entre o abstrato e o concreto: legados do embate sobre...

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Departamento de Pós-Graduação em Ciência Política ENTRE O ABSTRATO E O CONCRETO: Legados do Embate sobre o Projeto de Integração do São Francisco ou da Transposição Luna Bouzada Flores Viana Brasília 2011

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Departamento de Pós-Graduação em Ciência Política

ENTRE O ABSTRATO E O CONCRETO:

Legados do Embate sobre o Projeto de Integração

do São Francisco ou da Transposição

Luna Bouzada Flores Viana

Brasília

2011

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LUNA BOUZADA FLORES VIANA

ENTRE O ABSTRATO E O CONCRETO:

Legados do Embate sobre o Projeto de Integração

do São Francisco ou da Transposição

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Ciência Política na Universidade de Brasília como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do grau de Mestre em Ciência Política.

Orientadora: Profa Dra Rebecca Abers.

Brasília

2011

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A todos aqueles que não se acomodam e não se acostumam.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a oportunidade concedida pelo Governo Brasileiro de poder me dedicar

pelo período de seis meses para a elaboração deste trabalho.

À Profª Rebecca Abers, pela orientação e agradável tarde em sua casa no

maravilhoso cerrado.

Aos meus colegas da subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil, pela

convivência, troca de ideias e pela oportunidade única de aprendizado vivida entre os anos

de 2007 e 2010.

Ao Prof. Paulo Calmon, pela atenção e convite para participar das reuniões do

Grupo de Pesquisa em Instituições e Políticas Públicas.

Ao Prof. Onofre dos Santos, da PUCMinas, pela disponibilidade em revisar meu

projeto apresentado no processo de seleção do mestrado.

Aos entrevistados e funcionários das Assembleias Legislativas, que contribuíram

muito com o compartilhamento das informações.

À Suely Araújo, por ter “gastado” suas manhãs discutindo NVivo e MCA comigo.

A minha mãe, por me inspirar a ter uma vida acadêmica e incutir em mim a

insatisfação com a injustiça e com a desonestidade.

Ao meu pai e a meu irmão, por formarmos um núcleo familiar com problemas e

soluções.

Ao Marcelo, por nossa ligação que teoria nenhuma consegue explicar.

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“Do Nordeste para Minas Gerais corre uma espécie de eixo,

uma linha imaginária,

que não por acaso segue o curso do rio da unidade nacional,

o Rio São Francisco.

A esse eixo o Brasil tem que voltar

sempre que não quiser se esquecer de que é Brasil”.

Alceu Amoroso Lima/Tristão de Ataíde.

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RESUMO

Quais mudanças políticas foram legadas pelo debate sobre a transposição? Quais foram os conflitos e como estes modificaram (ou não) a obra e a ação do Governo Federal para o desenvolvimento do semiárido? Para responder a estas perguntas, o estudo utilizou o Modelo de Coalizões de Advocacia (MCA) para explicar a mudança política em temas complexos. A partir do MCA todo o debate sobre a transposição entre os anos de 1994 e 2007 foi organizado à luz de um embate entre coalizões de advocacia e grupos de atores que atuam de forma coordenada, motivados pela defesa de crenças políticas. Por sua vez, as crenças políticas que moveram o debate foram moldadas por anos de atuação do Governo Federal e de pensamento social sobre como lidar com a seca no semiárido. Para realização da análise, foram classificados testemunhos e discursos de 216 pessoas pelo software NVivo8. Também foram analisados os manifestos da sociedade civil relacionados ao projeto. As classificações realizadas objetivaram identificar quais crenças eram defendidas pelas pessoas e possibilitaram analisar as coalizões que atuaram no debate, tendo sido levantadas as seguintes: político-materialista contrária; político-idealista contrária, político-materialista favorável; e coalizão político tecnocrática. A atuação das coligações proporcionou alterações no projeto ao longo dos anos e incorporação de ações governamentais que refletiam as crenças defendidas. O conflito gerado pelo projeto, além de envolver interesses, também foi motivado pelo choque de visões sobre problemas e soluções para a seca. Dessa forma, entraram em confronto percepções de que a ação do Governo deve orientar-se pela promoção de obras hídricas e incentivo à agricultura irrigada, com a visão de que o desenvolvimento do semiárido passa pela execução de ações dentro do que se denomina de “convivência com o semiárido”. Argumenta-se que, apesar de o Governo Federal ser criticado por ter atropelado segmentos contrários à obra, houve mudanças políticas oriundas do debate. Entretanto, não se avaliou um processo de transformação do pensamento e ação social do Governo Federal sobre estratégias para lidar com a seca e proporcionar o desenvolvimento do semiárido, visto que as crenças predominantes ainda se referem ao desenvolvimento da agricultura irrigada. Palavras-chave: Integração de Bacias. Transposição. Rio São Francisco. Semiárido.

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ABSTRACT

Which political changes were led by the debate over the Interbasin Water Transfer? Which were the conflicts and how they changed (or not) the facility and the Federal Government action for semiarid region development? In order to answer these questions this study relied on the Advocacy Coalition Framework (ACF) authored by Sabatier and Jenkins-Smith to explain the political change in complex areas. Through the ACF the debate that occurred between the years of 1994 to 2007 was organized in the light of contentions among advocacy coalitions, which are grouping of actors that act in a coordinated way, motivated by political beliefs. Therefore, the political beliefs that animated the debate were molded by years of experience on Federal Government action to deal with the dryness in the semiarid region. For the analysis, 216 people´s testimonies and speeches were classified using the software NVivo8. Also were analyzed civil society´s manifestos related to the Project. The classifications goaled identifying the beliefs that were supported by people and enabled to identify and characterize the coalitions active in the debate. The following coalitions were identified: political-materialist contrary, political-idealist contrary, political-materialist favor, political technocratic. Coalition´s performance led to alterations in the Project along the years and the input of governmental actions that reflected the beliefs supported. The conflict generated by the Project was also motivated by confront of beliefs about problems and solutions on semiarid dryness. In this manner, were in confront perceptions that Government action should be orientated towards water facilities and irrigated agriculture and the vision that semiarid development is related to what is called “semiarid coexistence. It is argued that despite criticism on the Federal Government “running over” those contrary to the facility, there were political changes due to debate. However, it is not possible to identify transformations on the Federal Government action and thinking about strategies do deal with the semiarid dryness and development, since predominant beliefs still refer to the irrigated agriculture expansion. Key words: Interbasin Water. Transfer. São Francisco River. Semiarid Region.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figuras

FIGURA 1 Diagrama do Modelo de Coalizões de Advocacia............................................ 22

FIGURA 2 Projeto de Integração......................................................................................... 194

FIGURA 3 Plano Estratégico de Desenvolvimento do Semiárido: áreas

geoestratégicas................................................................................................... 195

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadros

QUADRO 1 Materiais obtidos junto às Assembleias Estaduais e Câmara dos

Deputados....................................................................................... 51

QUADRO 2 Plano de Desenvolvimento do Semiárido: ações nas regiões

consideradas................................................................................... 69

QUADRO 3 Mapeamento dos parâmetros relativamente estáveis do

sistema............................................................................................ 81

QUADRO 4 Resumo de lideranças e principais razões para o arquivamento do

projeto............................................................................................. 102

QUADRO 5 Argumentos sobre aspectos instrumentais: dificuldade de consenso

técnico............................................................................................. 107

QUADRO 6 Principais características do projeto: comparação ao longo dos anos

para demonstrar mudanças de 1º nível e algumas de 2º

nível................................................................................................... 108

QUADRO 7 Lideranças Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São

Francisco.......................................................................................

138

QUADRO 8 Coalizões de advocacia identificadas 148

QUADRO 9 Avaliação da mudança política de 2º nível....................................... 166

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACO Ação Cível Originária

ANA Agência Nacional de Água

APEDEMA Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente

ASA Articulação pelo Semiárido

ASPF Articulação Popular São Francisco Vivo

BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CBHSF Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco

CDH Comissão dos Direitos Humanos

CDR Comissão do Desenvolvimento Regional

CEEIBH Comitê Especial de Estudos Integrados

CEPAC Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará

CESE Coordenadoria Ecumênica de Serviço

CHESF Companhia Hidrelétrica do Rio São Francisco

CI Comissão de Infraestrutura

CIMI Conselho Indigenista Missionário

CIPE Comissão Interparlamentar

CNBB Confederação Nacional dos Bispos do Brasil

CNRH Conselho Nacional de Recursos Hídricos

CODEVASF Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e

Parnaíba

COPASA Companhia de Saneamento de Minas Gerais

CPT Comissão Pastoral da Terra

CRE Comissão de Relações Exteriores

CREA Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura

CVSF Comissão do Vale do São Francisco

DEM Democratas

DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra a Seca

DNOS Departamento Nacional de Obras de Saneamento

DWR Department of Water Resources

EIA Estudo de Impacto Ambiental

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ELETROBRÁS Centrais Elétricas Brasileiras S.A

EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

FHC Fernando Henrique Cardoso

FUNCATE Fundação de Ciência, Aplicação e Tecnologias Espaciais

FUNDESPA Fundação de Estudos e Pesquisas Aquáticas

GAMBA Grupo Ambientalista da Bahia

GEF-SF Global Environment Facility São Francisco

GTDN Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento Econômico do Nordeste

IAMBA Instituto de Ação Ambiental da Bahia

IBAMA Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis

IBASE Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

IFOCS Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

IOCS Inspetoria de Obras Contra a Seca

MAB Movimento dos Atingidos por Barragens

MCA Modelo de Coalizões de Advocacia

MI Ministério da Integração Nacional

MMA Ministério do Meio Ambiente

MME Ministério de Minas e Energia

MPA Movimento dos Pequenos Agricultores

MST Movimento dos Sem-Terra

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

ONG Organização Não Governamental

PAC Plano de Aceleração do Crescimento

PC do B Partido Comunista do Brasil

PDSA Plano Estratégico de Desenvolvimento do Semiárido

PDT Partido Democrático Trabalhista

PFL Partido da Frente Liberal

PHS Partido Humanista da Solidariedade

PL Partido Liberal

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PLANVASF Plano Diretor para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PPA Programa Plurianual de Investimento

PPS Partido Popular Socialista

PROINE Programa de Irrigação do Nordeste

PSB Partido Socialista Brasileiro

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

PSOL Partido Socialismo e Liberdade

PT Partido dos Trabalhadores

PV Partido Verde

RIMA Relatório de Impacto Ambiental

SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

SEPRE Secretaria Especial de Políticas Regionais

STF Supremo Tribunal Federal

SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

TCU Tribunal de Contas da União

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UTI Unidade de Tratamento Intensivo

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 15

1.1 Objetivos.................................................................................................................. 20

1.1.1 Objetivo principal................................................................................................. 20

1.1.2 Objetivos específicos............................................................................................ 20

2 O MODELO DE COALIZÕES DE ADVOCACIA.................................................. 21

2.1 Explicando a mudança política decorrente do debate sobre o Projeto de

Integração de Bacias......................................................................................................

34

2.2 Limitações do Modelo de Coalizões de Advocacia................................................ 40

2.3 O papel das ideias.................................................................................................... 42

3 METODOLOGIA....................................................................................................... 49

4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA DISCUSSÃO............................................................ 58

4.1 Introdução................................................................................................................ 58

4.1.1 Caracterização das regiões................................................................................... 59

4.1.2 Sertão Norte.......................................................................................................... 61

4.1.3 Ribeira do São Francisco...................................................................................... 70

4.1.4 As ideias que estão em conflito............................................................................ 74

4.1.5 Sobre a Lei 9.433/1997 e a criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco

(CBHSF)........................................................................................................................

77

4.2 Conclusão................................................................................................................ 80

5 O PROJETO DA TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO.......................... 85

5.1 Introdução................................................................................................................ 85

5.1.1 Formulação do Projeto 1818-1994....................................................................... 86

5.1.2 Formulação do projeto pós-1994.......................................................................... 92

5.2 Conclusão................................................................................................................ 102

6 OS ATORES E AS CRENÇAS EM CONFLITO NA DISCUSSÃO DO

PROJETO DA INTEGRAÇÃO....................................................................................

110

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6.1 Introdução................................................................................................................ 110

6.2 Análise das crenças políticas................................................................................... 111

6.2.1 Priorização do desenvolvimento da Bacia do Rio São Francisco x priorização

do desenvolvimento do semiárido do sertão norte........................................................

112

6.2.2 Uso da água x preservação ambiental.................................................................. 114

6.2.3 Abastecimento humano x produção de energia.................................................... 116

6.2.4 Existência de déficit hídrico no São Francisco..................................................... 118

6.2.5 População beneficiada.......................................................................................... 121

6.2.6 Paradigma de desenvolvimento............................................................................ 123

6.3 Análise de fóruns de discussão, papel da sociedade civil, Igreja e academia......... 126

6.3.1 A dinâmica do conflito nas Assembleias Estaduais e na Câmara Federal........... 127

6.3.2 Manifestos da sociedade civil.............................................................................. 132

6.3.3 Participação da Igreja Católica............................................................................. 140

6.3.4 A participação da Academia................................................................................. 141

6.4 Conclusão................................................................................................................ 142

7 COMPREENDENDO A DINÂMICA DO CONFLITO SOBRE O PROJETO E

IMPACTOS SOBRE A QUESTÃO DA “SECA”........................................................

144

7.1 Introdução................................................................................................................ 144

7.2 Coalizões de advocacia atuantes............................................................................. 146

7.2.1 Coalizão política materialista:contrária................................................................ 149

7.2.2 Coalizão política idealista: contrária.................................................................... 153

7.2.3 Coalizão político-tecnocrática.............................................................................. 155

7.2.4 Coalizão político materialista: favorável.............................................................. 156

7.3 Mudança política de segundo nível......................................................................... 158

7.3.1 Choque externo e mudança política..................................................................... 163

7.4 Mudança política de terceiro nível: transformação no pensamento e ação de

governo para a solução do “problema da seca”.............................................................

168

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 173

REFERÊNCIAS............................................................................................................ 179

ANEXOS E APÊNDICES............................................................................................ 186

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1 INTRODUÇÃO

Quais mudanças políticas foram legadas pelo debate sobre a transposição do São

Francisco? Quais foram os conflitos e como estes modificaram (ou não) a obra e a ação do

Governo Federal para o desenvolvimento do semiárido?

A ideia da transposição tem sido formulada e defendida por grupos que a veem

como solução para a seca no semiárido desde o Império. Ao longo dos anos, todavia, a

percepção sobre o problema da seca e suas soluções tem sido redefinida. Velhas e novas

respostas têm convivido nos padrões de ação do Governo Federal e no pensamento social

sobre o desenvolvimento do semiárido.

Conforme será demonstrado, o embate gerado pela transposição ou integração de

bacias representou a mobilização de segmentos sociais diversos, desejosos de transformar,

remodelar ou reafirmar a prática política na região. O conflito foi movido por visões e

interesses com raízes históricas criadas, especialmente, a partir das orientações e resultados

obtidos com as experiências do Governo Federal para tentar induzir melhores condições

sociais e econômicas na região.

Dessa forma, a discussão gerada pela obra trouxe à tona diversos aspectos no que

pode ser resumido como um grande debate sobre a formulação de problemas e soluções

para o desenvolvimento do semiárido. Nesse contexto, parte dos que se opõem ao projeto

intitula-o de “a catedral da indústria da seca”1. Os seus defensores, por sua vez, acreditam

que ele proporcionará vida “aos cemitérios de água” ou aos açudes construídos dentro do

que se nomeia de “solução hidráulica”.

Há vasta literatura relacionada à obra, tanto em livros com coletânea de opiniões

quanto em trabalhos acadêmicos. Entretanto, essas publicações analisam parte do processo.

Enfocam a atuação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, os impactos em ribeirinhos

ou a mobilização da sociedade civil, entre outros.

O objetivo deste trabalho é “amarrar” as diferentes perspectivas com o intuito de

reconstruir o debate e identificar as suas consequências nas políticas para a região. Dessa

forma, academia, políticos, sociedade civil e técnicos do Governo são agrupamentos de

atores que tiveram atuação diferenciada no processo. Esses segmentos não agiram

1 Termo atribuído a Manoel Bonfim, engenheiro civil (ALVES FILHO, 2010).

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isoladamente, eles atuaram de forma coordenada com outros grupos, motivados pelo

compartilhamento de visões e interesses.

O envolvimento de diversos segmentos da sociedade e níveis de governo torna

complexa a análise do processo de discussão sobre a obra. Diante disso, o Modelo de

Coalizões de Advocacia serve de referencial teórico e metodológico para avaliar as

consequências dos conflitos inflamados pela decisão em se fazer a obra nas ações do

Governo Federal.

O Modelo de Coalizões de Advocacia (MCA) foi elaborado por Sabatier e Jenkins-

Smith (1993a) para explicar a mudança política em temas ligados aos recursos naturais. A

partir dele é possível organizar a dinâmica de discussão situando os atores em um

subsistema político. A ação é motivada pela defesa de crenças. Atores de diferentes

segmentos compartilham sistemas de crenças específicos e atuam coordenadamente com o

objetivo de tornar os seus posicionamentos predominantes nos programas e políticas de

governo. Esses conjuntos de atores são denominados, por sua vez, de coalizões de

advocacia.

No MCA, as crenças defendidas pelas coalizões são organizadas em três níveis. Em

um primeiro nível estão as crenças relacionadas aos aspectos instrumentais ou decisões

sobre orçamento, viabilidade técnica, entre outros.

No segundo nível, estão as crenças do núcleo político que são, por exemplo,

posicionamentos sobre público beneficiário, prioridades básicas, percepção sobre o

problema. No terceiro nível, concentram-se as crenças do núcleo duro as quais são axiomas

normativos e ontológicos fundamentais. Em termos simplificados, visões de mundo.

A hierarquização das crenças permite compreender o grau de mudança política.

Modificações em aspectos instrumentais são naturalmente mais fáceis de serem

processados. Entretanto, mudanças na percepção sobre o problema com o qual a política

pública deve lidar (crenças do núcleo político) já são mais difíceis. Em relação às crenças

do núcleo duro, as transformações são quase impossíveis, visto que representam rupturas

com percepções profundas.

A partir disso, o modelo identifica duas principais forças causais da mudança

política. A primeira é a incorporação de crenças no rol de ações do Governo via interação

entre as coalizões. Os longos anos de conflito geram revisões por parte das coalizões das

suas crenças instrumentais e políticas. A renovação das crenças das coalizões dominantes

causa reorientações nas políticas. Esse processo é denominado aprendizado político.

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A segunda força causal é o choque externo. Este consiste em rupturas externas ao

subsistema político em estudo. Os eventos externos redefinem os recursos e estratégias dos

atores no subsistema e podem levar a revisões de crenças mais essenciais, como as crenças

políticas e do núcleo duro.

A dinâmica política é dada, portanto, pelo conflito entre posicionamentos sobre

uma política ou um tema. Mas, como visto, as posições são oriundas de formulações que

vão desde aspectos instrumentais até visões de mundo. Neste trabalho, argumenta-se que o

debate sobre a transposição envolveu o choque entre percepções sobre problemas e

soluções para o desenvolvimento do semiárido.

Sendo assim, o conflito sobre a transposição é analisado como uma disputa entre

coalizões de advocacia. Os resultados políticos do debate são identificados por meio das

crenças que estavam em conflito. Assim, apura-se que se a interação entre as coalizões ou

a existência de outros fatores, como eventos ou choques externos (mudança de governo,

crises econômicas, dentre outros), geraram o reforço de antigas crenças ou a incorporação

de novas crenças no rol das políticas públicas do Governo Federal.

Através das lentes do Modelo de Coalizões de Advocacia será investigado se os

longos anos de embate sobre a obra propiciaram mudanças nas políticas públicas

direcionadas para o semiárido. A partir disto será discutido o entendimento predominante

de que o Governo Federal teria “atropelado” em especial o Comitê da Bacia do Rio São

Francisco e segmentos da sociedade civil.

Esses aspectos brevemente apresentados são desenvolvidos em dois capítulos -

teórico e metodológico -, dois de contextualização histórica e um capítulo de discussão e

análise. O capítulo 2 apresenta o Modelo de Coalizões de Advocacia. O MCA foi criado

para explicar a mudança política enfatizando o papel da informação técnica na formulação

dos posicionamentos dos atores em conflito.

A aplicação do MCA ao objeto de estudo proposto pode ser criticada. Uma crítica

possível é a de que a análise sobre os conflitos gerados por uma obra de infraestrutura não

permite avaliar impactos para a mudança de uma política governamental. Dedica-se uma

seção à apresentação do uso do modelo em uma disputa muito similar à do Projeto de

Integração de Bacias, demonstrando-se que divergências existentes ou criadas por obras de

infraestrutura não são resolvidas apenas com o uso do poder político. O processo envolve

também modificações nas crenças, as quais impactam nos resultados políticos.

No capítulo 3, desenvolve-se a metodologia utilizada no estudo, que é qualitativa.

Em conformidade com outras pesquisas que utilizam o modelo, são realizadas análise

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documental, entrevistas (APÊNDICE A) e revisão de literatura. A análise documental, por

sua vez, foi feita com o apoio do software de análise qualitativa NVivo8. O trabalho

efetivado foi o de classificação das crenças, o que possibilitou a identificação das coalizões

atuantes. Com isto, foi possível organizar os atores e estabelecer nova abordagem do

debate sobre o projeto e as suas consequências.

Os documentos analisados são notas taquigráficas de seminários, discursos

parlamentares e audiências públicas ocorridos nas Assembleias Legislativas de Minas

Gerais (2000-2007), Ceará (1994-2007), Bahia (2000-2007) e Sergipe (1999-2007).

Verificaram-se, também, notas taquigráficas das reuniões do Grupo de Trabalho da

Câmara dos Deputados (2000) e Audiências na Câmara dos Deputados (2007).

No capítulo 4, é explorado um elemento contextual do MCA, que são os

parâmetros relativamente estáveis ou fatores que delimitaram as crenças defendidas pelas

coalizões. Esses parâmetros foram moldados a partir da experiência histórica com as ações

do Governo Federal e do pensamento e ação social para o desenvolvimento do semiárido.

O resgate histórico foi dividido em duas regiões, com o objetivo de enfatizar

características específicas da Bacia do Rio São Francisco e do semiárido do Nordeste

Setentrional. A separação é realizada com base no Plano Estratégico de Desenvolvimento

do Semiárido elaborado pelo Ministério da Integração no ano de 2005 (BRASIL, 2005a).

A área a ser beneficiada pela obra é denominada sertão norte ou região interiorana dos

estados do Nordeste Setentrional.

Os atores da Bacia do Rio São Francisco, por sua vez, são situados na região

denominada ribeira do São Francisco. Assim, grosso modo, a discussão é visualizada como

um conflito geograficamente situado entre o sertão norte e a ribeira do São Francisco.

Deve-se esclarecer que a divisão do semiárido em duas regiões objetiva dar relevo

ao embate que foi travado; mas também reflete uma diferenciação reconhecida por autores

de relevância.

Como parte do contexto da discussão, também é apresentado o marco legal vigente

desde 1997 e que modificou os termos do confronto. A Política Nacional de Recursos

Hídricos e a criação do Comitê da Bacia definiram, entre outros aspectos, um novo fórum

de atuação das coalizões (CBHSF, 2010).

No capítulo 5, resgatam-se informações sobre a obra, considerando o histórico de

decisões para a sua implementação e fluxos burocráticos que o projeto seguiu em sua

discussão durante os anos do Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1995-2002) e

Lula (2003-2007). Também são sintetizadas as principais características técnicas do

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projeto e modificações realizadas em suas especificações e conceitos resultantes das

críticas recebidas ao longo do tempo. Essas mudanças são denominadas, por sua vez,

“mudanças de 1º nível” ou transformações nas crenças instrumentais.

No capítulo 6 são analisados os conflitos que moveram a discussão e aspectos

específicos do debate ocorrido em alguns fóruns. As crenças políticas (núcleo político e

aspectos instrumentais) identificadas no capítulo 4 servem de base para o aprofundamento

sobre as divergências e os argumentos utilizados nos debates. Também é realçado o papel

desempenhado no processo pela sociedade civil, Igreja Católica e academia.

No capítulo 7, objetiva-se identificar as mudanças políticas decorrentes do conflito.

Para tanto, inicialmente é apresentado o subsistema de discussão do projeto com base na

análise das coalizões, seus recursos e estratégias.

O MCA prevê que a mudança política pode ser originada tanto da dinâmica do

subsistema quanto de choques externos. Considerando a importância dos eventos externos,

uma seção é dedicada a apresentar o que a mudança de governo significou para a dinâmica

do subsistema em que a obra era debatida.

Uma vez definidos o contexto e o subsistema político, são avaliados os resultados

políticos. Para tanto, ressaltam-se as ações que foram incorporadas ou modificadas pelo

Governo Federal devido à atuação das coalizões ou por choques externos. As ações

identificadas são aquelas relacionadas às crenças que estavam em embate e cuja inclusão

está relacionada à discussão sobre o projeto.

Por fim, ainda que a obra não esteja em operação e seja prematuro preconizar quais

serão sua finalidade social e impactos, discute-se o que os anos de embate promoveram

para modificar os padrões de intervenção do Governo Federal com o objetivo de

desenvolvimento do semiárido.

O Governo Federal tem sido criticado por ter “atropelado” segmentos da sociedade

contrários à transposição. Entretanto, o fato da obra sair do papel não exclui a possibilidade

de terem sido incorporadas ações governamentais em conformidade com algumas das

crenças que estavam em discussão. Além disso, é possível que novas percepções sobre os

problemas e soluções para o desenvolvimento do semiárido tenham se enraizado no

pensamento e ação do Governo Federal.

Juntamente com o registro de informações sobre essa obra, cuja importância e

conflitos são históricos, espera-se, com a análise das mudanças políticas geradas por todo o

processo, contribuir para melhor gestão do que está em andamento e avaliação de quais

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políticas podem ser adotadas como mecanismos reais para promoção do desenvolvimento

do semiárido.

1.1 Objetivos

1.1.1 Objetivo principal

• Compreender como a discussão sobre o Projeto de Integração de Bacias ou da

Transposição modificou o padrão de ação do Governo Federal para o

desenvolvimento do semiárido.

1.1.2 Objetivos específicos

• Identificar e analisar as ideias relacionadas ao projeto, resgatando conceitual e

historicamente o confronto entre as estratégias de modernização, solução hidráulica

e a convivência com a seca. Objetiva-se compreender como ideias históricas

contribuíram para moldar a percepção sobre problemas e soluções para o

desenvolvimento do semiárido.

• Descrever o embate sobre o projeto como uma disputa entre coalizões de

advocacia. Identificar as coalizões, seus recursos e estratégias.

• Avaliar os reflexos da implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e

a criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco no aprendizado político sobre o

projeto (CBHSF, 2007).

• Analisar como a discussão sobre a Integração de Bacias ou Transposição permitiu

aprendizado político nas ações do Governo Federal para o desenvolvimento do

semiárido.

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2 O MODELO DE COALIZÕES DE ADVOCACIA

O Modelo de Coalizões de Advocacia ou de Defesa (MCA) é apresentado no livro

Policy Change and Learning, de Sabatier e Jenkins-Smith (1993a), e revisto em capítulo

do livro Public Policies Analysis, escrito por Sabatier e Weible (1999 apud ARAÚJO,

2007).

O MCA serve para lidar com problemas complexos, em que há disputas técnicas

importantes e envolve múltiplos atores em diferentes níveis de governo. Ele originou-se de

estudos de Paul Sabatier para compreender o papel da informação técnica no processo da

política (SABATIER; WEIBLE, 2007 apud ARAÚJO, 2007).

O objetivo do MCA é explicar mudanças nas políticas públicas. A raiz do modelo é

o estudo de Hugh Heclo (1974 apud SABATIER, 1993) sobre modificações na política de

bem-estar social na Inglaterra e na Suécia. Heclo (1974 apud SABATIER, 1993) concluiu

que, além de mudanças sociais e econômicas de grande escala, as políticas públicas são

transformadas a partir da interação entre pessoas inseridas em uma comunidade política.

Essas pessoas atuam para reforçar o seu poder e desenvolver formas melhores para lidar

com os problemas identificados.

Sabatier (1993) sugere, ainda, que outra importante contribuição do estudo de

Heclo (1974 apud SABATIER, 1993) foi enfatizar a atuação dos especialistas e o

aprendizado gradual que estes obtinham sobre o problema e os meios para o alcance dos

objetivos da política.

O modelo também foi construído a partir de crítica às análises das políticas públicas

em fases ou ciclos (LASWELL, 1951 apud SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993b). Essa

abordagem popularizou-se na academia americana nas décadas de 1970-1980. Os estudos

que a utilizam concentravam-se, geralmente, em uma fase do processo. Cita-se, como

exemplo, o estudo de John Kingdon (1995, publicado primeiramente em 1984) sobre

formação de agenda.

Sabatier (1993) considera que esse tipo de abordagem não consegue explicar

mudanças políticas em longos períodos. Isto porque é necessário um tempo para maturação

da política e avaliação real das transformações. A evolução da política depende, ainda, da

interação entre inúmeras organizações e envolve outras esferas de governo que não apenas

a federal.

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O autor também realça que a abordagem em ciclos negligencia o papel da

informação técnica ao longo do processo político. Ele cita, como exemplo, a política para

controle da poluição nos Estados Unidos. Neste caso, os problemas identificados e as

discussões foram moldados a partir de melhor conhecimento técnico-científico sobre o que

seriam as chuvas ácidas (SABATIER, 1993).

Sabatier e Jenkins-Smith (1993c) propõem, então, um modelo que supera

limitações de abordagens tradicionais da Ciência Política e sintetiza diversos elementos

enfatizados em outros estudos. As dimensões envolvidas e a dinâmica de mudança política

são organizadas em um quadro esquemático do Modelo de Coalizões de Advocacia.

FIGURA 1 - Diagrama do Modelo de Coalizões de Advocacia.

Fonte: Araújo (2007) e Sabatier e Jenkins-Smith (1993a).

SUBSISTEMA DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Parâmetros Relativamente Estáveis

do Sistema 1. Atributos básicos do problema

2. Distribuição básica de recursos naturais.

3. Valores socioculturais fundamentais e estrutura social.

4. Estrutura constitucional básica (regras).

Grau de consenso

necessário para mudança substancial na

política pública

Limitações e recursos dos

atores do subsistema

Estratégia A Instrumentos

de recondução

Decisões de autoridades

governamentais

Regras institucionais, alocação de recursos e indicações

Resultados políticos

Impactos das políticas públicas

Estratégia B Instrumentos

de recondução

COALIZÃO A crenças políticas

recursos

Policy Brokers agentes

negociadores

COALIZÃO B crenças políticas

recursos

Eventos Externos 1. Mudanças nas condições socioeconômicas.

2. Mudanças na opinião pública.

3. Mudanças nas coalizões governamentais.

4. Decisões políticas e impactos de outros subsistemas.

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A dinâmica de mudança política ilustrada no diagrama assenta-se nas seguintes

premissas (SABATIE; JENKINS-SMITH, 1993c, p.16, adaptado):

• A compreensão do processo de mudanças política requer estudos que considerem

um período mínimo de 10 anos.

• A interação entre os atores é organizada em subsistemas políticos; ou seja, atores de

diferentes instituições possuem algum tipo de coordenação com o objetivo de

influenciar a decisão política em uma área.

• Os subsistemas políticos devem envolver todos os níveis de governo, bem como

jornalistas e pesquisadores2.

• Políticas públicas ou programas podem ser conceituados da mesma maneira que

sistemas de crenças ou conjunto de valores prioritários e pressupostos causais.

As premissas estabelecem, portanto, um horizonte temporal de análise que permite

abarcar a acumulação de conhecimento ao longo do tempo e definem prazo mínimo de

maturação de uma política já implementada. Elas também organizam a análise em termos

de subsistemas compostos por atores de diversos níveis de governo e instituições.

A última premissa, por sua vez, determina a compreensão da dinâmica de mudança

política como uma disputa para definição de prioridades políticas. Sabatier (1993)

considera que as políticas públicas incorporam teorias explícitas sobre como alcançar os

objetivos. A partir disto, o autor refere que políticas públicas representam sistemas de

crenças. Logo, as políticas públicas espelham valores, prioridades e percepções sobre

importantes relações causais.

A partir destas premissas, o MCA organiza a dinâmica de mudança política como

sendo impulsionada por duas forças causais. A primeira origina-se do conflito entre os

atores inseridos no subsistema político. No subsistema, os atores podem organizar-se em

coalizões de defesa3. As coalizões são compostas por pessoas de diversas organizações e

níveis de governo. O objetivo é a criação de um ou mais programas de governo em

conformidade com as crenças defendidas.

A mudança política ocorre, então, devido a um processo de aprendizado. As

discussões entre as coalizões, a experiência obtida com programas e políticas e a avaliação

2 Observa-se que Sabatier e Jenkins-Smith (1993c) não citam explicitamente a sociedade civil como parte do subsistema, informam apenas “outros”. 3 Os termos advocacia e defesa serão utilizados alternadamente, ambos possuem as mesmas implicações conceituais.

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de elementos contextuais externos ao subsistema fazem com que as crenças sejam revistas

e, consequentemente, políticas sejam modificadas.

Nesse processo, os especialistas desempenham papel fundamental, visto que eles

trazem novas informações e conhecimentos que ensejam a revisão das crenças. A

especialização é tida como condição necessária para o indivíduo/grupo influir no processo.

O domínio de conteúdos técnicos e legais legitima a participação (SABATIER; WEIBLE,

1999 apud ARAÚJO, 2007).

Sabatier (1993) equaciona crenças com idéias, mas enfatiza que, para o processo

político, as ideias principais são as relacionadas às informações técnicas. As crenças são,

portanto, posicionamentos técnicos sobre aspectos da política.

A segunda força causal de mudanças em políticas públicas são crises e eventos de

ampla escala externos aos subsistemas. Sabatier (1993) define essas mudanças como “não

cognitivas”.

Considerando o quadro esquemático do modelo (FIG. 1), essas causas estão

associadas aos “eventos externos”. Estão inseridas nessa dimensão as mudanças relevantes

nas condições sociais e econômicas, rotatividade de pessoal, entre outros. Essas variações

refletem-se nos recursos disponíveis para as coalizões existentes no subsistema,

significando mudanças nas crenças predominantes.

Como visto, o elemento motriz da dinâmica evidenciada pelo MCA é a disputa

entre coalizões motivada pelo conflito de crenças. No modelo, as crenças são organizadas

em uma hierarquia. A hierarquização permite compreender concessões, negociações e

avaliar o nível de conflito que permeia a discussão. Conflitos causados por diferenças entre

crenças de baixo nível hierárquico têm altas chances de serem resolvidos. Há mais

probabilidade de mudanças significativas na política ou em crenças mais essenciais quando

há variações socioeconômicas mais amplas.

A seguir são descritas as crenças políticas utilizadas no Modelo de Coalizão de

Advocacia (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993b, p. 221, adaptado)4:

• Núcleo duro (deep core) - axiomas normativos e ontológicos fundamentais.

Incluem as concepções sobre natureza humana; prioridade relativa de valores como

a liberdade, segurança, poder; critérios básicos de justiça distributiva. São as mais

difíceis de serem modificadas, sendo comparadas à conversão religiosa;

4 A tradução dos termos utilizados por Sabatier e Jenkins-Smith (1993c) foi verificada a partir do estudo de Suely de Araújo (2007). Esta utilizou o trabalho de França (2002, p. 124-125 apud ARAÚJO, 2007) como referência para tradução dos termos referentes às crenças.

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• Núcleo político (policy core) - posições essenciais sobre a política pública,

concernentes às estratégias básicas, para alcance dos valores do núcleo duro no

âmbito do subsistema. Uma primeira divisão são os preceitos normativos

fundamentais, que são orientação adotada sobre valores, prioridades básicas e para

quais grupos o bem-estar gera mais preocupação. A segunda e última divisão são

os preceitos que possuem componente empírico fundamental. Estes são

constituídos pela preocupação geral com o problema; distribuição de autoridade

entre Governo e mercado; prioridade entre os vários instrumentos de política

(regulação, educação, uso de recurso público); habilidade da sociedade em resolver

o problema (jogo de soma zero ou potencial de acomodação/acordo).

• Aspectos instrumentais (secondary aspects) - decisões instrumentais e busca de

informações para implementar as crenças do núcleo político. Incluem informações

sobre a gravidade do problema, revisões de leis e normas, alocação de recursos

orçamentários, entre outros.

Uma primeira crítica que pode ser feita ao MCA é que a disputa entre os atores não

é causada somente por embates ideológicos ou choques entre crenças. O conflito pode ser

gerado por objetivos sumariamente materiais, como lucro, renda, por exemplo.

A essa crítica Sabatier (1993) simplifica defendendo que mesmo os interesses

materiais estão inscritos em um sistema de crenças, mas caracterizados por crenças mais

restritas e menos abstratas que um sistema de crenças de um ambientalista, por exemplo.

Neste contexto, grupos de interesses também participam da dinâmica política, mas como

partes de coalizões. Sabatier (1993) denomina de coalizões materialistas as que são

movidas essencialmente por interesses ou ganhos materiais.

A negociação com membros da coalizão materialista é menos um processo de

convencimento e mais de barganha. Assim, os líderes da coalizão materialista podem

modificar o discurso para alcance de seus objetivos. Eles podem trabalhar com uma lógica

invertida de sistema de crenças (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993b), enfatizando

crenças secundárias ou aspectos operacionais, cedendo diante da oportunidade de realizar

os seus interesses.

Observa-se, entretanto, que são reconhecidos os limites na identificação dos “reais

interesses” das pessoas (JENKINS-SMITH; ST. CLAIR, 1993). As crenças consideradas

são as “expressas” em posicionamentos formais. Evidentemente, o ator político conforma

sua fala de acordo com a audiência e as lideranças das arenas das quais participa. Todavia,

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como representante de organizações, ele é constrangido a expressar as crenças oficialmente

sancionadas naquele fórum. Além disso, atores que participam regularmente no subsistema

têm de manter coerência em suas falas e ações a fim de não perderem credibilidade entre

seus pares (JENKINS-SMITH; ST. CLAIR, 1993).

