas a essa doença contagiosa são: o mistério, a punição e a morte. Portanto, de acordo com as crenças populares, quanto mais misteriosa for uma doença, mais ela será percebida como contagiosa e mais causará medo. 1 0

A AIDS, por ser uma doença recentemente descoberta, representa o medo do desconhecido, a incerteza e faz emergir preconceitos associando-a aos tabus e crendices ainda existentes em relação à sexualidade que, como punição, pode levar à morte.

A ignorância, a desinformação, a ausência de p rogramas educativos reforçam, ainda mais, as crendices e as superstições levando os indivíduos a adotarem, muitas vezes, precauções excessivas e desnecessárias que interferem negativamente em sua qualidade de v i d a . 6

Esta situação desencadeia, nas pessoas, mecanismos que culminam com comportamentos de rejeição e atitudes discriminatórias que são demonstradas através da expressão de vários sentimentos.

Estas considerações podem ser esquematizadas como apresentadas na Figura 2.

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H I V / A I D S

MISTÉRIO SEXUALIDADE CASTIGO MORTE

AMEAÇA À INTEGRIDADE FÍSICA

REAÇÃO AFETIVA

(MEDO DO HIV)

REAÇÃO FISIOLÓGICA

COMPORTAMENTO PRECAUÇÕES EXCESSIVAS

REJEIÇÃO / NEGAÇÃO VERBALIZAÇÃO DO MEDO

Figura 2. A AIDS como fator estressante no desenvolvimento do medo. ' ' Por entender que a AIDS representa uma metáfora repudiada por todos,

a atividade neurocognitiva do ser humano percebe o HIV como uma ameaça à vida sob o pr isma das representações simbólicas ligadas a esta doença. 1 0

Quanto mais a doença suscita representações simbólicas, maior é a resposta afetiva do medo da contaminação pelo HIV. Situações relacionadas com este sentimento já foram descritas e analisadas, mormente no que se refere ao trabalho dos profissionais da área de s a ú d e . 8 , 1 3 , 2 0

Outros trabalhos e pesquisas analisaram sentimentos e intenções de comportamento de trabalhadores em relação a companheiros HIV positivos em situações hipotéticas. 1 0 1',12,15,22

Embora nestes trabalhos muito se tenha discorrido sobre o medo que a AIDS provoca e sobre as teorias que explicam o surgimento deste sentimento, os

402 Rev.Esc.Enf.USP, v . 30 , n .3 , p . 3 9 9 - 4 1 5 , dez . 1996

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estudos geralmente se referem a situações imaginárias onde os pesquisadores levam os participantes a prever possíveis atitudes relacionadas a pessoas HIV positivas e descrever suas prováveis intenções de comportamento em relação aos portadores do vírus.

Os resultados destes estudos já demonstraram haver altos índices de rejeição, precauções exageradas e desnecessárias, medo e "homofobia" em relação à doença e aos doentes, w - 1 5 - 2 2

Neste trabalho pretende-se apresentar os resultados de um estudo sobre as percepções e os sentimentos ligados às representações simbólicas provocadas pela AIDS com pessoas que, voluntariamente, se submeteram ao teste pa ra detecção de anticorpos anti-HIV.

N u m a t e n t a t i v a de colaborar p a r a um melhor e n t e n d i m e n t o dos comportamentos decorrentes do enfrentamento com a realidade HIV/AIDS e com a finalidade de aplicar e testar os modelos teóricos que explicam o surgimento do medo e s u a ligação com os significados simbólicos desta doença, foi realizado este estudo tendo como objetivas: - verificar como os participantes deste estudo perceberam a realidade HIV/AIDS em suas vidas, e - identificar as representações simbólicas relacionadas ao medo da contaminação pelo HIV.