As premissas, os fatores contextuais e a dinâmica de mudança política estabelecidos

no Modelo de Coalizões de Advocacia permitem analisar com profundidade a discussão

sobre o Projeto de Integração de Bacias.

A obra da transposição possui histórico de quase 160 anos5. Sua importância

histórica e o seu porte permitem referenciar em sua discussão as preocupações e

prioridades para o desenvolvimento do semiárido. Percepções conflitantes nos temas de

gestão dos recursos hídricos, estratégia de combate/convívio com a seca, política de

desenvolvimento regional e política ambiental permearam o posicionamento dos variados

atores que participaram do processo.

O MCA será utilizado como uma lente para resgatar o cenário e a dinâmica de

interação entre os atores. A partir da compreensão de como se moldou o subsistema de

discussão do Projeto da Transposição, será analisado se houve mudança no pensamento e

ação do Governo Federal para o desenvolvimento do semiárido.

Observa-se que toma como referência documentos e ações planejadas no âmbito do

Ministério da Integração Nacional e suas vinculadas (Departamento Nacional de Obras

Contra as Secas – DNOCS, Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e

Parnaíba e a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE). Isso porque

a esses órgãos cabe a formulação de planos de desenvolvimento e implementação de ações

destinadas a resolver o problema da seca (BRASIL, 2010).

Parte-se do pressuposto de que o conflito causado pela obra representou a disputa

pela consolidação de visões sobre a água como recurso essencial para o desenvolvimento

do semiárido e a preservação e revitalização do Rio São Francisco. Os atores envolvidos na

discussão possuíam crenças diferenciadas no que se refere ao gerenciamento dos recursos

hídricos, gestão ambiental e estratégia de desenvolvimento do semiárido.

O semiárido nordestino possui o histórico de fortes impactos sociais decorrentes da

seca. A Bacia do São Francisco, por sua vez, é uma região com muita importância

histórica. O rio é percebido como um eixo de unidade e integridade do território nacional,

mas que ao longo do tempo foi sendo esquecido. A discussão do projeto insere-se nos

5 Considerando como marco inicial o Relatório Halfeld de 1850, elaborado a pedido de Pedro I.

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anseios e visões de grupos sobre quais são os problemas e o papel das políticas públicas

para a superação dos desafios enfrentados pelas regiões.

A compreensão da motivação dos atores envolvidos na discussão depende de

resposta a um primeiro questionamento: quais são as principais divergências nas

crenças políticas que motivaram o conflito?

Na atuação para defesa de suas crenças, os atores políticos são limitados por fatores

contextuais. Como pode ser observado no quadro esquemático do MCA (FIG. 1), os

recursos e as estratégias são constrangidos pelos denominados “parâmetros relativamente

estáveis” e “eventos sistêmicos externos ou choques externos”.

Os “parâmetros relativamente estáveis do sistema” são condições iniciais difíceis de

serem mudadas. Ou seja, são aspectos do problema e do contexto compartilhados por todos

os atores. Eles forjam limites e possibilidades na formulação da estratégia, bem como

delimitam as possibilidades de estratégias alternativas e afetam os recursos e crenças dos

atores (SABATIER, 1993). Os fatores são (SABATIER, 1993, p. 21-22 adaptado):

• Atributos básicos do problema – análise do tema como um bem comum, potencial

de aprendizado técnico sobre o assunto, valorização do tema na sociedade;

• distribuição básica dos recursos naturais – a distribuição presente e passada dos

recursos naturais afetam o bem-estar da sociedade, a viabilidade de diferentes

setores econômicos, muitos aspectos da cultura e a viabilidade de opções de

políticas;

• valores culturais fundamentais e estrutura social – inclui a visão da sociedade sobre

temas como nacionalização e a estrutura de poder político, por exemplo;

• estrutura legal básica.

Os eventos externos também constrangem a atuação dos atores dentro do

subsistema, os quais devem aprender como antecipá-los e responder quando da sua

ocorrência, consistentemente com as suas crenças.

Neste conjunto originam-se os choques externos que permitem mudanças em alto

grau nas crenças dos atores, até mesmo das crenças do núcleo duro. As perturbações

externas podem, ainda, transformar a percepção sobre relações causais ou a teoria que guia

a política defendida, assim como redefinir recursos e apoio político mais amplo para a

atuação das coalizões.

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Os fatores que compõem os elementos dinâmicos ou eventos externos são

(SABATIER, 1993, p. 22-23 adaptado):

• Condições socioeconômicas e tecnológicas – aumento da consciência ambiental,

embargos econômicos.

• Coalizões de governo sistêmicas – eleições e crises políticas modificam perfil do

executivo bem como composição no legislativo, mudando a predominância de um

partido.

• Decisões de políticas e impactos recebidos de outros subsistemas – os subsistemas

são parcialmente autônomos. Eles são, portanto, influenciados por decisões

tomadas nos outros subsistemas. Como exemplo, tem-se a restrição à política para

controle da poluição em face da decisão pela independência energética nos Estados

Unidos, o que levou à priorização do uso de carvão.

A análise da situação é essencial para a compreensão dos limites e oportunidades

que se apresentaram aos atores na formação de suas crenças políticas, nos recursos e

estratégias. Neste estudo, tem-se que os “parâmetros relativamente estáveis”, que

influenciaram o subsistema de discussão da transposição, foram historicamente moldados.

De um lado, tem-se a história do semiárido nordestino e dos recorrentes episódios

de seca narrados em livros como A bagaceira (ALMEIDA, 2005), O quinze (QUEIROZ,

2009), Luzia-Homem (OLIMPIO, 2008), Vidas Secas (RAMOS, 1938). Hordas de pessoas

moribundas e famintas que fugiam para os centros urbanos à procura de assistência ou para

incorporação nas frentes de trabalho. As frentes, por sua vez, serviam para pessoas

inescrupulosas obterem ganhos em tempos de escassez generalizada. Multidões também

fugiam para as capitais e eram enjauladas em campos de concentração, à espera da morte

ou de salvação. Essa experiência histórica forjou uma visão geral da região como um

problema e da seca como a principal causa para o atraso.

Numa complexa rede de compadrios políticos e pobreza, a principal ação do

Governo na região foi a construção dos diversos açudes que propiciaram maior potencial

de fixação no sertão. Esses açudes permitiram o que hoje os técnicos do DNOCS chamam

de “semiárido mais povoado do mundo6”.

De outro lado, mas também compartilhando as mesmas raízes históricas, a região

inserida na Bacia do Rio São Francisco começou a ser explorada quando os portugueses

6 A expressão é derivada de observação de Jean Dresch e tem sido atribuída a Aziz Ab´Saber (BRASIL, 2005a).

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decidiram ou foram impelidos a deixar de “arranhar a costa como caranguejos” para

desbravarem o sertão. Ansiavam, em especial, encontrar o ouro, que na América espanhola

era abundante.

Inicialmente, a região do rio serviu como campo de experimentação dos religiosos

que lá reduziam os índios em aldeamentos. Mas, à medida que o ouro foi sendo descoberto

e que a criação de gado avançava para suprir a produção dos engenhos, as missões

começaram a ser invadidas e esvaziadas.

No início do século XX, a vegetação das margens foi extinta para dar força às

embarcações que faziam o transporte das mercadorias. A história da Bacia do São

Francisco também foi moldada na lembrança de que o rio um dia serviu como veia

pulsante das riquezas que eram retiradas do Brasil. Seu papel na historiografia nacional

moldou percepções sobre como uma época áurea poderia ser retomada.

A obra da transposição pode parecer uma mera discussão técnica e entendimentos

de engenharia. Mas ela é muito mais. Além do concreto - cálculos, orçamento -, ela traz

uma história que criou raízes muito fortes. Ela mesma é um ramo da árvore que se

desenvolveu a partir dessas raízes. Não é um ramo marginal, todavia.

A discussão sobre a transposição consistiu em embate entre forças muito antigas e

ainda vivas. Os termos da negociação foram historicamente construídos, assim como as

percepções e argumentos. A discussão foi uma síntese das diversas visões e interesses

daqueles que estão relacionados à região do semiárido e à região da Bacia do São

Francisco.

Ainda sobre este aspecto, o MCA permite adotar o pressuposto de que o

envolvimento dos atores no projeto não foi motivado apenas por interesses próprios de

curto prazo. A atuação e coordenação das pessoas em grupos não se restringiram a

“coalizões de conveniência”. Políticos, técnicos, membros da sociedade civil e academia,

sejam eles contrários ou favoráveis à obra, participaram do debate em um longo período de

tempo e com argumentos tecnicamente fundamentados.

O compartilhamento de crenças entre os atores e a coordenação da ação entre eles

levou à consolidação de coalizões de defesa ou de advocacia. O conceito de coalizões de

advocacia é:

[...] pessoas com diversas posições (governantes eleitos, líderes de grupos de interesses, pesquisadores, etc.) que compartilham um sistema de crenças em particular – isso é, um conjunto de valores básicos, pressupostos causais e percepção sobre os problemas – e que demonstram um grau não trivial de atividade coordenada no tempo (SABATIER, 1993, p. 25).

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Verifica-se que, geralmente, em uma questão, existem duas a quatro coalizões

(SABATIER, 1993). Ao longo do tempo, as crenças tendem a convergir e o número de

coalizões atuante se reduz.

Sabatier e Jenkins-Smith (1993a) identificam o conjunto possível de estratégias que

podem ser utilizadas pelas coalizões. Elas são divididas em dois tipos de ação: uma direta,

que é a tentativa de influenciar a decisão das agências administrativas; e uma indireta, que

consiste em apelar para autoridades do Legislativo, Executivo ou Judiciário.

Na atuação direta para influenciar agências administrativas, as coalizões podem

tentar convencer a equipe da agência por intermédio de testemunhos; chamar a atenção

pública sobre o desempenho da agência; elaborar relatórios de pesquisa, entre outros. Na

atuação indireta, as coalizões podem solicitar revisão de regras, estabelecer um processo

judicial, influenciar opinião pública, por exemplo.

Sabatier e Weible (2007, p. 201-203), na revisão do modelo, inserem uma tipologia

de recursos a que as coalizões podem ter acesso:

• Disponibilidade de membros que ocupam posições com autoridade legal para

decisões em políticas públicas.

• Capacidade de mobilização da opinião pública.

• Capacidade de coletar, organizar e utilizar a informação para convencer

autoridades/tomadores de decisão.

• Capacidade de realizar manifestações públicas.

• Acesso a recursos financeiros.

• Habilidade da liderança em criar uma visão atrativa sobre a coalizão, mobilizar e

utilizar eficientemente recursos e atuar como empreendedor aproveitando

oportunidades como a de choques externos.

O Modelo de Coalizões de Advocacia permite analisar um conflito político como

uma disputa entre percepções sobre os problemas e suas soluções e não somente uma

competição por mais recursos e ganhos materiais. A organização dos atores em

subsistemas que incluem diversas instituições e níveis de governo unidos pela defesa de

crenças comuns permite organizar o debate e avaliar as suas consequências para a política

pública.

Considerando a complexidade e diversidade de atores envolvidos na discussão

sobre a obra da Integração de Bacias, questiona-se: quais foram as coalizões de

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advocacia atuantes durante a discussão do projeto? Quais foram suas estratégias e

recursos?

A organização e a compreensão de todo o embate gerado pela transposição à luz do

Modelo de Coalizões de Advocacia permite analisar também se houve um processo de

mudança política.

Uma primeira força causal para a mudança política é o aprendizado político. Ele

consiste em revisões ou adoção de novas crenças por parte das coalizões. A modificação

nas crenças gera redefinição da política pública em alto ou baixo grau, dependendo do

nível de crença que foi modificada e posição da coalizão na política. O aprendizado pode

ocorrer por dinâmicas internas às coalizões ou ser fruto da interação entre as coalizões.

A evolução da técnica e acumulação de conhecimento sobre um tema possibilitam

transformações nas crenças secundárias e podem também modificar as crenças sobre a

política e, mais raramente, as crenças do núcleo duro.

Internamente às coalizões, a informação técnica desempenha importante papel na

revisão e fundamentação continuada das crenças. Críticas e ameaças a valores centrais

realizadas por opositores são confrontadas com a coleta de novos dados e informações. A

coleta e organização de informações técnicas servem ainda para corroborar o

posicionamento e tentar obter mais apoio a partir do convencimento. Como observam

Sabatier e Jenkins-Smith (1993c), em um âmbito democrático, o exercício “cru” de poder é

perigoso. É necessário embasamento técnico para subsidiar decisões já tomadas.

O aprendizado pode ocorrer também por meio da interação entre as coalizões. A

transformação das crenças, todavia, além de depender de sua essencialidade, é também

função do grau de conflito em que os atores estão situados. Caso a disputa tenha conteúdo

fortemente técnico e esteja situada em quadro de conflito acirrado, agentes de governo

mais graduados podem atuar como facilitadores. Estes sintetizam os conflitos e embates

técnicos e têm o potencial de conduzir as disputas entre as coalizões (SABATIER;

JENKINS-SMITH, 1993c).

A ultimação dos objetivos das coalizões ocorre quando conseguem direcionar a

atuação das agências administrativas conforme as suas crenças. A disputa é, então, pelo

controle ou limitação das instituições que têm a capacidade de vetar ou de realizar

(dispõem de orçamento, pessoal) as ações que atendem a seu sistema de crenças.

As coalizões tendem a se alinhar com agências que possuem pessoal mais simpático

às suas causas. Além disso, tentam restringir o processo decisório a instâncias a quem têm

mais acesso e influência.

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As agências de governo e os servidores públicos não são neutros na discussão de

políticas. Geralmente eles participam ativamente na defesa das crenças de uma coalizão.

Sabatier e Jenkins-Smith (1993a) formulam a hipótese de que na disputa de coalizões, as

agências de governo tendem a adotar posição mais moderada em relação à posição do

grupo de interesse aliado. Ou seja, apesar de compartilharem o sistema de crenças de uma

das coalizões atuantes no subsistema, elas são limitadas pelo cargo para expressar as suas

opiniões7.

Além disso, as próprias agências de governo não devem ser tomadas como

monolíticas (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993a). No caso do Rio São Francisco, os

Ministérios e outros órgãos de governo em que o projeto foi gestado possuíam diversos

departamentos e estruturas internas com visões distintas sobre o contexto e a obra.

Na revisão do modelo, Sabatier e Weible (2007) acrescentam os choques internos

como outros fatores que podem conduzir à mudança política, em especial mediante o

questionamento das crenças políticas dominantes. O choque interno é qualquer evento

significativo no subsistema, que altera o comportamento das coalizões. Tanto o choque

interno quanto o externo levam a mais atenção da opinião pública ao problema.

Os resultados dos choques podem ser, então, a redistribuição de recursos políticos

críticos (apoio público, financiamento, entre outros) e a confirmação de crenças de

coalizões minoritárias ou questionamento das crenças dominantes que movem a política

(SABATIER; WEIBLE, 2007).

Um quarto impulsionador para a mudança política são os acordos negociados.

Esses acordos normalmente são gerados por condições específicas e mediados por um

fórum profissional. Algumas condições que propiciam os acordos negociados são: situação

atual representa um “beco sem saída” ou é inaceitável para as partes; liderança do fórum

profissional resolve as disputas de forma neutra; a inclusão de atores nas discussões para

prevenção de vetos ou discordância em momentos de decisão consensual; discussões são

realizadas em encontros continuados e sem muita rotatividade de representantes,

possibilitando alinhamento com lideranças e fortalecimento da confiança e o problema

deve ter potencial empírico de solução e são poucas as opções existentes (SABATIER;

WEIBLE, 2007).

7 No caso da transposição, como será visto adiante, Menezes (2009) analisou que membros de movimentos sociais que possuíam atitude mais radical, ao incorporarem os quadros do Governo após a eleição do Partido dos Trabalhadores, foram limitados em sua capacidade de expressar e implementar as ideias que defendiam antes.

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Como visto, modificações das crenças podem ocorrer devido à dinâmica interna das

coalizões, pela interação entre as coalizões, choques internos e acordos negociados. A

acumulação gradual de conhecimento e o papel da informação técnica na dinâmica política

constituem-se em insumos na competição entre os grupos. A hierarquia da crença

transformada e a sua defesa por uma coalizão que domina a política determinam o grau de

mudança na política.

Outra importante fonte de mudança política são os eventos externos. Eles redefinem

os recursos e estratégias dos atores ou criam condições de mais apoio político para as

crenças defendidas por uma coalizão. Os choques externos propiciam mudanças em alto

grau nas políticas, visto que podem afetar crenças do núcleo duro.

A partir da dinâmica de aprendizado político preconizado pelo MCA, objetiva-se

avaliar se a discussão sobre a Integração de Bacias gerou transformações nas

características e conceitos que fundamentavam a obra. Mas, em especial, objetiva-se

analisar se a discussão gerou incorporação/revisão de ações conforme as crenças em

conflito, ou melhor, modificações na atuação do Governo Federal para o desenvolvimento

do semiárido.

Deve-se observar que o foco de análise sobre a mudança política são as ações do

Ministério da Integração Nacional. Isto por estarem concentradas naquele Ministério e suas

coligadas (DNOCS, Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e

Parnaíba - CODEVASF - e SUDENE) as ações do Governo Federal para superação do

problema da seca no semiárido e promoção do desenvolvimento da região.

Diante disto, tem-se o terceiro e último questionamento: durante a discussão

sobre o projeto, houve mudanças nas crenças políticas e secundárias? Caso

afirmativo, o que ocasionou e como se caracterizou a mudança política?

O Modelo das Coalizões de Advocacia é simples em sua organização, mas pode-se

tornar complexo em sua operacionalização. O MCA foi construído com o objetivo de se ter

base metodológica comum. Isto possibilitaria que as pesquisas sobre mudança política

propiciassem o acúmulo de conhecimento sobre essa dimensão do processo político. O

modelo foi elaborado e aplicado em temáticas afins às do estudo proposto. Como, por

exemplo, em estudos sobre políticas ambiental e energética. Todavia, a aplicação do

modelo para estudo do Projeto São Francisco pode gerar ressalvas.

O principal questionamento que pode ser formulado é o de que o conflito gerado

não foi causado por um embate entre crenças políticas mais abstratas que ensejariam

mudanças profundas na política. Para aqueles que consideram a obra apenas como uma

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intervenção de engenharia, a disputa foi motivada apenas por ganhos políticos e materiais

de curto prazo. Mas, assim que se toma conhecimento do histórico da obra e do quadro

socioeconômico em que esta se insere, percebe-se que o conflito também foi movido por

visões sobre o semiárido.

Pode-se argumentar, ainda, que o panorama de interação entre os atores não se

caracterizou como um subsistema político específico de embate e decisão sobre o projeto.

Como será demonstrado no capítulo 6, houve atuação dedicada e continuada de atores no

processo de discussão.

Na seção a seguir, explora-se a aplicação do MCA em estudo com objeto similar ao

proposto. Objetiva-se reforçar a compatibilidade entre as premissas do modelo e o escopo

empírico considerado.

2.1 Explicando a mudança política decorrente do debate sobre o Projeto de

Integração de Bacias

Não é novidade a aplicação do MCA ao estudo de políticas relacionadas à água e

sua importância para o desenvolvimento regional. Um dos estudos de casos apresentados

no livro Policy Change and Learning (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993a) é sobre o

“Projeto de Água do Estado da Califórnia” (California State Water Project) escrito por

John Munro (1993).

O histórico, a discussão e o resultado final do Projeto da Califórnia lembram em

muitos aspectos o Projeto São Francisco.

A corrida pelo ouro levou ao desbravamento do interior do estado da Califórnia a

partir do ano de 1849. Diversos canais e diques foram construídos para uso da água nas

minas. Com a redução da atividade mineradora, a água passou a ser utilizada na produção

agrícola irrigada.

Assim como na história brasileira, no século XIX, foram criadas comissões para

investigação dos potenciais e limites para o desenvolvimento da região. A lição essencial

dos relatórios foi que o desenvolvimento do estado da Califórnia dependia do suprimento

de água na região do Vale Central, em especial para o uso na agricultura irrigada

(CARLIFORNIA, 2010).

A principal solução que sustentaria o desenvolvimento era a construção de

instalações que permitiriam a transferência de água do norte para o sul. Esse projeto surgiu

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primeiramente em 1919, inserido em um plano de desenvolvimento da água em nível

estadual.

Em 1931, ocorreu o primeiro passo concreto para execução das obras identificadas.

O relatório denominado de “Plano da Água Estadual” (State Water Plan) levou nove anos

para ficar pronto. A sua execução foi autorizada pelo Legislativo em 1933 mediante o “Ato

do Vale Central” (Central Valley Act) e o projeto foi iniciado em 1935.

Mas, após a II Guerra Mundial, novos estudos foram realizados para identificar

ações para suprimento de água à população urbana em crescimento. Os estudos

culminaram no “Projeto Feather River”, que foi apresentado ao Legislativo em 1951.

O projeto consistia na construção de barragens, unidade de produção de energia,

sistema de transmissão de energia, aqueduto e, entre outros, um canal denominado ”Canal

Periférico”. De acordo com o histórico informado na página do departamento atualmente

responsável pela gestão da água no estado, “a aprovação do projeto de água estadual não

foi fácil” (CALIFORNIA DEPARTMENT OF WATER RESOURCES - DWR, 2010).

Seus custos e sua viabilidade técnica foram questionados. Partidos tanto do sul

quanto do norte, opuseram-se veementemente ao projeto. Residentes do norte do estado

reivindicavam que a água pertencia “de direito” a eles; e não queriam que esta fosse levada

para o sul. Mesmo com regulamentação aprovada em 1931, que protegia as suas

necessidades futuras, a população do norte receava limitações ao desenvolvimento de sua

região pela escassez de água (DWR, 2010).

Os maiores defensores do projeto foram os fazendeiros do Vale de San Joaquin,

uma vez que os custos para obtenção de água subterrânea estavam cada vez mais altos.

Além disso, o projeto foi defendido por trabalhadores do setor da construção civil,

engenheiros, trabalhadores da indústria siderúrgica, que seriam favorecidos pela execução

de obras públicas (DWR, 2010).

Um dos principais opositores foi a Federação do Trabalho da Califórnia (California

Labor Federation). A Federação argumentou, em especial, que o projeto favoreceria o

agronegócio em detrimento de sua visão de política que seria a priorização da produção

familiar (DWR, 2010).

Em meio a esse embate, duas firmas de consultoria independentes foram

contratadas para analisar a viabilidade técnica e financeira do projeto. Elas atestaram a sua

viabilidade técnica, mas diante do aumento da inflação, foram encaminhadas revisões do

plano para corte de custos.

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Comitês especiais para discutir o assunto e construir uma emenda que satisfaria a

todas as partes não tiveram sucesso. O plano foi dividido em várias leis ligadas a um

mesmo projeto denominado Burns-Porter Act.

Em 1960, o projeto foi aprovado com margem estreita de votos. Todavia, as obras

previstas já haviam iniciado antes da votação do ato, devido a uma devastadora enchente

em 1956, que tornou necessária a construção da barragem de Oroville (DWR, 2010).

O breve histórico sobre obras de transferência de água no estado da Califórnia

ilustra a observação de Asit Biswas de que as transferências de água são sempre marcadas

pela passionalidade (apud SBPC, 2004).

Ainda de acordo com Biswas, a questão de transferência de água entre bacias tem sido um assunto que desperta muita passionalidade. Sempre que projetos dessa natureza são propostos, controvérsias públicas se tornam a regra em lugar de a exceção. Os proponentes discutem a excelência técnica dos projetos, os benefícios econômicos e contribuições globais para desenvolvimento da sociedade. Os oponentes procuram mostrar, por outro lado, que os custos sociais e ambientais são muito altos e consequentemente inaceitáveis para a sociedade. Assim, via de regra, segmentos de sociedade defendem o objetivo a ser alcançado em termos de desenvolvimento, enquanto outros segmentos se opõem ao mesmo projeto por razões diferentes. Tais conflitos são compreensíveis. É inevitável que qualquer projeto de desenvolvimento beneficiará alguns cidadãos mais que outros e, frequentemente, alguns cidadãos podem ter que aguentar custos adicionais, às vezes tangíveis (responsabilidades de imposto mais pesadas, por exemplo) ou intangíveis (como ônus social e ambiental). Os proponentes são frequentemente os beneficiários e os oponentes tendem a ser esses que pagam os custos. Desta forma, a discussão transcende meramente a disponibilidade de água e passa a ser também uma competição por investimentos que é legítima, dado que os problemas e as aspirações existem nas duas regiões (SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA, REGIONAL PERNAMBUCO, SBPC, 2004).

O histórico apresentado e constante no site do atual Departamento de Gestão da

Água do Estado da Califórnia é uma breve contextualização do tema que Munro (1993)

analisou considerando o Modelo de Coalizões de Defesa.

No estudo de caso, Munro (1993) argumenta que a aprovação da legislação de 1960

deveu-se à capacidade política do Governador Brown e à existência de crenças pró-

desenvolvimentistas compartilhadas amplamente.

A crença no desenvolvimentismo começou a ser questionada com a mobilização de

grupo contrário movido por crenças que o autor classifica como “protecionistas”. Esse

grupo argumentava, em essência, que as regras e rotinas convencionais que governavam a

política de água não eram apropriadas (MUNRO, 1993).

O conflito entre o grupo “desenvolvimentista” e o grupo “protecionista” tornou

difícil para os atores do Governo Estadual, responsáveis pela gestão das águas,

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conseguirem o compromisso e convergências necessários para implementação da política,

que consistia, em suma, na construção de infraestrutura de transporte de água.

Munro (1993) identifica que a discussão sobre o Canal Periférico concentrou o

conflito entre desenvolvimentistas, protecionistas e elaboradores de política. O canal de 69

km objetivava ser uma ligação direta do Rio Sacramento com a região sul, sem passar pela

região do Delta. Sua construção gerou diversas críticas, como a redução do fluxo de água

nos canais já existentes naquela região, o que poderia levar à salinização da água. Também

foi criticado por produtores existentes na região do Delta que receavam perder água

necessária para o desenvolvimento de suas atividades produtivas.

Sobre a aplicação do MCA, Munro (1993, p. 108) relata que “o conflito sobre a

elaboração da política na Califórnia em geral e o Canal Periférico em particular proveem

um excelente estudo de caso dos determinantes de mudança política de longo prazo”.

Munro (1993, p. 108) descreve, ainda, que o MCA “não ignora o papel do poder

político, mas enfatiza também processos cognitivos (por exemplo, aprendizado político

envolvendo crenças secundárias) e eventos externos relevantes como causas primárias da

mudança da política” 8.

É importante salientar que o Projeto de Água da Califórnia (California State Water

Project - SWP) consiste em:

O Projeto de Água do estado da Califórnia é um sistema de armazenamento e entrega de água de reservatórios, adutoras, estações de bombeamento e centrais energéticas. Seu principal objetivo é armazenar água e distribuí-la a 29 fornecedores de água urbana e agrícola no norte da Califórnia, na área da Bahia de São Francisco, no Vale de San Joaquin, na costa central e para o sul da Califórnia. Da oferta contratada, 70% vão para os usuários urbanos e 30% vão para os usuários agrícolas9 (DWR, 2010).

O objeto de discussão de Munro (1993) é uma política de construção de soluções de

engenharia para distribuição da água dentro do estado, retirando de áreas com abundância

hídrica para área com déficit hídrico. O objeto de estudo de Munro (1993) foram, em suma,

as discussões sobre a execução de obras para um sistema que hoje atende a 25 milhões de

8 “The ACF, while not ignoring the role of political Power, emphasizes cognitive processes (i.e. policy learning involving secondary beliefs) and major external events as primary causes of policy change”. 9 “The California State Water Project is a water storage and delivery system of reservoirs, aqueducts, powerplants and pumping plants. Its main purpose is to store water and distribute it to 29 urban and agricultural water suppliers in Northern California, the San Francisco Bay Area, the San Joaquin Valley, the Central Coast, and Southern California. Of the contracted water supply, 70 percent goes to urban users and 30 percent goes to agricultural users”.

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californianos e irriga 750.00 hectares (DWR, 2010). No caso do Projeto São Francisco,

este atenderá, até 2025, a aproximadamente 12 milhões de nordestinos.

Essa delimitação é importante, visto que nos mesmos termos de Munro (1993), a

investigação proposta tem por objeto a discussão de uma obra de engenharia ou conjunto

de obras cuja magnitude financeira e impacto social permitem avaliar os seus impactos na

mudança política.

Na análise realizada, Munro (1993) é discutido em especial: a) variáveis exógenas

que afetam o subsistema da política de água; b) coalizões de defesa no subsistema que

lutam pelo controle da política; c) as estruturas de crenças centrais e políticas das duas

maiores coalizões de defesa.

Munro (1993) considera como subsistema o conjunto de atores envolvidos na

elaboração de políticas de oferta hídrica para o estado da Califórnia. Como já informado, o

autor identifica duas coalizões entre os anos de 1970 e 1980 no subsistema da política da

água na Califórnia. Estas são: coalizão desenvolvimentista e coalizão protecionista.

A primeira era composta por agências de governo ligadas a obras e, entre outros, os

agricultores. A coalizão protecionista era composta por várias organizações ambientalistas

e, entre outros, funcionários de agências de governo ligados à proteção ambiental e

fazendeiros da região do Delta, que seriam prejudicados com obras que transportariam

mais água para o sul do estado.

Em meio às duas coalizões existiram “facilitadores políticos” que eram legisladores

e, em alguns momentos, o Governador Jerry Brown. O Governador utilizou a estratégia de

oferecer obras compensatórias àqueles que criticavam a obra, por exemplo.

Munro (1993) salienta que os termos da disputa entre as duas coalizões

modificaram-se ao longo do tempo. Inicialmente, os argumentos centravam-se na questão

de quem ganhava ou quem perdia materialmente com os projetos. Com o passar do tempo,

os argumentos passaram a ser mais ideológicos, discutiam a política em termos de como

afetaria axiomas normativos e crenças centrais. A coalizão desenvolvimentista e os

argumentos assentados nas crenças desenvolvimentistas tiveram sua influência reduzida.

Na identificação de fatores externos relativamente estáveis e eventos externos,

alguns encontrados são similares aos que serão discutidos no Projeto São Francisco. Entre

os estáveis, Munro (1993) identifica a existência de um conjunto complexo de legislação;

uso desproporcional de água para a irrigação (83% na Califórnia e 64% na Bacia do Rio

São Francisco); e conflito entre o norte e o sul, em que o norte nutria esperanças

separatistas.

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Em relação aos eventos externos, os desafios enfrentados pelas duas realidades são

parecidos. As baixas taxas de crescimento na Califórnia no século XIX propiciaram

políticas públicas que encorajavam a expansão da agricultura irrigada. Secas nos anos de

1920 expandiram a atuação do Governo no gerenciamento da água.

As secas deram força a pressões para que a política deixasse de ser pelo

desenvolvimento da oferta de água e passasse a concentrar-se no uso mais eficiente dos

recursos existentes e proteção dos valores ecológicos. Por outro lado, as secas também

deram força à pressão das agências de governos e agricultores na execução de obras como

o Canal Periférico.

Munro (1993) concluiu que a disputa dessas forças contrárias não permitiu bom

aproveitamento da oportunidade criada pelo evento externo para efetivamente promover

reformas políticas e institucionais.

O estudo de caso de Munro (1993) permite ter-se segurança da aplicabilidade do

Modelo de Coalizões de Advocacia ao estudo da mudança política proporcionada pela

discussão sobre uma obra de engenharia. Esse tipo de intervenção governamental também

polariza percepções e visões e enseja uma reflexão sobre em que medida o conflito levou a

transformações nos padrões das políticas públicas. Como observa Munro (1993), os

resultados não são apenas decorrentes do exercício de um poder político puro, há um

processo de negociação e de consolidação e revisão de crenças.

O autor também chamou a atenção para a importância de eventos externos como

mecanismos para as mudanças. Ele reforça uma hipótese do MCA de que eventos externos

têm mais possibilidades de gerar modificações em crenças mais centrais (MUNRO, 1993).

Além disso, ele agrega a conclusão de que valores trazidos por coalizões e

incorporados em um subsistema transformam-se ao longo do tempo em parâmetros

relativamente estáveis. O marco comum da discussão é então redefinido. Ele identifica, por

exemplo, que devido à atuação da coalizão protecionista o aumento de oferta de água

passou a não ser visto de forma automática como solução para o problema.

Em relação à existência de um subsistema específico para o debate sobre a

Integração de Bacias, toma-se como exemplo a dissertação de Araújo (2007). A autora

realça que a análise das ações para conservação da biodiversidade, proteção das florestas,

controle da poluição e gerenciamento de recursos hídricos poderia ser feita no subsistema

da política nacional do meio ambiente. Mas ela pondera que seria perdida uma riqueza de

informações ao deixar-se de tratar essas partes ou subsistemas específicos de forma mais

detida.

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Além disso, a análise do histórico e das informações coletadas sobre o projeto

permitiu inferir que a dinâmica de interação entre os atores conformou um subsistema

maduro. O subsistema pode ser considerado maduro quando (SABATIER; JENKINS-

SMITH, 1999, p. 136 apud ARAÚJO, 2007):

• Os participantes consideram-se uma comunidade semiautônoma que compartilha

um domínio de expertise.

• Os participantes vêm atuando no sentido de influenciar as políticas públicas nesse

domínio por um período de tempo consideravelmente longo.

• Há subunidades especializadas para tratar da matéria em todos os níveis de

governo.

• Há grupos de interesse ou subunidades especializadas de grupos de interesses que

consideram o tema uma questão principal de políticas públicas.

Em relação ao Projeto da Transposição, houve a criação de comissões no âmbito

das Assembleias Estaduais, Grupo de Trabalho na Câmara, fóruns e frentes da sociedade

civil, núcleos especializados no Ministério Público, bem como a atuação dedicada e

continuada de atores políticos, da academia e sociedade civil. Estes elementos permitem

inferir que a discussão sobre o projeto cristalizou um subsistema.

Uma vez demonstrada a adequação do uso do Modelo de Coalizões de Advocacia

para exame das discussões sobre o Projeto São Francisco, são realizadas, na próxima

seção, considerações sobre as limitações do MCA.

2.2 Limitações do Modelo de Coalizões de Advocacia

O Modelo das Coalizões de Advocacia é utilizado como marco teórico para

compreensão da discussão sobre o Projeto São Francisco. Como já observado, o objeto de

estudo assume todas as condições para as quais o MCA foi formulado para dar tratamento:

a) envolve a discussão sobre a distribuição de um recurso natural vital; b) envolve diversos

atores que tiveram atuação dedicada ao problema; c) assenta-se no embate sobre

informações técnicas.

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Como todo modelo, porém, ele apresenta limitações. A primeira discussão existente

na literatura é de que ele se aplicaria apenas às poliarquias10, ou seja, partiria de um

pressuposto pluralista. Como opina Araújo (2007), no Brasil, apesar de algumas

limitações, há uma diversidade de atores e não há restrições legais à participação. Pode-se

dizer que no país há uma série de legislação e entendimentos sobre a importância da

participação social na definição dos negócios públicos. Diante disso, essa crítica caberia no

caso de aplicação do modelo às sociedades corporativistas europeias.

Outra observação em relação ao modelo é de que este vê as coalizões como

homogêneas. De acordo com Araújo (2007), Sabatier e Jenkins-Smith (2007) conhecem

que o MCA negligencia questões como conflitos distributivos internos às coalizões e a

possibilidade de ocorrência do “carona”. Não se detém sobre o problema da ação coletiva.

Na construção do modelo, não há debates sobre a natureza do comportamento humano e os

seus desdobramentos para a ação coletiva. Isso é desnecessário na medida em que o

pressuposto para a ação política é atuação motivada por crenças (SABATIER; JENKINS-

SMITH, 1999, apud ARAÚJO, 2007).

Já um terceiro ponto de questionamento ao modelo impõe uma reflexão.

Possivelmente fruto de suas raízes pluralistas, o modelo não considera o papel das

instituições. A atuação das coalizões e a formulação das crenças não são analisadas como

sendo influenciadas por aquelas.

Um aporte do neoinstitucionalismo histórico seria compreender as crenças como

frutos de interpretações que os atores realizam, mediadas por organizações coletivas e

instituições que, por sua vez, carregam traços da história (IMMERGUT, 2006). Ellen

Immergut (2006, p. 176) identifica, ainda, que “as instituições políticas e as políticas

governamentais, por exemplo, podem facilitar a organização de interesses ao reconhecer

determinados grupos de interesses e/ou delegar-lhes funções de governo [...]”.

Transpondo para o MCA, as instituições moldam as crenças mediante a história e

definem o contexto de atuação das coalizões. Sobre este último, elas incluem e excluem

atores; fornecem recursos para atuação e são elementos na construção das estratégias.

Por fim, deve-se chamar a atenção para o caráter evolutivo do aprendizado político.

A partir da leitura dos textos que definem o modelo, tem-se a impressão de que a

modificação nas crenças e a mudança na política são sempre positivas. Pondera-se que as

10 O conceito de poliarquia é: “As poliarquias podem ser pensadas então como regimes relativamente (mas incompletamente) democratizados, ou, em outros termos, as poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública” (DAHL, 1997, p. 31).

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mudanças podem também representar um retrocesso, com retorno de coalizões dominantes

e absorção de crenças que apoiavam velhos esquemas políticos.

O Modelo das Coalizões de Defesa permite agregar diversos fatores cuja

combinação origina a mudança política. De fato, sua aplicação é limitada a temas

relacionados a recursos naturais e em que a disputa tenha forte caráter técnico. Mas as

diversas dimensões do modelo permitem estudar a discussão sobre o Projeto de Integração

de maneira alinhada com algumas das principais preocupações e vertentes teóricas da

Ciência Política. Em especial, com a proposta de se incorporarem as ideias nos estudos

políticos.

Na seção seguinte, o conceito de crença utilizado pelo MCA será contextualizado

em face de outros conceitos e usos “das ideias”. O objetivo é demonstrar que, apesar de

não fazer uso sofisticado das ideias, o Modelo de Coalizões de Advocacia propicia uma

definição operacional, mas não destituída da complexidade, do processo político.

2.3 O papel das ideias

As ideias são os insumos para compreensão do processo de deliberação/discussão

pública. Desta forma, o processo de discussão política é uma dinâmica de persuasão ou

deliberação entre grupos em conflito, em que, além do choque entre interesses materiais, é

também motivada por divergência de valores (SCHMIDT, 2008; ZAHARIADIS, 2007).

O Modelo de Coalizões de Advocacia insere-se nessa linha de análise. Ele enfoca o

processo de deliberação/discussão em termos de conflito de crenças entre grupos de atores

que atuam de forma coordenada para influenciar uma política. Para o MCA, o elemento

motriz são as crenças políticas.

Como discutido na seção sobre as limitações do modelo, ele não considera

explicitamente a relação entre ideias e instituições. Entretanto, conforme se pode perceber

na FIG. 1, elementos contextuais constrangem a formação de crenças e a atuação das

coalizões. Dessa forma, as crenças não são livremente formuladas e modificadas. Sabatier

e Jenkins-Smith (1993a) não denominam essas limitações de “institucionais”.

O conceito de ideias para o Modelo de Coalizão de Advocacia é o de

posicionamento técnico ou de diagnóstico e prescrição de ação. Elas situam-se no espectro

de visão de mundo até o de posicionamentos específicos sobre uma política (SCHMIDT,

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2008). As pessoas podem mudar as suas crenças a partir de novos estudos e informações

que rompem diagnósticos e posicionamentos estabelecidos.

Há abordagens variadas sobre o conceito e operacionalização das ideias no estudo

político. A seguir, serão delineadas outras formas como estas têm sido conceituadas e

utilizadas. Objetiva-se situar o Modelo de Coalizão de Advocacias em relação às outras

concepções teóricas.

Autores como Reich (1988) e Yee (1996) defendem a introdução das ideias e

crenças na análise e prática política. Yee (1996) atribui o ressurgimento desse tema às

limitações da teoria dos jogos e neorrealismo em explicar o processo de decisório sem

destituí-lo de sua complexidade cognitiva. Já Reich (1988), em livro com teor mais

normativo, defende que os administradores públicos guiem o processo decisório de forma a

possibilitar a deliberação pública ou embate de concepções diversas, chegando-se ao

resultado final por meio da persuasão e do aprendizado.

Nos estudos da corrente comportamentalista (behaviorista), o efeito das ideias pode

ser definido como pressuposto, analisado pelo processo de socialização e educação do ator

político11, por exemplo.

Em outra vertente, as ideias afetam a política mediante as instituições (YEE, 1996).

Diferentes abordagens inseridas nesta vertente serão tratadas a seguir.

No campo das relações internacionais, o modelo de “comunidades epistêmicas”

desenvolvido por Peter Haas (1992, apud YEE, 1996) incorpora o processo de

institucionalização das ideias. As comunidades epistêmicas são grupos de pessoas

reconhecidas por sua especialização em um tema. Elas atuam mediante a difusão de suas

ideias, influenciando o posicionamento de outros atores ou então assumindo cargos. A

partir do momento em que se consolidam na burocracia, as ideias que defendem são

institucionalizadas (YEE, 1996).

O modelo das comunidades epistêmicas é criticado por não estabelecer em que

medida a diferenciação na qualidade das ideias modifica o seu potencial de influência na

política. As ideias em si não são valorizadas. Considera-se apenas a atuação dos

especialistas como variável causal do resultado político (HAAS, 1999 apud YEE, 1996).

Além disso, há a dificuldade de consenso entre os especialistas sobre o que é uma boa

ideia. Não obstante, a incorporação das ideias dos especialistas depende de reconhecimento

e autorização dos atores políticos (HAAS, 1999 apud YEE, 1996).

11 Será utilizado o termo ator político na tradução de policymaker, com o objetivo de englobar políticos e administradores públicos.

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Mark Blyth (1997) analisa as razões para a incorporação das ideias nos estudos do

neoinstitucionalismo histórico e racional. De acordo com o autor, o uso das ideias serve

para preencher limitações dessas vertentes teóricas. O neoinstitucionalismo histórico

incorpora este elemento para melhor explicar as mudanças nas políticas. Já o

neoinstitucionalismo racional objetiva explicar mecanismos de redução da incerteza e por

que os atores chegam a um acordo.

No marco do neoinstitucionalismo histórico, Kathryn Sikkink (1991) utiliza o

conceito de ideias para analisar a incorporação do paradigma desenvolvimentista no Brasil

e na Argentina. A autora argumenta que ideias desenvolvimentistas defendidas por atores

políticos foram adotadas a partir do momento em que se enraizaram nas instituições

governamentais. Pode-se dizer que as ideias são entes que orbitam no espaço político, são

apropriadas por certos atores e têm repercussão quando enraízam nas instituições estatais

mediante treinamentos, estatutos, etc. A autora observa que, para ter sucesso, a ideia

defendida deve aproximar-se das ideologias preexistentes, bem como deve ser feito o uso

de símbolos que têm apelo para crenças comuns (SIKKINK, 1991).

Sikkink (1991)12 utiliza as ideias mediante o conceito de “paradigma político”. Os

paradigmas políticos são conjuntos de ideias que estabelecem o campo de práticas políticas

aceitáveis - metas, prioridades e conteúdo da política. Eles também definem a percepção

sobre o problema e as ações políticas possíveis ou desejáveis (BLYTH, 1997). Já o autor

referência do conceito de paradigma político, Peter Hall (1993, p. 279), o define como

“arcabouço de ideias e padrões que especificam não apenas os objetivos da política e os

instrumentos que podem ser utilizados para seu alcance, mas também a identificação dos

problemas e seu tratamento”13.

Hall (1993) enfatiza o papel das ideias no processo de aprendizado político. De

acordo com ele, aprendizado é a tentativa deliberada de ajustar os objetivos e as técnicas da

política pública em resposta a uma experiência passada ou ao surgimento de uma nova

informação.

O aprendizado, por sua vez, pode ocorrer em três níveis. No primeiro, a mudança

geralmente ocorre por atuação autônoma de funcionários públicos e outros quadros do

Governo. Apenas instrumentos básicos da política são modificados (cita-se, por exemplo,

12 Sikkink (1991) emprega o conceito de “paradigma político” inspirada nos estudos de Peter Hall que serão posteriormente discutidos (BLYTH, 1997). 13 “Policymakers customarily work within a framework of ideas and standards that specifies not only the goals of policy and the kind of instruments that can be uses to attain them, but also the very nature of the problems they are meant to be addressing” (tradução da autora).

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taxa de juros). No segundo nível, há mudanças nas técnicas (desenvolvimento de um novo

sistema de limites de gastos governamentais). Este já demanda mais negociação e pode

envolver atores de outros segmentos. A mudança de terceira ordem, por sua vez, representa

variação no âmbito dos instrumentos de políticas públicas, os instrumentos possíveis e a

hierarquização dos objetivos da política. Ela significa a superação de um paradigma para

adoção de um novo. Empiricamente, Hall (1993) avalia a mudança de paradigma do

keynesianismo para o monetarismo na Inglaterra entre os anos de 1970 e 1989.

Hall (1993) conclui que a mudança de paradigma depende mais de uma decisão

política do que um processo de negociação e argumentação assentada na técnica, assim

como modificações de paradigma dependem do deslocamento dos focos de autoridade em

uma política. Mas o questionamento e o debate social também ensejam as variações nesse

terceiro nível.

Comparando com o MCA, a classificação das crenças políticas em crenças do

núcleo duro, políticas e instrumentais reflete a preocupação em se estabelecerem graus de

mudança política.

Já no neoinstitucionalismo racional, as ideias são elaborações dos indivíduos e

tornam-se explícitas em suas preferências. Elas podem ser compreendidas como “mapas

rodoviários” ou instrumentos que auxiliam a formulação e execução das estratégias dos

indivíduos (GOLDSTEIN, 1998 apud BLYTH, 1997).

Hay (2006) é um dos autores que criticam os neoinstitucionalismos e propõem uma

nova abordagem. Ele considera a estabilidade institucional como uma limitação

metodológica (alcance de equilíbrio no modelo racional ou estabelecimento de

regras/normas no sociológico e histórico). De acordo com o autor, essas teorias não

conseguem abarcar variações e a mudança apenas pode ser explicada em termos de

dependência da trajetória. Com o objetivo de avançar na compreensão das mudanças

institucionais, o autor chama a atenção para a importância das ideias como filtros

cognitivos que atuam como elementos anteriores às instituições; as ideias são as fundações

das instituições.

Nessa vertente denominada de construtivismo, até mesmo os interesses materiais

são formulados como percepções dos indivíduos. A condição material não determina o

comportamento, mas sim a percepção sobre a circunstância (HAY, 2006). Sikkink (1991)

também discute esse ponto, apoiando a visão de que interesses e ideias são entremeados.

As ideias não são apenas instrumentos para legitimar uma decisão previamente tomada

com base no interesse.

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Yee (1996) também acentua a necessidade de se estudar a capacidade das ideias em

influenciarem o processo decisório diretamente. E explora como ideias conformam eventos

mentais que geram resultados políticos. Ele destaca que a análise em termos de linguagem

e discurso permitiria compreender esse processo. Cita como método a análise do

vocabulário do ator político e a limitação que este impõe nas escolhas políticas. Outro

método é o de construção das redes de significação ou interpretações mediante narrativas,

por exemplo.

A análise interpretativa é criticada por não consistir em avaliação de relação de

causalidade, mas na explicação do fenômeno. As significações sociais intersubjetivas

constituem o contexto que torna a ação possível e não uma relação de causalidade (YEE,

1996).

Outra linha da corrente interpretativista é a de análise interpretativo-expressiva. Ela

pressupõe que as ideias existem apenas após sua expressão em algum tipo de linguagem. A

linguagem, por sua vez, conforma a realidade e é modificada na prática (TAYLOR, 1987

apud YEE, 1996).

A corrente pós-moderna compartilha com a análise interpretativa a utilização da

linguística como meio para compreensão dos fenômenos sociais. Mas, para caracterizar

esta inter-relação de prática e ideias, conceitua-a como uma ordem do discurso

(FOUCAULT, 2006; YEE, 1996).

Esse tipo de análise não se preocupa com o estabelecimento de relações de

causalidade, e sim com o entendimento de como um modo de representação do mundo

obteve consequências na política e como seria caso a representação fosse diversa

(CAMPBELL, 1992 apud YEE, 1996).

Vivien Schmidt (2008) propõe o estudo das ideias e do discurso como abordagem

central nos estudos políticos. A autora estabelece o neoinstitucionalismo discursivo.

Justifica que a nova abordagem proposta supera problemas como a dicotomia agência e

estrutura, por exemplo. A superação da limitação dos outros neoinstitucionalismos14 é

obtida do enfoque das ideias e do conceito de discurso, sendo este último compreendido

como conteúdo substantivo das ideias e processo de interativo em que as ideias são

combinadas.

14 Essa abordagem aproxima-se do denominado neoinstitucionalismo histórico, conforme o artigo “As três versões do neoinstitucionalismo” (HALL; TAYLOR, 1996).

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O comportamento dos atores políticos é moldado por uma configuração

ideacional15, em que as instituições servem como limitadoras. Por outro lado, a ação é

também movida pela “habilidade discursiva futura”16 - a capacidade de idealizar e

perseguir um futuro desejado. Esta última característica permite que a relação instituições e

comportamento não seja determinista. Em especial, permite a capacidade do indivíduo de

visualizar e agir politicamente fora do que seria esperado.

Além dessa dimensão, a proposta de Schmidt (2008) permite compreender o

processo político como uma negociação ou deliberação entre os atores. Sobre o trabalho de

Sabatier e Jenkins-Smith (1993a) ou o Modelo de Coalizões de Advocacia, a autora

identifica que as crenças políticas são ideias de segundo nível. Elas são formadas pelo

diagnóstico da situação e a prescrição da ação. Schmidt (2008) sugere que as ideias do

MCA são similares aos paradigmas definidos por Hall (1993)17.

O entendimento do papel das ideias na política possui, então, diferentes pontos de

partida sobre o próprio conceito de ideias, como elas atuam na realidade social e as formas

de identificação de sua operação. A partir da literatura revista, chegou-se à síntese

seguinte:

• Normativo – ideias como elemento do espírito público, que explica a ação humana

como motivada não apenas por interesses materiais, mas também por visão do que

é o bem público (REICH, 1988).

• Instrumental – formulação deliberada de entendimentos e conceitos para legitimar

ou guiar um processo político. As ideias desempenham papel distinto em cada parte

do ciclo de políticas públicas. Nessa concepção, ideias e interesses são distintos

(GOLDSTEIN, 1998 apud YEE, 1996).

• Contextual – ideias são paradigmas e visões de mundo que fundamentam as

instituições que são construídas, mas também são limitadas pelas instituições

(HAAS, 1993 apud YEE, 1996; HAY, 2006; SCHMIDT, 2008; SIKKINK, 1991).

• “Significação” – ideias são as percepções (crenças, valores, significados) que as

pessoas e grupos constroem do mundo ou filtros cognitivos (TAYLOR, 1987 apud

YEE, 1996).

15 O termo utilizado é “background ideational abilities”. Entende-se como as ideias que o indivíduo carrega, fruto de suas experiências, contexto social. 16 O termo utilizado é “foreground discursive ability”. Entende-se como a capacidade de abarcar o inesperado, assimilando novas ideias. 17 As ideias de primeiro nível são soluções políticas específicas. As de segundo nível são as ideias programáticas. As de terceiro nível, por sua vez, são as ideias filosóficas.

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• Crenças políticas – ideias são posicionamentos, geralmente tecnicamente

fundamentados, que definem objetivos e prioridades políticas. São

hierarquicamente organizadas de acordo com o seu nível de abstração (HALL,

1993; SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993b).

Avalia-se então que o Modelo de Coalizão de Advocacia abarca de forma

satisfatória a discussão sobre as ideias que têm obtido força na Ciência Política. A divisão

das crenças em três níveis (instrumentais, políticas e do núcleo duro) atende à preocupação

dos diversos autores sobre variações no processo político de acordo com a essencialidade

do tema tratado. Reforça-se, ainda, o entendimento de que as crenças são ideias formadas

tanto por história e padrões passados, como também pela experiência e imaginação das

pessoas.

O Modelo de Coalizão de Advocacia insere-se em uma corrente de conceituação e

uso das ideias cuja preocupação final é explicar o processo de aprendizado político

(HALL, 1993; SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993a). Para tanto, objetiva alinhar

influência institucional com a autonomia do indivíduo. Elementos contextuais moldam a

formação das crenças e as instituições podem reforçar ideias (HALL, 1993). Mas, ao

mesmo tempo as pessoas/grupos transformam seu sistema de crenças, proporcionando

mudanças políticas a partir da discussão e evolução da técnica.

A divisão das crenças em três níveis (instrumentais, políticas e do núcleo duro)

abarca a existência de posicionamentos que se aproximam de mais abstratos e essenciais

até aqueles mais operacionais. Desta forma, pode-se compreender a mudança política em

suas múltiplas escalas, sendo possível a identificação de uma reorientação mais ampla de

objetivos até modificações em especificações técnicas ou instrumentos políticos

específicos.

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49

3 METODOLOGIA

O Modelo de Coalizões de Advocacia estabelece as dimensões contextuais e a

dinâmica que levam à mudança política. No livro Policy Change and Learning

(SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993c), são apresentados estudos de casos que

demonstram a aplicação do modelo e evidenciadas as metodologias que têm sido

empregadas para a análise da mudança política A metodologia proposta para este trabalho

foi elaborada considerando-se essas experiências.

A metodologia utilizada é qualitativa e os procedimentos metodológicos foram a

análise documental, entrevistas e revisão de literatura.

De acordo com a FIG. 1, a primeira parte do trabalho destinou-se a contextualizar o

subsistema da transposição. O resgate dos “parâmetros relativamente estáveis” realizado

no capítulo 4 procurou reconstruir como foram historicamente moldados elementos sociais,

culturais e aspectos da distribuição do recurso natural água.

Argumenta-se que valores, práticas e percepções foram arraigados em mais de 100

anos de atuação do Governo Federal para resolver o “problema da seca” no semiárido.

Esses aspectos, por sua vez, influenciaram as crenças políticas (núcleo político e aspectos

instrumentais) que foram defendidas pelos atores ao longo de toda a discussão.

A contextualização realizada no capítulo 4 foi elaborada a partir da revisão de

literatura sobre o tema e estudos técnicos do Governo Federal. Foram consultados livros de

autores que se tornaram referência e que influenciaram o pensamento social sobre a região;

teses e dissertações acadêmicas; livros sobre o projeto; e publicações que formalizavam o

posicionamento do Governo Federal sobre o assunto.

Também foi realizada entrevista com o consultor do Governo que, além de tese de

doutorado sobre o tema, está desde a década de 1980 envolvido com a discussão sobre o

desenvolvimento do semiárido. A análise realizada no capítulo 4 proporcionou a

identificação das crenças que nortearam a discussão sobre o projeto, as quais são

apresentadas no ANEXO A.

Deve-se observar que no processo de definição das crenças, é costume entre os

autores que utilizam o MCA realizar a verificação das mesmas. Araújo (2009), por

exemplo, submeteu a lista de crenças identificadas em uma primeira leitura do material a

uma banca de juízes. Sabatier e Brasher (1993) e Jenkins-Smith e St. Clair (1993), por sua

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vez, elaboraram extensa lista de itens que foi sendo readequada com o processo de

classificação. Os autores ainda realizaram comparação entre codificações para avaliar se a

classificação estava sendo coerente (SABATIER; BRASHER, 1993).

Neste trabalho, a existência de diversos livros e estudos acadêmicos sobre a

transposição e o resgate histórico realizado no capítulo 4 propiciou coerência nas crenças

identificadas e nos resultados obtidos com a classificação. Observa-se, entretanto, que o

processo de “cima para baixo” de identificação das crenças pode ter ocultado algumas

nuanças. A partir de um conjunto já definido de crenças para classificação dos testemunhos

limitou-se a capacidade de apreender diferenciações em algumas crenças. Por exemplo, na

crença sobre “Uso da água e preservação ambiental” (crença 1.2 ANEXO A) constataram-

se variações entre aqueles que defendiam a revitalização. Percebeu-se que o conceito sobre

revitalização era diverso e isso definiu a existência de coalizões distintas.

Deve-se observar, ainda, que a classificação possui julgamento subjetivo sobre

quais falas são representativas das crenças. Esse viés é natural em estudos de cunho

qualitativo e pode ser minorado a partir da transparência sobre os procedimentos utilizados

para a classificação (o que será apresentado adiante).

Na identificação das coalizões, os autores-referência do MCA sugerem a adoção de

métodos quantitativos. Todavia, além da variação na sua aplicação, os métodos qualitativos

não são descartados.

Em estudos de caso em que são aplicadas técnicas de estatística, as coalizões são

identificadas por meio da classificação das falas em uma escala do tipo Likert, sendo

atribuídos números que expressam ou mais ou menos valorização da crença. Uma vez

quantificadas, as falas dos atores são analisadas em clusters ou em agrupamentos de

posicionamentos similares (JENKINS-SMITH; ST. CLAIR, 1993; SABATIER;

BRASHER, 1993).

Já um estudo de caso que utiliza metodologia qualitativa, apresentado no livro

Policy Change and Learning, faz uso de entrevistas e do resgate histórico para identificar

as coalizões atuantes (MAWHINNEY, 199318).

Neste trabalho, a identificação das coalizões foi realizada com base na literatura

existente sobre o tema, entrevistas e uso do software NVivo8 para análise documental.

Sobre os documentos analisados, foi encaminhada correspondência eletrônica às

Assembleias Estaduais de Minas Gerais, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco

18 Cita-se apenas esse trabalho, visto que os outros estudos de caso “qualitativos” apresentados no livro não apresentam a metodologia utilizada para identificação da coalizão.

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e Sergipe, solicitando atas de audiências públicas e discursos que trataram sobre a

transposição entre 1994 e 2007. No período de 1994-1999, apenas a Assembleia do Ceará

conseguiu enviar material impresso. Já as outras Assembleias informaram não dispor de

meios para consultar documentos anteriores aos anos de 1999-2000. Com base nos

documentos obtidos com a Assembleia do Ceará, foi possível mapear a atuação de pessoas

sobre o projeto em um período de 13 anos.

QUADRO 1

Materiais obtidos junto às Assembleias Estaduais e Câmara dos Deputados

Fonte Ano Tipo de Material

Tratamento

das

Informações

Assembleia do Ceará 1994-1998Impresso – discursos de deputados e

audiências sobre o projeto

Leitura

analítica

Assembleia do Ceará 1999-2007

Arquivo digital - discursos de

deputados e audiências sobre o

projeto

Classificação

NVivo8

Assembleia da Bahia 1999-2007Arquivo digital - discursos de

deputados

Classificação

NVivo8

Assembleia do

Sergipe 1999-2007

Arquivo digital - discursos de

deputados

Classificação

NVivo8

Assembleia de

Minas Gerais 2000-2007

Arquivo digital - seminários em que

o projeto foi tema

Classificação

NVivo8

Câmara dos

Deputados

2000 e

2007

Arquivo digital – atas do Grupo de

Trabalho de 2000 e das audiências

públicas de 2007

Classificação

NVivo8

Fonte: Elaborado pela autora.

Nas Assembleias Legislativas Estaduais, o debate sobre a transposição foi

efervescente. Além dos discursos de deputados, ocorreram diversas audiências públicas e

seminários em que o tema foi a transposição. A importância do material obtido junto às

Assembleias reflete a preocupação em se expandirem os atores políticos das coalizões,

considerando outros níveis de governo que não apenas o federal, conforme o previsto no

MCA.

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A análise da discussão a respeito da obra sob a perspectiva de interação entre

coalizões de advocacia foi então efetivada nos moldes propostos por Sabatier e Jenkins-

Smith (1993a). Foram analisados documentos de audiências públicas que trataram do

assunto, classificando-se falas nas crenças definidas.

A classificação dos arquivos digitais obtidos junto às Assembleias Legislativas e

Câmara dos Deputados foi realizada com o software de análise qualitativa NVivo819. O uso

do software para análise das crenças foi inspirado na dissertação de mestrado de Suely

Araújo (2009). O programa serviu para estruturar e sintetizar o grande volume de

informações coletado.

A preparação dos dados foi realizada mediante inserção de todos os documentos

obtidos no banco de dados do NVivo8, como sources ou fontes. Ainda nas fontes, realizou-

se trabalho de distribuição dos discursos e testemunhos por ano e ator. A organização do

sistema foi pensada de maneira a tornar mais simplificada a identificação das coalizões.

Desta maneira, cada ator foi considerado um caso ou case. As fontes foram então

vinculadas aos casos ou atores.

Uma vez organizado o sistema em torno dos atores, foram inseridas as categorias

das crenças. As crenças políticas e instrumentais foram organizadas como tree nodes ou

dispostas em uma hierarquia na qual subcomponentes eram agrupados na crença principal

(ANEXO A).

A identificação de coordenação entre as pessoas, os recursos e as estratégias

utilizadas foi feita a partir da classificação de falas em free nodes. Foram criados “nós”

específicos para cada tipo de recurso, estratégia e referências a grupos (sociedade civil,

mídia, judiciário, político estadual, político federal, técnico governo, religioso e academia).

Os free nodes são categorias que não possuem relação de hierarquia, servem para organizar

informações que não estão vinculadas a outras.

Depois de organizadas as categorias ou “nós” (crenças do núcleo político, crenças

instrumentais, recursos, estratégias e referências), a classificação foi iniciada. O processo

consistiu em selecionar manualmente trechos das fontes (sources) que eram representativos

dos nós ou categorias de análise. Em quase um mês de trabalho foi possível concluir a

codificação de falas representativas das crenças identificadas. Foram analisados

testemunhos e discursos parlamentares de 216 atores.

19 O software foi adquirido na página http://www.qsrinternational.com/products_nvivo.aspx.

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Ao final obteve-se, em cada “caixinha” das crenças, recurso ou estratégia, falas

identificadas com os atores que as emitiram. A partir disto foram identificados os

argumentos utilizados pelos atores na defesa das crenças. No capítulo 6 são sistematizados

ideias e interesses que estavam em conflito, o que foi possibilitado pela leitura das falas

constantes em cada crença (tree nodes).

A qualidade das crenças identificadas com o resgate histórico foi corroborada pela

sua aplicabilidade e recorrência na fala dos atores. O material obtido demonstrou

sistemática discussão sobre a obra nos anos de 1994 a 2007. Com isto, foi possível

identificar agrupamentos de atores que compartilhavam as crenças.

A partir do material coletado observou-se continuidade na participação de alguns

atores e, para estes, fez-se um esforço de codificação nas crenças do núcleo político que

foram mais relevantes no embates. A concentração da análise em atores líderes e crenças

mais importantes é uma estratégia utilizada por diversos autores e recomendada por

Sabatier e Jenkins-Smith (1993a).

Diante disso, a tendência nos estudos é à concentração em alguns atores principais.

Para estes atores, são comparados os resultados obtidos da classificação dos testemunhos

com um sistema de crenças que o pesquisador define como o padrão para coalizões

predefinidas. Assim, avalia-se a participação dos atores em coalizões conforme a

aproximação das crenças que defendem com aquelas previamente definidas para as

coalizões (ARAÚJO, 2009).

No capítulo 7 são apresentadas as crenças do núcleo político consideradas as

principais clivagens existentes no debate. Utilizando essas crenças foram estabelecidos

conjuntos de posicionamentos que seriam adotados por coalizões específicas. As coalizões

foram inspiradas nas evidências coletadas na revisão de literatura, entrevistas e análise

documental e definidas a partir da combinação de posicionamentos que seriam adotados

em relação a três crenças políticas principais no embate (crenças 1.1, 1.2 e 1.3 ANEXO A).

Inicialmente, fez-se uma pesquisa (query) dos resultados obtidos com a

classificação. Foram listados todos os atores e todos os posicionamentos adotados em

relação às crenças do núcleo político e instrumentais. Com base nessa extensa listagem

foram filtrados (no MSExcel) os atores que compartilhavam o mesmo conjunto de crenças

do núcleo político, identificando-se os cases ou atores que se posicionaram de acordo com

o conjunto de crenças estabelecido no capítulo 7 como específico de cada coalizão.

Deve-se observar, todavia, que a mera correspondência de crenças expressas pelos

atores não implica necessariamente a existência de uma coalizão. Ela existe quando há

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coordenação entre os atores. Com o intuito de verificar as formas de coordenação

existentes, foram analisadas as classificações obtidas nos free node. Mais uma vez, a

organização possibilitada pelo uso do NVivo8 permitiu extrair de um volume considerável

de documentos as informações necessárias para inferir sobre atuação coordenada entre os

membros da coalizão.

Adicionalmente, foram analisadas, no NVivo8, as transcrições do Programa Roda

Viva da TV Cultura e Manifesto da Assembleia de Alagoas do ano de 2005. Também

foram realizadas duas entrevistas. A primeira, em 1o/10/2010, com o ex-coordenador

técnico do projeto entre os anos de 1997 a 2005. A segunda, em 03/12/2010, com o então

Deputado Federal da Paraíba que desde a década de 1980 tem defendido o projeto. Essas

entrevistas objetivaram compreender melhor os principais atores e os conflitos existentes.

Além disso, foram coletados mais de 20 manifestos e cartas abertas de setores da

sociedade civil organizada entre os anos de 1995 e 2007. Não foram analisadas as atas do

Comitê da Bacia do Rio São Francisco, visto que as anotações eram sucintas e não

permitiam a classificação (CBHSF, 2010). Em relação às atas das audiências públicas para

o licenciamento do projeto, o material foi solicitado ao Ministério da Integração, mas esses

eventos ou foram cancelados ou não propiciaram debate entre as partes.

Por esses procedimentos apresentados, reconhece-se que foi possível responder às

duas primeiras perguntas do estudo:

• Quais são as principais divergências nas crenças políticas que motivaram o

conflito?

O histórico de conformação das crenças é realizado no capítulo 4. As crenças são

sintetizadas no ANEXO A. No capítulo 6, as crenças políticas são analisadas,

avaliando-se quais eram os conflitos.

• Foram constituídas coalizões de advocacia durante a discussão do projeto?

Quais foram suas estratégias e recursos?

Resposta desenvolvida no capítulo 7. As coalizões foram obtidas nas classificações

realizadas no NVivo8 e entrevistas. As mudanças políticas decorrentes foram

alcançadas por meio das entrevistas.

A descrição do contexto e a dinâmica de funcionamento do subsistema forneceram

os elementos para responder ao objetivo principal do estudo. Como visto, o Modelo de

Coalizões de Advocacia objetiva explicar a mudança na política que pode ocorrer devido a:

a) aprendizado entre e dentro das coalizões; b) choque externo; c) negociação.

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Verifica-se, entretanto, que algumas conceituações devem ser realizadas a fim de se

limitar o escopo do que se está tentando responder.

Entendem-se por ações do Governo Federal para o desenvolvimento do semiárido

as relacionadas ao diagnóstico e soluções para a seca. No capítulo 4, será visto que ao

longo dos anos o Governo Federal empreendeu diversas ações para lidar com esse

problema. As ações, por sua vez, concretizavam posicionamentos ou visões sobre o

problema e as soluções.

Grosso modo, até a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

(SUDENE) na década de 195020, a percepção e modo de operação predominantes eram

armazenamento de água ou solução hidráulica. Ao longo dos anos, mas em especial na

década de 1980, a irrigação ganhou força. Era vista como meio para geração de emprego e

desenvolvimento sustentável da região. Originou-se do entendimento de que o problema

não era a estiagem, mas sim condições sociais e econômicas que fragilizavam as

populações rurais.

O projeto renasceu na década de 1980, quando a aposta na irrigação havia

dominado o pensamento e a ação de governo21 (CARVALHO, 1979; PROJETO ÁRIDAS,

1995). Ele insere-se no objetivo do Governo Federal de irrigar 1 milhão de hectares no

semiárido. Trata-se do Programa de Irrigação do Nordeste (PROINE).

O histórico e as características do projeto são aprofundados nos capítulos 4 e 5.

Para o momento, é importante apenas situar que a discussão sobre o projeto pode ter

ensejado:

• Mudança política de 1º nível – modificações nas especificações técnicas.

• Mudança política de 2º nível – modificações em conceitos do projeto e em ações

relacionadas em consonância com as crenças políticas.

• Mudança política de 3º nível – modificações no pensamento do Governo Federal

sobre o problema da seca e suas soluções e inclusão de ações relacionadas ao

projeto que lidam diretamente com questões estruturais (reforma agrária, relações

de emprego, por exemplo).

Foi possível, desta forma, responder à última pergunta formulada para o estudo:

20 Deve-se observar que as Leis Senador Eloy de Sousa (1911) e Epitácio Pessoa (1919) propunham a irrigação para a região. Mas, apenas em 1967/1968 a SUDENE, por intermédio do Grupo Executivo de Irrigação e Desenvolvimento Agrícola, fez o mais amplo programa de irrigação já feito no país (CARVALHO, 1979). 21 Realiza-se esta conclusão a partir do livro de Otamar de Carvalho sobre o assunto (1988) e relatórios do Projeto Áridas, que definiram a orientação geral de modernização da agricultura.

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• Durante a discussão sobre o projeto, houve mudanças nas crenças do núcleo

político e nos aspectos instrumentais que orientavam a ação do Governo

Federal? Caso afirmativo, o que ocasionou e como se caracterizou a mudança

política?

A resposta a essa pergunta permitiu compreender se houve mudança na política em

1º e 2º níveis. As mudanças em políticas frutos da discussão sobre o projeto foram obtidas

mediante entrevistas. Foram realizadas duas entrevistas no dia 17/01/2011. A primeira foi

com a técnica de planejamento e orçamento do Ministério do Planejamento, que

acompanha a alocação de orçamento em ações do Ministério da Integração Nacional. A

segunda, por sua vez, foi realizada com assessor da Casa Civil, que acompanhou as

negociações sobre a obra a partir de 2005.

As informações coletadas permitiram analisar as mudanças políticas oriundas do

debate sobre o projeto. Não obstante, no livro Policy Change and Learning (SABATIER;

JENKINS-SMITH, 1993a) são apresentadas algumas hipóteses do Modelo de Coalizões de

Advocacia. Neste trabalho, não se pretendeu testar as hipóteses do modelo. Mas, no

capítulo 7, discutem-se alguns aspectos de hipóteses relacionadas ao aprendizado político

que a análise sobre o debate da transposição trouxe à tona.

A obra ainda está em andamento e as reais transformações que acarretará somente

poderão ser avaliadas após o início de sua operação e consolidação das mudanças

institucionais decorrentes. Ainda não se sabe como será a operação do projeto e quais

públicos se apropriarão dos benefícios que podem ser gerados por esta.

Mesmo diante dessa limitação, foram analisadas possíveis transformações no

pensamento e na ação do Governo Federal sobre o semiárido, que o embate sobre a

transposição pode ter gerado. Para tanto, utilizaram-se os documentos e estudos do

Governo Federal (Ministério da Integração Nacional) que formalizam a percepção sobre o

problema da seca e sua solução.

A reflexão inicial acerca dos impactos da discussão sobre o projeto para uma

mudança de 3º nível foi realizada a partir da comparação do posicionamento do Governo

Federal nos estudos frutos do Projeto Áridas (1995) com o Plano Estratégico de

Desenvolvimento do Semiárido (BRASIL, 2005a). Acredita-se que reformulações nos

conceitos e ações propostos entre esses dois marcos da estratégia de governo para a região

indicam um processo de mudança no pensamento e na ação do Governo Federal para o

desenvolvimento do semiárido.

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Os procedimentos metodológicos adotados possuem algumas limitações. Uma

restrição já observada é a subjetividade inerente ao processo de classificação dos

testemunhos. Uma segunda fragilidade é que o material coletado propiciou a identificação

das crenças dos atores, mas em poucos foi possível encontrar falas representativas de todas

as crenças. Além disso, não foi possível realizar análise intertemporal dos posicionamentos

dos atores, visto que para número reduzido de atores obteve-se posicionamento em mais de

três anos. Assim, a avaliação da existência do aprendizado político foi limitada.

Deve-se observar também que a análise da incorporação de crenças em conflito na

ação e pensamento do Governo Federal mediante identificação de ações que correspondam

às crenças em embate permite identificar os legados da discussão. Entretanto, admite-se

que não foram clarificadas as relações de poder, mecanismos decisórios, pontos de veto

que determinaram o resultado político. Considerando a FIG. 1, não se abriu a caixa

“Decisões de autoridades governamentais”.

Por fim, a proximidade da pesquisadora com o objeto de estudo pode ter enviesado

a análise, com tendência a assumir postura mais favorável ao Governo. Todavia, apesar de

alguns aspectos negativos, o conhecimento inicial sobre a obra, atores e região facilitou a

análise do volume de informações.

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4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA DISCUSSÃO

4.1 Introdução

A ideia de construção de um canal que levaria água do Rio São Francisco para

regiões afetadas pela seca no Ceará remonta ao século XIX. Ao longo dos anos, a crítica ou

defesa da solução de engenharia permeia o pensamento social sobre a problemática da seca

no semiárido e os caminhos para o desenvolvimento socioeconômico.

O objetivo deste capítulo é resgatar os “parâmetros relativamente estáveis do

sistema”, aspectos do problema e do contexto que são compartilhados por todos e que

limitam as crenças, as estratégias e os recursos dos atores.

Parte-se do pressuposto de que os padrões de intervenção governamental e de

percepções sobre o que é a seca, sua relação causal com o atraso socioeconômico do

semiárido e quais seriam as formas de superação do quadro social de pobreza são

elementos historicamente formados.

A experiência e as discussões passadas definiram os termos do debate sobre o

Projeto São Francisco. Elas conformaram limites e possibilidades para o pensamento social

e as opções existentes para a ação do Governo no tema do desenvolvimento do semiárido.

Em termos concretos, a experiência histórica definiu parâmetros ou pontos de partidas para

a formulação das crenças pelos atores que atuaram no processo.

Considerando as dimensões inseridas nos “parâmetros relativamente estáveis”

(FIG. 1), foi resgatada parte da história e pensamento social sobre as regiões do sertão

norte e da ribeira do São Francisco. Inicialmente, foi realizada uma caracterização geral

das duas regiões. Posteriormente, é discutido como têm sido historicamente abordados os

problemas que as afetam, soluções e ações do Governo Federal.

Uma seção é dedicada à discussão das ideias sínteses ou paradigmas que moveram

a ação do Governo Federal para o desenvolvimento do semiárido. Para tanto, são

apresentados outros trabalhos acadêmicos que identificam quais são essas ideias, como elas

se caracterizam e de que maneira influenciaram as políticas públicas na região.

Explora-se, ainda, a estrutura legal básica que definiu recursos e estratégias

disponíveis para o subsistema da transposição, em especial a partir do ano de 2002. A

Política Nacional de Recursos Hídricos e, como consequência, a criação do Comitê da

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Bacia do Rio São Francisco (CBHSF) redefiniram os termos da discussão. Neste capítulo,

serão discutidos o processo de criação do CBHSF, suas características e como este poderia

influenciar o subsistema de discussão sobre o projeto.

Não se deve deixar de anotar que outro aspecto contextual que interfere na atuação

das coalizões de advocacia são os eventos externos. Eles se caracterizam por mudanças nas

condições socioeconômicas, na opinião pública e decisões políticas que impactam a

formulação do problema. Esses aspectos serão tratados no capítulo 7.

Espera-se demonstrar que a discussão sobre o Projeto da Transposição sintetizou e

catalisou questões e conflitos históricos motivados não apenas por interesses materiais e de

curto prazo, mas também por visões de desenvolvimento e de caminhos para superação de

desafios.