2 - METODOLOGIA

Este t r aba lho , de n a t u r e z a exp lora tó r io -descr i t iva , foi r e a l i z ado paralelamente ao desenvolvimento dos projetos de pesquisa efetuados pelo Núcleo de Pesquisas em Epidemiologia da AIDS - NUPAIDS - da Universidade de São Paulo para verificar fatores de risco e dinâmica de transmissão do HIV entre estudantes universitários* e entre presidiários** no Município de São Paulo entre os anos de 1993 e 1994. Tais projetos previam coleta de sangue e respostas a um questionário sobre comportamento de risco por par te das pessoas que aceitassem participar do estudo.

Para colheita de dados do presente estudo foram realizadas 31 entrevistas ocasionais*** com os participantes - 10 estudantes universitários e 21 detentos - dos quais havia sido coletado sangue para detecção de anticorpos anti-HIV.

As entrevistas foram realizadas durante o período de espera dos resultados do referido exame, em ambiente privativo, para as pessoas que voluntar iamente quisessem participar deste estudo.

Projeto de pesqu i sa "Transmissão do H I V entre e s t u d a n t e s da U n i v e r s i d a d e de S ã o Paulo: anál ise das prát icas de risco, da prevalência e da d inânima da infecção, do n íve l de informação e do impacto d e u m a es tra tég ia de intervenção". N U P A I D S - U S P Projeto de pesquisa: "Interação entre A I D S e tuberculose e m população confinada: d inâmica da t ransmissão e val idação do critério tuberculose na definição de A I D S ". N U P A I D S - U S P Para as entrev i s tas o Autor contou com a colaboração da ps icóloga Le i la S trazza - CRP -43419.

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Aos que concordavam em par t ic ipar da entrevis ta era assegurado o anonimato e garantido que suas informações seriam utilizadas unicamente em pesquisa.

D u r a n t e a en t rev i s ta procurava-se obter a descrição por p a r t e do entrevistado, dos sentimentos e das reflexões relacionadas ao HIV/AIDS que emergiram durante o tempo de espera do resultado do exame de sangue.

O formulário utilizado como instrumento para colheita de dados compunha-se de duas par tes : identificação da população participante, sem necessidade de nominação e questões abertas sobre os sentimentos provocados pela AIDS e as reflexões feitas sobre esta realidade após a coleta de sangue. As perguntas, para facilitar e est imular a expressão do entrevistado foram: "A AIDS é algo próximo ou distante de você? " e "Como têm sido estes dias após colher o sangue? ".

3-ANÁLISE DAS RESPOSTAS

As respostas dadas pelos entrevis tados à pr imeira pe rgun ta foram analisadas de acordo com a categorização dos aspectos míticos relacionados com o HIV/AIDS descritos por MEISENHELDER (1994). 1 2

Os sentimentos expressos pelos participantes por ocasião da segunda pergunta foram agrupados de acordo com as respostas afetivas provocadas pelo HIV/AIDS ,como agente estressor, relacionadas por MEISENHELDER ; La CHARITÉ (1989). 1 0

Para apresentação dos dados deste estudo foram elaboradas tabelas para cada grupo de part icipantes, tanto para o perfil demográfico como para as manifestações de sentimentos.

As Tabelas 1 e 2 sumarizam as características demográficas dos grupos.

TABELA 1. CARACTERÍSTICAS DEMOGRÁFICAS DA POPULAÇÃO UNIVERSITÁRIA. SÃO PAULO, 1994.

VARIÁVEIS N %

SEXO MASCULINO 6 60,0 FEMININO 4 40,0

IDADE 1 5 - 1 9 1 10,0 2 0 - 2 4 5 50,0 2 5 - 2 9 3 30,0 3 0 - 3 4 - -3 5 - 3 9 1 10,0 4 0 - 4 4 - -

ESCOLARIDADE 1°GRAU - -2 o GRAU - -3 o GRAU 10 100,0

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Foi observado, também que a média de permanência dos participantes na universidade foi de 3 anos e 9 meses.

TABELA 2. CARACTERÍSTICAS DEMOGRÁFICAS DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA. SÃO PAULO, 1994.