Nesse fenômeno social, a água é o principal recurso em disputa. Historicamente, ela

foi instrumento de poder, valorizando as terras dos coronéis no semiárido e criando

relações de compadrio e dependência de um poder público capturado. Em relação ao

futuro, acirra-se, mundialmente, a importância da água como elemento estratégico.

Entretanto, a realidade da Bacia do Rio São Francisco chama a atenção para o fato de que a

sua mera existência não garante o desenvolvimento.

4.1.1 Caracterização das regiões

Antes de se passar para a identificação de elementos sistemáticos na história do

semiárido nordestino e da Bacia do Rio São Francisco, é necessário identificar as regiões

tratadas neste estudo.

A Bacia do Rio São Francisco estende-se por:

639.219 km2 de área de drenagem (7,5% do país) e vazão média de 2.850 m3/s (2% do total do país). O Rio São Francisco tem 2.700 km de extensão e nasce na Serra da Canastra em Minas Gerais, escoando no sentido sul-norte pela Bahia e Pernambuco, quando altera seu curso para este, chegando ao Oceano Atlântico através da divisa entre Alagoas e Sergipe. A bacia possui sete unidades da federação - Bahia (48,2%), Minas Gerais (36,8%), Pernambuco (10,9%), Alagoas (2,2%), Sergipe (1,2%), Goiás (0,5%) e Distrito Federal (0,2%) - e 504 municípios (aproximadamente 9% do total de municípios do país) (CBHSF, 2010).

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A Bacia do São Francisco possui 58% de seu território na delimitação do Polígono

das Secas22. Essa área situa-se em grande parte no nordeste e estende-se até o norte de

Minas Gerais (CBHSF, 2010).

A sobreposição geográfica entre as duas regiões ocorre nos estados da Bahia,

Pernambuco, Alagoas e Sergipe. No resgate histórico de elementos que influenciaram a

discussão sobre o projeto, decidiu-se tratar as duas regiões separadamente. Para tanto,

apoiou-se na regionalização efetivada no Plano de Desenvolvimento do Semiárido

(BRASIL, 2005a).

Conforme anota Theodomiro de Araújo (1991 apud MARQUES, 2006, p. 13),

houve isolamento da região próxima ao Rio São Francisco:

Se esse isolamento, no plano político, foi prejudicial, no plano comportamental foi responsável pelo surgimento de uma sociedade com costumes, hábitos, crendices e mitos muito particulares, gerando um sentimento regionalista muito forte, que perdura até hoje [...] Seu folclore, sua história, sua literatura e sua linguagem são comuns a toda a bacia, porém muito diferente das demais regiões dos estados que o rio atravessa.

No Plano Estratégico de Desenvolvimento do Semiárido (PDSA) (BRASIL,

2005a), é proposta uma nova regionalização do semiárido. A concentração da população

do semiárido em núcleos urbanos, em um processo de urbanização incompleta23, permitiu a

identificação de núcleos urbanos polarizadores e a partir destes a divisão da área do

Polígono em três grandes áreas geoestratégicas (sertão sul, ribeira do São Francisco e

sertão norte)24.

A região do sertão norte é a que concentra a mais alta incidência de seca, é a mais

populosa e a que tem mais concentração de população urbana (58,98%). A região do

ribeira do São Francisco, por sua vez, possui menos da metade da densidade populacional

do sertão norte e não sofre de déficit hídrico, visto que se situa ao longo do rio (BRASIL,

2005a).

Conclui-se que, além de ser necessária para perceber os conflitos existentes entre

aqueles que iriam “doar” a água e os que iriam receber, a divisão tem fundamentação

cultural e de planejamento regional.

22 O Polígono das Secas foi redefinido em 2005, após trabalho de grupo interministerial que utilizou os critérios de baixa pluviosidade, índice de aridez e déficit hídrico. 23 Urbanização incompleta refere-se à concentração de populações em núcleos urbanos sem infraestrutura adequada, com limitação na prestação de serviços essenciais e emprego. 24 No APÊNDICE C é apresentado o mapa elaborado no Plano de Desenvolvimento do Semiárido e algumas informações complementares.

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4.1.2 Sertão norte

Nesta seção será explorada a formulação histórica sobre a seca no semiárido

nordestino. O objetivo é contextualizar o Projeto São Francisco em uma disputa de visões

sobre o que é a seca e as formas de atuação. Voltar ao período do Brasil Colônia é

mandatório, já que as raízes dos problemas e ideias foram fortemente desenvolvidas

naquele tempo.

No Brasil Colônia, as terras foram distribuídas pelo Reino de Portugal a capitães

donatários e sesmeiros. Esses detinham grandes porções de terras e cediam à ocupação e ao

trabalho nas mesmas. A independência em 1822 manteve a estrutura de distribuição de

terras definida no sistema de capitanias hereditárias e sesmarias, adotado pela Monarquia

Portuguesa para colonização do país.

A concentração de terras e as características do sistema produtivo iniciados com a

colonização portuguesa mantêm até hoje seus traços na sociedade nordestina e em especial

no semiárido. O zoneamento da região realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa

Agropecuária (EMBRAPA), em 1993, levantou que 90% das propriedades da região têm

menos de 100 hectares, ocupando apenas menos de 27% da área (SILVA, 2006), ou seja,

10% de propriedades ocupam cerca de 70% da região25.

Como parte do desenrolar da história nordestina, o acesso à água e as políticas

públicas relacionadas a esse tema foram estratégias fundamentais no jogo político e social

da região. Entretanto, como observa Empinotti (2007), o uso da escassez hídrica como

estratégia de poder inicia-se apenas após a grande seca de 1877. Políticos locais passaram a

utilizar o discurso sobre o combate à seca para obter orçamento federal e com isto reforçar

o seu poder local.

O acesso à terra é o elemento fundamental dos desafios enfrentados pelo Nordeste

(FURTADO, 1989; TAVARES et al., 1998). A concentração das terras nas mãos de

algumas famílias e o quadro social de pauperismo generalizado conformaram um modo de

dominação e obediência denominado de coronelismo.

Victor Leal (1975) refere que esse fenômeno é típico da República Velha (1889-

1930). O prefeito aproveitava de suas relações com o poder federal e a dependência da

população para exercício do poder local. Este fenômeno era comum de áreas rurais e

25 IBGE publicou em 2006 um novo censo Agropecuário. Entretanto, na publicação completa disponível em: www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/brasil_2006/defaulttab_brasil.shtm, não foi possível obter atualização destes dados.

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isoladas. O isolamento e a falta de educação e de recursos da população permitiam a

manutenção do coronel no poder por meio do voto de cabresto.

Leal (1975) identificou certa autonomia e insubordinação dos proprietários rurais

em relação à Coroa. Já Faoro (2001) considera que, assim como não existiu em Portugal,

no Brasil tampouco houve um grau considerável de autonomia dos donos de terras. A

monarquia portuguesa sempre foi ciosa do controle e direção, em especial na colonização

do Brasil.

Mas, concorrente com o projeto de domínio sobre o território colonial, havia forças

“centrífugas” ou pressões locais para mais autonomia. A essas forças descentralizadoras, o

Estado português respondeu com a adoção de estratégias bem-sucedidas em sua própria

história, como a criação de conselhos municipais e reconhecimento militar daqueles que

poderiam ameaçar a ordem estabelecida (FAORO, 2001).

Ações que significavam mais autonomia dos senhores rurais do Nordeste eram

consideradas uma estratégia progressista. Contraditoriamente, esses eram conservadores

quando o assunto eram ações que poderiam mudar sua situação econômica e política

(ANDRADE, 1988; CASTRO, 1975 apud EMPINOTTI, 2007). De acordo com Empinotti

(2007), esse paradoxo nortearia as alianças que seriam realizadas por esses grupos ao longo

da história.

Como já dito, o início do uso do problema da seca como estratégia política é

identificado por Empinotti (2007) no momento em que oligarquias do Nordeste

perceberam o esmorecimento do seu poder diante da redução do preço do açúcar e avanço

da produção do café no Sul (final do século XIX).

A grande seca de 1877 causou uma crise que oportuniza a demanda por ações para

fortalecimento da região. Entre outros, é criada a região Nordeste (antes o país era dividido

em Sul e Norte) e recursos constitucionais vinculados para a região: “[...] a escassez de

água tornou-se um instrumento tanto para manter a influência do Nordeste no Governo

nacional, bem como lideranças locais e regionais que tinham acesso a terra e água”

(EMPINOTTI, 2007, p. 119).

O discurso da escassez de água permitia a influência dessas lideranças nacionais e

regionais na elaboração dos planos do Governo para a região.

Como parte desse processo, são criadas agências que institucionalizaram o

problema da seca (EMPINOTTI, 2007), como o Instituto de Obras com a Seca (IOCS)

(1909), que posteriormente (1945) transformou-se em Departamento Nacional de Obras

Contra a Seca (DNOCS).

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A solução identificada para o problema da seca à época (início do século XX -

1950) era o aumento da capacidade de armazenamento de água. Essa solução é

denominada “solução hidráulica”. Nesse contexto, a seca é percebida apenas como

fenômeno natural e a ação de governo demandada é a construção de reservatórios de água

(GOMES, 1998).

Os açudes construídos não permitiram benefícios para um conjunto maior da

população nordestina. Seus benefícios contribuíram para reforçar o poder das oligarquias

regionais e Governo (CARVALHO, 1979). A esse fenômeno Antônio Callado (1960)

denominou de indústria da seca.

A indústria da seca possui o seguinte mecanismo: uma vez que as terras estão

concentradas nas mãos de poucos, a maioria trabalha em regimes servis. Callado (1960)

argumenta que a expropriação era tanta que o regime de trabalho existente seria o da

escravidão, visto que ao final o trabalhador “pagava para trabalhar”, em especial no regime

chamado de “cambão” (cessão do uso da terra mediante quatro dias de trabalho na terra do

latifundiário).

Uma vez que esses trabalhadores estão em subempregos, quando há o episódio da

seca eles perdem a sua produção de subsistência e o “emprego”. O Governo Federal, por

intermédio do – DNOCS, empregava essa massa nas frentes de trabalho.

As pessoas executavam tarefas que, quando tinham alguma utilidade, beneficiavam,

em especial, o latifundiário. Os donos de terras também conseguiam linhas de

financiamento, subsídios e perdão de dívidas. Além disso, a indústria movimentava a

política local por meio do uso do emprego nas frentes de emergências e entrega de água

como moeda de troca por votos.

A construção de açudes interessava como instrumento para manutenção do poder

das elites do Nordeste. Nesse aspecto, ações de irrigação e desenvolvimento industrial não

eram adotadas. Essas ações poderiam levar ao deslocamento da atividade produtiva, à

diversificação da produção, aumento dos salários e modificação da distribuição de terras

com a adoção da reforma agrária (EMPINOTTI, 2007).

A Revolução de 1930 significou transformação nas políticas para o Nordeste. De

acordo com Empinotti (2007), houve entrada de novos atores que também passaram a

influenciar as políticas definidas para a região. Do conceito de “solução hidráulica”

passou-se à abordagem de “desenvolvimento econômico”.

O Código de Águas de 1934 insere-se na visão geral de governo de planejamento

burocrático centralizado. A nova lei reduz a força das oligarquias rurais. O código separa a

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propriedade da terra da propriedade dos recursos hídricos ali existentes. A definição do uso

e gestão da água passou a ser exclusividade do Governo Federal.

Estudos como os de Josué de Castro (s.d.) permitiram construir consenso entre os

especialistas de que apenas o armazenamento da água não geraria melhores condições de

vida na região. A questão a ser resolvida era a da fome, o que seria amenizada com a

produção de alimentos.

De acordo com Empinotti (2007), as novas políticas foram adotadas devido ao

apoio que o Governo Federal obteve da Igreja Católica, movimentos de sem-terras (ligas

camponesas) e setor industrial para o enfrentamento da oligarquia nordestina.

No período entre as ditaduras (Vargas 1930-45 e militares – a partir de 1964),

consolidaram-se no Nordeste movimentos sociais como os das ligas camponesas. Uma

“insurreição” importante foi a do Engenho Galileia, noticiada por Antônio Callado (1960).

Os trabalhadores revoltaram-se com a perspectiva de expulsão do engenho, sem o

recebimento da indenização pelas benfeitorias que construíram. Criaram então

organizações em forma de cooperativas para defesa legal de seus interesses. Essas

organizações se multiplicaram, em especial no estado de Pernambuco (CALLADO, 1960).

Na Guerra Fria, qualquer atuação estranha e desviante era logo vista como uma ameaça

comunista.

Os planos de governo passaram a adotar outras ações que não apenas a construção

de açudes, devido ao entendimento de que a seca não era apenas um fenômeno natural,

mas sim o resultado de exclusão social pela falta de acesso à terra, de oportunidades de

trabalho e de representação política.

Mas a principal ação derivada desse entendimento não foi implementada. A

reforma agrária, apesar de constar no Plano do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento

do Nordeste (GTDN), não foi aprovada no Congresso. Uma vez desfigurada em sua

estrutura, a estratégia de atuação da SUDENE obteve o apoio das oligarquias. A proposta

foi apoiada apenas no que se referia à modernização do setor produtivo do Nordeste, sem

modificação de elementos estruturantes como a distribuição de terra (TAVARES et al.,

1998).

Como observa Celso Furtado (TAVARES et al., 1998), sem a aprovação da

reforma agrária não seria possível superar o verdadeiro entrave ao desenvolvimento do

Nordeste. A concentração de terras e a produção em sistema de meeiro é uma estrutura

social e produtiva muito sensível ao fenômeno natural da estiagem.

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Quando a falta de água prejudica a produção, os meeiros não têm outra fonte de

renda ou qualquer garantia que seria possível em um regime de assalariamento.

Simplesmente perdem tudo. Já os proprietários possuem outras atividades no setor urbano

e facilmente se adaptam à crise no setor rural.

Nas narrativas dos livros Luzia-Homem (2003), A bagaceira (1980), O quinze

(2009)26, por exemplo, tem-se uma ilustração de como a estiagem afetava a vida dessas

populações que produziam para sobreviver. A falta de água levava à migração para os

centros urbanos e contenção dessas pessoas em campos de concentração ou em frentes de

trabalho.

No livro Luzia-Homem, há a descrição de como nessas frentes as pessoas eram

ainda mais exploradas e humilhadas. Os alimentos entregues pelo Governo tinham péssima

qualidade e eram distribuídos de acordo com a conveniência das lideranças locais ou das

que se constituíam naqueles momentos de crises. Além disso, as frentes de trabalho

serviam como fontes para desvio de recursos públicos e muitas vezes não criavam novas

infraestruturas que permitiriam lidar melhor com as estiagens futuras.

Os saques são muito comuns nos momentos de crises. Como identifica Gomes

(1998), eles são utilizados e percebidos pela população como uma forma de chamar a

atenção do Governo.

Celso Furtado opina que só não houve uma revolução no Nordeste porque este

estava inserido no Brasil (TAVARES et al., 1998). As crises pelas quais a região passava

eram amenizadas pelas ajudas emergenciais, como as frentes de trabalho e doações

providas pelo “Sul”.

A agrura da região e a formação social baseada na exploração e submissão

constituíram um “imaginário” ou representação social sobre a seca. Gomes (1998) reforça

o diagnóstico de que o fenômeno natural da estiagem não é o causador do quadro de

miséria da região, e sim a estrutura social e econômica que ao longo dos anos forjou nos

sertanejos a percepção de que eram merecedores das dificuldades pelas quais passavam. A

atuação da Igreja Católica contribuiu para a percepção místico-religiosa de que as estiagens

e as carências seriam castigos para os pecados.

26 O livro Luzia-Homem foi publicado em 1903 e relata a história da retirante Luzia e sua vida em uma frente de trabalho para construção da penitenciária de Sobral, no Ceará. O livro A bagaceira foi publicado em 1928 e trata do período de 1898-1915. Narra o choque entre retirantes do sertão com “brejeiros” ou produtores de açúcar na região da zona da mata. O livro O quinze foi publicado em 1930 por uma mulher jovem, que narrou a seca de 1915.

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A imagem do sertanejo forte e sofredor resumiria a inserção social dessa população

e objetivaria explicar a aparente resignação diante dos anos de exploração e miséria. Na

amostra de entrevistados selecionada, Gomes (1998) identifica que a maioria percebe como

solução para o problema que enfrenta a intervenção divina. O autor confirma então a sua

hipótese de estudo de que as significações atribuídas pelos sertanejos entrevistados sobre a

seca:

[...] valorizam e se fundamentam num conjunto de ideias, noções e imagens predominantemente de cunho mágico-religioso, que recobrem e revelam as relações sociais e políticas de um sentido naturalista e/ou religioso, minimizando ou neutralizando a questão do poder e da política, como instrumento de mudança social (GOMES, 1998, p. 13).

Contudo, é discutível essa imagem de resignação do sertanejo. Fatos históricos

demonstram que o quadro social e econômico da região configura situações que são

verdadeiros estopins. Quando Juscelino Kubitschek chama Celso Furtado27 para elaborar

um plano para o desenvolvimento do Nordeste, sua preocupação não era apenas amenizar

as expectativas dos políticos regionais que se viram excluídos dos planos do Governo, mas

esmorecer as contestações sociais que estavam colocando em xeque o poder local e até

mesmo “a ordem capitalista”.

Celso Furtado informou que, com a seca de 1958, meio milhão de pessoas estava

morrendo de fome e era preciso fazer alguma coisa (TAVARES et al., 1998), uma vez que

a insatisfação e a pressão social eram muito fortes, agravadas pela ameaça “comunista”,

receio oriundo do conflito da Guerra Fria.

Avalia-se que, na Guerra Fria, na Aliança para o Progresso e na efervescência de

movimentos como as ligas camponesas, a intervenção no Nordeste tornou-se mandatória.

O trabalho de Celso Furtado e os fundamentos da criação da SUDENE foram uma

inflexão no pensamento e ação sobre a seca. Esta não era vista mais apenas como resultado

de um fenômeno natural e cuja solução seria o armazenamento de água. Ela passou a ser

compreendida como fruto de uma estrutura social apoiada em fatores como a concentração

de terra e regimes de subemprego, por exemplo.

Para além de uma mera estiagem, a seca passou a ser entendida como resultado da

configuração social, política e econômica do Nordeste. A solução seria então a

27 Celso Furtado descreve o processo de criação da SUDENE no livro “A fantasia desfeita” (FURTADO, 1989).

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redistribuição das terras, incorporação da agricultura irrigada, incentivo à migração para

reduzir a pressão sobre os recursos naturais, entre outras.

Como já visto, a reforma agrária não obteve sucesso. A proposta de

desenvolvimento da irrigação conseguiu obter aceitação. Mas os resultados obtidos pela

SUDENE foram melhores no setor industrial, beneficiando, todavia, regiões que não eram

tão atingidas pela seca e sem conseguir atingir as camadas mais empobrecidas da

população (CASTRO, s.d.; FURTADO, 1989).

No período da ditadura militar, a política para a região sofre nova inflexão. A

ameaça comunista (em especial com a atuação das ligas camponesas) e, por conseguinte, a

aproximação dos Estados Unidos e agências multilaterais determinaram a adoção de uma

política de modernização conservadora. De acordo com Empinotti (2007), as oligarquias,

que estavam enfraquecidas desde os anos de 1950, foram reforçadas.

Projetos e financiamentos internacionais, principalmente do Banco Mundial e

Organizações das Nações Unidas, foram as principais ações na região. A abordagem de

desenvolvimento rural integrado propagada pelo Banco Mundial correlacionou-se bem

com a característica tecnocrática do Governo Militar.

O principal projeto que tratava do acesso à água foi o Projeto Sertanejo

(EMPINOTTI, 2007). Demonstrando o recrudescimento do poder das oligarquias

regionais, o planejamento de governo indicava ações de construção de açudes,

notadamente, por meio do DNOCS.

Até os anos de 1990, as ações para a região inseriram-se no marco da abordagem de

desenvolvimento integrado implementada pelo Banco Mundial. Mas elementos

conjunturais como a abertura democrática e o movimento ambiental derivaram nova

problematização sobre a questão da seca. Empinotti (2007) identifica que o PROINE foi

um dos últimos permeado pela abordagem de desenvolvimento rural integrado.

Os resultados catastróficos da seca dos anos de 1979-83 permitem dizer que as

ações do Governo não mudaram o quadro social do Nordeste. Nesse episódio, estima-se

que morreram mais de 700.000 pessoas (CASTRO, s.d.). Como reporta Herbert de Souza,

“a partir daí, nunca tive dúvida de que o genocídio era uma política estatal para ‘resolver’ o

problema da miséria absoluta. Em vez de erradicar a pobreza, erradica-se o pobre,

preferencialmente enquanto ainda criança” (CASTRO, s.d., p. 115).

No próprio DNOCS, um técnico desenvolveu estudos que defendiam uma nova

abordagem de fixação de homens/mulheres no semiárido. Guimarães Duque (1953)

diagnosticava que de fato as características naturais da região não comportavam o

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contingente populacional. Entretanto, ressaltava que a agricultura seria o principal

instrumento para propiciar as condições de desenvolvimento da região. Ele afirmava que a

produção agrícola deveria ser adequada e estar em equilíbrio com as condições climáticas e

de solo.

O autor critica o imediatismo das classes abastadas que, além de não

implementarem técnicas conciliadas com o meio físico, administram indústrias que têm

interesse apenas na matéria-prima, sem conhecer o processo produtivo (DUQUE, 1953).

Guimarães Duque (1953) estabeleceu as bases de um novo paradigma que seria

defendido pelos movimentos sociais na discussão sobre o projeto. A “convivência com o

semiárido” foi reforçada em atos da sociedade civil organizada como a “Declaração do

Semiárido” (ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO - ASA, 1999).

O desenvolvimento nesses moldes enfatiza a produção agrícola familiar e a

obtenção de água por meio de tecnologias sociais como as cisternas. Na conferência sobre

desertificação realizada em Recife em 1999, foram organizadas algumas crenças que

seriam utilizadas na defesa de alternativa ao Projeto de Integração. Entre outras, foi

reforçado o diagnóstico de que o semiárido dispunha de fonte hídrica suficiente a partir da

captação e reserva das chuvas.

Aprendemos, também, que a água é um elemento indispensável, longe, porém, de ser o único fator determinante no semiárido. Sabemos agora que não há como simplificar, reduzindo as repostas a chavões como “irrigação”, “açudagem” ou “adutoras” (ASA, 1999, s.p.).

Em 2005, foi publicado um novo plano de desenvolvimento, mas focado no

semiárido. O Plano de Desenvolvimento do Semiárido é uma derivação do Plano de

Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (BRASIL, 2006a). Eles inserem-se na Política

Nacional de Desenvolvimento Regional formulada e implementada pelo Ministério da

Integração Regional (BRASIL, 2004).

O Plano do Semiárido delimita quais ações deveriam ser priorizadas pelo Governo,

definidas após discussão e efetivação de uma nova espacialização do Polígono das Secas.

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QUADRO 2

Plano de Desenvolvimento do Semiárido: ações nas regiões consideradas

Área Geoestratégica Características e problemas Ações Priorizadas28

Sertão norte

Concentra área com alta

incidência de secas, 58% de

urbanização e densidade

demográfica de 26,51

hab/km2

- Projeto de Integração do

São Francisco

- Ferrovia Transnordestina

Ribeira do São Francisco

54% de urbanização, menor

densidade demográfica - 13

hab/km2

- Revitalização do Rio São

Francisco

-Hidrovia do Rio São

Francisco

- Agronegócio da irrigação

Fonte: Plano de Desenvolvimento do Semiárido (BRASIL, 2005a).

O elemento mais importante para a nova configuração é a constatação da

importância e predominância do urbano na região. O plano reforça o acesso à água como

desafio essencial da região. Pondera, todavia, que a proposta não é de “solução hidráulica”.

Defende uma nova concepção ou um novo paradigma para a região, denominado de gestão

em “rede”.

Em vez de se construírem açudes com benefícios localizados e com grandes perdas

devido à evapotranspiração, propõe-se a interligação dos açudes, criando um fluxo de

água. A infraestrutura permite a transferência de água entre regiões que dispõem de

recursos hídricos para outras regiões mais necessitadas.

Nesse novo paradigma apresentado no plano, o Projeto São Francisco é a principal

intervenção e considerado elemento fundamental para o desenvolvimento do sertão norte.

Além disso, a concentração populacional em áreas urbanas e o deslocamento do foco do

Governo para esse fato reduzem a importância da reforma agrária como uma das

estratégias centrais.

28 No plano são apontadas outras ações em eixos diversos como turismo, artesanato, irrigação, produção de gás, mineração, etc. Mas as apresentadas aqui são as que obtêm mais enfoque.

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4.1.3 Ribeira do São Francisco

A ribeira do São Francisco está, em grande extensão, situada no semiárido. Os

episódios de seca também afetam as atividades sociais e produtivas da região. Mas,

diferentemente do interior do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e parte de Pernambuco,

o Rio São Francisco determinou características específicas nas relações sociais e

econômicas da região.

A ocupação da região foi capitaneada pelo estabelecimento de reduções jesuítas no

século XVI. Com a expansão da produção de gado, as missões foram seguidamente

invadidas e esvaziadas (ANDRADE, 2006).

A expansão para o interior pode ser atribuída à atuação de pessoas como Francisco

Garcia D´Ávila29. Por volta de 1640, ele estabeleceu a pecuária na região, fixando

ocupações perto de riachos, e não perto do Rio, que era foco de doenças tropicais

(GONÇALVES, 1997)30. Foi estabelecida a chamada “civilização do couro”.

A organização social era liderada pelo senhor de terras, o qual, por intermédio de

um procurador, arrendava ou vendia glebas para o fazendeiro. O trabalho, contudo, era

realizado pelo vaqueiro, que vivia isolado, tomando conta do rebanho. A vida era árdua e

as pessoas buscavam a proteção de algum poderoso (GONÇALVES, 1997).

Por outro lado, índios, mestiços e negros deram origem à “civilização da palha”,

visto que utilizavam a palha da carnaubeira. Eles habitavam às margens do rio e viviam da

pesca, em especial.

Com a transferência da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro em

1760, a produção pecuária sofreu retrocesso. Gonçalves (1997) registra que, contribuindo

para a decadência da região, o gado criado, por falta de melhoria genética, tornou-se

mirrado e enfermiço. O isolamento da região, do vaqueiro e a pobreza refletiam na baixa

qualidade e produtividade.

29 Bisneto de Garcia D´ávila, o qual foi homem de confiança e filho de Tomé de Sousa, primeiro Governador-Geral do Brasil (1549-1553). Tomé de Sousa doou a Garcia D´Ávila sesmaria na região que hoje é o estado da Bahia. Este estabeleceu a Casa da Torre (1550) e tornou-se o homem mais poderoso da Bahia. 30 A ocupação era realizada a partir da fixação de dois escravos ou vaqueiro (indígena ou homem branco pobre) em uma porção de terra. Também era deixada criação. Geraldo Rocha (1940) enumera 100 cabeças de gado, por exemplo. A remuneração era um percentual sobre a criação adicional obtida em período de quatro anos. A vida do vaqueiro estava relacionada à sobrevivência e reprodução do gado. Geraldo Rocha (1940) avalia que as condições naturais (secas e cheias), a rusticidade do trabalho e o isolamento forjaram um tipo de homem forte e preparado para a árdua tarefa de tornar a região a espinha dorsal do desenvolvimento do país.

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Marques (2006) apurou que no início do século XIX o rio era uma importante via

de navegação e comunicação. Investimentos foram pensados e realizados na região com o

objetivo de ligar grandes centros produtores/consumidores como Salvador, Recife e Rio de

Janeiro. A ligação era concebida mediante integração do transporte fluvial, terrestre e

ferroviário.

Mas em vez de uma paisagem de dinamismo social, a imagem que se tem da região

à época é a de projetos de desenvolvimento fracassados. O Estado ainda não regulava a

ordem política e social. Os mandos e desmandos eram realizados pelos chefes da região,

como Militão Plácido de Antunes, que entre 1820-1844 controlou a região de Pilão

Arcado, Xique-Xique, Juazeiro e Cabrobó (cidades situadas nos estados de Pernambuco e

Bahia) (GONÇALVES, 1997).

A navegação era precária e realizada em barcas e ajoujos. A movimentação dos

barcos era feita com a força dos remeiros que, com o peito, empurravam os varejões e estes

impulsionavam as embarcações. Em 1840, foram introduzidos os vapores e a região foi

desmatada para o funcionamento dos motores.

Assim, apesar da aposta no uso do rio como parte de um plano de logística que

possibilitaria a integração nacional, permaneceu uma economia baseada em escassa

pecuária precária e na troca de produtos como cachaça, rapadura e sal.

Somente a partir de meados do século XX é que a região começou a ser objeto de

ações sistemáticas, por meio de recursos previstos na Constituição de 1946 (MELLO,

2008). Procurava-se melhorar as condições econômicas para contenção do fluxo

migratório, bem como consolidar a unidade nacional. As ações empreendidas

concentravam-se no fortalecimento da agricultura e navegação.

A Capitania dos Portos realizava a fiscalização dos barcos na tentativa de organizar

a atividade. Mas, como analisa Geraldo Rocha (1940), o assoreamento do rio, com

consequente redução de sua profundidade, e o transporte de mercadorias de baixo valor

agregado determinaram a decadência do transporte fluvial. Além disso, a legislação social

aprovada no Governo Vargas limitou as antigas práticas de uso da mão-de-obra de

remeiros e vaqueiros.

Além de estabelecer o trabalho assalariado, o Governo Vargas representou outras

mudanças para a região. A bacia foi redescoberta com a criação da Comissão do Vale do

São Francisco (CVSF) e depois com a Companhia Hidroelétrica do São Francisco

(CHESF). A esses dois órgãos pode-se atribuir a essência da ação do Governo Federal na

região nos últimos anos.

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A criação dessas organizações concretizou o modelo de desenvolvimento

modernizador. Esse consistiu, por exemplo, no desenvolvimento da agricultura irrigada ao

longo do leito do rio. O objetivo dessas ações era transformar o perfil da produção de

pequena escala para grandes projetos agrícolas (EMPINOTTI, 2007).

Desde o Império, o Rio São Francisco foi projetado como o salvador do Nordeste.

Renata Andrade (2006) preconiza que essa é a estratégia utilizada pelo Governo para

executar as grandes obras de infraestrutura. A política proposta para a região desconsidera

comunidades tradicionais e trata a região como um vazio demográfico a ser desenvolvido.

Um dos símbolos utilizados para a promoção das ações governamentais era “Rio da

Unidade Nacional”. O intuito era disseminar a imagem de que o Rio São Francisco deveria

servir a todos a partir de grandes projetos de infraestrutura (ANDRADE, 2006).

Essa visão modernizadora pode ser atribuída a pessoas como Geraldo Rocha

(1940). No livro “O Rio São Francisco: fator precípuo para existência do Brasil” ele

consolida as ideias modernizadoras que inspiraram o desejo de controle da natureza para o

estabelecimento de uma civilização próspera.

Naquela época, Geraldo Rocha defendia que a inserção internacional de um Brasil

economicamente competitivo apenas seria possível com o desenvolvimento da agricultura

irrigada ao longo do rio. Ele diagnosticava que terras planas, férteis, água disponível e com

potencial de integração logística apenas existiam naquela região. Por meio da Engenharia

ele antevia o “domínio do rio” com a construção de barramentos e eclusas, os quais

permitiriam controlar as enchentes e tornar o rio um canal de transporte que uniria o norte

e o sul do país.

O sonho de Geraldo Rocha começa a tornar-se concreto com o Governo de

Juscelino Kubitschek. Nesse período, as intervenções deslocam-se do desenvolvimento da

navegação para a construção de rodovias e hidrelétricas. Nas décadas de 1960 e 1970, a

região foi palco do deslocamento de milhares de pessoas para a construção de represas,

como as quatro de Paulo Afonso (1955, 1961, 1971, 1979), Moxotó (1977) e Sobradinho

(1979). Também foram construídas as represas de Três Marias (1950), Itaparica (1988) e

Xingó (1994). As represas de Sobradinho e Itaparica, por exemplo, desalojaram 137 mil

pessoas, cidades inteiras foram alagadas (MARQUES, 2006).

Marques (2006) denuncia que esses projetos causaram sequelas nas populações do

semiárido, como a perda de seus empregos, de relações sociais e identitárias. A população

rural foi inserida em projetos de irrigação em áreas pouco férteis e até hoje depende das

transferências de renda da CHESF.

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Marques (2006) comenta que o desenvolvimento do Nordeste foi perseguido,

passando por cima das populações que habitavam a região sanfranciscana. Em nome do

progresso técnico, as vidas dos ribeirinhos foram desconsideradas.

Os impactos desses processos são incalculáveis. A ideia de desenvolvimento socioambiental sustentável nestes espaços é altamente questionável. A violência das “perdas” dos espaços identitários das populações afetadas com o processo de barramento na região do São Francisco coloca em xeque os discursos em torno do desenvolvimento científico, econômico, social e tecnológico do semiárido nordestino (MARQUES, 2006, p. 22).

Grande parte dos conflitos existentes hoje na região decorre da disputa pelo uso da

água do rio.

A partir da década de 70 iniciou-se expressivo aumento da atividade agrícola na

região. Dados do Ministério do Meio Ambiente informam que 8 milhões de hectares são

utilizados para agricultura e 10 milhões de hectares para pastagens. Da terra utilizada para

agricultura, 342.712 hectares são irrigados, 11% da terra irrigada no Brasil e 30% são em

projetos públicos (BRASIL, 2005 apud MARQUES, 2006).

O aumento da produção agrícola na região pode ser atribuído à atuação da

CODEVASF desde 1974. A aposta para o desenvolvimento da região era a sua

transformação em um celeiro agrícola. Pequenos e médios agricultores não eram

considerados nos planos de governo, uma vez que eram vistos como atrasados e incapazes

de serem tomados como os elementos com os quais o processo de modernização seria feito

(GONÇALVES, 1997).

Já em 1978 foi criado o Comitê Especial de Estudos Integrados (CEEIBH),

composto pelo Ministério do Interior, Ministério de Minas e Energia e Departamento

Nacional de Obras de Saneamento. O Comitê foi estabelecido para discutir, entre outros, o

uso múltiplo das águas do rio. Já naquela época, o conflito do uso da água entre a irrigação

e a produção de energia pautava as preocupações do Governo.

As políticas na região foram concebidas e executadas excluindo e desconsiderando

as comunidades tradicionais. Ignoraram o modo de viver e produzir como elementos a

serem respeitados, aprendidos e considerados parte da sociedade.

Nesse contexto, discursos dominantes como “ordem e progresso” (ANDRADE,

2006) concretizaram-se em intervenções de engenharia no rio, com a construção de

barragens, que descaracterizaram ou geraram displacement ou diáspora desses grupos

(ANDRADE, 2006).

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Pescadores artesanais e plantadores das várzeas perderam suas fontes de renda e

tiveram cortadas ou desfeitas as suas relações com o rio, neste correndo o risco de até

mesmo perderem sua identidade de grupo social, já que essa identidade é profundamente

definida pelo cotidiano e as tradições movidas pelo rio.

A paisagem que se configurou na região é de pontos de extrema riqueza e

prosperidade e um mar de pobreza, com alarmantes indicadores de desenvolvimento social.

Além disso, não se constata que a política de governo, em algum momento, foi pautada

pela necessidade de revitalização ambiental do rio. Desde os tempos de desmatamento para

movimento dos vapores, o espaço natural foi sendo desfigurado e comprometido.

Sendo assim, a imagem resultante da bacia é a de uma região “esquecida” das

políticas públicas e em que alguns polos de riqueza surgem em meio à pobreza

generalizada.

4.1.4 As ideias que estão em conflito

A história das intervenções governamentais no semiárido é movida por “transições

paradigmáticas”. Assim, “além de expressar interesses econômicos e políticos, as

intervenções na realidade (as políticas governamentais e as práticas sociais) expressam

diferentes pensamentos (interpretações e propensões) sobre o semiárido” (SILVA, 2006, p.

28).

As ideias sobre o desenvolvimento são elaboradas em diversos estudos. Desde o

Império, foram diversas as expedições e comissões científicas designadas para estudar e

levantar soluções para os desafios das regiões.

Andrade (2006) identifica que, considerando as expedições do século XIX,

pressupostos elaborados naquela época ainda permeiam planos de governo e outros

documentos relacionados à região do São Francisco. A autora chama a atenção para o fato

de que as ações do Governo têm sido construídas desconsiderando populações tradicionais.

Essa compreensão advém de conceitos epistêmicos do século XIX. A região é então

percebida como território a ser “civilizado” e modernizado. Índios e pescadores

simplesmente não são “enxergados” nos planos de governo, por exemplo, na construção de

barragens, implementação de perímetros de irrigação, etc.

Roberto Silva (2006) identificou os temas de estudos conduzidos desde o século

XIX até o século XX sobre a região do semiárido. De acordo com o autor, 62% das

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pesquisas têm como área temática de interesse a explicação sobre e causas das secas. Desse

total, 63% indicam como intervenção necessária a construção de reservatórios de água e

1/3 apresenta a irrigação como solução para o problema do semiárido.

Em relação à disputa de projetos para o semiárido, Silva (2006) identifica quatro

períodos. O primeiro seria o monopólio do poder político pelas oligarquias sertanejas,

denominado de “estado capturado” por Francisco de Oliveira (1981 apud SILVA, 2006). O

segundo período é o de disputa entre propostas reformistas e conservadoras - estas últimas

apoiadas pelas oligarquias rurais, naturalmente. O terceiro período é o de autoritarismo

estatal, que realiza ações “modernizadoras conservadoras”. Por fim, diante da

redemocratização, o quadro é de disputa de interesses, concepções, práticas e projetos com

a presença de novos atores políticos.