VARIÁVEIS N %

SEXO MASCULINO 21 100,0 FEMININO - -

IDADE 1 5 - 19 - -2 0 - 2 4 8 40,0 2 5 - 2 9 5 25,0 3 0 - 3 4 4 15,0 3 5 - 3 9 1 5,0 4 0 - 4 4 3 15,0

ESCOLARIDADE 1° GRAU 16 80,0 2 o GRAU 4 15,0 3 o GRAU 1 5,0

Nesta população o cálculo da média de permanência na casa de detenção foi de 3 anos e 8 meses.

As grandes diferenças entre os grupos dizem respeito à escolaridade e ao gênero. Somente homens foram entrevistados na penitenciária por ter sido realizada a pesquisa na ala masculina do presídio.

A variável "idade", no entanto, traz bastante proximidade entre os grupos quando se verifica que 80,0% dos estudantes situam-se na faixa etária entre 20 e 29. anos e, também, 80,0% dos detentos estão na faixa etária entre 20 e 34 anos.

O perfil dos entrevistados, portanto, pode ser caracterizado como um grupo de adultos jovens e com média de permanência semelhante em ambas instituições, mas com diferentes níveis de escolaridade, podendo-se inferir, também, que os grupos possam apresentar diferentes níveis sócio-econômicos e projetos de vida diferenciados.

As características peculiares dos grupos poderão ser evidenciadas com a análise das respostas pertinentes à primeira indagação: " A AIDS é algo próximo oü distante de você ? porquê T.

Estas respostas puderam ser agrupadas em quatro categorias ou aspectos "míticos", já identificados por vários autores que evidenciam idéias errôneas e preconceitos em relação à AIDS : ' •^ 1 5 2 1 . 2 3

I o. mito: a AIDS só atinge homossexuais, prostitutas e usuários de drogas;

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2 o mito: com pessoas conhecidas não precisa usar preservativo; 3 o . mito: a AIDS só acontece com os outros; 4 a mito: a AIDS pode se t ransmit i r pela proximidade com pessoas infectadas pelo HIV.

Os participantes consideraram a AIDS algo próximo ou distante tendo como referência as causas acima categorizadas e agrupadas de acordo com estes "mitos" nas Tabelas 3 e 4.

TABELA 3. DISTRIBUIÇÃO DAS OPINIÕES DOS UNIVERSITÁRIOS DE ACORDO COM AS CATEGORIAS APRESENTADAS. SÃO PAULO, 1994.

^ ^ ^ ^ OPINIÕES* A AIDS ESTÁ LONGE A AIDS ESTÁ PERTO TOTAL

MITOS ^ ^ ^ ^ N % N % N %

1. AIDS é doença de homossexuais, prostitutas e usuários de drogas 4 23.5 2** 11,8 6 35,3

2. Com pessoas conhecidas não é preciso usar preservativo 4 23,5 - 4 23,5

3. Comigo não vai acontecer 4 23,5 - 4 23,5

4. O HIV se transmite pela proxi­midade com pessoas infectadas j ** 5,9 2 11,8 3 17,7

TOTAL 13 76.5 4 23,5 17 100,0

* Porcentagens calculados sobre o total de opiniões emitidas pelos estudantes (N=17) ** Respostas consideradas como corretos no contexto da entrevisto

TABELA 4. DISTRIBUIÇÃO DAS OPINIÕES DOS DETENTOS DE ACORDO COM AS CATEGORIAS APRESENTADAS. SÃO PAULO, 1994.