No período da ditadura militar, as Igrejas Católica e Evangélica foram espaços para

mobilização das pessoas impactadas pelas grandes obras. Essas começaram a desenvolver

formas alternativas de produção agrícola e uso da água, construindo, então, um modelo

alternativo (EMPINOTTI, 2007), o qual defende projetos de menor escala que utilizam o

conhecimento local. “As técnicas consideram as limitações do ambiente natural e ajustam

o estilo de vida das pessoas a essas características” (EMPINOTTI, 2007, p. 173).

Com o processo de democratização, esses movimentos sociais começaram a ocupar

espaços formais e a defender o modelo alternativo que passou a ser denominado de

convivência com a seca. Entre as técnicas defendidas, estava a de uso de água da chuva ou

coleta de água mediante cisternas, evitando-se, assim, a construção de canais ou

transposição de águas. Acreditam que a coleta de água da chuva é uma forma

descentralizada e autônoma de manutenção da vida e produção no semiárido.

Empinotti (2007) identifica duas visões para o desenvolvimento do semiárido. Por

um lado, a visão de uso da água para projetos de larga escala. A identificação do problema

como sendo a escassez da água direciona as intervenções do Governo para a solução da

pobreza e o baixo crescimento econômico (EMPINOTTI, 2007). De outro lado, há a visão

de uso de água para projetos de agricultura familiar, apoiada por organizações como a

Articulação no Semiárido (ASA). Nessa visão, a falta de água não é o problema, e sim a

configuração social e econômica, em especial o padrão de distribuição de terras, que gera o

quadro de exclusão e pobreza.

A redemocratização gerou a complexificação do processo político, com entrada de

novos atores e estabelecimento de novos procedimentos ou regras. Foi composta uma

arena pública na qual projetos e visões entram em conflito e a diversidade ou pelo menos a

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denúncia de sua existência é permitida. Os atores discutem e defendem ideias e têm mais

liberdade de desejar um tipo ideal de estrutura de estado, de relação Estado-sociedade e/ou

de ação de governo. Grupos que até então estavam “invisíveis” começam a fazer parte dos

diagnósticos de problemas e soluções, bem como expressam seus próprios entendimentos.

O cenário para o Projeto São Francisco também foi reconstruído com a entrada de

novos atores no espaço público e o estabelecimento de novas regras na discussão do uso

dos recursos hídricos. As ideias sobre o tema, os projetos/visões que há anos foram

gestados ou aplicados na realidade obtiveram um meio para sua expressão.

Essa percepção permitiu até mesmo superar o triângulo: Estado-sociedade civil-

mercado. O processo político e o conflito passam a ser compreendidos como disputas de

concepções e projetos políticos (DAGNINO, 2000).

Dagnino (2000) defende a superação da clivagem sociedade civil e sociedade

política argumentando que a atuação desses segmentos é movida por projetos políticos ou

“os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser

a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos” (DAGNINO,

2000, p. 98).

Todos estão “fazendo política” disputando espaços de poder e tentando orientar a

política pública. A clivagem são os projetos políticos defendidos, abarcando então grupos

situados no Estado, na sociedade civil e mercado31.

Compreender o conflito da transposição como o choque entre crenças

compartilhadas por atores de segmentos diversos permite também superar a clivagem

Estado-sociedade-mercado e identificar a atuação de grupos historicamente excluídos. Isto

porque a motivação é dada pela defesa de ideias ou posicionamentos sobre como deve ser

modelada a política pública, o que une pessoas dos diversos segmentos. Por sua vez, a

criação de novos fóruns, como o Comitê da Bacia do São Francisco, propicia condições

para o confronto público dessas ideias.

31 Evelina Dagnino (2000, 2004) analisa os projetos de democratização. De acordo com a autora, há três projetos políticos em disputa: autoritário, democrático participativo e neoliberal. Ela é crítica em relação ao projeto neoliberal, visto que incorpora preocupações e práticas participativas como meros instrumentos de gestão em uma dinâmica que denomina de “confluência perversa”.

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4.1.5 Sobre a Lei 9.433/1997 e a criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco

(CBHSF)

As ideias que permearam a elaboração da Lei 9.433/1997 foram aprofundadas e

difundidas pelo Banco Mundial. As principais, defendidas pelo organismo internacional e

que moviam a reforma no setor, eram: criação de um mercado da água; descentralização da

gestão e gestão dos recursos hídricos por bacias hidrográficas.

O Banco, em especial, realizou diversos estudos sobre a situação dos recursos

hídricos no país, bem como eventos para difundir os novos conceitos na gestão dos

recursos hídricos. A lei foi elaborada após a criação de grupo de trabalho no governo

(EMPINOTTI, 2007).

De acordo com Jacobi e Barbi (2007), a Política Nacional de Recursos Hídricos

reorganizou o sistema de gestão de recursos hídricos. Ela permitiu a substituição de

práticas profundamente arraigadas de planejamento tecnocrático e autoritário a partir da

incorporação da influência de fatores não apenas técnicos, mas também de caráter político,

econômico e cultural na discussão.

Os autores concluem que essas mudanças tornaram o processo muito mais

complexo e o estilo de gestão que tende a prevalecer obedece a uma lógica sociotécnica. E

que as relações de poder não desaparecem, mas passam a ser trabalhadas e negociadas

conjuntamente entre leigos e peritos (JACOBI; BARBI, 2007).

A nova lei federal das águas corroborou diretrizes de gestão que já estavam em

vigor nos estados de São Paulo e Ceará. Nesse contexto, a criação de Comitês de Bacias é

um elemento central na operacionalização dos princípios estabelecidos na Política

Nacional de Recursos Hídricos ou da nova visão sobre gestão das águas.

A criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco ocorreu no palco de discussão

do Projeto da Transposição. Esse processo exprime os embates que existiam entre aqueles

que eram contrários à obra e o setor do Governo Federal que estava determinado a

implementá-la. Apesar de ter sido previsto em legislação, acredita-se que a criação desse

fórum deveu-se a um jogo político e técnico movido por interesses e por causas.

O Comitê foi criado em junho de 2001, pelo Decreto Presidencial de 05/06/2001, e

a sua diretoria provisória foi composta de lideranças políticas e da sociedade civil,

contrárias ao projeto. Ana Mascarenhas (2008) acentua que a discussão sobre o Projeto São

Francisco foi um tema agregador que permitiu a superação de conflitos regionais e

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realidades diferenciadas. As atividades do Comitê da Bacia foram monopolizadas pela

crítica e tentativa de exclusão do projeto de ação do Governo (MASCARENHAS, 2008).

É importante notar o perfil das pessoas mais influentes do Comitê. De acordo com

Ana Mascarenhas (2008), 67% são homens com idades entre 40 e 50 anos; 21% atuam no

alto São Francisco, 29% no médio e 13% no baixo.

Atualmente, o Comitê é composto de 32,2% de Poder Público (federal, municipal,

estadual); 38,7% usuários, 25,8% sociedade civil e 3,3% de representantes indígenas

(CBHSF, 2010).

A criação do Comitê representou o ganho de autoridade32 para atores da sociedade

civil, em especial, que atuavam em paralelo aos fóruns decisórios até então existentes.

Além disso, ela fortaleceu grupos políticos opositores ao Projeto da Transposição.

Sobre a discussão do projeto no Comitê, Ana Mascarenhas (2008, p. 192) relata que

“[...] muitas vezes, nas longas reuniões em que o debate sobre a transposição predominava,

foi possível verificar a desmotivação e o cansaço das pessoas que atuam com mais

intensidade e compromisso e querem ver progredir a gestão na bacia”.

Abers (2003) analisa o uso, por atores estatais, da estratégia de criação de fóruns

participativos para obter apoio e promoção de seus objetivos. Empiricamente ela considera

a experiência de criação dos Comitês de Bacias e o orçamento participativo implementado

em Porto Alegre. Em relação aos Comitês, a autora constata que, em sua maioria, estes

foram criados como meios para acesso a recursos de organismos multilaterais e agências

governamentais.

A ideia técnica de aumento da participação serve, então, como meio para legitimar

os fins buscados pelos atores. Após esse entendimento, argumenta-se que o Comitê da

Bacia foi criado como estratégia de atores políticos e estatais. Ele foi estabelecido em 2001

por pressão de segmentos ambientalistas, mas foi consolidado a partir de 2003, a fim de se

cumprirem os procedimentos democráticos previstos em lei que fundamentariam a

implementação da transposição. A estratégia de fortalecimento do Comitê apoiava-se na

defesa da inserção de grupos até então excluídos da discussão (índios, pescadores),

elaboração de dados técnicos e o fortalecimento do discurso ambiental.

A Política Nacional de Recursos Hídricos e o Comitê de Bacia representaram o

restabelecimento das condições de negociação. Novos procedimentos formais de

32 "A capacidade de solucionar problemas, fazer valer decisões e ter impacto no mundo externo” (ABERS; KECK, 2003 apud ABERS, 2003).

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tramitação do projeto foram criados, assim como foi introduzido um novo elemento no

planejamento da ação de governo, que é o Plano de Gestão da Bacia

O Comitê é um fórum com competência para resolver conflitos de uso em primeira

instância e, entre outros, aprovar o Plano de Gestão da Bacia, que define as diretrizes de

alocação da água. O CBHSF deliberou, em outubro de 2003 (CBH-SF no 06 – Projeto

Transposição Penedo), que a obra da transposição não poderia ter prosseguimento sem que

antes fosse elaborado um Plano de Recursos Hídricos da Bacia. Em outubro de 2004, o

Plano Decenal da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco foi concluído.

Apesar da decisão política do Comitê em ser contrário ao projeto, o Plano Decenal

da Bacia consistiu num importante instrumento técnico de defesa da obra. Ele estabeleceu

que existiriam 360 m3 de água do rio alocáveis, que os favoráveis ao Projeto de Integração

utilizaram como argumento para superação da divergência de “existência ou não de água

no rio”.

Logo após a conclusão do Plano da Bacia, o Comitê deliberou (CBH-SF no 18 –

Alocação uso externo Salvador)33 restringindo os usos externos da água do rio e

condicionou o uso da vazão alocável identificada no plano à verificação de quais seriam as

reais necessidades da bacia, de forma que projetos futuros para o desenvolvimento desta

não fossem comprometidos. Tentou-se, dessa forma, ponderar que a vazão alocável

identificada não significava a existência de água “sobrando” no rio.

A mudança institucional promovida pela Política Nacional de Recursos Hídricos e

o Comitê de Bacias ensejou alteração na configuração da negociação sobre o projeto. O

Comitê constituiu-se no fórum legalmente previsto e com regras bem-definidas para a

tomada de decisão sobre o uso das águas do Rio São Francisco. Ele comportou uma

miríade de crenças e as informações técnicas produzidas em seu âmbito apoiavam

posicionamentos diversos, com dificuldade em produzir consenso. Como já dito, o

principal instrumento técnico elaborado, o Plano Decenal da Bacia, foi utilizado como

fonte tanto na argumentação crítica quanto na defesa do projeto.

A elaboração e aprovação do plano representaram a necessidade de algum consenso

nas informações técnicas. Os números e informações produzidos foram utilizados nas

estratégias dos atores, mesmo estes possuindo objetivos distintos. Pode-se questionar o

papel do Comitê de Bacia do São Francisco na condução de um processo de aprendizado

33 Disponível em: http://www.saofrancisco.cbh.gov.br/arquivos.aspx. Acessado em: 20/12/2010.

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político ou de reformulação das crenças defendidas entre os atores envolvidos na

discussão.

4.2 Conclusão

Neste capítulo objetivou-se estabelecer as condições e termos iniciais da discussão

sobre o Projeto São Francisco. Historicamente, foram conformadas percepções e práticas

políticas e sociais que limitaram as crenças dos atores atuantes na discussão sobre o

projeto.

A experiência histórica fez com que argumentos fossem considerados apropriados

ou não para o debate. Por exemplo, a seca não poderia ser ignorada como um dos

principais problemas da região. Bem como argumentos não poderiam ser elaborados

desconsiderando a influência da Igreja Católica, os impactos da construção das barragens

no rio e a premência por ação de governo para melhorar as condições socioeconômicas no

semiárido.

A discussão sobre o projeto não ocorreu, portanto, em uma tabula rasa, as

concepções, tentativas e erros em políticas públicas para a região moldaram as opções

existentes de posicionamento dos atores.

No QUADRO 3 são apresentados os principais parâmetros identificados no resgate

histórico e que moldaram as crenças dos atores.

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QUADRO 3

Mapeamento dos parâmetros relativamente estáveis do sistema

Atributos básicos do

problema • Seca como problema climático e social

Distribuição básica dos

recursos naturais

• Escassez de água

• Concentração de terras

Valores socioculturais e

estrutura social

• Estrutura social moldada pelo acesso a terra e à água

• Coronelismo/oligarquias regionais

• Atuação da Igreja Católica

• Atuação centralizada no Estado

• Rio São Francisco como eixo da unidade nacional

• Impossibilidade de se negar água a quem tem sede

• Memória recente das desapropriações para construção das

barragens

• Nordeste como região “problema”, identidade social moldada

pela escassez de água e de recursos

Estrutura

constitucional/regras

• Política Nacional de Recursos Hídricos

• Criação do Comitê de Bacia do Rio São Francisco

Fonte: Elaboração própria.

Procurou-se mostrar também que as políticas efetivadas para o desenvolvimento do

semiárido e da ribeira do São Francisco orientavam-se por paradigmas ou ideias34 mais

amplas sobre relações de causa e efeito ou de problemas e soluções para o

desenvolvimento.

Acredita-se que a discussão sobre o projeto representou uma oportunidade política

para que grupos movidos por crenças mais profundas tentassem modificar os termos em

que as políticas de desenvolvimento do semiárido e da ribeira do São Francisco fossem

conduzidas. Entretanto, grupos movidos apenas por interesses ou objetivos materiais

também se envolveram na disputa.

Como visto no capítulo teórico, o Modelo de Coalizões de Advocacia considera que

interesses materiais também se inserem no sistema de crenças. O MCA considera, ainda,

que crenças referem-se, em especial, a ideias ou posicionamentos construídos a partir de

34 Considerando a hierarquia de crenças propugnada no Modelo de Coalizões de Advocacia, os paradigmas ou ideias identificados referem-se, em especial, às que dizem respeito às crenças dos núcleos político e duro.

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informações técnicas. As crenças defendidas espelham então os meios e os fins

visualizados para alcance de objetivos materiais e consolidação de visões de mundo.

Deve-se observar que interesses materiais ou objetivos concretos não são

necessariamente defendidos por elites econômicas e políticas. Estudo sobre arenas

participativas revela que a população pobre é motivada a participar quando acredita que

poderá obter retornos concretos com a atuação35 (ABERS, 2003).

Além disso, deve-se ponderar que posicionamentos podem ser motivados por

divergências partidárias, inimizades, cálculo eleitoral, não sendo tecnicamente

fundamentadas. Porém, na arena pública, essas motivações devem receber um verniz

técnico e uma estrutura argumentativa para que não sejam descredenciadas.

Na discussão, também foram presentes atores motivados pelo desejo de mudar a

“teoria” por trás da política pública. Eles tentaram modificar a percepção sobre problemas

e soluções e as ações de governo que devem ser realizadas. O sistema de crenças defendido

é mais amplo, as ideias técnicas formuladas tendem a se concentrar na defesa de crenças do

núcleo político e espelham crenças do núcleo duro ou visões de mundo.

A discussão sobre o Projeto da Transposição permitiu uma ativação social, criando

oportunidade para a atuação coordenada de grupos motivados por conceitos concretos e

abstratos sobre qual deveria ser a intervenção de governo. Ressalta-se, entretanto, que,

independentemente da motivação, a atuação é condicionada pelos “parâmetros

relativamente estáveis”.

As visões historicamente estabelecidas sobre problema e soluções para o semiárido

e a ribeira do São Francisco limitaram as opções políticas que podiam ser defendidas para

o projeto e como alternativa a este. Os paradigmas de solução hidráulica, modernizador e

da convivência com a seca permearam as elaborações técnicas e propostas dos grupos que

se posicionavam sobre qual modelo de desenvolvimento deveria ser seguido para a região.

Mas, juntamente com divergências sobre o paradigma a ser seguido, outras crenças

políticas entraram em choque no debate36. O resgate histórico permitiu identificar quais

foram os outros pontos de conflito que permearam a discussão. A

35 Abers (2003) acrescenta que a falta de percepção sobre benefícios diretos que podem ser obtidos na participação em comitês de bacia gera desincentivo para atuação da população pobre. 36 Optou-se por considerar os paradigmas “solução hidráulica”, “modernizador”, “convivência com a seca” como crenças políticas. Apesar de serem mais abrangentes do que as outras crenças políticas identificadas, não se avalia que a dificuldade de modificação dos mesmos chegue ser a de “conversão religiosa”. Entretanto, considerando o estudo sobre mudança política de Peter Hall (1993), mudar de “solução hidráulica” para “convivência com o semiárido” representa uma transição paradigmática.

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verificação/complementação das crenças foi realizada por meio de livros sobre o tema, que

expõem a argumentação de diversos atores (ALVES FILHO, 2008; QUINTIERE, 2010).

No que se refere a ações necessárias para o desenvolvimento, identificou-se, com

base na literatura revisada, uma primeira vertente, que é a defesa da agricultura irrigada e

outras ações de engenharia como meios de desenvolvimento do semiárido. Por outro lado,

há a concepção de que a “convivência com o semiárido” ou adequação da atividade

econômica à realidade natural seria o caminho.

Em relação à agricultura irrigada, esta aparece como “salvação” tanto para a região

da bacia doadora, quanto da bacia receptora. Acredita-se que daí se deriva um primeiro

conflito essencial sobre a execução da obra da transposição. Há concorrência entre grupos

interessados na expansão dessa atividade, uns defendem o estabelecimento de novos polos

no Ceará e Rio Grande do Norte e outros a priorização da bacia. Acredita-se que estes

últimos inspiram-se em Geraldo Rocha (1940), defensor da Bacia do São Francisco como

uma futura “Califórnia Brasileira”.

Outro conflito decorre do histórico monopólio da CHESF sobre o uso das águas do

Rio São Francisco. A produção de energia tem sido a atividade econômica principal da

bacia. A destinação de águas para o projeto determinaria revisão dessa prática. Apesar de

retirar um volume pouco considerável do rio, sua execução validaria o entendimento de

que é necessária a priorização de outros usos da água, em especial o abastecimento

humano.

A discussão sobre a obra também foi permeada pela divergência de posições sobre

o problema da seca no semiárido. Alguns acreditam que apenas levar água não resolveria o

problema, visto que os impactos negativos das estiagens são potencializados pela estrutura

social e política da região. Os defensores desta ideia argumentam que a açudagem ou

solução hidráulica legou significativa quantidade de água reservada e sem uso. Defendem

o estabelecimento de melhor gestão das águas.

Por outro lado, há um grupo que reforça a existência de déficit hídrico na região,

portanto, apenas um manancial externo, sendo o mais próximo o Rio São Francisco, o qual

pode assegurar abastecimento de água para o desenvolvimento da região. Assim, a

limitação natural, falta de água, juntamente com estruturas sociais e econômicas

excludentes causam o cenário de pobreza e falta de perspectivas.

As marcas da História também moldaram a percepção de que a obra da

transposição não beneficiaria aqueles realmente necessitados de água. Mais uma vez a ação

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do Governo beneficiaria a elite. Argumentam que a população que mais sofre com as

estiagens são as populações rurais, as quais não seriam atendidas pela obra.

Os defensores do projeto, por sua vez, dividem-se nas justificativas para o mesmo.

Uma vertente, ligada à visão de que a agricultura seria a “salvação” da região, crê que a

obra é vital para a produção e prosperidade pela agricultura. Outro grupo parte do

diagnóstico de que o desafio do semiárido está em seus centros urbanos, que já abrigam a

maioria da população. Neste contexto, a população a ser beneficiada seria a desses espaços

urbanos, assegurando sua a expansão e desenvolvimento.

Outra preocupação, que é de certa forma recente para o semiárido e a Bacia do Rio

São Francisco, refere-se à preservação ambiental. O embate sobre a obra permitiu mais

atenção à bandeira pela revitalização do Rio São Francisco. Assim, a crítica da obra

apoiava-se na necessidade de imediata recuperação do rio, cujas condições não permitiriam

a retirada de água.

Na literatura considerada, a recuperação ambiental não era uma questão central para

o semiárido. A discussão sobre a transposição possivelmente contribuiu para que a

recuperação ambiental do semiárido, com contenção de processos de desertificação, por

exemplo, e a do Rio São Francisco, se tornasse preocupações políticas fortes.

Os conflitos apresentados refletem as divergências em crenças políticas que

nortearam a discussão sobre o projeto. No ANEXO A, são apresentadas as crenças

políticas e instrumentais.

A análise sobre o compartilhamento das crenças identificadas e atuação coordenada

dos atores permitirá estabelecer nova abordagem para o objeto de estudo, que é a

compreensão do embate sobre a transposição como uma disputa entre Coalizões de Defesa.

Não obstante, antes de procurar as respostas aos problemas de pesquisa, o próximo

capítulo objetiva apresentar o histórico do Projeto de Integração de Bacias e as instâncias

pelas quais tramitou a partir do ano de 1994. Objetiva-se situar as arenas de discussão

sobre o mesmo e pontos de decisão, assim como expor as redefinições técnicas que este

sofreu como resultado da interação entre os atores.

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5 O PROJETO DA TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO

5.1 Introdução

O Projeto de Integração representou uma oportunidade política37 no pensamento e

ação de governo sobre a importância da água para o desenvolvimento do semiárido. O

porte e orçamento da obra, os possíveis impactos na região e a consolidação de fóruns de

participação social incentivaram a atuação de diversos atores que tinham interesses e

visões sobre quem, onde e como deveriam ser priorizados na intervenção do Governo.

Os problemas e soluções eram formulados distintamente entre os atores que

participaram da discussão. Como visto no capítulo anterior, ao longo dos anos, a

experiência colhida das intervenções de governo e as percepções historicamente

construídas moldaram o posicionamento dos atores sobre a seca, o semiárido e o papel da

obra da transposição.

As diferentes percepções eram expressas em arenas/instâncias de tramitação do

projeto ou em fóruns especialmente estabelecidos para debater o mesmo. Neste capítulo

são identificadas as instâncias no Governo Federal em que o projeto foi debatido e os

atores.

A criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco em 2001 constituiu-se em

novo espaço e instrumento estratégico utilizado pelos atores para tentar orientar a ação do

Governo no uso da água do Rio São Francisco e o seu papel no desenvolvimento do

semiárido. As greves de fome do Bispo Dom Cappio também contribuíram para dar força

às demandas dos segmentos opositores à obra.

Os grupos que defendiam a obra a apresentavam como uma solução estruturante

para a superação ou amenização dos impactos da seca no semiárido nordestino. Eles

acreditavam que ela propiciaria o insumo escasso e vital para sustentação social e

econômica do semiárido.

37 O conceito de oportunidade política é emprestado de Tarrow (2009). O autor o define como “dimensões consistentes – mas não necessariamente formais ou permanentes – do ambiente político que fornecem incentivos para a ação coletiva ao afetarem as expectativas das pessoas quanto ao sucesso ou fracasso” (GAMSON; MEYER, 1996 apud TARROW, 2009, p. 105). O autor emprega o termo para analisar a ativação de movimentos sociais. Neste trabalho, emprega-se o termo incluindo não apenas pessoas da esfera da sociedade civil, mas também políticos, técnicos/burocratas que percebiam o porte e o significado da obra como plataformas para exporem as suas preocupações. A criação do Comitê de Bacia, por sua vez, consistiu em uma dimensão formal que impulsionou a atuação de segmentos até então excluídos e reforçou a estratégia de atores já atuantes na discussão.

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O mapeamento das crenças políticas demonstrou que outros atores não percebiam a

escassez de água como problema da região, e sim a estrutura social e econômica frágil que

a seca expunha ou acentuava a exclusão e o quadro social da região.

O porte e a importância da obra na ação de governo para o desenvolvimento do

semiárido mobilizaram, portanto, setores políticos, da academia e da sociedade civil. A

atuação destes determinou que ao longo dos anos o conceito da obra e suas especificações

fossem mudando. Assim, objetiva-se mostrar as principais transformações que a solução de

engenharia sofreu ao longo do tempo.

O público beneficiário e os mecanismos de sustentação social e econômica

proporcionados pela obra foram revistos. Procura-se elucidar razões, momento e espaço

pelas quais as especificações técnicas do projeto foram sendo revistas.

Conhecer as arenas e os pontos de decisão em que esta tramitou ou foi discutida é

essencial, visto que são nesses espaços públicos ou na burocracia governamental que são

expostas e confrontadas as diferentes expectativas e realizadas as estratégias para moldar a

ação governamental de acordo com o que se acredita ser a relação causal entre problemas e

soluções, conforme os desejos materiais e anseios das pessoas.

5.1.1 Formulação do Projeto 1818-1994

A ideia da transposição é como uma fênix que renasce das cinzas (COELHO,

2005). A primeira vez em que foi suscitada foi em 1818. É atribuído ao ouvidor do Crato,

José Raimundo de Passos Borba, a primeira defesa do projeto (VILLA, 2001). Discussões

sobre o mesmo constariam em documentos do Governo de Dom João VI, sendo

apresentadas pelo Senador Pompeu (1818-1877).

Deve-se notar que, junto com os grandes episódios de seca, sempre se seguiam

soluções que até hoje permanecem entre as políticas de governo. As frentes de emergência

teriam se originado em 1721-25, mediante a troca de alimentos trazidos em navios por

trabalho em obras públicas nas novas vilas (SARMENTO, 2005).

A destinação de recursos públicos para combate à seca, por sua vez, teria iniciado

após a independência, nos anos 1824-25 (SARMENTO, 2005). Villa (2001) levanta a

possibilidade de que a destinação de recursos públicos tenha ocorrido pela transição de

poder de Pedro I para o novo bloco político que tomou o poder. No período regencial

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(1831-1840), também se iniciou a perfuração de poços como intervenção entre o leque de

soluções pensadas para a questão da seca no Nordeste.

A defesa da construção de poços para reserva de água pode ser primeiramente

atribuída ao então Governador do Ceará, Martiniano de Alencar, em 1830 (SARMENTO,

2005; VILLA, 2001).

Outras soluções criativas como a importação de camelos da Argélia também foram

tentadas. Previa-se que os camelos serviriam como “navios do deserto”, assim como o

eram em sua terra de origem. A experiência não vingou e essa solução caiu no

esquecimento, sendo retomada em 1934 por Inácio Raposo, que tentou convencer Getúlio

Vargas (VILLA, 2001).

Em 1845, novamente a ideia da transposição foi trazida a debate no parlamento

brasileiro. O deputado e intendente do Crato no Ceará, Marco Antônio de Macedo,

retomou a ideia de transposição das águas do São Francisco para o rio Jaguaribe

(SARMENTO, 2005).

O engenheiro Guilherme Fernando Halfeld elaborou em 1850 um relatório sobre a

transposição a pedido de Dom Pedro I. O estudo demorou oito anos para ser concluído.

Este foi levado para o debate parlamentar, mas não obteve aceitação e foi arquivado, a

despeito da priorização dada ao mesmo por Dom Pedro II (VILLA. 2001).

A Comissão Científica de Exploração, composta de pessoas como o escritor

Gonçalves Dias, o Barão de Capanema e o engenheiro Giácomo Raja Gabaglia, em 1859,

elaborou um relatório indicando novamente a transposição como intervenção. Os trabalhos

da Comissão foram muito criticados, tanto pelos altos gastos e uso dos recursos para

divertimentos quanto pela atribuição dos problemas à preguiça do nordestino para trabalhar

a terra. Esse relatório ajudou a consolidar um preconceito que persiste, imputando ao

sertanejo a responsabilidade pela miséria no sertão (VILLA, 2001).

A grande seca de 1877 foi um marco na consolidação no imaginário nacional de

diversas percepções sobre a realidade e perspectivas do Nordeste. De acordo com

Sarmento (2005), esta consolidou a visão de que os nordestinos seriam incapazes de lidar

com a problemática da seca. Surgiu, então, outra solução, a de incentivo à migração. Nesse

período o fluxo migratório era majoritariamente para a região amazônica.

A seca de 1877 foi devastadora, em especial porque nos anos anteriores houve

expressivo crescimento populacional devido ao aumento da produção do algodão. O

crescimento populacional ocorreu devido à prosperidade econômica gerada pelo aumento

da demanda por algodão. A exportação do algodão aumentou devido às guerras civis

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americanas que reduziram a capacidade de produção daquele país e incentivaram, então, o

desenvolvimento da produção do “ouro branco” no Brasil Colônia.

A seca gerou migração para o litoral e, de acordo com Villa (2001), os produtores

de cana empregavam a massa de mão-de-obra com salários ínfimos e vendiam os escravos

a altos preços para a produção de café no Sudeste. Ele afirma, ainda, que a pouca

divulgação sobre a seca e a demora na destinação de recursos para assistir os afligidos

resultava de interesse dos produtores de cana em manter a condição que se apresentava.

Na crise gerada por essa grande seca, a discussão sobre o projeto ressurge. Em

seção de 27 de junho de 1877, o Deputado Tristão de Alencar Araripe defende o projeto. A

intervenção adotada foi a construção de açudes. O relatório de Henrique Beaurepaire-

Rohan, de 1878, fundamentou essa solução de construção de açudes, que foi paralisada

após a retomada das chuvas (SARMENTO, 2005).

Villa (2001) informa, ainda, que a paralisação da construção dos açudes é

justificada em discursos no parlamento com o argumento de que a ajuda pública deveria

cessar, uma vez que o povo nordestino “estaria habituado à indolência”. Isso demonstra o

início de uma característica histórica das intervenções no Nordeste, o enraizamento do

casuísmo e da descontinuidade das ações que são empreendidas na região.

A seca de 1877 matou, com estimativa conservadora, 500 mil pessoas ou

aproximadamente 4% da população brasileira à época. Em torno de 3 milhões de

nordestinos emigraram de suas terras (VILLA, 2001) para a Amazônia, litoral, capitais e

Sudeste.

Villa (2001) chama a atenção, ainda, para o fato de que as experiências, mesmo as

mais criativas, como a importação de dromedários, obtiveram destinação de recursos

vultosos devido à ligação das pessoas interessadas com o Governo central, muitas sendo

amigas do imperador.

Sarmento (2005) informa que apenas em 1897-98 a seca foi tratada nas mensagens

presidenciais. Além disso, nesse período foi inaugurado o primeiro grande açude público

do Nordeste, o açude Cedro no Ceará.

Pode-se dizer que no século XX três grandes soluções foram adotadas para a

região: as frentes de trabalho em períodos críticos, a açudagem ou solução hidráulica e o

incentivo à desocupação da região mediante a migração.

A restrição orçamentária é outro elemento que sempre esteve presente como fator

limitante para as intervenções na região. O Governo de Campos Sales, empenhado em

garantir melhoria econômica no país diante da crise do café e da borracha, realizou corte

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nas despesas governamentais. Apesar dos pedidos dos governadores, ele não liberou os

recursos demandados em momentos de crise (SARMENTO, 2005).

Para Celso Furtado (1989), a ação do Governo para lidar com a questão da seca

reforçava o status quo existente, ou seja, a fome criada pela seca era resultado das decisões

tomadas pela classe dirigente.

A açudagem ou solução hidráulica consolidou-se com a criação, em 1909, do

IOCS. A criação dessa Inspetoria reflete outro elemento constante na história do Nordeste,

criado como resultado da visita de Afonso Pena antes de tomar a posse como presidente.

Apesar dos relatórios técnicos e recomendações de seus ministros, o IOCS só foi criado

por decisão de Afonso Pena após este se assustar com a inoperância do açude de Quixadá,

apesar do vultoso investimento realizado (VILLA, 2001).

O IOCS foi convertido em Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca (IFOCS) em

1920 no Governo de Epitácio Pessoa. Este, em sua mensagem presidencial, definia um

programa de obras hidráulicas (SARMENTO, 2005).

Villa (2001) chama a atenção para o fato de que no período da I Guerra, apesar do

Nordeste estar sofrendo grande seca, monopolizavam os jornais discussões sobre a guerra.

De acordo com o autor, “[...] os jornais começaram a publicar pequenas notas com notícias

sobre a seca no Nordeste. Como de rotina, a situação já era grave muito antes de a

imprensa sulista dar atenção aos reclamos da região” (VILLA, 2001, p. 100).

Observa-se, ainda, que os governadores dos estados atingidos não realizaram

cobrança efetiva do Governo central. Segundo Villa (2001), a falta de enfrentamento direto

decorria de uma postura de subserviência e acomodação das oligarquias regionais, que

temiam a interferência do Governo central, o que poderia levar à perda de poder e ao

fortalecimento de opositores.

Villa (2001, p. 122) aduz: “como sempre ocorreu em época de calamidade, a ideia

do desvio das águas do São Francisco para o Rio Jaguaribe foi novamente discutida”.

Em 1919, Epitácio Pessoa tomou posse como Presidente. Ele era paraibano e fora

eleito no âmbito da República do “café-com-leite” devido a um impasse entre Minas, São

Paulo e Rio Grande do Sul que não conseguiu definir um candidato.

De acordo com Villa (2001), Epitácio Pessoa surpreendeu o mundo político ao

definir em sua primeira mensagem presidencial um conjunto de obras para o Nordeste,

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com o objetivo de enfrentar a seca de forma totalizante. A irrigação apareceu como um dos

meios para o desenvolvimento da região38.

No Governo de Epitácio Pessoa foi realizado considerável volume de obras, diante

do histórico da região. Seu governo foi muito criticado e uma comissão foi formada para

visitar o Nordeste e avaliar as ações39 que estavam sendo realizadas na região. Essa

comissão, entre outras constatações em seu relatório, também indicava a obra da

transposição como solução.

Os gastos com obras no Governo de Epitácio Pessoa totalizaram 304 mil contos de

réis, enquanto que para a construção da Central do Brasil o gasto foi de 400 mil contos de

réis (VILLA, 2001). Apesar do alto gasto, Epitácio notou que, em relação à construção da

Central do Brasil, “ninguém tugiu nem mugiu. Por que então só quando se trata do

Nordeste se assanham os pruridos de economia desses patriotas?!” (VILLA, 2001, p. 136).

No Governo de Artur Bernardes (Presidente entre os anos de 1922-26), as obras

foram interrompidas e passaram serem adotadas as frentes de trabalho e formação de

campos de concentração para controle dos afligidos pela seca. Esses campos já haviam

sido utilizados na seca de 1915, em Fortaleza.

No Governo de Getúlio Vargas, a açudagem foi criticada como solução para o

Nordeste e foram estabelecidos outros elementos para enfrentamento da seca. Na

Constituição de 1934, foi incluída a destinação de 4% para obras, o que foi reduzido para

3% na Constituição de 1936.

A migração persistiu como processo e política para a região. O fluxo dirigia-se para

o Maranhão e o Piauí. Em 1941-42, como o surto de produção da borracha na Amazônia,

os nordestinos também se mudavam para aquela região. Estes eram denominados de

trabalhadores da borracha, porque seu trabalho serviria para regularizar a oferta de

borracha para os países aliados.

O combate à seca passou a integrar a agenda política mediante o estabelecimento de

leis e organizações para o tratamento da mesma. Em 1936 foi promulgada a lei que

conceituou o termo Polígono das Secas. Em 1945, foram criados a CHESF e o IFOCS, que

foi transformado em DNOCS. Em 1948, foi criada a Comissão do Vale do São Francisco,

que deu origem à CODEVASF, em 1974.

38 A irrigação havia sido mencionada por Orville-Derby como meio para superação das limitações da região já em 1909. 39 1922 - comissão formada por Rondon, Idelfonso Lopes e Paulo de Moraes Barros. Também indicou a obra de transposição.

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Pode-se dizer que a criação dessas novas instituições reflete uma resposta às críticas

que foram feitas ao liberalismo do período da República do café-com-leite, com a busca de

constituição de um Estado forte que atuasse, inclusive, para o desenvolvimento do

Nordeste (VILLA, 2001).

Em 1951-1953, no início do 2º Governo de Vargas, ocorreu outra grande seca. O

fluxo migratório reorientou-se para o sul.

Até esse momento, os eventos na História se repetiam. Crises de seca levavam à

migração e morte de milhares de nordestinos. Estes, humilhados, eram confinados em

campos de concentração, morriam nas estradas, de fome e doenças como sarampo, peste

bubônica e tracoma – doença causada pela combinação dos resultados da seca.

Quando não morriam, eram transportados como animais para a Amazônia e

posteriormente para o sul. As obras realizadas tinham caráter emergencial e eram fontes de

desvio de recursos. Até mesmo os alimentos enviados, quando não estavam em estado de

putrefação, eram desviados.

Organizações como o DNOCS formalizavam a falta de planejamento na realização

das obras, o apadrinhamento e a corrupção. A bancada do Nordeste não pressionava por

melhorias na região, entretida no jogo para manutenção do poder.

O Governo de Juscelino deu mais ênfase ao Nordeste, para obter apoio em uma

possível campanha de reeleição. Foi então criado o GTDN. A coordenação desse grupo

técnico ficou a cargo de Celso Furtado. A grande obra na região foi o açude Orós, que em

1960 gerou grande desastre na região com o rompimento de seu maciço.

Em 1958, foi publicado na revista “O Cruzeiro” artigo do engenheiro italiano Mário

Ferracuti, discutindo o Projeto da Transposição, o que reacendeu a discussão entre a

bancada do Nordeste no parlamento.

No período militar, a ação para combate à seca restringiu-se efetivamente às frentes

de trabalho, apesar da criação de alguns planos para o desenvolvimento da região. Entre

esses planos, ressaltam-se o Polonordeste (1974) e o Projeto Sertanejo (1976). A seca de

1970 foi novamente devastadora. As cenas repetiram-se: saques, migração e doenças.

A ideia da obra ressurgiu novamente no Governo Figueiredo devido a uma grande

seca. Mário Andreazza, nomeado Ministro do Interior, cargo que exerceu no período de

1979 a 1985, defendia o projeto, pois tinha pretensão de tornar-se presidente do Brasil com

a abertura democrática (VILLA, 2001).