OPINIÕES* A AIDS ESTÁ LONGE A AIDS ESTÁ PERTO TOTAL

MITOS — N % N % N %

1. AIDS é doença de homossexuais, prostitutas e usuários de drogas 11 39,3 2** 7,1 13 46,4

2. Com pessoas conhecidas não é preciso usar preservativo 5 17,9 - 5 17,9

3. Comigo não vai acontecer 2 7,1 - 2 7,1

4. O HIV se transmite pela proxi­midade com pessoas infectadas 1 *+ 3,6 7 25,0 8 28,6

TOTAL 19 67,9 9 32,1 28 100,0

* Porcentagens calculadas sobre o total de opiniões emitidas pelos estudantes (N=28)

** Respostas consideradas como oorretas no contexto da entrevista

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Confirma-se, com estes resultados, que o estigma e os preconceitos sobre a AIDS ainda são sentimentos profundamente arraigados entre a população pois 39,9% das opiniões emitidas pelos detentos e 23,5% pelos es tudantes deixaram entrever a presença deste mito, ainda forte, que percebe a AIDS como doença característica de alguns grupos, s . 7 1 0 1 4 " 1 6 1 7

Algumas das opiniões ilustram claramente este sentimento de se achar distante da doença por acreditar neste mito:

"..esta longe de m i m porque é so de ixar de t ransar c o m 'bicha' que não tem problema..."

"Prá m i m n ã o t e m p e r i g o p o r q u e n ã o m e r e l a c i o n o c o m homossexua i s n e m com prostitutas. ."

"... e s tá m u i t o longe porque n ã o a n d o c o m 'bicha' de cadeia."

Apenas 2 estudantes (11,8%) e 2 detentos (7,1%) analisaram de forma correta sua proximidade com a doença por considerarem que seu estilo de vida poderia envolver comportamento de risco na medida em que se relacionaram com múltiplos parceiros ou fizeram uso de drogas sem se preocuparem com os cuidadados e as precauções necessárias.

Sabe-se, já há algum tempo, que não existe mais "grupo de risco" mas " pessoas com comportamento de risco". Considerar que a AIDS ainda se restr inge a alguns grupos minoritários e estigmatizadas é, no mínimo, colocar em risco a própria segurança e integridade física. Verifica-se, no entanto, que esta crença ainda persiste entre a população estudada.

Quanto ao segundo mito, alguns autores mostraram, em estudos realizados sobre crenças e valores, que grande contingente de pessoas é resistente ao uso de preservativo como forma de prevenção contra a AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, apresentando as mais diversas razões para não adotar tal precaução. ^ 1 4 , 2 1 Neste trabalho, a presença deste segundo mito revela que, muitas vezes, as crenças sobrepujam as evidências científicas sobre os modos de transmissão.

O levantamento das respostas dos participantes mostrou, pelas opiniões dos estudantes (23,5%) e dos detentos (17,9%) que ainda há pessoas que não vêem necessidade de utilizar preservativos quando os parceiros (as) são " pessoas conhecidas".

Segundo a expressão dos próprios entrevistados, nestes casos não há perigo de contaminação nem necessidade de usar camisinha pois:

"...as mulheres que eu transo, são conhecidas ."

" As minhas mulheres . . . foram sem per igo , eu c o n h e c i a todas ." "...não precisa (usar camis inha) porque eu t e n h o n a m o r a d a e a

gente sabe da v ida de cada um".

"... eu penso que se t iver u m parce iro fixo e u v o u t ransar s e m camisinha..."

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Na opinião dos entrevistados que assim se expressaram a AIDS, é algo distante pois se relacionam com pessoas conhecidas e, neste caso, a ausência do medo contaminação pelo HIV pode ser prejudicial e fatal. A l i teratura tem demonstrado que, ult imamente, o HIV está se disseminando através de relações heterossexuais, t ransmitido por parceiros conhecidos, como namorados (as), amantes e cônjuges. 4 8

O grupamento relativo ao terceiro mito pode ser relacionado diretamente com as características da faixa etária da amostra estudada.

Pensar que a AIDS, ou outra doença qualquer de cunho fatal, não possa acontecer consigo é um enfrentamento de vida próprio de adultos jovens, marcados ainda pela cul tura adolescente, cujas características incluem as sensações de invulnerabilidade e inconsequência.