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O projeto fora elaborado pelo DNOS e previa a vazão de 300 m3/s. Acabada a seca,

o projeto foi engavetado. Os estudos à época foram financiados pelo Banco Mundial

(ENTREVISTA 03/12/2010)

5.1.2 Formulação do projeto pós-1994

Em 1994, a SUDENE propõe a realização do projeto mediante a proposição

05/1994. A execução é conduzida pelo Ministério da Integração Regional40 em grupo de

trabalho especialmente criado. À época o Ministro era Aluízio Alves, nascido no estado do

Rio Grande do Norte. Ele ocupou o Ministério por sete meses durante o Governo de Itamar

Franco. Pode-se atribuir a retomada do projeto à pressão de grupos políticos e empresariais

consolidada no documento “Carta de Fortaleza” entregue em um cenário de forte seca na

região.

A elaboração da “Carta de Fortaleza” foi coordenada pelo Instituto Tancredo

Neves, ligado ao Partido da Frente Liberal, atualmente denominado Partido dos

Democratas. O então presidente do Instituto era o Deputado Federal Marcondes Gadelha.

Em entrevista, este informou que o projeto foi discutido em audiência na cidade de Sousa-

PB, em que estavam presentes o candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva e o

Governador de Sergipe João Alves (ENTREVISTA 03/12/2010).

De acordo com o Deputado Marcondes Gadelha, o projeto elaborado pelo DNOS

foi resgatado dos arquivos do Banco Mundial em Washington. O engenheiro responsável,

José Ribamar Simas, expôs o mesmo em reunião em Sousa-PB. O deputado informou

também, ao contrário do que se observa atualmente, que o candidato Lula demonstrou

desaprovar a obra, enquanto o Governador João Alves a apoiava.

O Ministério da Integração Regional elaborou um projeto básico para início

imediato das obras interligando Cabrobó-PE a Jati-CE. A vazão prevista era de 70 m3/s na

primeira etapa e 110 m3/s na segunda etapa. O projeto da década de 1980 foi

complementado em apenas quatro meses por uma equipe de mais de 400 pessoas. O então

40 O Presidente Itamar Franco assinou decreto em julho de 1994 criando o Grupo de Ações Integradas para o desenvolvimento e supervisão do programa do Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco. O grupo era coordenado pelo Ministério da Integração Nacional e abarcava outros órgãos e Ministérios como Exército, Saúde, Minas, Energia, Agricultura, entre outros. As principais definições que o grupo deveria realizar eram: execução da obra, implementação de projetos de aproveitamento agrícola ao longo dos canais, desapropriação e regularização fundiária para implementação dos projetos de irrigação, disponibilidade de energia para atender às ações a serem executadas, avaliação sistemática de impactos no meio ambiente, entre outros (Decreto Presidencial de 06/07/1994).

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Ministro Aluízio Alves informou que este foi readequado em uma nova filosofia do

problema da água. “Não se tratava apenas de construir açudes, perfurar poços, mas também

de cuidar do gerenciamento dos recursos hídricos e do mercado das águas” (ALUÍZIO

ALVES, Audiência Câmara dos Deputados, 2000).

Diversas organizações da sociedade civil pleitearam audiências para esclarecimento

sobre o Projeto, ao tempo em que o Ministério do Meio Ambiente, por intermédio do

IBAMA, elaborava o termo de referência (IBAMA, 1994). Uma primeira versão do termo

de referência para contratação dos estudos ambientais ficou pronta em outubro de 1994.

Em 1995, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso firmou um documento

denominado “Compromisso pela Vida do São Francisco”. Neste ele afirmou que o foco

seria a revitalização do Rio São Francisco. O projeto foi então paralisado.

Em 1996, novo termo de referência para contratação dos estudos ambientais foi

disponibilizado pelo IBAMA. Ainda naquele ano, foi criada uma comissão41 composta de

diversos Ministérios (Planejamento, Minas e Energia, Integração Regional, Ciência e

Tecnologia, entre outros), que revelavam a necessidade de melhora dos estudos, em

especial os ambientais. O órgão coordenador era a Secretaria Especial de Políticas

Regionais (SEPRE), vinculada ao Ministério do Planejamento42. A comissão recomendou

então a retomada dos estudos.

Desde o início, o Ministério de Minas e Energia (MME) e a CHESF foram

envolvidas na discussão (ENTREVISTA 29/09/2010), visto que poderiam ser os maiores

opositores ao projeto. Após as manifestações de representantes da CHESF, o projeto sofreu

redução da vazão, com a informação de que 70 m3 afetaria a produção de energia. A vazão

máxima foi redefinida para 60 m3/s.

Os estudos de 1997 são considerados “estudos de planejamento”, ou seja, não

foram motivados pela necessidade de uma resposta a um episódio de seca (ENTREVISTA

1o/10/2010). O projeto teve seu objetivo reorientado para a garantia da segurança hídrica,

ou seja, amenizar a incerteza da previsão de secas e de sua duração no semiárido.

Em relação ao projeto de 1994, também fora modificado o traçado do canal para

que este passasse pelos principais açudes. Um elemento técnico que pode ter contribuído

para a mudança do objetivo do projeto é a constatação de que na área onde o mesmo

estaria inserido há baixa capacidade de sustentação da atividade agrícola. A atividade

41 Não foi possível localizar a portaria que instituiu esta comissão, que foi criada em 1996. 42 Os estudos foram realizados por meio de convênio entre o Ministério da Integração e o Ministério da Indústria Desenvolvimento e Comércio. Conduziram os estudos o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e a Fundação de Ciência, Aplicação e Tecnologias Espaciais (FUNCATE).

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agrícola concentra-se em vales de rios intermitentes e em manchas de solos sedimentares.

Além disso, o argumento de se levar água apenas para irrigação não obteria sustentação,

visto que ainda havia água para estes fins na região (ENTREVISTA 1o/10/2010).

O argumento utilizado a favor do projeto como meio para garantia da segurança

hídrica assentava-se na crítica à açudagem ou da solução hidráulica. Informava-se que os

locais ou chamados boqueirões possíveis para construção de grandes barragens já estavam

sendo aproveitados. Além disso, a intensa evaporação esgotava as águas dos reservatórios

e impedia o uso eficiente. O uso eficiente consistiria em mais uso das águas do açude ou

mais vazão, sem gestão conservadora ou guardar água diante da incerteza dos episódios de

seca. O projeto à época assentava-se em alguns estudos, como os do Projeto Áridas, de

1994, os quais indicavam a existência de déficit hídrico na região.

Em manifestação da SEPRE, foi ressaltado que o objetivo do projeto seria evitar

que a atividade econômica básica, geradora de emprego e renda, ficasse paralisada durante

as secas rigorosas, comuns no semiárido, minimizando o deslocamento de populações, a

desestruturação econômica e a falta de água global.

Em 1998, o Nordeste enfrentou uma grande seca, cuja previsão fora apresentada ao

Palácio do Planalto em novembro de 1997 (GOMES, 2001). Diversos pronunciamentos no

Congresso demandaram liberação urgente de recursos para combate da seca. Entre as

medidas demandadas também constou a implementação do Projeto de Transposição, pelo

deputado pela Paraíba, José Aldemir (Partido do Movimento Democrático Brasileiro -

PMDB-PB) (GOMES, 2001)43. À época, as medidas tomadas para amenizar os efeitos da

seca consistiram, em suma, na criação de frentes de trabalho, perfuração de poços e

distribuição de cestas básicas.

Nesse meio tempo, associações da sociedade civil promoviam discussões sobre o

projeto e ações de repúdio ao mesmo. Como exemplo, tem-se o Seminário na

Confederação Nacional das Indústrias em junho de 1998, com moção da Fundação

Biodiversitas contra o projeto.

Em 2000, a discussão do projeto foi para o Ministério do Interior com o Ministro

Fernando Bezerra, nascido no Rio Grande do Norte. João Urbano Cagnin ocupou o cargo

de coordenador do projeto, mas o principal interlocutor junto ao Ministério do Meio

Ambiente (MMA) para o licenciamento foi Rômulo Macedo.

43 O consumo calórico recomendado é de 2.500 calorias ou 1.500 calorias para uma pessoa que não realize atividade alguma. No Nordeste, o consumo médio, em épocas de seca, chega a ser de 1.400 calorias, atingindo até mesmo 500 calorias. Na Alemanha nazista, nos campos de concentração consumiam-se 900 calorias por dia (VEJA, 06/05/98 apud COELHO, 2005).

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Utilizando o termo de referência elaborado em 1996, em julho de 2000 o Estudo de

Impacto Ambiental foi submetido ao IBAMA para obtenção da licença prévia. Esse estudo

foi criticado por ter sido elaborado por empresa estrangeira, que não teria conhecimento da

realidade do país.

No início de 2000, foi criado um grupo de trabalho na Câmara dos Deputados para

discutir a transposição. Mais de 80 parlamentares se inscreveram naquele que foi um dos

maiores grupos de trabalho já criados na Casa.

Enquanto as discussões eram acirradas no Congresso e nas Assembleias

Legislativas, a sociedade civil também se mobilizava e atuava. Em fevereiro de 2001, o

Conselho Regional de Arquitetos da Bahia oficiara o IBAMA de que não aprovava os

estudos apresentados. O Conselho Regional de Administração e Engenharia-BA

apresentou relatório contratado da Fundação Estudos e Pesquisa Aquática (FUNDESPA),

no qual se questionava a não consideração da bacia hidrográfica na análise de impactos

ambientais. Também foi questionada a inexistência de um Plano de Recursos Hídricos da

Bacia do São Francisco.

Diversas associações pleiteavam mais informações sobre o projeto junto ao

IBAMA. Os Governos dos estados posicionaram-se em relação ao estudo de impacto

ambiental apresentado. Alagoas, Bahia, Minas Gerais e Sergipe posicionaram-se contra a

emissão da licença prévia. A batalha passou para as inúmeras ações civis públicas,

demandando a paralisação do licenciamento ambiental.

Os estudos iniciados desde 1997 prosseguiam e, a partir daí, foi inserido o Eixo

Leste. A inserção do Eixo Leste é atribuída à manobra política de parlamentares da Bahia

que tentaram dividir o projeto (ENTREVISTA 03/12/2010). No aspecto técnico, a

necessidade do Eixo foi constatada após novo estudo de balanço hídrico da região

(ENTREVISTA 1o/10/2010).

Os estudos concluídos foram o de viabilidade, impacto ambiental e parte do projeto

básico (ENTREVISTA 1o/10/2010). Estes foram submetidos à discussão pública no ano de

2001.

As audiências públicas foram realizadas entre 19 de março e 10 de abril de 2001.

Em 19/03 ocorreram audiências em Sousa-PB, 21/03 em Natal-RN, 23/03 em Fortaleza-

CE e 06/04 em Salgueiro-PE. Foram canceladas as audiências em Penedo-AL, Salvador-

BA e Juazeiro-BA. Foram suspensas as audiências em Belo Horizonte-MG e Aracaju-SE.

As audiências em Salvador-BA e Juazeiro-BA foram impedidas por ação civil pública das

entidades GAMBA e Centros de Recursos Ambientais.

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Diversas críticas e questionamentos foram feitos sobre a dificuldade de

representantes da sociedade civil em terem acesso aos locais das audiências e solicitaram a

realização das mesmas em outras localidades. Em petição dirigida ao IBAMA em abril de

2001, associações da sociedade civil (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura -

CREA-BA, Caritas, GAMBA, Garra, Instituto Manoel Alves, entre outras) e os Deputados

Federais Jacques Wagner, Walter Pinheiro, Nelson Pelegrino, Waldir Pires e Haroldo Lima

posicionaram-se contrariamente ao projeto e demandaram o cumprimento do compromisso

firmado por Fernando Henrique Cardoso.

A movimentação da sociedade civil intensificou-se com o surgimento de atores

com mais visibilidade. Como porta-voz da academia e dos argumentos técnicos sobre o

projeto, o Professor João Abner, do estado do Rio Grande do Norte, e o Professor João

Suassuna destacaram-se.

A apresentação dos objetivos do projeto durante o Governo FHC oscilava entre

levar água para projetos de irrigação que permitiriam a integração econômica do Nordeste

e o objetivo de garantia hídrica (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998; MELLO, 2008). Pode-

se avaliar este ponto sob o aspecto de que os objetivos do projeto de 1994 conviviam com

as novas características inseridas com os estudos iniciados em 1997, haja vista que poucos

têm acesso aos estudos, velhas concepções permanecem entre antigos defensores do

projeto. Entretanto, apesar do projeto de 1997 inserir os conceitos de usos múltiplos e

sinergia hídrica, a irrigação ainda era um dos objetivos.

Em junho de 2001, foi criado o Projeto de Revitalização do Rio São Francisco44,

que abarcou duas preocupações dos grupos opositores da obra. Ele incluiu como

componentes ações de despoluição, conservação de solos, entre outras relacionadas à

melhoria das condições ambientais do rio. Estabeleceu, também, a linha de atuação de

“convivência com a seca”. As ações que deveriam ser empreendidas objetivariam a

garantia de abastecimento de água para as populações urbanas e rurais dispersas via

cisternas, poços e sistemas simplificados.

O coordenador formal do Projeto de Revitalização é o MMA, mas sua gestão foi

concebida via Comitê Gestor, que agregaria Ministério da Integração e Agência Nacional

de Águas. Menezes (2009), a partir de entrevista do então coordenador do Projeto de

Revitalização, postula que houve embate entre MMA e MI, visto que este último queria

associar a revitalização à integração.

44 Decreto Presidencial de 05 de junho de 2001. Em outro decreto, publicado no mesmo dia, foi criado o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco.

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Em entrevista com o assessor da Casa Civil que acompanhava o assunto, obteve-se

a informação de que a liderança do Programa de Revitalização foi perdida pelo MMA a

partir do momento em que este não conseguiu corresponder às expectativas de formulação

de diretrizes e investimentos aos quais o MI deveria vincular-se. Também o MMA

elaborou um Projeto de Revitalização que desconsiderou organizações existentes na bacia,

organizando o planejamento em torno de novos núcleos com lideranças indicadas pelo

próprio Ministério. O MMA também perdeu o apoio dos movimentos sociais e o Programa

de Revitalização concentrou-se no Ministério da Integração Nacional (MI) (ENTREVISTA

17/01/2011b).

A alocação de recursos significativa para o projeto aconteceu apenas em 2007, com

o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento. A execução das ações ficou a

cargo do Ministério da Integração. Na queda de braço com o MMA, o MI conseguiu inserir

sob o nome “Projeto São Francisco” as ações de revitalização e a obra da Integração de

Bacias.

Entre 2001 e 2002, o processo de licenciamento ambiental foi o palco de conflito

entre as forças defensoras e opositoras ao projeto. O segmento dos opositores tinha mais

força, visto que o Ministério do Meio Ambiente foi ocupado por pessoas contrárias ao

projeto. O processo de licenciamento foi então paralisado. O engavetamento do projeto é

simbolizado mediante decreto criando o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São

Francisco. Nos anos seguintes, este seria o fórum de debates e de voz dos segmentos

opositores ao projeto.

O jornal Folha de São Paulo levantou os seguintes elementos para o adiamento da

execução da obra no Governo FHC (FOLHA DE SÃO PAULO, 2002):

• Seca - a estiagem na região é uma das maiores desde 1971 e há pouca água na

Bacia do São Francisco para ser levada para outros rios;

• Política - oposição dos parlamentares da Bahia, Sergipe e Alagoas;

• Custo - a obra está orçada em R$ 3 bilhões, o equivalente a um orçamento inteiro

das Centrais Elétricas Brasileiras S/A. (ELETROBRÁS);

• Energia - segundo o relatório de impacto ambiental, a obra pode derrubar até 10%

da produção de energia da CHESF entre os reservatórios de Itaparica-PE e Xingo-

AL;

• Adiamentos - mesmo que começasse nesse ano (2002), não haveria tempo para

inaugurações de trechos da transposição no mandato de FHC.

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Acrescenta-se à lista elaborada pela Folha de São Paulo a já informada força do

MMA à época do Governo FHC. O processo de licenciamento ambiental ficou paralisado

no IBAMA e a criação do Projeto de Revitalização e, em especial, do Comitê estabeleceu

como prioridade a revitalização do rio e um novo fórum em que o projeto poderia ser

contestado.

Entre os anos de 2002 e 2003, o IBAMA paralisou a análise do Estudo de Impacto

Ambiental/ Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), pois justificava não poder emitir

parecer conclusivo, visto que as audiências públicas não foram concretizadas devido às

ações civis públicas. Em outubro de 2003, a unidade técnica do IBAMA emitiu parecer

informando que estudos realizados não atendem ao termo de referência fornecido pelo

órgão e precisam, então, ser reelaborados (IBAMA, 1994).

Nos anos FHC, o projeto obteve impulso em sua formulação técnica. O Ministério

da Integração, em mais de três anos de trabalho, aprofundou os estudos necessários para a

aprovação de uma grande obra de infraestrutura: viabilidade, impactos ambientais e parte

do projeto básico. Os avanços no campo técnico não foram suficientes para que a obra

saísse do papel. Desde o início das discussões em 1994, a sociedade civil e política

contrárias ao projeto acompanhava a realização do mesmo e atuava principalmente para

bloquear o seu licenciamento ambiental. A força desses segmentos com forte vinculação ao

movimento ambiental45 era concretizada no Ministério do Meio Ambiente e na legislação

sobre gestão de recursos hídricos aprovada em 1997.

No Governo Lula, a discussão reiniciou-se em uma nova configuração institucional.

No ano de 2002, houve intenso processo de mobilização e constituição do Comitê de Bacia

do Rio São Francisco. No ano de 2003, o Comitê da Bacia do Rio São Francisco iniciou as

suas atividades e na reunião plenária em Penedo definiu que a decisão sobre a transposição

não poderia ser tomada até a finalização do Plano de Bacia. A Carta de Penedo formalizou

essa deliberação do Comitê46.

O plano foi desenvolvido pela Agência Nacional de Águas (ANA) e adaptado pelo

Comitê (KLEEMANS, 2010). De acordo com técnico do Governo (ENTREVISTA

1o/10/2010) os números que o plano produziria já eram de conhecimento, devido à atuação

desde a década de 1970 na bacia. Ele informou, ainda, que já eram contabilizados os usos

45 Em entrevista foi informado que o Banco Mundial desistiu de financiar o Projeto da Transposição porque temia a resposta do movimento ambientalista (entrevista 03/12/2010). Esse movimento desde os anos 1990 fortalecia-se no país. 46 Ata II Reunião Plenária do CBH São Francisco 1o/10/2003. Disponível em: www.saofrancisco.cbh.gov.br. Acessado em: 13/01/2010.

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da CODEVASF e as demandas da CHESF (ANA, 2005a). Desta forma, o Governo apenas

esperou seis meses para que o plano fosse terminado, de acordo com a legislação vigente.

Apesar do Plano de Bacia ter produzido informação sobre a disponibilidade de

água, o conflito estava aceso. A passionalidade despertada pelo tema do Rio São Francisco

e as visões que se projetavam para a região impediam a solução do problema somente pela

argumentação técnica (KLEEMANS, 2010). Nas plenárias de 2004, a transposição

monopoliza a pauta. Nesses encontros, representantes da sociedade civil, academia e

políticos unem-se para exporem suas percepções e criticarem o projeto47.

No final de 2004, foi aprovada a Carta de Salvador, que deliberava o uso externo

das águas do rio apenas para consumo humano e animal, comprovada a necessidade da

bacia receptora. Apesar da deliberação do Comitê, o Conselho Nacional de Recursos

Hídricos (CNRH) aprovou a disponibilidade hídrica para o projeto (BRASIL, 2005b).

Observa-se que o uso principal da água seria para o consumo humano. E em situações em

que o Sobradinho estivesse vertendo, haveria bombeamento de água para outros usos48.

O Ministério da Integração também agiu para liberar a obra junto ao MMA. Atuou

em paralelo com os procedimentos para liberação da outorga, conforme a nova

configuração institucional dada pela Política Nacional de Recursos Hídricos.

Em 2004, o Ministério da Integração entregou novo estudo ao IBAMA.

Anteriormente, o estudo possuía o nome “Projeto de Transposição de Águas do Rio São

Francisco para o Nordeste Setentrional”; o novo estudo é denominado “Projeto de

integração do São Francisco com as bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional”. O

novo estudo atendeu às observações realizadas pela equipe técnica do IBAMA. Este então

foi submetido a uma nova rodada de audiências públicas para a emissão do parecer

conclusivo do IBAMA.

• 18/01/2005 – Natal-RN – participaram 305 pessoas.

47 Atas III Reunião Plenária Juazeiro 28/07/2004 e IV Reunião Plenária Salvador 26 e 27/10/2004 do CBH São Francisco. O Plano da Bacia foi aprovado na Plenária de Juazeiro. As informações técnicas para elaboração do plano foram obtidas, em grande parte, de estudo da missão Global Environment Foundation (GEF), que financiou a elaboração do Diagnóstico Analítico da Bacia do Rio São Francisco e sua Zona Costeira e também um Programa de Ações Estratégicas. Estes foram elaborados entre 2001 e 2002. Fonte: http://www.ana.gov.br/gefsf/. Acessado em: 13/01/2010. 48 O CNRH decidiu (Resolução no 47 de 15/01/2005) com base em nota técnica elaborada pela Agência Nacional de Águas (ANA) (nº 492/2004/SOC, de 23/09/2004). A ANA já havia deliberado em favor da outorga, mas diante da relevância do assunto esperou o posicionamento do CNRH (ANA Nota técnica 390/2005/SOC de 19/09/2005).

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• 20/01/2005 – Campina Grande-PB – participaram 503 pessoas e Deputado

Marcondes Gadelha, Ministra do Meio Ambiente Marina Silva e Dom Aldo

Pagotto.

• 22/01/2005 – Salgueiro-PE – participaram 318 pessoas, entre elas representantes

indígenas (Cacique Neguinho Truká, Cacique Cícero Maciel), Deputado Fernando

Ferro, Deputado Raimundo Pimentel. Cerca de 80% dos participantes eram

indígenas e estes solicitavam a realização de audiência em Cabrobó.

• 25/01/2005 – Belo Horizonte-MG – 69 participantes, mas não concluiu devido a

propostas, assim como não foram realizadas as audiências em Salvador e Aracaju.

Em suma, ocorreram nessa nova etapa de discussão do projeto quatro audiências

com participação de 1.290 pessoas no período de 14 a 24 de fevereiro. Nos registros do

processo de licenciamento no IBAMA, técnicos do órgão comentam que os índios

pareciam “nada compreender do projeto” e a percepção de que a maioria dos presentes era

favorável ao mesmo (IBAMA, 1994).

As condições impostas pelo Comitê modificaram o projeto e do conceito de

“sinergia hídrica” passou-se para “segurança hídrica”. A argumentação do Governo

Federal mudou da defesa na melhora do gerenciamento para assegurar o abastecimento em

áreas urbanas cujos sistemas de fornecimento de água estavam em vias de colapsar.

A criação do Comitê propiciou um novo instrumento para aqueles que se opunham

à obra. Assim, além de tentar barrar o processo de licenciamento, estes atuaram para criar

restrições ao uso externo da água da bacia. Para tanto, posicionamentos sobre quantidade

de água disponível no rio e existência desse recurso nas regiões a serem atendidas pelo

projeto motivaram a intensa mobilização que ocorreu a partir de 2005.

Em 19/04/2005, o IBAMA concedeu a licença prévia para o projeto. Diante disto, a

batalha moveu-se para o campo jurídico no intuito de invalidar o licenciamento. Mas, nova

argumentação foi possibilitada devido à existência do Comitê. Pleiteou-se junto aos

tribunais a invalidação da outorga49, visto que esta desrespeitava as normas para uso

externo, as quais foram estabelecidas pelo Comitê50.

Juntamente com modificações nas especificações do projeto, o Governo Federal

anunciava medidas para obtenção de mais apoio. Em janeiro de 2005, os Ministros Pedro

49 Em 24/01/2005, a ANA liberou a outorga preventiva (Resolução no 29 ANA). Já em 22/09/2005, a outorga de direito de uso foi concedida (Resolução no 411 ANA). 50 Na ata da VI Reunião Plenária em Pirapora em 16/06/2005, membros do Comitê referem que o ato do CNRH significou desautorização do Comitê e enfraquecimento deste para tomar decisões relativas à bacia.

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101

Brito (Integração), Miguel Rosseto (Desenvolvimento Agrário) e Marina Silva (Meio

Ambiente) anunciaram a desapropriação de 2,5 km ao longo dos canais, o que totalizaria

310 mil hectares para ações de reforma agrária (BRASIL, 2005c).

As vitórias obtidas pelo Ministério da Integração foram postas em xeque com a

greve de fome do Bispo do município de Barra Dom Luiz Cappio. A greve de fome foi

encerrada após acordo de diálogo com o Governo Federal. Como parte das negociações,

em julho de 2006 foi constituída comissão mista para discussão do projeto, coordenada

pela Casa Civil. Ocorreram três reuniões em que participaram os atores até então

envolvidos com a discussão (ANEXO B). O principal encaminhamento dessa Comissão foi

a elaboração de um plano de desenvolvimento que abarcasse tanto a bacia quanto as

regiões que receberiam água do projeto. Em entrevista (1o/10/2010), técnico do Governo

informa que, apesar da iniciativa, o ambiente já estava contaminado, o diálogo era

entendido pelos opositores como “não fazer a obra”. De acordo com ele, “quando entra

ideologia fica difícil”.

Neste contexto, o Presidente Lula reforçou a decisão de tirar a obra do papel.

Mas, os segmentos contrários à obra não se resignaram. Além das contestações nos

tribunais, manifestações da sociedade civil eram efetivadas como uma carta aberta dos

povos indígenas ribeirinhos de Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Bahia contra a

transposição de março de 2005 (CIMI, 2005).

A obra não pôde ser iniciada no ano de 2006 devido às diversas ações que

impediam a emissão da licença de instalação. Entretanto, em dezembro daquele ano o

Supremo Tribunal Federal (STF) cassou as liminares que impediam a emissão da licença.

O IBAMA liberou a licença no 438/2007, em março de 2007.

Em março de 2007, foi realizada audiência pública sobre o projeto na Comissão de

Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Não compareceram os representantes do

executivo federal, apenas da academia: João Suassuna e João Abner e a representante da

argumentação jurídica contra o projeto, Luciana Khoury, coordenadora das promotorias de

defesa do Rio São Francisco. A audiência fora solicitada por dois deputados da bancada de

Minas Gerais, Iran Barbosa e Juvenil Alves.

Em novembro de 2007, o Bispo Dom Cappio reiniciou greve de fome que durou 24

dias. O Bispo justificou a greve de fome informando que o Governo Federal havia

abortado os diálogos iniciados antes do período eleitoral (FRENTE CEARENSE, 2008).

Mas as forças favoráveis ao projeto saíram vencedoras e as obras para sua execução foram,

em sua maioria, licitadas no ano de 2007.

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QUADRO 4

Resumo de lideranças e principais razões para o arquivamento do projeto

Período Presidente Ministro Principais razões para o

arquivamento

1992-1995

Itamar Franco

Aluísio Alves - Ministério da Integração Nacional entre 08/04/1994 e 1o/01/1995, ex-Governador do Rio Grande do Norte.

Parecer do Tribunal de Contas da União (TCU) informando falta de previsão orçamentária e sem conhecimento do Ministério da Agricultura, apesar de objetivar a irrigação em larga escala (COELHO, 2005).

1995-2003

Fernando Henrique

- Cícero Lucena (PB) - chefia da Secretaria Especial de Políticas Regionais entre 1995 e1997 ex- Governador da Paraíba.

- Fernando Bezerra (RN) – Ministro da Integração Nacional entre 1999 e 2001.

Ministro do Meio Ambiente José Carlos de Carvalho convenceu o Presidente de que projeto era um erro (COELHO, 2005)

2003-2010 Lula

- José de Alencar (Partido Socialista Brasileiro - PSB-MG, Vice-Presidente) – atuou como articulador do projeto.

- Ciro Gomes (CE) – Ministro da Integração Nacional entre 1o/01/2003 e 31/03/2006.

- Pedro Brito (CE) - Ministro da Integração Nacional entre 03/04/2006 e 16/03/2007.

- Geddel Vieira Lima (BA) - Ministro da Integração Nacional entre 16/03/2007 e 31/03/2010.

-

TCU: Tribunal de Contas da União; PSB: Partido Socialista Brasileiro. Fonte: Elaboração própria a partir do livro “Os descaminhos do São Francisco” (COELHO, 2005).

5.2 Conclusão

Conforme o Modelo de Coalizões de Advocacia, os longos anos de embate entre os

grupos devem proporcionar um processo de “aprendizado político” em que elementos

técnicos são revistos para acomodar novos aspectos ou rever questões. Dessa forma,

algumas crenças instrumentais e até mesmo políticas são modificadas com o processo de

interação política.

Somente com a operação do mesmo será possível avaliar o real público

beneficiário; mas os anos de embate proporcionaram alterações significativas nas

especificações do projeto. Chamam a atenção a significativa redução das vazões que

seriam aduzidas e o público-alvo, assim como o conceito por trás do mesmo mudou de

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irrigação (1994), sinergia hídrica (1997) para segurança hídrica (2004). O foco em

irrigação do projeto pensado em 1985 e 1994 foi completamente modificado para priorizar

o abastecimento humano em cidades médias e pequenas do semiárido nordestino.

Entretanto, a outorga apenas para abastecimento humano e em casos excepcionais

para outros usos é avaliada por alguns como “argumentos técnicos politicamente

manipulados” (VIANA, 2005). Isto porque, apesar das delimitações de uso da outorga

emitida pela ANA, a água seria usada na produção agrícola. Mas esse é um elemento que

apenas será verificado com o início da operação do projeto.

As mudanças foram, em grande parte, proporcionadas por transformação no âmbito

de discussão sobre o projeto. Entre 1994 e 1997 e 1997 e 2007, houve inflexão com

mudanças nos procedimentos para tomada de decisão sobre recursos hídricos e na estrutura

da sociedade com mais visibilidade e atuação dos movimentos sociais. Em janeiro de 1997

foi aprovada a Política Nacional de Recursos Hídricos51 que, em conjunto com outros

instrumentos legais, como as regras de licenciamento ambiental, determinaram melhor

elaboração técnica e diálogo social na condução das definições sobre o projeto.

No final de 1997, técnicos que trabalhavam pela obra afirmavam que não havia

mais o que discutir sobre o projeto no que se referia aos aspectos técnicos. Havia consenso

entre os técnicos que estudavam o projeto desde a década de 1980 de que este havia

chegado a bom nível de maturação, que existia tecnologia adequada e não existiam dúvidas

(para estes) sobre a sua necessidade52. O projeto responderia adequadamente aos desafios

do semiárido.

A participação da sociedade no processo decisório, concretizada com a criação do

Comitê da Bacia do Rio São Francisco, permitiu mais visibilidade a outras perspectivas

sobre o desenvolvimento do semiárido e necessidade do projeto. Dessa forma, a

maturidade que o projeto havia alcançado foi problematizada.

Os segmentos críticos da obra avaliavam que esta se inseria num diagnóstico

enviesado sobre problemas e soluções para o semiárido. Entre outros, argumentavam que a

obra beneficiaria uma região em detrimento da bacia e, ainda, para resolver o que seria um

“falso problema”. Ou seja, a área a ser atendida não sofria de déficit hídrico.

51 Lei 9.433 de 08/01/1997 institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. 52 Constatação realizada a partir das falas dos engenheiros na 1ª Sessão Especial na Assembleia do Ceará em 15/12/1997.

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Conforme será visto no capítulo 6, os conflitos de crenças envolviam o confronto

de informações técnicas. Os posicionamentos eram defendidos com o uso de números e

estudos.

Ao analisar o debate parlamentar sobre a transposição do rio no período do

Governo FHC, Mello (2008, p. 109) descreve que “a disputa em torno dos dados técnicos

é, a um só tempo, matéria-prima e catalisadora das disputas políticas”. Faz sentido, então, a

afirmação do então Deputado Clementino Coelho (Partido Popular Socialista - PPS-PE) de

que o papel inicial do Grupo de Trabalho criado em 2000 na Câmara dos Deputados

(GRUPO DE TRABALHO CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000) seria alinhar a

argumentação técnica, obtendo uma única resposta sobre a viabilidade ou inviabilidade da

obra. De acordo com o deputado, após essa resposta poder-se-ia discutir a obra

politicamente.

Quermes (2006) anuncia que a legitimidade da linguagem técnico-científica

simplifica o processo de disputa política e permite mais poder para alguns setores da

sociedade. Entretanto, a defesa das crenças possui mais legitimidade quando recebe verniz

“técnico”.

O Plano Decenal foi, por isso, elaborado às pressas. Ele foi feito tanto para

fundamentar a outorga de água para o projeto, formalizando informações sobre a vazão

disponível do rio, como era esperado ansiosamente pelos próprios membros do Comitê,

que queriam “entrar na briga” (entrevista concedida por funcionária da ANA) (VIANA,

2005).

Dessa forma, a sociedade civil também se arma com dados e informações técnicas.

Nesse ponto, foi importante a participação de membros da academia que forneciam

estudos, números e contrapontos aos argumentos do Governo Federal. Além disso, as

alternativas apresentadas ao projeto, inseridos no projeto de convivência com a seca, por

exemplo, também se fundamentavam em práticas e estudos.

No Modelo de Coalizões de Advocacia, o aprendizado político é possível, visto que

a técnica permite uma linha comum para o diálogo entre as coalizões. Sendo assim,

transformações no conhecimento técnico-científico possibilitam que as coalizões revisem

suas crenças e cheguem a novos posicionamentos. Portanto, a imagem que o MCA passa é

a de que técnica e ciência são conhecimentos objetivos conducentes ao consenso.

No entanto, a discussão ocorrida sobre o projeto demonstrou como a técnica

consiste apenas em um instrumento guiado por interesses e visões. A dinâmica de

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elaboração do Plano Decenal da Bacia do Rio São Francisco mostrou como argumentos

técnicos são armas importantes na legitimação dos discursos dos atores.

Esse fato não contradiz os fundamentos do MCA, visto que a hierarquização do

sistema de crenças determina a dependência de aspectos instrumentais e do núcleo político

em relação às crenças do núcleo duro. Dessa forma, não é contraditório pressupor que os

diagnósticos políticos efetivados incorporem a influência da visão de mundo.

A existência ou não de déficit hídrico na região a ser atendida e a existência de água

disponível no rio para o projeto foram alguns posicionamentos de cunho técnico que

expressavam, na verdade, percepções sobre quais seriam os problemas e as soluções.

Por exemplo, no que se refere ao déficit hídrico, este é um falso problema quando

se parte do pressuposto de que o real problema no semiárido é a adaptação das pessoas às

oportunidades que a região oferece. De acordo com Abner, “[...] pode-se afirmar com

segurança que, ao contrário do discurso oficial, não existe déficit hídrico nos estados

beneficiados que justifique um projeto da magnitude do que está sendo proposto para a

transposição de águas do Rio São Francisco” (ABNER, 2008, p. 95). Sendo assim, apesar

da região ter bastante água, os efeitos da seca são sentidos por falta de uma política

adequada e efetiva de adaptação do homem e a sua economia ao meio ambiente do

semiárido.

Assim também a finalização do Plano Decenal não permitiu o alinhamento sobre

existência de vazão alocável do rio. Os que eram contrários argumentavam que a

transposição utilizaria volume além do disponível no rio. No QUADRO 5 são apresentadas

as posições sobre as crenças instrumentais e demonstrado que, apesar de serem questões

eminentemente técnicas, não foi possível chegar a consenso.

A técnica como algo imparcial é um pressuposto de que não se pode ser mais

admitido. Sendo assim, não há resposta objetiva se a obra é viável ou não; se há déficit

hídrico ou não. A resposta depende do ponto de partida do técnico e do grupo. Caso

compartilhem uma mesma visão ou sistema de crenças, há mais chances de haver uma

resposta objetiva sobre questões técnicas.

Diante disso, considerando-se a transposição, é natural que as alterações no projeto

realizadas pelo Governo fossem vistas como forma de cooptação (QUERMES, 2006) ou de

esconder os verdadeiros interesses por trás da obra. O clima de discussão sobre o projeto

era tenso e as divergências profundas entre visões e interesses que serão explorados no

capítulo 6 fizeram com que a situação chegasse a um “diálogo de surdos”. A decisão final

foi, então, do Presidente.

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Apesar de alguns grupos se considerarem “atropelados” pelo Governo Federal, o

projeto sofreu significativas alterações em suas especificações técnicas e conceitos.

Atribui-se essas mudanças à pressão coordenada dos grupos políticos, da academia, da

sociedade civil e órgãos da própria administração federal, como a CHESF.

Conforme será mostrado no QUADRO 6, o conceito e especificações da obra

mudaram muito e em correspondência com algumas das crenças que eram defendidas por

aqueles que se opunham ao projeto. As mudanças políticas identificadas são aquelas

relacionadas a mudanças de 1º nível e algumas de 2º nível. Ou seja, mudanças no que se

refere aos aspectos instrumentais, bem como população priorizada pelo projeto (ANEXO

A).

No capítulo 6 serão analisadas com profundidade as crenças políticas em conflito.

Já no capítulo 7 serão exploradas a interação e as estratégias utilizadas pelos atores

atuantes no debate e apresentadas outras mudanças políticas decorrentes dos longos anos

de conflito.

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QUADRO 5

Argumentos sobre aspectos instrumentais: dificuldade de consenso técnico

Crença Argumentos Contrários Mais Recorrentes Resposta do Governo

2.1 Viabilidade financeira e técnica do projeto

Alto custo da água a ser oferecida, não permite competitividade para produção agrícola.

Investimento na obra é a fundo perdido, amortização não entra na tarifa. Mantém

subsídio cruzado.

2.2 Condução do processo de licenciamento ambiental

Deveria ter sido realizado estudo de impacto na bacia, especialmente no Baixo São Francisco.

Quantidade de água a ser retirada não impacta no rio e representa 1-2% de sua vazão. Pontos de

captação ficam entre duas barragens (Sobradinho e Itaparica) regularizadoras.

2.3 Vazão alocável do Rio São Francisco

Plano Decenal informou que 330 m3/s já estão comprometidos com usos na bacia, sobrariam 30

m3/s. Entretanto, serão captados 127 m3/s.

Retirada de água acima dos 26,4 m3/s ocorrerá captação acima desta vazão excepcionalmente quando Sobradinho apresentar as condições

estabelecidas pela ANA.

2.4 Soluções alternativas

Estudo de Impacto Ambiental não considerou adequadamente outras formas de superação do

problema da água na região. Alternativa poderia ser o abastecimento a partir de aquíferos.

Região a ser atendida está em solo cristalino, com pouca oferta e qualidade de água

subterrânea. Projeto não exclui construção de outras opções como cisternas e sistemas

simplificados. Público beneficiário do projeto não é população dispersa e sim aglomerações

urbanas.

2.5 Alocação de orçamento A obra é cara quando se consideram as opções

que poderiam ser adotadas dentro do paradigma de convivência com a seca.

Obra não exclui soluções de baixo custo. Mas, crescimento industrial, agrícola e urbano da

região depende de uma fonte segura e o Rio São Francisco é o único rio perene com condições de

atender às demandas.

2.6 Inserção em projeto de desenvolvimento

Obra foi pensada isoladamente, não há um plano de melhora na gestão das águas nem de uso

sustentável desta para promover o desenvolvimento.

Em 2005, foi elaborado o Plano de Desenvolvimento do Semiárido. Plano

demandado após greves de fome do Bispo Cappio não foi realizado.

Fonte: Elaboração própria a partir dos documentos analisados no NVivo8 e literatura de apoio.

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QUADRO 6

Principais características do projeto:

comparação ao longo dos anos para demonstrar mudanças de 1º nível e algumas de 2º nível

1982/1983 1993/1994 1997/2000 2003

Órgão responsável: DNOS

Nome: Estudos de Previabilidade para Transposição de Águas dos Rios São Francisco e Tocantins para a Região Semiárida do Nordeste (estudos topográficos e hidrológicos)

Especificações gerais: - Vazão de 300 a 380 m3/s (inicialmente

eram 800 m3/s e seria construída a barragem de Aurora no rio Jaguaribe-CE com volume de 800 milhões de m3)

- beneficiaria o Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco

Órgão responsável: Ministério da Integração Regional

Nome: Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco

Especificações gerais: - Retirada de 3% da vazão do rio - VAZÃO de 70 m3/s na 1ª etapa e

110 m3/s na 2ª etapa - Distribuição da vazão: 125 m3/s CE;

15 m3/s cada para RN, PE e PB - irrigação de 116.000 ha no total:

25.000 ha no PE; 41.000 no CE; 25.000 na PB e 25.000 no RN. Com a 2ª etapa seriam incluídos mais189 mil hectares

- 1ª etapa custaria US$ 613 milhões - abastecimento urbano é apresentado

como uma externalidade positiva e não objetivo principal

- 1 etapa – 115 km de canal, 11 barragens e estações de bombeamento para 170 m de recalque

- 2ª etapa- 120 km de canal com 4 barragens e estação com 55 m de recalque

Objetivos:

Órgão responsável: Secretaria Especial de Políticas Regionais/ Ministério da Integração Nacional

Nome: Transposição do Rio São Francisco

Especificações gerais: - vazão média de 50 m3/s. 89 m3/s

para o Eixo Norte e 10 m3/s Eixo Leste Paraíba (20 m3/s); Ceará (40 m3/s), Rio Grande do Norte (39 m3/s) e Pernambuco (10 m3/s)

- Custo: R$ 2, 7 bilhões

Objetivos: - tornar mais eficiente a gestão da

água - água para produção (novos 30 mil

hectares) - fornecimento de água para uso

múltiplo urbano e rural (190 municípios)

Principais mudanças em relação ao anterior: - fortalecimento dos conceitos de

“sinergia hídrica” e usos múltiplos - fornecimento para grandes projetos

industriais: distrito industrial de

Órgão responsável: Ministério da Integração Nacional

Nome: Projeto de Integração do Rio São Francisco com as bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional

Especificações gerais: - vazão de 26 m3/s até 127 m3/s

quando Sobradinho estiver vertendo - custo R$ 4,5 bilhões

Objetivos: atender 12 milhões de pessoas no semiárido

Mudanças em relação ao anterior: - inserção da revitalização como parte

do projeto - desapropriação de áreas ao longo do

canal para reforma agrária - água para consumo humano e

quando Sobradinho estiver vertendo adicional pode ser captado para outros usos

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109

1982/1983 1993/1994 1997/2000 2003

- remover obstáculos à integração da área à economia regional e nacional

- acelerar o desenvolvimento de áreas prioritárias;

- melhorar as condições de vida e de renda da população rural

- incrementar a produção de alimentos

- reduzir o fluxo migratório para as concentrações urbanas

Pecém-CE com refinaria e usina termoelétrica como empresas âncoras; polo gás-sal em Macau-RN; Complexo industrial de Suape-PE

- inserção do Eixo Leste que beneficia faixa do estado do Pernambuco, que possui melhores manchas irrigáveis, mediante o abastecimento do açude de Poço da Cruz. Canal segue para a Paraíba e abastece o açude Boqueirão, o que garante o abastecimento de Campina Grande

- inserção do ramal no Eixo Norte para abastecimento do açude de Entremontes

O mapa com a configuração atual do projeto é apresentado no ANEXO C.

Fontes: Elaboração própria a partir de: 1983 – artigo do engenheiro Cássio Borges para Associação dos Servidores do DNOCS (BORGES, 2010); 1994 - Decreto de 6/06/1994 que cria no Ministério da Integração Regional o Grupo de Ações Integradas para o desenvolvimento e supervisão do programa do Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco; 2000 – Transposição de Águas do São Francisco (BRASIL, 2001) Relatório síntese. Disponível em: http://www.integracao.gov.br/pdf/estruturahidrica/relatorio_sintese.pdf. Outubro, 2001; Ano 2003: Página do Ministério da Integração Nacional www.integracao.gov.br.

.

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6 OS ATORES E AS CRENÇAS EM CONFLITO NA DISCUSSÃO DO

PROJETO DA INTEGRAÇÃO

6.1 Introdução

O Projeto de Integração ou de Transposição já foi tema de diversos livros e estudos

acadêmicos. Entretanto, grande parte destes partiu da perspectiva de um dos grupos

atuantes no embate. Objetiva-se “amarrar” a discussão. Ou seja, compreender o processo

em sua complexidade de interação entre diferentes níveis de governo, academia e

sociedade civil.

Para tanto, a discussão sobre a obra pode ser caracterizada como uma interação

coordenada de grupos de atores de diversos cenários em um subsistema. A motivação dos

atores é a defesa de crenças políticas e o desejo de que estas se concretizem na ação

pública.

O resgate da história sobre o pensamento e a ação do Governo para o

desenvolvimento do semiárido permitiu concluir que o Projeto de Integração não é apenas

uma obra de engenharia. Além do conflito de interesses, ele assenta-se no conflito de

visões de desenvolvimento.

Este capítulo objetiva caracterizar a discussão sobre a obra, evidenciando os

conflitos ou as crenças que entraram em choque.

Os posicionamentos sobre o problema da seca e suas soluções foram sistematizados

no conjunto de crenças políticas identificadas no capítulo 4 e apresentadas no ANEXO A.

As crenças foram utilizadas para classificar discursos e testemunhos de 216 pessoas

realizados nas Assembleias Legislativas Estaduais e na Câmara dos Deputados. Após a

classificação, foi possível analisar os principais argumentos utilizados para fundamentar as

crenças defendidas, assim como pontuar atores e eventos relevantes. Essa análise é

apresentada no item 6.2.

Dedica-se ainda uma seção (item 6.3) para explorar traços e contribuições

específicas observadas nas discussões dos parlamentos estaduais e federal e também

aspectos da participação da sociedade civil, Igreja Católica e academia. Cada segmento

possui características que lhes são próprias e que ajudam a formular sobre as crenças e as

formas de coordenação, estratégias e recursos das coalizões.

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6.2 Análise das crenças políticas

As crenças políticas referem-se, em especial, ao posicionamento dos atores sobre

quais grupos e estratégias de políticas públicas devem ser priorizados. Elas envolvem

também percepções sobre quais são os problemas e a urgência de solução dos mesmos.

A partir do material obtido referente aos debates realizados nas Casas Legislativas

Estaduais e na Câmara Federal, efetivou-se a classificação de falas dos atores (políticos e

técnicos dos Governos Federal e Estaduais, sociedade civil e academia). Foram analisados

mais de 200 atores e parte de suas falas foram registradas nas crenças identificadas53.

Pode-se dizer que três disputas fundamentais motivaram a ação favorável e

contrária ao projeto:

• Choque entre a priorização do semiárido nordestino versus superação da pobreza na

região sanfranciscana cujos indicadores sociais são alarmantes;

• divergência na percepção de que há déficit hídrico na região a ser atendida pelo

projeto;

• choque entre a priorização de uma ação pública para aumento do uso da água do rio

versus percepção de que o rio estava na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI),

sendo urgente a revitalização do mesmo.

Observou-se que grupos de atores, apesar de compartilharem crenças políticas,

possuem pontos de partidas distintos para chegar àquelas crenças. Tomando como exemplo

o posicionamento pela priorização da Bacia do São Francisco, percebe-se que as

motivações e objetivos finais são variados.

Alguns atores utilizam indicadores sociais e argumentam que priorizar a bacia é

necessário, visto que a região é uma das mais pobres do país. Por outro lado, grupo de

atores defende a priorização da região, justificando o potencial de desenvolvimento da

agricultura irrigada na região.

Nos itens a seguir objetiva-se explorar cada crença política. Serão identificados as

principais argumentações e vieses de defesa das crenças e pontuados alguns atores centrais

no debate mediante citação de suas falas. As considerações realizadas servirão para balizar

a análise se houve modificações nessas crenças durante o debate, bem como modificações

na ação do Governo Federal.

53 Foi utilizado o software NVivo8 para classificação dos atores. Observa-se que há atores que participam de elevado número de eventos e existem variações nas extensões das falas.

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6.2.1 Priorização do desenvolvimento da Bacia do Rio São Francisco x priorização do

desenvolvimento do semiárido do sertão norte

A defesa de que o Projeto de Interligação de Bacias poderia ser executado sem

prejudicar os projetos de desenvolvimento da bacia (em especial os perímetros de irrigação

da CODEVASF) é realizada pelos técnicos e políticos do Ministério da Integração. Até a

finalização do Plano Decenal, a argumentação utilizada era de divisão do rio em dois: um

rio regularizado antes de Sobradinho e outro rio após essa represa da CHESF. Os projetos

de irrigação do oeste baiano, Petrolina-PE, Juazeiro-BA e o de Jaíba-MG não seriam

comprometidos. Após a conclusão do plano, a justificativa mudou. O Ministério da

Integração passou a utilizar os números fornecidos no estudo.

Neste caso, em 2025, se toda essa extrapolação exacerbadamente otimista que não guarda coerência com nossa realidade fosse praticada, o rio estaria pedindo mais 262 metros cúbicos por segundo. Ele tem no Plano de Bacia 360 metros cúbicos por segundo de vazão livre para uso consultivo; ou seja, em 2.025, se tudo acontecer no melhor cenário que nós extrapolamos de propósito para ter segurança, o rio estaria usando 262 e estaria sobrando 98 para uma vazão pedida pelo projeto (CIRO GOMES - MINISTRO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL, ASSEMBLEIA DO CEARÁ, 2005).

Alguns deputados dos estados doadores e representantes da CODEVASF aceitavam

a realização da obra desde que fossem executadas medidas compensatórias. Informam

sobre a pobreza da região e existência de regiões em que a falta de água compromete o

desenvolvimento. Todavia, não se posicionam contrários à obra e também não estabelecem

que a priorização deva ser a bacia.

Em 2007, com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a argumentação

do Ministério da Integração era a de que junto com a obra também seriam executadas

ações que beneficiariam a bacia. Previa-se a expansão dos perímetros de Salitre-BA,

Baixio de Irecê-BA, Pontal-PE, Jaíba-MG e implementação de cisternas, poços e sistemas

simplificados até 15 km da margem do rio.

Por outro lado, deputados, membros da academia, de organizações da sociedade

civil e do Ministério Público demandavam a realização urgente de políticas públicas para o

desenvolvimento da bacia. Argumentavam, em especial, que a discussão do projeto não

havia esgotado. Sendo assim, era necessária a execução de projetos direcionados para a

região, cujos indicadores sociais e econômicos eram piores do que os da região a ser

beneficiada pelo projeto.

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Mas grande parte dos que utilizavam este argumento acreditava que priorização do

Projeto de Transposição comprometeria o sonho de Geraldo Rocha (1940) para a região.

Ou seja, a Califórnia sanfranciscana não se concretizaria. Eles questionavam o fato de se

levar água para quilômetros distantes, sendo que na bacia ainda havia considerável

potencial de irrigação considerável54 (800.000 hectares totais e 300.000 hectares

implementados). Indicavam a contradição de investimento de bilhões no projeto, enquanto

na bacia havia perímetros paralisados, como, por exemplo, os de Salitre, Baixio, Iuiu

(todos na Bahia) e Pontal-PE.

A imagem de que apenas a existência de água não geraria desenvolvimento também

era recorrentemente utilizada. Não chegavam a mencionar a “indústria da seca” ou o uso

da água como instrumento de dominação. Apenas argumentavam que a experiência do

Vale do São Francisco demonstrava que ao lado do rio populações sofriam de carência de

água por falta de estruturas de abastecimento.

O que nós vemos, Sr. Presidente, são pessoas que moram a cinco quilômetros do Rio São Francisco sem água, sem projeto de irrigação, milhares e milhares de ribeirinhos e o Presidente não se move para fazer nada e agora quer levar o nosso rio para outros estados! (DEPUTADA ANTÔNIA PEDROSA - DEMOCRATAS - DEM, ASSEMBLEIA DA BAHIA, 2007).

Membros da academia e de organizações da sociedade civil corroboram a

necessidade de priorização da irrigação no Vale.

Retirando água, ameaçarão o desenvolvimento atual e futuro tanto do nosso estado quanto de outros, como a Bahia, abandonando obras inacabadas, onde há milhares de hectares de terra a serem irrigados. Há 33 anos, iniciou-se o projeto Jaíba, com o objetivo de irrigar 100.000 ha; porém, até hoje, irrigaram somente 9.000 ha, gastando US$ 500.000.000,00. Desejam irrigar uma região que possui de 700 a 2.000 km de extensão, perfurando quilômetros de túneis, de montanhas e de aquedutos. Essa é uma aventura irresponsável. Isso não tem cabimento (APOLO LISBOA, PROJETO MANUELZÃO, MINAS GERAIS, 2005).

Avalia-se que a disputa principal entre visões de desenvolvimento assenta-se em

competição entre as regiões para o fortalecimento do agronegócio. Ou seja, parte dos

envolvidos na discussão é motivada por crenças e objetivos em que a produção irrigada

possui papel fundamental.

Como visto no capítulo sobre o histórico das duas regiões, sempre houve aposta na

agricultura irrigada como elemento fundamental para o desenvolvimento do semiárido.

54 Alguns deputados informam que há potencial de 3 a 6 milhões de hectares que poderiam ser expandidos na bacia. Mas o número recorrente é de 800.000 hectares potenciais com 300.000 hectares já implementados.

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Pelo lado da bacia, os escritos de Geraldo Rocha (1940) e a institucionalização dessa

aposta com criação da CODEVASF, por exemplo, enraizaram a visão da Califórnia do

semiárido brasileiro. Por outro lado, considerando o sertão norte, a fixação da população e

a amenização dos impactos da seca passavam por uma política de açudagem,

posteriormente associada à construção de perímetros de irrigação.

Pode-se dizer, com base no material analisado, que a imagem de prosperidade

criada para as duas regiões consistia em cultivos verdejantes em meio aos mandacarus,

favelas, cabeças de frade, a fim de se concretizar essa imagem que o projeto foi visto, por

aqueles que o defendiam como a forma. Já os críticos o viam como o meio para alavancar

recursos ou chamar atenção pública para o que acreditavam ser o verdadeiro problema.

Conclui-se que uma disputa fundamental na discussão foi entre grupos político-

empresariais apoiados por setores da academia. A causa fundamental do conflito é a

limitação do recurso natural - água.

A escassez de água para a manutenção e desenvolvimento de projetos irrigados e a

projeção de um cenário sombrio em que a água seria o principal motivo das guerras

mundiais ensejaram uma corrida para garantia de outorgas e recursos para uso das

quantidades outorgadas.

Eles poderão exportar frutas, a partir dos portos do Ceará e do Rio Grande do Norte, mais próximos da Europa e, portanto, muito mais convenientes do ponto de vista econômico, se compararmos aos agricultores posicionados na Bacia do São Francisco, seja em Pernambuco, na Bahia ou em Minas Gerais. Por trás de tudo isso, há uma estratégia. O Ceará sabe muito bem o valor da água e avançou muito no que diz respeito à gestão de água. Esse estado tem o objetivo, de longo prazo, de deter reserva para o futuro, o que foi feito no estado da Califórnia, em relação ao Rio Colorado, nos Estados Unidos. O estado da Califórnia procurou apropriar-se de grande quantidade de água para prover seu desenvolvimento futuro. Estamos diante desse mesmo quadro, em relação ao São Francisco. E o estado de Minas Gerais precisa estar atento a isso, porque detém a maior parte das águas desse rio (LUIZ CARLOS FONTES, UNIVERSIDADE FEDERAL DO SERGIPE, ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2007).

6.2.2 Uso da água x preservação ambiental

A defesa da preservação do rio assumiu contornos diversos, dependendo do

conceito de revitalização utilizado. A análise dos eventos nas Assembleias e dos

manifestos da sociedade civil permitiu a formulação dos seguintes conceitos de

revitalização:

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• Holístico - conceito amplo de revitalização em que ações de preservação e

recuperação ambiental estão associadas a mudanças culturais e sociais. Necessário

rever as práticas econômicas e modelos de projeto de desenvolvimento executados

na bacia.

• Ambientalista pragmático - realização de ações de preservação e recuperação

ambiental: recuperação de matas ciliares, saneamento, tecnologias sociais, entre

outros. Compensar degradação causada pelas atividades econômicas e sociais.

• Econômico-social - modificação da estrutura fundiária, melhoria de condições

socioeconômicas e preservação e recuperação ambiental. Recuperação das

condições ambientais depende da situação das pessoas.

• Ambientalista restrito - recuperação do rio é o aumento da vazão, via construção de

barragens nos afluentes ou transposição de águas do Tocantins. Recuperação do rio

significa dar condições para implementação de novas atividades econômicas.

Os opositores da obra utilizavam a imagem de que o rio estaria na UTI e um doente

não possui condições de doação de sangue55. A revitalização seria então necessária. Mas

parte dos atores critica a sua execução como moeda de troca para a aceitação da

transposição.

Em relação aos que defendiam a obra, a revitalização poderia ocorrer em paralelo.

Alguns defendem a revitalização conforme o conceito “ambientalista restrito”.

Qual é o problema de transpor as águas do São Francisco? Eles estão jogando água no mar, perdendo água. Essa água pode e deve ser aproveitada. Há um plano de se começar a irrigação no Rio Grande do Norte, pegando a Paraíba, Pernambuco e lá em cima o Ceará. Isso é possível, desde que se faça um conjunto de obras cá embaixo, na nascente do São Francisco (ALUÍZIO ALVES, EX-MINISTRO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL, GRUPO DE TRABALHO CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

O enfoque no reforço da vazão consistia em estratégia para enfraquecer o

argumento de que o rio não dispunha de água para canalização para outras bacias. Neste

contexto, a transposição de águas do Rio Tocantins inseria-se como condição fundamental.

Em especial nas falas dos deputados estaduais e federais baianos, a transposição do

Tocantins constava como a obra a ser realizada. A obra também foi indicada pelo Vice-

Presidente José de Alencar.

55 A metáfora possui vários “pais”, sendo um deles o Deputado Federal Fernando Gabeira/Partido Verde- PV.

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No conceito de aumento de vazão do rio existia a proposta do ex-Governador João

Alves, de construção das barragens nos afluentes do São Francisco. A defesa da construção

de afluentes no rio é um ponto de separação entre o grupo maior contrário à obra.

A construção de novos barramentos era repudiada pelos membros da sociedade

civil, setores da academia e outros que tinham uma posição mais “holística” sobre o

conceito de revitalização. Já grupos políticos contrários ao projeto, mas favoráveis ao

paradigma modernizador, viam a construção de barramentos como elemento fundamental

de uma política de revitalização do rio.

Alguns parlamentares não aceitavam o condicionamento do projeto à revitalização.

Ponderavam que a água seria utilizada para o abastecimento humano, sendo “egoísta”

qualquer postura contrária à obra.

E ficamos às vezes envergonhados com determinado “ambientalista”, que chega e diz: eu sou contra a transposição porque é um crime à natureza. E nós vamos morrer de sede, isso não é um crime da natureza não, gente? Da natureza das pessoas egoístas que não querem que essa água venha para o Nordeste (DEPUTADO GILBERTO RODRIGUES, PARTIDO HUMANISTA DA SOLIDARIEDADE - PHS, ASSEMBLEIA DO CEARÁ, 2005).

Mas o projeto, quando foi concretizado, em 2007, tentou aglutinar as preocupações

dos diversos conceitos de revitalização. Incluído no Programa de Aceleração do

Crescimento, compreendeu ações de saneamento, recuperação de matas ciliares e similares

e ações em comunidades tradicionais, por exemplo. Os barramentos nos afluentes também

foram considerados com os prosseguimentos dos estudos das barragens do norte de Minas

(Urucuia, Velhas e Paracatu) e dos barramentos no rio Jequitaí.

6.2.3 Abastecimento humano x produção de energia

A produção de energia na bacia consome 90% do potencial do rio e abastece 70%

do Nordeste. A CHESF, criada em 1945, é a empresa responsável pela construção de

grandes barramentos no rio, como Sobradinho, Paulo Afonso, Itaparica. Opositores ao

projeto questionavam o mesmo, considerando o comprometimento existente das águas do

rio para a produção de energia.

O bombeamento das águas, tanto no Eixo Norte e mais expressivamente no Eixo

Leste, utilizaria razoável quantidade de energia (uns dizem o correspondente a meia Três

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Marias; outros dizem uma Três Marias e meia). Além da possibilidade de aumento das

tarifas cobradas na região, é argumentado que a obra prejudicaria atividade econômica

essencial da bacia.

Observa-se, ainda, que nos anos do Governo FHC o país viveu forte estiagem que,

aliada à falta de expansão de infraestrutura no setor, levou ao apagão energético. Era um

tema muito sensível à época a execução de ações que poderiam acentuar a fragilidade do

setor.

Aqueles que defendiam o projeto alegavam que, de fato, a produção de energia da

CHESF seria comprometida. Todavia, com a interligação do sistema nacional de energia -

o uso de energias alternativas, como a solar -, seria possível compensar a redução em torno

de 1 a 2% da produção da CHESF.

Outro segmento defendia que a prioridade dada à produção de energia no rio

deveria ser revista. Neste grupo, tanto defensores quanto opositores questionavam o quase

monopólio das águas do rio para a produção energética. Argumentavam pela necessidade

de usos múltiplos das águas e reorientação de atividades econômicas e sociais prioritárias

na bacia. A produção de energia hidráulica deveria concentrar-se em rios como o

Tocantins. Haveria, então, “transposição” via cabos de energia.

Na entrevista com técnico que participou da discussão até o início do Governo

Lula, este afirmou que o ator principal que se opunha à transposição era a CHESF

(1o/10/2010). Nos documentos analisados e na fala de representante da CHESF no Grupo

de Trabalho da Câmara dos Deputados, não se permite avaliar que a oposição da CHESF

tenha sido mais ferrenha do que a do grupo defensor da irrigação na bacia.

A partir do material analisado, acredita-se que a CHESF tenha oferecido mais

resistência quando, nas versões anteriores do projeto, as vazões planejadas afetariam

significativamente a produção de energia. A empresa deve ter realizado pressões em

reuniões técnicas para que os números fossem revistos. Elabora-se, ainda, o pensamento de

que a empresa avaliou estrategicamente que seria melhor a produção de água no rio para o

consumo humano, o que tem potencial de mais ganho. A produção de energia, por sua vez,

seria transferida para outras bacias, como a do Rio Tocantins e Rio Madeira56.

56 A futura disputa para controle da organização que fará a gestão do projeto indicará se a CHESF de fato reorientou o seu “negócio” com as águas do rio.

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6.2.4 Existência de déficit hídrico no São Francisco

A diversidade de posicionamentos sobre essa crença representa a velha discussão

sobre a seca do semiárido. O pano de fundo foi resgatado no capítulo histórico. Ou seja, o

problema do semiárido é de fato a falta de água? Ou a água existe, o que ocorre é sua

utilização como meio de dominação, seu uso é restrito a poucos.

As modificações no conceito do projeto observadas ao longo dos anos, discutido no

capítulo histórico, permitem verificar que este se tornava defensável apenas quando

comprovada a existência de déficit hídrico na região a ser beneficiada. Pode-se avaliar,

bem sinteticamente, que ao longo dos anos o conceito por trás do projeto variou:

• Projeto da década de 80 – conceito era de água para irrigação. Inseria-se em

programas como o PROINE, que objetivava irrigar 1 milhão de hectares no

semiárido.

• Projeto década de 90 – conceito era de usos múltiplos. Além da irrigação, a água

seria utilizada para abastecimento de núcleos urbanos.

• Projeto anos 2000 – conceito é de segurança hídrica. Projeto serve como manancial

para uso pleno dos açudes (reduzindo perdas por evaporação e melhorando a

qualidade da água). Ou seja, em vez de utilizar menos de 30% das águas reservadas

devido ao risco de uma grande seca, utiliza-se mais. Caso haja grande estiagem,

pode-se aduzir água dos canais do Projeto de Interligação. Posteriormente, foi

reforçada a sua importância para o abastecimento urbano.

Ainda na entrevista com o técnico do governo que coordenou o projeto entre os

anos 1997 e 2005 (1o/10/2010), este informou que as modificações eram devidas aos

estudos realizados por uma comissão em que participavam CODEVASF, MMA e MI,

criada em 1997. De acordo com o entrevistado, a Comissão foi o único evento em que o

estudo sobre o projeto foi iniciado sem a pressão política para resposta a um episódio de

seca. Ele caracterizou a pesquisa como “um estudo de planejamento”.

A análise das discussões ocorridas na Assembleia do Ceará permite dizer que o

conceito de “segurança hídrica” estava presente desde 1994, pelo menos. O planejamento

de construção de um “cinturão das águas” no estado refletia a visão de gestão de recursos

hídricos nos moldes do que é a gestão da energia. A interligação de diferentes bacias,

açudes, via canais e adutoras permitiria criar um fluxo de águas em que áreas não

deficitárias doariam para outras com escassez.

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A necessidade de água do São Francisco para melhor gestão das águas nas regiões a

serem beneficiadas era um argumento mais apropriado considerando-se o histórico das

obras hídricas na região. Em relação à Paraíba, a existência de déficit hídrico era menos

polêmico, foi construído consenso sobre a sua existência. O Eixo Leste passou, então, a ser

aceito por atores que se opunham ao projeto57.

Para os que contestavam a obra, o problema do semiárido não era a falta de água,

mas sim a estrutura política, econômica e social58. A transposição seria, então,

desnecessária. Como argumenta um atuante professor do Rio Grande do Norte, “um

presente de grego”, visto que apenas aumentaria o custo da água nos estados beneficiários.

Os números utilizados para fundamentar essa crença têm origem importante nos

estudos do hidrólogo Aldo Rebouças. Este avaliou que havia água subterrânea no Nordeste

e que a capacidade acumulada de 35 bilhões de metros cúbicos obtida dos açudes seriam

ambas suficientes para manter as atividades humanas e produtivas do projeto.

Os próprios dados oficiais, por exemplo, do Plano de Recursos Hídricos do Ceará mostram uma realidade, eu estou com ele aqui, página 171. Quer dizer, o estado do Ceará conta com uma disponibilidade hídrica de mais 100 m³/s, que é suficiente para atender às demandas atuais, Presidente, 54 m³/s, quer dizer, não existe déficit hídrico que justifique a transposição do São Francisco para o Ceará, nem existe déficit hídrico que justifique a transposição do Rio São Francisco para o Ceará nem para o Rio Grande do Norte, muito menos associar esse projeto à questão do consumo humano, porque o consumo humano no estado do Ceará representa 20% dessa disponibilidade hídrica do seu estado. No Rio Grande é menos, cerca de 10% (JOÃO ABNER, PROFESSOR UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE, ASSEMBLEIA DO CEARÁ, 2007).

Além disso, argumentava-se que não faltavam chuvas no semiárido nordestino,

visto que, apesar de concentradas em três meses do ano, o índice pluviométrico da região é

bem mais alto que de países como Israel, que é caso de sucesso no modelo de gestão de

águas.

57 Esta aceitação foi concretizada em declarações emanadas via Comitês de Bacias de que a tarifa a ser aprovada seria aplicada apenas ao Eixo Leste. A aprovação de tarifa para o Eixo Norte significaria aceitar esta obra. No ano de 2000, o Deputado Federal Clementino Coelho, PPS/PE, já se posicionava favorável ao Eixo Leste: “Dois eixos envolvem essa transposição "do" que o senhor fala: o Eixo Norte, que corresponde a 90% dos valores da obra, e o eixo Leste, que corresponde a 15 ou 10% desses 3 ou 4 bilhões. Fortuitamente, esse Eixo Leste vai para a Paraíba, que é o estado onde a situação é mais crítica. No Rio Grande do Norte, há água; no Ceará, ainda há mananciais hídricos não explorados” (DEPUTADO FEDERAL CLEMENTINO COELHO, PPS/PE, CÂMARA DOS DEPUTADOS, GRUPO DE TRABALHO, 2000). 58 No capítulo histórico esses pontos foram tratados. Mas, alguns autores indicam como essas dimensões operam: “indústria da seca”, de Antônio Callado (1960), sistema de trabalho e distribuição de terras tratada, por Celso Furtado (1989).

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A chuva é relativamente abundante, quase sempre acima de 500 mm por ano. Nos estados atingidos pela seca, os índices de disponibilidade anual de água por pessoa são razoáveis, o problema é reter essa água e possibilitar que a ela tenham acesso as pessoas que mais necessitam. Essa mesma água da chuva, que pode ser captada nas cisternas para o consumo humano, pode também ser armazenada em pequenos barramentos de cabeceira e utilizada na produção irrigada de alimentos, com impactos mínimos ao meio ambiente. São pequenas obras que, disseminadas aos milhares e aos milhões, garantirão água para as residências, as lavouras e os animais (DEPUTADO WANDERLEY ÁVILA, PPS/MG, ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2003).

Percebe-se que a crença de que há água no semiárido concentra-se em um debate

técnico entre acadêmicos da área de hidrologia com o apoio de organizações da sociedade

civil. Estas aportam à argumentação o uso histórico da água como meio de dominação.

Como afirma o representante da Comissão Pastoral da Terra (ASSEMBLEIA DA BAHIA,

2000): “o problema não é a seca, e sim a cerca”.

Alguns parlamentares e os principais críticos da obra não utilizam esse argumento

de que é desnecessário levar água para o Nordeste. Eles reconhecem o problema da falta de

água como limitador para o desenvolvimento da região.

Ninguém pode, em sã consciência, se negar a discutir a necessidade de aumentar a oferta de água no semiárido; mas, por outro lado, é preciso discutir intensamente como aumentá-la (JOSÉ CARLOS DE CARVALHO, SECRETÁRIO DE RECURSOS HÍDRICOS-MG, ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2007).

Pois bem, isso tudo traz a questão seguinte: a grande luta da transposição, nesses estados, é que há um problema de insegurança. Se analisarmos, há uma reserva de água bastante expressiva. Foram construídos lá enormes açudes, gigantescos, os maiores da América Latina. Orós, quando construído, já era o maior da América Latina; depois dele, há o Ribeiro Gonçalves, que é ainda maior, e agora está sendo construído, no Ceará, o Castanhão, que vai ser bem maior do que os dois anteriores. Agora, qual é o problema básico? É que há uma insegurança. Por quê? Como a água deles é originária, basicamente, a partir de açudes, existe o medo. De quê? De não haver uma recomposição desse líquido. Se há açudes, ficam com medo de que, no ano seguinte, não chova e, não chovendo, não ocorre recomposição da água. Por isso, ficam com receio de usá-la. Vocês sabem que é comum no Nordeste não chover, mesmo. Durante um ano, nessas regiões mais secas, choveu o mínimo. Então, esse é um temor que eles têm (JOÃO ALVES, EX-GOVERNADOR SERGIPE, ASSEMBLEIA DA BAHIA, 2000).

Para outros deputados, o problema de escassez da região deve ser resolvido com

uma transposição, mas não das águas do São Francisco, e sim as do Rio Tocantins.

Porque nós temos sim, de levar água para o Rio Grande do Norte, de levar água para o Ceará, de levar água para Pernambuco, todo mundo sabe que Caruaru está em crise, todo mundo sabe que Campina Grande está à beira de um colapso. Mas para se levar essa água, tem que se levar de onde tem e onde tem essa água é em Tocantins (DEPUTADO AUGUSTO BEZERRA, PARTIDO DA FRENTE LIBERAL - PFL/SE, ASSEMBLEIA DO SERGIPE, 2000).

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Em 2004, o Deputado Augusto Bezerra (ASSEMBLEIA DO SERGIPE, 2004)

reavaliou que Ceará e Rio Grande do Norte não precisariam da água a qual seria utilizada

para irrigação59. Acredita-se que, na iminência de implementação do projeto, sem reforço

de vazão com águas do Tocantins, o Deputado mudou de estratégia e passou a apoiar

argumentos da academia e da sociedade civil sobre este aspecto – não há déficit hídrico na

região a ser atendida pelo Eixo Norte.

Pelo lado dos defensores do projeto, os deputados cearenses, em sua maioria,

acreditavam que a obra seria a solução para o problema da escassez de água no estado.

Alegavam que a única fonte hídrica existente era o Rio São Francisco. Um número

comumente utilizado era o de que no Nordeste estão 3% dos recursos hídricos do país,

sendo que 70% estão concentrados no Rio São Francisco.

6.2.5 População beneficiada

A discussão sobre população beneficiada também se insere nas preocupações de em

qual paradigma de desenvolvimento a obra está inserida. O direcionamento de uma política

para atendimento de grupos da população é uma das principais razões para motivação e

ação dos atores.

Para a sociedade civil, que se posicionou radicalmente contra o projeto, o público-

alvo da obra são políticos e grupos empresariais ligados ao agronegócio. Acreditam que,

além de pressupor um falso problema (existência de déficit hídrico), ela é proposta como

solução para o desenvolvimento da região, quando, na verdade, reforçaria velhos esquemas

de dominação e exclusão.

Parece-nos que a transposição do São Francisco é uma velha falsa solução para um velho falso problema. O consumo humano de água é só fachada; 186 municípios da região do Nordeste Setentrional serem beneficiados por essas águas, qualquer um percebe, sem qualquer cálculo técnico, que é impossível. Por trás disso está o interesse das grandes empresas de irrigação nos solos ainda possíveis de serem irrigados do Vale do Apodi, do Rio do Peixe, do Salgado, do Jaguaribe. Só que se vende isso à população como chance de emprego. E nós conhecemos o custo social e ecológico da irrigação, ainda muito mal-entendida pela própria sociedade brasileira (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, ASSEMBLEIA DA BAHIA, 2000).

59 “[...] é uma obra onde o Ceará e o Rio Grande do Norte, nós temos dados técnicos, não precisam de água para beber, não precisam de água para beber, nem o Ceará nem o Rio Grande do Norte, está água é para irrigação. E mais uma vez a gente tem que denunciar, não existe outra coisa por trás desta transposição” (DEPUTADO AUGUSTO BEZERRA, PFL/SE, ASSEMBLEIA DO SERGIPE, 2004).

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Um número muito utilizado na argumentação é proveniente do próprio estudo de

impacto ambiental do projeto. Os opositores ao projeto informam que, no estudo, 70% das

águas estão planejadas para uso em projetos de irrigação.

O projeto também é criticado por não priorizar aquelas populações que mais sofrem

os impactos da seca. Os atores que fazem a crítica argumentam que as populações

residentes em áreas rurais ou em pequenos núcleos urbanos isolados, também denominadas

“populações dispersas”, são as mais atingidas pela fragilidade no acesso à água.

Quem estiver pensado que a transposição do São Francisco vai beneficiar o povo mais carente do Nordeste, a população difusa, estará muito enganado. Esta população difusa que hoje está sendo abastecida com frotas de carros-pipa vai continuar sendo abastecida com carros-pipa! Quem vai receber a água do São Francisco é o criador de camarão, o exportador de manga, enfim, aqueles que detêm grande capital (JOÃO SUASSUNA, FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, AUDIÊNCIA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007). 

Parte dos defensores do projeto não refuta o atendimento da produção irrigada, mas

enfatiza que as águas também atenderão às populações urbanas. A superação de crises de

abastecimento em Fortaleza-CE e Campina Grande-PB, por exemplo, é indicado como um

dos objetivos da obra. Considerando a entrevista com o ex-coordenador do projeto

(1o/10/2010), a construção do Castanhão no Ceará e outras barragens já se constituíam no

início da interligação de bacias.

A publicação do Atlas da ANA em 2004 serviu de instrumento para os críticos da

obra. As intervenções propostas no Atlas, de acordo com os opositores, custariam R$ 3,5

bilhões e atenderiam 34 milhões de pessoas em áreas urbanas ou municípios com mais de 5

mil habitantes.