Das opiniões emitidas pelos estudantes (23,5%) e pelos detentos (7,1%) p e r c e b e - s e que , d e n t r e os p r i m e i r o s , o s e n t i m e n t o de poder , força e invulnerabilidade está mais evidenciado, talvez pelo fato de terem conseguido ingressar na vida acadêmica de uma das mais cobiçadas universidades do País.

Este sentimento se sobrepõe a qualquer situação que se contraponha como ameaça à integridade física e pode ser percebida por afirmações dos participantes do estudo, como:

"...é u m a co i sa de crença, t ipo: comigo não vai acontecer..."

"Eu t e n h o quase cer teza que meu tes te vai ser negativo.. ."

"Eu n ã o t e n h o m e d o de pegar AIDS...ela n ã o existe prá mim..."

"Eu n ã o t e n h o com que me preocupar. . . eu não penso em AIDS prá mim..."

"Eu p e n s o que n ã o vou ter essa doença nunca! "

Esta sensação de poder e força pode ser vista como uma barreira entre o comportamento de risco e a tomada de decisão por parte dos jovens em se proteger ou adotar hábitos de precaução para evitar a contaminação pelo HIV ou outras doenças sexualmente transmissíveis.

Finalmente, qunto ao quarto mito, verifica-se, pelas opiniões expressas pelos estudantes (11,8%) e pelos detentos (25,0%) que o medo de contrair o HIV aliado à falta de conhecimento sobre os modos de transmissão da doença, provoca o receio de contaminação pela simples proximidade a pessoas, familiares e amigos portadores do vírus.

Constata-se, portanto, neste estudo, que o medo provocado pelo contato ou proximidade a portadores do HIV não é exclusivo de pessoas de baixa escolaridade, mas compartilhado até por profissionais da área de saúde conforme o comprovam trabalhos já realizados ¢".»¾».'¾¾»

Quanto a este aspecto, apenas uma opinião (5,9%) dentre os estudantes e uma (3,6%) dentre os detentos considerou afastado o perigo de contaminação

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pelo HIV pela p rox imidade a pessoas infectadas, pois os en t r ev i s t ados demonstraram saber que essa não ê a forma de transmissão da doença.

O que intriga na análise destas declarações são as contradições existentes entre crenças aliadas às informações incorretas que levam u m a pessoa a considerar desnecessário o uso de preservativo ao se relacionar com parceiros "conhecidos" mas, ao mesmo tempo, teme a con taminação pela s imples proximidade a um portador do HIV.

Neste panorama de desinformação e contradições, é possível prever que, sob o estímulo de um agente estressor, tal como a coleta de sangue, muitos sentimentos em relação ao HIV / AIDS emergissem, como foi possível detectar pelo estudo das respostas à segunda indagação: "como têm sido estes dias após colher o sangue? em que você pensou ou refletiu?"

Da análise das descrições feitas pelos entrevistados depreendeu-se que, embora a maioria das opiniões dos estudantes (76,5%) e dos detentos (67,9%) dar a entender que a AIDS era algo muito distante, o período após a coleta de sangue foi emocionalmente traumático para a maioria que referiu, em maior ou menor intensidade, ter experimentado o sentimento de medo, como pode-se observar pela Tabela 5.

TABELA 5. DISTRIBUIÇÃO DAS EXPRESSÕES DOS PARTICIPANTES RELATIVAS AO SENTIMENTO DE MEDO DO HIV / AIDS. SÃO PAULO, 1994.

SENTIMENTO DE MEDO VERBALIZADO NÃO VERBALIZADO TOTAL

GRUPOS N % N % N %

Universitários 5 50,0 5 50,0 10 100,0

Detentos 15 71,4 6 28,6 21 100,0

TOTAL 20 64.5 11 35,5 31 100,0

Como já foi visto anteriormente, o medo se constitui num sentimento decorrente, muitas vezes, do desconhecimento e desinformação sobre a AIDS somado aos significados simbólicos da doença e da contaminação que perpassa os meandros dos valores individuais e das crenças da população. 4 , 5 1 0

Do relato dos entrevistados é possível relevar expressões como:

"...estes d ias (antes do resul tado) es tá s e n d o u m a a n s i e d a d e só!"

"...é u m grande medo . Só de falar já dá medo!"

"Está um cl ima de desespero.. ."

"Quando lembro m e causa medo. . . terror..."

"...dá u m frio na barriga.. . um choque."

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"Depois de co lher o sangue foi a fase mais difícil... foi horrível , f iquei ansioso."

'Ter c o n c o r d a d o ( com o exame ) me abalou muito!"

'Toi horrível . . . passe i a pensar s e n d o pos i t ivo e negativo.. ."

"Entrei em p â n i c o depois de u n s quinze d ias do teste!"

"Foi a fase mai s difícil... foi horrível!"

Este estímulo, provocado pela coleta de sangue, levou os participantes deste estudo a diferentes reações em relação à doença como a reflexão sobre uma realidade próxima ou a negação e fuga do enfrentamento com esta mesma realidade, como pode ser observado na Tabela 6.

TABELA 6. DISTRIBUIÇÃO DAS REAÇÕES DOS PARTICIPANTES EM RELAÇÃO AO HIV/AIDS. SÃO PAULO, 1994.

REAÇÕES NEGAÇÃO/FUGA ENFRENTAMENTO TOTAL

GRUPOS N % N % N %

Universitários - 10 100,0 10 100,0

Detentos 11 52,4 10 47,6 21 100,0

TOTAL 11 35,5 20 64,5 31 100,0

Pode-se notar que nenhum estudante "fugiu" do enfrentamento mental com a realidade da AIDS imposto pelo fator estressante do exame de sangue, enquanto, entre os detentos a maioria não conseguiu fazê-lo. Dentre as respostas que demonstram tal at i tude das detentos encontram-se expressões como:

"... n ã o quis n e m pensar..."

"Quando m e l embro afasto o pensamento. . ."

"...nem pense i n i s so e quando v e m na mente eu "brigo" e n ã o de ixo ficar..."

"...quando v e m qualquer p e n s a m e n t o sobre i sso eu desv io , nem q u e r o pensar..."

Q u a n d o a co le ta de s a n g u e p a r a o t e s t e def lagrou a a t i v i d a d e neurocognitiva dos estudantes, que caminham numa linha ascendente em relação ao seu consciente psíquico, percebe-se que eles repensam suas vidas e seus comportamentos levados pelo medo real do objeto receado, ou seja, pelo medo da possibilidade de terem se contaminado com este objeto. 1 8

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Como resposta observa-se uma reação mental elaborada, onde seus projetos devida são repensados, encurtando-os ou tentando vivê-los no presente, tomando consciência dos comportamentos inadequados adotados por eles até então. Esta elaboração pode ser percebida quando os estudantes se expressaram:

"...fiquei pensando se fosse posit ivo. . . t inha que buscar m e u s ideais , minhas co i sas e t inha que ser imediatamente."

"...eu teria que c o n h e c e r o que não t inha c o n h e c i d o ainda..."

"Teria que abandonar projetos a l ongo prazo e buscar projetos mais imediatos.. ."

"O que v o u fazer se t iver AIDS? ... aprove i tar a v ida nos p r ó x i m o s 5 ou 10 anos. . . m e dedicar a escrever contos..."

"Comecei a perceber, n o m e i o do caminho , que as c o i s a s que eu havia traçado, me imaginando posit ivo, eram mui to mai s in teressantes . £ ve io em mente: será que eu prec i so ter AIDS para tomar decisões?.. ."

"O imaginár io do pos i t ivo me fez ver que eu prec i sava m u d a r o rumo de minha vida..."

Por outro lado, quando foi estimulada a atividade neurocognitiva dos detentos, a maioria (52,4%) preferiu não pensar, provavelmente por não saber trabalhar com seus conteúdos ansiógenos ou por falhas ocorridas em seu processo educativo. 3 Os que repensam em suas vidas (47,6%) o fazem primordialmente sob a ótica das crenças e dos significados simbólicos que a AIDS desperta em suas mentes.

As pesquisas que se referem às reações que a AIDS causa nas pessoas, esquematizadas na introdução deste estudo, evidenciam que a t ransmissão de doenças misteriosas ou desconhecidas, ligada a comportamentos considerados anti-sociais ou reprováveis e passíveis de sanções, está também vinculada a representações simbólicas como a punição, o castigo divino e a morte.

Neste estudo também foi encontrada esta correlação como se observa na Tabela 7.

TABELA 7. DISTRIBUIÇÃO DAS R E P R E S E N T A Ç Õ E S SIMBÓLICAS REFERIDAS PELOS PARTICIPANTES RELACIONADAS À CONTAMINAÇÃO PELO HIV. SÃO PAULO, 1994.

REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS PUNIÇÃO/CASTIGO MORTE TOTAL

GRUPOS N % N % N %

Universitários 4 40,0 6 60,0 10 100,0

Detentos 19 90,5 2 9,5 21 100,0

TOTAL 23 74,2 g 25,8 31 100,0

Rev.Eac.Enf.U8P, v . 30 , n .3 , p . 3 9 9 - 4 1 5 , d e z . 1996 411

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O simbolismo da punição tem mais espaço no processo psíquico dos detentos (90,5%) que no dos estudantes (40,0%) gerando a desesperança e o desalento.

Encarcerados simbolicamente desde a infância pelos problemas psico-sócio-culturais e encarcerados no momento presente pela lei, tornam-se incapazes de pensar num processo de transformação de vida. 3 O estudante faz planos, transforma o objeto do medo. O detento tem medo de continuar sendo "preso" pela AIDS. Ele verbaliza a crença de que nunca será digno do perdão divino por se considerar um desviante social. Ele considera que não merece o perdão nem de Deus nem da sociedade porque matou, traficou, assaltou, estuprou, usou drogas e, por isso, vai continuar sendo um "preso".

O detento não vê possibilidades, na prisão, de iniciar um processo educativo sobre si mesmo e não acredita que a sociedade lhe dará oportunidades para crescer e se redimir. Portanto, considera que, se for HIV positivo será uma punição divina justa, principalmente para quem adquiriu a doença por relação sexual promíscua ou uso de drogas.

O significado simbólico da punição,ligado sobretudo à sexualidade e promiscuidade, faz com que o detento apresente uma resposta de conformismo:

"Se eu t iver AIDS tem mais gente que está com isso e eu n ã o sou me lhor que ninguém.. ."

"... se eu for posit ivo. . . é aque la co i sa de pensar no cas t igo divino, de ter s ido e sco lh ido por Deus por aqui lo que eu fiz..."

Serem positivos, neste momento de suas vidas talvez os façam eximir-se das culpas de seus atos. Foi possível observar, na locução de alguns detentos, até uma ponta de fantasia elaborando, eles mesmos, outras formas de punição:

"... eu p e n s e i até n o Governo t e n t a n d o passar uma 'overdose' de AIDS (por o c a s i ã o da c o l e t a de s a n g u e ) aqui na D e t e n ç ã o para combater o crime. . . ia ser fácil... n i n g u é m ia saber."

Essa elaboração simbólica sobre o medo da punição talvez possa explicar o fato dos estudantes refletirem mais sobre a dualidade vida-morte.

Os estudantes ligam a doença ao simbólico da morte (60,0%) demonstrando que o agente ansiógeno os levou a uma reflexão sobre a própria vida, seus comportamentos muitas vezes inadequados e de alto risco como a falta de proteção ou a multiplicidade de parceiros na relação sexual e o uso de drogas injetáveis.

Alguns estudantes chegaram a se imaginar positivos e se surpreenderam fazendo uma recomposição e adaptação em seus ideais de vida:

"...eu largar ia o e mprego e os es tudos , se fosse pos i t ivo , para ter mai s t e m p o l ivre e ficar c o m m e u filho..."

" Fo i ó t imo m e imag inar pos i t iva . Coloquei a lgumas co i sas em e x e c u ç ã o i m e d i a t a m e n t e quando me deparei com a poss ib i l idade da morte..."

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Para os estudantes, o imaginário de ser HIV positivo, ligado ao simbólico da morte, fez com que muitos deles mudassem comportamentos, tomassem decisões pelo fato de, ainda que de modo fictício, terem percebido a morte como um evento muito próximo e real.

A perda da vida, para os detentos é fatalidade e castigo merecido, não havendo o que modificar. Para os estudantes, a morte também é fato inexorável mas, ao mesmo tempo, é força motriz para gerar modificações e executar projetos possíveis.

CONCLUSÕES

A AIDS é ainda uma doença cercada por mitos e crenças que, na maioria das vezes, se const i tuem verdadei ras ba r re i r a s p a r a pe rmi t i r mudanças significativas de comportamento e adoção de hábitos preventivos pa ra bloquear a disseminação do HIV.

Este estudo, mesmo que limitado, espera poder contribuir pa ra evidenciar que o enfrentamento do HIV/AIDS por pa r t e das pessoas é u m a s i tuação estressante que desencadeia respostas afetivas importantes.

Apesar de os participantes pertencerem a grupos diferentes em vários aspectos, ambos apresentaram reações provocadas pela atividade neurocognitiva face à possibilidade de contaminação pelo HIV.

A maioria dos entrevistados (67,9%) considerou a AIDS como uma realidade distante e fora de suas vidas, fundamentando-se em aspectos míticos que comprovam a persistência de idéias errôneas e preconceituosas sobre a doença.

Apesar desta aparente tranqüilidade, 64,5% dos respondentes verbalizaram ter experimentado o sentimento de medo; 64,5% relataram que o fato de se submeterem, ainda que voluntariamente, ao teste para detecção de anticorpos anti-HIV, levou-os a refletir sobre seu estilo de vida e que estas reflexões foram feitas com base nas representações simbólicas relacionadas à punição e castigo divino (74,2%) e à morte (25,8%).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pairam muitas sombras, ainda, sobre a existência do ser humano vivendo em tempos de AIDS, a única doença sexualmente transmissível sem cura a té o momento.

Os dados obtidos neste estudo, longe de serem conclusivos, serviram, entre outras coisas, para mostrar que a discussão sobre a AIDS não pode se limitar

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aos aspectos fisiopatológicos da doença, mas deve se ampliar e aprofundar também nos aspectos emocionais e seus reflexos nos sentimentos e comportamentos das pessoas.

Estes aspectos devem ser considerados pelos enfermeiros, como educadores em saúde, ao formularem programas educativos sobre a AIDS.

Os mitos, as crenças, os valores e as representações simbólicas decorrentes do enfrentamento com a disseminação do HIV são elementos básicos que o educador precisa levar em conta ao elaborar os conteúdos de programas de educação em saúde.

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Lack of knowledge and misinformations on HIV/AIDS are predictors of emotional responses as fear of contagion, homophobia, avoidance and excessive precautions. Fear of contagion is an affective stress response to the neurocognitive activity that leads to a perceived threat of AIDS in connection with the symbolic meanings os illness. Focused interviews were conducted with an opportunistic sample of 31 young people to know the affective responses and behaviors after blood screening for HIV antibody testing. The findings confirm the relationship of symbolic representation of illness as mystery, death, punishment and sexuality to fear of contagion and mitic conception of AIDS.

UNITERMS: AIDS. Nursing care. Health education.

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