A publicação do Atlas levou à modificação no discurso de defesa do Projeto de

Interligação a partir de mais ênfase no abastecimento humano. O Ministério da Integração

reorientou os argumentos para demonstrar maior concentração urbana da população do

semiárido e redução da produção agrícola em favor do setor de serviços.

Os dados do censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 56% da população do semiárido é hoje urbana, reside em pequenas e médias cidades. Na área de atuação da SUDENE, esse percentual sobe para 68%, ficando muito próximo da média brasileira, de 85%. Temos de ter grande cuidado com as cidades do semiárido. A garantia hídrica para essas cidades deve ser objeto da nossa preocupação (JOÃO MENDES SECRETÁRIO EXECUTIVO, MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO, ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2007).

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Outra vertente de argumentação contrária à obra é de que esta atenderia a uma

população reduzida. A fundamentação, todavia, parte de pontos de vistas diferentes. Um

setor critica a obra porque a quantidade de água a ser transportada seria irrisória diante das

demandas regionais de abastecimento humano e irrigação. Uma segunda linha de

exposição é a de que, geograficamente, os canais passariam por regiões que não são as

mais críticas. Observa-se também a percepção de que os benefícios seriam limitados visto

que as águas transportadas poderiam ser apropriadas por poucos.

Por que não somos capazes de pensar e amadurecer um projeto maior ou fazer um projeto concomitantemente? Por que nem se conhece o destino social e econômico do projeto que está em estudo hoje? Nesse sentido, gostaria que S.Sa. refletisse um pouco sobre isso, para que também colhêssemos informações a respeito do que é, a seu juízo, uma obra dessa natureza para o desenvolvimento da população de toda essa região. Que não seja apenas algo preocupado com a obra ou com a apropriação das águas ao longo dessa transposição, que se destinaria, afinal, ao consumo, ao abastecimento humano em determinados setores. Que garantias existem de que não haverá apropriações, como é habitual acontecer em nosso Nordeste? (SENADOR WALDIR PIRES – PARTIDO DOS TRABALHADORES - PT/BA, GRUPO DE TRABALHO CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

6.2.6 Paradigma de desenvolvimento

Os paradigmas de desenvolvimento ou visões que nortearam as ações empreendidas

para o desenvolvimento do semiárido nordestino consistem em importante parte do

contexto de discussão do Projeto de Interligação de Bacias. Como analisado no capítulo

histórico, as percepções sobre como deveriam ser as intervenções no semiárido

transformaram-se. Ao longo da história da região foram formuladas percepções sobre

problemas e soluções que permearam (ou não) os programas de governo. Como visto no

capítulo 4, o pensamento social sobre a região, seus problemas e soluções pode ser inserido

em um dos seguintes conjuntos: “solução hidráulica”, “modernização conservadora” e

“convivência com o semiárido”.

A partir do material analisado, constatou-se que a sociedade civil organizada

percebe e utiliza essa crença mais frequentemente. A construção e defesa de um novo

paradigma representam uma inovação social. Uma das características dos movimentos

sociais e um dos papéis da participação é garantir que populações, anseios e projetos antes

excluídos passem a ser inseridos na discussão e prática governamental.

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Portanto, a crítica aos paradigmas que até então nortearam a ação de governo e não

representaram mudanças sociais consistentes tende a ser concentrada nas falas de

representantes e manifestos da sociedade civil.

Por parte da comunidade política, é mais sensível criticar as visões e ações que

constituíram as ações de governo na região, considerando as possíveis relações que tinham

com órgãos de governo como DNOCS e CODEVASF.

A “solução hidráulica”, por exemplo, apesar de consubstanciar fenômenos sociais

como a “indústria da seca”, é avaliada como positiva. Nas percepções favoráveis, estão

constatações como a de que o semiárido nordestino é o mais populoso do mundo, devido

aos açudes do DNOCS. Assim também a avaliação de que os açudes construídos permitem

a implementação da ação estruturante que é o Projeto de Interligação.

Quem critica a açudagem do DNOCS, quem critica a chamada solução hidráulica não está percebendo que essa solução dará agora grandes frutos. Uma informação que dou também ao Dr. Aldo Rebouças. Nós não podíamos usar as águas dos açudes construídos pelo DNOCS - havia uma evaporação muito grande, uma salinização muito alta -, porque não tínhamos certeza de que choveria no fim do ano. Se ligarmos todo esse conjunto de barragens a uma torneira no São Francisco, poderemos usar as águas exaustivamente até esvaziar os açudes completamente. É até bom esvaziá-los, porque estaremos tirando a água salinizada e substituindo-a por água de boa qualidade, que é a água do São Francisco. O grande mérito do DNOCS aflorará quando se ligar com o São Francisco e for possível usar as águas que lá estão, porque até o momento não podemos usá-la (DEPUTADO FEDERAL MARCONDES GADELHA PSB/PB, GRUPO DE TRABALHO, CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

Por outro lado, o “sucesso” da solução hidráulica também é utilizado na

argumentação dos que se opõem à obra. A expressiva acumulação de água alcançada

permitiria à região realizar as suas atividades econômicas e sociais sem que a água fosse

fator limitador. As estiagens prolongadas não representariam altos riscos, visto que 700

açudes plurianuais já construídos permitiriam o enfrentamento desse problema60.

Técnicos do Ministério da Integração e parlamentares defensores da obra avaliam

que esta supera o antigo paradigma da “solução hidráulica” e seus defeitos com base na

ênfase em gestão. O conceito de “garantia de segurança hídrica” resume uma nova visão de

gestão dos recursos hídricos. Essa nova visão, pelo material analisado, foi gestada nos

quadros técnicos e nas discussões políticas no estado do Ceará.

60 Informação extraída da fala do Professor da Universidade do Sergipe Luiz Carlos Fontes (ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2007).

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O inverno no Nordeste é o salário do caixeiro-viajante: há ano em que chove mais do que a média, em outro, chove menos. Por isso, temos de construir usando a média, porque não sabemos em qual ano haverá seca. Como só usamos a média, só bebemos a metade do copo. E só existe uma forma de beber toda a água do copo: fazendo a transposição do São Francisco. Isso não significa que usaremos a água do São Francisco, mas sabendo que há socorro hidráulico na fronteira; sabendo que há um canal ligado a um rio permanente - a grande vantagem do São Francisco é a sua permanência -, sabendo que há um veículo permanente de água para suprir o Nordeste nas grandes secas, poderemos beber a outra metade da água contida no copo (HYPÉRIDES MACEDO, SECRETÁRIO DE INFRAESTRUTURA HÍDRICA DO MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL, ATAS DE AUDIÊNCIA, CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007).

A percepção de que os paradigmas da “solução hidráulica” e “modernização

conservadora” não mais atendiam aos anseios e necessidades da população moveu a

atuação de setores da sociedade civil. Nota-se que no estado do Ceará, principal defensor

da obra, surgiu um movimento em defesa de uma “nova cultura da água”. Esse fato é

emblemático, visto que o estado do Ceará pode ser considerado historicamente centro dos

grandes episódios da seca, nascimento da ideia do projeto e reduto de atuação do DNOCS.

Primeiro, não se trata de um debate regional, não se trata de um debate que vai confluir a opinião dos estados doares e receptores dessas águas. Trata-se do futuro e destino da gestão das águas no Brasil, porque nós estamos discutindo, efetivamente, um projeto velho de uma velha cultura da água, onde são as grandes obras hídricas que respondem ao problema da escassez e isso nós vimos colocando o nosso manifesto aqui no Estado do Ceará, que essa cultura da água baseada nas grandes obras hídricas é uma espiral crescente e sem fim (FRENTE CEARENSE POR UMA NOVA CULTURA D´ÁGUA, ASSEMBLEIA DO CEARÁ, 2007).

Houve também, por parte de parlamentares, críticas ao contexto “paradigmático” da

obra. Apura-se que a crítica objetivava provocar uma “reforma conservadora” ou

aprofundamento dos mecanismos de gestão das águas.

[...] irresponsabilidade do Governo é introduzir mais uma vez um projeto, como tantos outros que o DNOCS fez, em que em 90 anos não resolveu o problema da gestão de água do sertanejo do semiárido. E introduz com o mesmo viés. Qual é o viés? Vamos resolver a questão do caneco d'água, vamos resolver a questão do êxodo nordestino. Essa não é mais a abordagem de quem tem uma fronteira como o semiárido para explorar, que é o semiárido mais populoso, é o semiárido com a maior fronteira agrícola que o país tem, em relação ao qual se dá a maior demonstração de incompetência política, porque estamos aquém de todos os semiáridos do mundo ocidental (DEPUTADO FEDERAL CLEMENTINO COELHO, PPS/PE, GRUPO DE TRABALHO, CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

À exceção da demanda pelo Comitê de Bacias por um plano de desenvolvimento

em 2003, não foram recorrentes discussões e argumentações baseadas na necessidade de

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construção de um plano de desenvolvimento das regiões e do projeto como parte desse

plano.

6.3 Análise de fóruns de discussão, papel da sociedade civil, Igreja e academia

Os atores que compõem o subsistema não se restringem apenas aos representantes

políticos. Academia, mídia e sociedade civil são importantes participantes do processo de

definição da política.

Na análise das crenças, observou-se que eram realizadas poucas referências por

parte dos membros do grupo político (deputados estaduais e federais) a representantes ou

organizações da sociedade civil. Constatou-se que, inicialmente, havia mais participação

de membros da academia que, pelo menos desde o ano 2000, atuavam para subsidiar com

informações técnicas os posicionamentos assumidos pelos atores.

A partir de 2001, a sociedade civil começou a participar mais. Entretanto, a atuação

tornou-se sistemática após a primeira greve de fome do Bispo Dom Cappio em 2005.

Surgiram daí organizações e redes de organizações já existentes para opor-se e, em menor

número, defender a obra.

A Igreja desempenhou papel fundamental em toda a discussão. Primeiramente, por

sua atuação histórica na região e participação em movimentos sociais, como pelas

experiências com tecnologias sociais e ações de “convivência com a seca”, que eram

realizadas nos projetos sociais religiosos. Essas experiências fundamentavam como opção

real a defesa de uma concepção de desenvolvimento alternativa ao projeto.

Objetiva-se com as seções a seguir chamar a atenção para aspectos e contribuições

trazidos por cada tipo de ator para a discussão e pontuar especificidades regionais

constatadas nos debates realizados nas Assembleias Legislativas analisadas. Isto porque as

coalizões são compostas de atores de diversos cenários. Estes trazem recursos e estratégias

típicos de sua experiência e inserção institucional. A união e atuação coordenada são

motivadas pelo compartilhamento de percepções similares sobre o problema da seca e suas

soluções.

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6.3.1 A dinâmica do conflito nas Assembleias Estaduais e na Câmara Federal

A leitura do material obtido junto aos parlamentos estaduais e na Câmara Federal,

apesar das limitações de taquigrafia e do acesso a apenas um registro impresso, permitiu

uma viagem no tempo. Foi possível apreender que o projeto e os seus impactos eram fortes

preocupações para alguns políticos que atuavam incansavelmente em sua crítica ou defesa.

Os arquivamentos da obra eram celebrados pelos seus opositores como resultados de seus

esforços e mobilização junto ao Governo Federal.

A partir das atas é quase possível visualizar a veemência com a qual os

parlamentares se posicionavam e os conflitos e questões subjacentes. Em entrevista com

deputado federal que participou das discussões desde 1994 (03/12/2010) foi possível

sensibilizar-se para a existência de “um brilho nos olhos” que ilustrou a passionalidade que

o tema desperta em algumas pessoas.

Conforme já haviam observado Mello (2008) e Azevedo (2008), a oposição ou a

defesa do projeto não se enquadrava em uma lógica partidária. Deputados do Partido

Comunista do Brasil (PC do B) e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), por

exemplo, uniram-se na Assembleia do Ceará para defender o projeto. Deputados da base

governista, tanto no Governo FHC quanto no Governo Lula, posicionavam-se conforme o

interesse regional, à revelia da decisão presidencial.

Percebeu-se, ainda, que, de acordo com os desafios e características de cada

unidade da federação, algumas crenças políticas obtinham mais atenção. Mas em todos os

fóruns era sistemática a preocupação com as questões da revitalização, opção de

desenvolvimento e existência ou não de déficit hídrico no semiárido (crenças políticas 1.1,

1.2 e 1.3 - ANEXO A).

Alguns aspectos específicos das discussões ocorridas nos parlamentos são

pontuados a seguir. Estes auxiliam na compreensão da dinâmica no subsistema político.

Na Assembleia de Minas Gerais percebeu-se forte vinculação da crítica ao projeto

ao movimento pela consolidação da legislação estadual sobre recursos hídricos. Constatou-

se também que argumentos anteriormente utilizados para crítica ou defesa do projeto eram

maturados e reapresentados com novos números e informações. Considerando a trajetória

de argumentação do governo, alguns pontos de críticas dos participantes das audiências e

eventos eram posteriormente retomados e requalificados. Como exemplo, têm-se:

• Crítica de que o projeto atenderia a reduzida porção do semiárido. Foi

posteriormente contraposta com a informação de seleção de área com maior

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densidade populacional da região e seleção de área em que há mais ocorrência de

seca.

• Existência de águas subterrâneas. Governo apresenta nova informação indicando

falta dessa fonte hídrica na região a ser atendida pelo projeto

Até a criação do Comitê de Bacia, eram comuns falas que ressaltavam a

importância de se estabelecer a Lei 9.433/1997 (CBHSF, 2010). A criação do Comitê e a

elaboração do Plano Decenal da Bacia representaram mudanças na discussão. Isto porque

os dados do Plano da Bacia passaram a ser utilizados pelos agentes do Governo

responsáveis pela defesa do projeto. A partir de 2004 também surgiu discussão sobre a

desapropriação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) de

áreas ao longo dos canais para produção familiar.

A partir de 2007, a revitalização havia sido incluída nas ações de governo no

PAC61, com orçamento previsto de R$ 1, 5 bilhão. A discussão foi reorientada para

controle social na aplicação desses recursos. Há falas com comparação dos resultados

obtidos com o projeto Manuelzão62 e discussão sobre a atuação da Companhia de

Saneamento de Minas Gerais (COPASA).

Observa-se a estratégia de expandir a problematização do semiárido, reforçando

que metade da Bacia do Rio São Francisco também se encontra nessa situação. O mero

acesso à água é questionado como solução. Comparações são feitas sobre a pobreza

existente perto de leitos de rios como o próprio São Francisco ou o Rio Jequitinhonha.

Invariavelmente, são informados os Índices de Desenvolvimento Humanos (IDH) da bacia

e da região a ser atendida pelo projeto com o objetivo de mostrar que, se fosse mesmo para

atender à população pobre, o Governo deveria priorizar ações na Bacia do Rio São

Francisco que seria mais carente.

Na Assembleia de Sergipe, as discussões sobre o projeto são monopolizadas por

deputados do partido PFL/DEM, em especial, o Deputado Augusto Bezerra, que desde o

ano de 2000 posiciona-se contrário à transposição até que seja efetivada a revitalização do

São Francisco.

61 Programa criado em 2007 que previa a execução de ações de infraestrutura nos eixos social-urbano, logística e energia. Fonte: www.brasil.gov.br/pac. 62 Projeto Manuelzão foi criado em 1997 a partir da experiência de internato rural na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua meta principal é a revitalização do rio das Velhas. Fonte: www.manuelzao.ufmg.br.

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As discussões na Assembleia de Sergipe são mais direcionadas para a defesa de

outras obras, em especial obras que atendam o estado como a barragem de Pão-de-Açúcar

e o Canal de Xingó. O Deputado Augusto Bezerra atribui à atuação da bancada de Sergipe

em conjunto com as bancadas da Bahia e Alagoas a desistência de implementação do

projeto no ano de 2000. A revitalização é tida como o aumento da vazão a partir da

implementação de projetos como o barramento de afluentes proposto por João Alves ou

desvio de águas do Rio Tocantins.

No período do Governo FHC, as discussões nas Assembleias de Minas e Sergipe

foram pontuadas pela preocupação com a privatização da CHESF e consequente

privatização das águas do rio. Alguns se posicionavam contrários à privatização da

empresa, outros aceitavam desde que fossem adotadas algumas medidas como a criação de

uma agência reguladora. Mas, apesar desse posicionamento em relação à privatização, os

grupos eram unidos pela defesa da revitalização do rio.

Na Assembleia do Ceará, a crise do abastecimento no início dos anos 1990 acirrou

as discussões sobre a construção do grande açude do Castanhão e a necessidade da

transposição para reforço do potencial de uso das águas dos açudes. Aliás, como observa

João Urbano Cagnin, que foi o coordenador técnico do projeto, a construção de Orós e

Castanhão, entre outras, foi pensada tendo em vista a chegada de água do Rio São

Francisco (ENTREVISTA 1o/10/2010). Desde 1994 estão presentes atores e preocupações

que permeiam a discussão sobre a transposição até o Governo Lula.

Na Assembleia do Ceará, o conceito de segurança hídrica já era utilizado e inseria-

se no projeto denominado “Cinturão das Águas”, elaborado pela Secretaria de Recursos

Hídricos do Ceará sob o comando do engenheiro Hypérides Macedo. A transposição seria

a garantia de fonte hídrica para o gerenciamento da água no estado mediante a construção

de infraestrutura que interligaria as diferentes bacias, uma suprindo a outra, conforme a

necessidade. O pressuposto inicial era de que existia déficit hídrico que comprometeria a

sustentação do desenvolvimento do estado.

As discussões na plenária trazem à mente as imagens descritas nos livros e estudos

sobre a seca no Nordeste. Em pleno século XX, os deputados comentavam sobre a situação

dramática que viviam as pequenas cidades e a zona rural do Ceará. Comunidades famintas

saquearam, por exemplo, carro com carregamento de carne do Exército Brasileiro63.

63 Ata da 32ª sessão ordinária. Assembleia Legislativa do Ceará, 28/04/1998.

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Discutia-se a necessidade de distribuição de cestas básicas, mas sempre com a ponderação

de que algo mais definitivo deveria ser realizado para que a situação não ocorresse mais.

Uma frase resumo da defesa do projeto pelo Ceará é a seguinte:

Foi preciso mais uma vez que a seca nos castigasse para que de novo enxergassem que a saída para o Nordeste é a irrigação. Para isto, precisamos transpor água onde existe em abundância [...] Tenho absoluta, repito, que com a transposição o Projeto de Integração de Bacias será a solução do sertão cearense e nordestino (DEPUTADO WELINGTON LANDIM, PSDB/CE, PRONUNCIAMENTO NA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO CEARÁ, 39ª SESSÃO ORDINÁRIA, 12/05/1998).

Na discussão da Assembleia da Bahia é mais evidente o conflito entre projetos de

desenvolvimento. Os deputados mais mobilizados defendem veementemente a importância

da agricultura irrigada para o desenvolvimento da bacia e que a transposição de águas

comprometeria a execução desse projeto. Questionam por que comprometer a melhoria de

uma região que, mesmo com a proximidade da água, é carente. Também foi identificada

uma vertente cuja argumentação assenta-se mais na necessidade de recuperação do rio.

O Grupo de Trabalho criado em 2000 na Câmara dos Deputados tem as discussões

inicialmente orientadas sobre a técnica e a política. Os deputados discutem se deveria ser

focada a convocação de políticos para então convocação dos técnicos. Alguns argumentam

que a convocação de técnicos pode dar a base comum para a decisão política. Outros

argumentam que a decisão é apenas política, conforme anota Marcondes Gadelha PPS/PB,

partidário dessa segunda posição: “cada técnico tem sua visão sobre o mesmo problema”

(GRUPO DE TRABALHO CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000). Os que defendem o

nivelamento técnico propõem diversas perguntas problematizadoras, para as quais são

buscados os consensos técnicos.

• O rio possui água?

• Necessária primeiro a revitalização?

• Quem se beneficia?

• Qual é o prejuízo substancial que transpor 60 m3/s causa aos estados que estão

particularmente levantando a bandeira de resistência à transposição?

• Quais são os problemas que já existem hoje e que serão agravados com a

transposição de águas do rio?

• É possível pensar em um investimento de bilhões antes de pensar em um

investimento da recuperação do rio? Será que a consciência política do país aceita

isso?

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Como se percebe na análise das discussões e na própria aplicação do Modelo de

Coalizões, não há convergência técnica, visto que os grupos são separados por crenças que

moldam as respostas que são dadas às perguntas problematizadoras. Os que argumentam

sobre a racionalidade da técnica e a capacidade de que esta crie uma base comum

acreditam que a política é uma segunda instância que decide a execução ou não.

Ao longo das discussões, percebe-se que aqueles que estão em estados doadores

não afirmam que são contra a obra64. Os deputados constroem a argumentação de que o

projeto deveria inserir-se em um plano mais amplo que atenda a todos os estados

envolvidos e resolva a “questão” do Nordeste. Alguns convidados dão insumo para

incorporação dessa argumentação, em especial João Alves Filho, que defende um projeto

mais amplo, de 10 anos. No projeto, a proposta de revitalização consiste na construção de

barramentos nos afluentes para reforço da vazão.

A defesa da transposição do Tocantins era veemente no início das discussões, mas

esvazia-se a partir do momento em que a CHESF, entre outros, apresentam a possibilidade

de que haja mais disponibilidade de água no rio São Francisco com a redução da produção

da energia nesse rio para produção na Bacia do Rio Tocantins.

A discussão de um pacto que englobasse um conjunto de obras que atendesse às

preocupações dos diversos atores foi contraposta à realidade de contingenciamento de

orçamento, em especial de obras hídricas. Teve participação ativa desde o início até o final

das discussões o relator Marcondes Gadelha (PPS/PB) e Clementino Coelho (PPS/PE). E,

ainda, os deputados da bancada do Piauí, ansiosos para anexarem o projeto de transposição

de águas para o semiárido daquele estado65.

Nas audiências públicas de 2007, na Câmara dos Deputados, constata-se que a

condução da análise do projeto na Câmara dos Deputados muda de liderança e de lócus. As

discussões passam a ocorrer na Comissão de Meio Ambiente e com liderança da bancada

de Minas e deputados mais afeitos à revitalização. Apura-se, também, mais participação da

sociedade civil que não obteve representação nas discussões conduzidas em 2000. Nas

audiências, os atores apenas reforçam argumentos utilizados nos outros eventos analisados.

Ou seja, números, informações e propostas empregados desde o ano 2000, pelo menos, são

novamente apresentados.

64 Politicamente era temerário posicionar-se contra a obra, visto que “quem de sã consciência se colocaria contra uma obra que significaria o fim do drama secular das estiagens nordestinas?” (MELLO apud SAID, 2009). 65 Márcia Azevedo (2008) analisou 102 discursos de deputados federais no Grande Expediente e corrobora a atuação persistente dos Deputados Marcondes Gadelha (PFL/PB) e Clementino Coelho (PPS/PE).

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Deve-se observar que até o ano de 2008 não houve comissões ou audiências no

Senado Federal para especificamente da transposição66. Deve-se ressaltar a atuação de

senadores como Waldeck Ornelas (PFL/BA), Renan Calheiros (PMDB/AL), Teotônio

Vilela (PMDB/AL), Heloísa Helena (PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE -

PSOL/AL), entre outros. A forte oposição ao projeto no Senado constava em discursos e

em iniciativas legislativas, como a Proposta de Emenda à Constituição no 524/2002, que

criava um fundo para a revitalização, e Projeto de Lei 4.308/2004, que vinculava o uso na

bacia de recursos obtidos a partir da aplicação da Lei 9.433/1997.

Apresentaram-se, portanto, alguns aspectos das discussões ocorridas nos fóruns

analisados. Deve-se observar que um aspecto comum é a presença constante de números

nas apresentações dos atores. Nos eventos na Assembleia de Minas, o número mais

recorrente era de que 70% das águas do Rio derivavam daquele estado. Já os que

defendiam o projeto ou originários do Nordeste recorriam invariavelmente aos números

sobre pluviosidade concentrada no Nordeste e nível de evaporação.

Outro número recorrente é o da distribuição da água no mundo. Conforme

explanação de José Theodomiro, têm-se 97,20% de água salgada e apenas 2,80% de água

doce. Desses 2,80%, 2,15% estão congeladas nos polos e ainda não são utilizadas pela

humanidade. Resta 0,65% de água doce no mundo, sendo que 0,31% está em camadas

subterrâneas, ainda fora do alcance para a retirada com a tecnologia que se tem até hoje

(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

6.3.2 Manifestos da sociedade civil

Considerando o material coletado sobre os debates acerca da obra da transposição,

pode-se dizer que a participação da sociedade civil modificou-se ao longo da discussão

sobre o projeto. Antes, paralela aos centros decisórios, ela passou a ter espaços formais e a

adotar estratégias de alinhamento com setores da burocracia federal.

66 Exceto pela Comissão Especial de Acompanhamento do Projeto de Revitalização do Rio São Francisco. Ela foi presidida pelo Senador Renan Calheiros (PMDB-AL) e requerida pelo Senador Waldeck Ornélas (PFL-BA), que foi também o relator da matéria (AZEVEDO, 2008). Em 14/02/2008, houve audiência sobre o projeto, iniciativa conjunta das Comissões de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), Desenvolvimento Regional (CDR), Serviços de Infraestrutura (CI) e Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE). No mesmo ano foi criada comissão especial externa para acompanhamento da obra, sendo que o presidente e o relator são senadores favoráveis à obra.

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Nos debates parlamentares nas Assembleias Legislativas, detecta-se mais atuação

da sociedade civil nos eventos realizados na Assembleia de Minas, incorporando-se o

chamado “Movimento Minas em Defesa das Águas”, criado em março de 2000. Entre

outras reinvindicações do movimento, como o cancelamento do processo de privatização

da central elétrica de FURNAS, constava também a revitalização do rio como condição

para discussão da transposição (MINAS GERAIS, 2005).

Afora a Assembleia de Minas, não se registra nas outras Assembléias, nem mesmo

nas discussões do Grupo de Trabalho estabelecido em 2000 na Câmara dos Deputados, a

participação intensiva da sociedade civil67, bem como não há, por parte dos parlamentares,

referências sistemáticas a representantes ou organizações pertencentes a esse grupo. As

falas dos parlamentares, no período de 2000-2003, quando mencionam sociedade civil ou

comunidades, o fazem reclamando a falta de atuação e envolvimento das mesmas68.

Deve-se notar que, apesar da ausência desse grupo nos debates parlamentares, há

atuação paralela.

Em relação aos movimentos favoráveis à obra, não se encontraram manifestos e

cartas abertas em quantidade expressiva como a produzida por movimentos contrários.

Apenas em 1994 foi entregue ao então Presidente Itamar Franco um documento

denominado de “Carta de Fortaleza”. A Carta foi elaborada após reunião no Conselho de

Engenharia do Ceará, que envolveu políticos, empresários, técnicos, trabalhadores,

estudantes e líderes comunitários. Sua iniciativa deveu-se a um grupo de políticos.

Andreazza pretendia ser candidato a Presidente e a transposição constaria de seu projeto de Governo. Depois de perder a convenção do partido para Paulo Maluf, comenta-se que Andreazza entrou em depressão e morreu em seguida. Morria com ele o projeto, que foi sepultado em um dos escaninhos do Banco Mundial, em Washington, Estados Unidos. Na seca de 1993 nós descobrimos esse projeto lá no Banco Mundial. Começamos a trabalhar a ideia e trouxemos o engenheiro responsável pelo projeto, José de Ribamar Simas. Na ocasião foi realizada em Sousa, sertão da Paraíba, uma grande reunião para discutir a transposição. Esse encontro foi o nascedouro de toda a mobilização em favor do projeto que aconteceu nos anos seguintes (GADELHA, 2009).

Em contraponto aos movimentos opositores, os que apoiavam o projeto

acreditavam que este representava um novo paradigma de desenvolvimento para a região e

permitiria a superação dos impactos brutais da seca. Eles afirmam que seria uma “solução

67 Entre o material analisado do Parlamento, a única atuação de outros grupos nos debates parlamentares (à exceção dos ocorridos em Minas Gerais) ocorreu na sessão especial de 07/04/2000 na Assembleia da Bahia em que participou representante da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). 68 Fonte: NVIVO – Free node – referência sociedade civil.

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definitiva”. No documento pedem a priorização de sua execução mediante alocação de

recursos via empréstimo do Banco Mundial e início dos estudos ambientais.

A pressão dos opositores levou à assinatura pelo então Presidente Fernando

Henrique Cardoso do documento “Compromisso pela Vida do São Francisco”, em 1995.

Neste foram prometidas ações na área de revitalização e continuidade dos estudos sobre a

transposição, ressalvados os critérios de sustentabilidade e uso múltiplo do seu potencial

hídrico.

Importante notar que o documento pode ser visto como uma das bases políticas

para o estabelecimento da Política Nacional de Recursos Hídricos e posterior criação do

Comitê, haja vista que um dos pontos era: “definir um modelo institucional para a gestão

integrada da Bacia do São Francisco que envolva a participação dos Governos Federal,

Estaduais e Municipais, usuários e representantes da sociedade civil” (COMPROMISSO

PELA VIDA DO SÃO FRANCISCO, 1995, fragmento).

O seminário “O Rio São Francisco: questão de vida ou morte” indica a atuação

paralela da sociedade civil. O evento foi realizado na Universidade Federal da Bahia, em

2000. Ele foi organizado pela Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e contou com

a participação da Caritas, Comissão Pastoral da Terra (CPT) da BA e SE, Conferência

Nacional dos Bispos (CNBB)-NE3 e Conselho Regional de Arquitetura e Engenharia da

Bahia (CREA-BA)69.

No seminário, foram pautados os princípios que norteariam a atividade das

organizações da sociedade civil contrárias ao projeto. O documento produzido inicia com

uma crítica à degradação ambiental sofrida pelo rio, consequência do “modelo de

desenvolvimento social e ecologicamente insustentável”70. Condena, entre outros, os

barramentos que comprometeram o sustento por intermédio da pesca dos ribeirinhos e os

grandes projetos de irrigação os quais legaram a concentração de terras e de água.

O caminho imposto ao Vale do São Francisco pelas políticas oficiais de desenvolvimento é um caminho que leva à morte. O rio está hoje em uma situação-limite, agonizante e ameaçada na sua condição de gerador de vida para milhões de brasileiros (DOCUMENTO RIO SÃO FRANCISCO: QUESTÃO DE VIDA OU DE MORTE, 2000).

O diagnóstico que orienta a ação é o de que as condições ambientais do rio

impedem a realização do projeto e ele não consiste em “solução verdadeira” para o

69 O Seminário “Rio São Francisco: questão de vida ou morte” também foi realizado em outras cidades no ano de 2001: Paulo Afonso, Glória, Barra e Bom Jesus da Lapa, na Bahia e Cabrobó-PE. 70 Documento “Rio São Francisco: uma questão de vida ou morte”, 2000.

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semiárido. Informa que há chuva, ou seja, o problema não seria de déficit hídrico, mas sim

ações que aproveitem as potencialidades e vantagens do semiárido. O paradigma de

“convivência com o semiárido” é então defendido para direcionar as ações do Governo na

região.

Diferentemente das falas dos parlamentares analisadas, há a preocupação com

inserção da obra, caso fosse sustentável, em um plano de desenvolvimento para a região.

São também questionados elementos centrais como a distribuição e preocupação se a água

aduzida apenas reforçaria antigos esquemas de dominação da região.

Ou seja, a sociedade civil organizada demandava a superação de antigos padrões de

intervenção governamental na região, os quais apenas reforçavam a estrutura de dominação

existente. Receava-se que a intervenção consistiria em uma obra de grande magnitude da

velha “indústria da seca”.

No ano de 2000, foi fortalecido o Fórum de Defesa do São Francisco71. O fórum foi

criado no ano anterior e congregava organizações ligadas à Igreja (CNBB-NE3, Caritas e

CPT), organizações da sociedade civil (Grupo Ambientalista da Bahia – GAMBA;

Instituto de Ação Ambiental da Bahia – IAMBA; Assembleia Permanente de Entidades em

Defesa do Meio Ambiente – APEDEME; e outras associações derivadas do trabalho de

dioceses) com o apoio do CREA-BA. Movimentos sociais como Movimento dos Sem

Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Movimento dos Pequenos

Agricultores (MPA) também participavam, com menos frequência. A academia estava

presente com representantes das Universidades da Bahia, Fundação Joaquim Nabuco e

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O fórum formou uma rede de atuação contra o projeto, mobilizando também outras

organizações, como a ASA. Os princípios que defendiam eram aqueles expostos no

documento “Rio São Francisco: uma questão de vida ou de morte”.

Uma estratégia das organizações da sociedade civil era barrar o processo de

licenciamento ambiental. Como se viu no capítulo 5, as audiências públicas de 2001 foram

suspensas por manifestações e por ações civis públicas solicitadas por entidades como a

GAMBA e Centro de Recursos Ambientais.

71 As informações apresentadas sobre o Fórum de Defesa do São Francisco foram extraídas da dissertação de Marcela Menezes intitulada “Águas da disputa: a experiência do Fórum Permanente de Defesa da Bahia” (2009).

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Nas manifestações contra a realização das audiências, houve a participação de

poderes políticos locais e estaduais. Os órgãos ambientais estaduais (como as Secretarias

de Meio Ambiente) avalizaram as ações judiciais que impediram as audiências.

O principal argumento para contestação do licenciamento era o de que o estudo de

impacto ambiental não estava completo, visto que não analisou os impactos na Bacia do

Rio São Francisco.

A contestação social levou ao estabelecimento do Programa de Revitalização em

2001. A criação do programa foi avaliada por membros da sociedade civil como “mais

uma resposta política do que a apresentação técnica de um programa de revitalização com

atividades, metas e objetivos bem organizados” (MENEZES, 2009, p. 33). Menezes (2009)

ressalta, ainda, que os recursos alocados para o programa naquele ano eram destaques

orçamentários do Ministério da Integração para o Ministério do Meio Ambiente.

A partir da dissertação de mestrado de Marcela Menezes (2009), identifica-se outra

estratégia da sociedade civil relacionadas ao credenciamento ou descredenciamento de

agências de governo. De acordo com a autora:

Em 2001, foram criados, por decreto, tanto o Comitê quanto o Programa de Revitalização e Conservação do Rio São Francisco, coordenados pelo MMA. Era a primeira vez que esse Ministério coordenava alguma ação de grande alcance no São Francisco e parte significativa da sociedade excluída das políticas implementadas pela CODEVASF, CHESF e DNOCS passou a apoiar o MMA, construindo a ideia de dar vida novamente ao São Francisco (MENEZES, 2009, p. 32).

O MMA tornou-se campo principal de luta contra o projeto dentro da estrutura da

burocracia federal. Além de agir com o apoio do Ministério Público e por meio dos

instrumentos jurídicos, o projeto político da sociedade civil tinha aliados no Ministério do

Meio Ambiente. Menezes avalia, à luz da literatura sobre movimentos sociais (como, por

exemplo, TARROW, 2009), que o fortalecimento do MMA representou uma oportunidade

política para a sociedade civil. Isso corrobora o fato de, até então, na atuação parlamentar,

esse grupo ter obtido pouca visibilidade72 ou pouca relevância via mecanismos formais da

democracia representativa (possibilidade dos parlamentares representarem projetos

políticos do grupo da sociedade civil).

72 Fonte: NVIVO – free node referências sociedade civil – até 2003, as referências coletadas sobre sociedade civil ou consistiam em questionamento da falta de mobilização ou em referências de membros da própria sociedade civil. Apenas o Deputado Jorge Alberto - PMDB/SE faz menção a uma atuação conjunta entre grupo político e sociedade civil. A partir de 2003, as referências tornam-se mais constantes, todavia, concentradas no Comitê de Bacia.

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A convergência de fatores como a mobilização da sociedade civil e a articulação

com segmentos da burocracia federal que compartilhavam o projeto político no que se

referia à situação do rio e urgência da revitalização levaram à criação do Comitê de

Bacias73.

Constatou-se que mais visibilidade do grupo “sociedade civil” na discussão

começou a ocorrer no ano de 2003 com a criação do Comitê do São Francisco74. Mas,

elemento que criou mais oportunidade foram as greves de fome do Bispo Dom Cappio, que

expandiram a discussão a partir do ano de 2005.

O Comitê passou a ser uma referência de atuação e argumentação tanto de

parlamentares que se opunham à obra, como de membros da academia e organizações da

sociedade civil. A diretoria do Comitê foi ocupada por pessoas ligadas ao movimento

contra a transposição e a parlamentares, visto que ocupavam posição de secretariado nos

governos estaduais.

73 O então secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente era José Carlos de Carvalho. Antes de assumir o Ministério, ele foi Secretário Estadual de Meio Ambiente em Minas Gerais. Participou ativamente dos eventos realizados na Assembleia Legislativa de Minas Gerais analisados (em 2004, 2005 e 2007). Sua participação permitiu mapear as crenças que o moviam a criticar o projeto. Infere-se que a atuação conjunta do MMA e sociedade civil foi motivada pelo compartilhamento de crenças, em especial a crença política de que a prioridade deveria ser a revitalização do rio. Fonte: NVIVO – cases José Carvalho. 74 Fonte: NVIVO – query result – sociedade civil. Busca retornou membros da sociedade civil e anos em que participaram dos eventos analisados.

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QUADRO 7

Lideranças Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco

Período Cargo Nome Origem

Diretoria

Provisória –

out/2001 a

2003

Presidente José Carlos de Carvalho Secretário Executivo (1999-2001) e

Ministro do Meio Ambiente (2002-2003)

Secretária

Executiva

Dilma Seli Pereira Agência Nacional de Águas

Luis Carlos Fontes Academia/Sergipe

2003-2005 Presidente José Carlos de Carvalho Preside o CBHSF

Vice-Presidente Jorge Khoury Deputado Federal pelo PFL/BA e

Secretário de Meio Ambiente

Séc. Executivo Luis Carlos Fontes Academia/Sergipe

2005-2007 Presidente 1 Jorge Khoury

2 José Carlos de Carvalho

1 Deputado Federal pelo PFL/BA e

Secretário de Meio Ambiente

2 Secretário de Meio Ambiente de Minas

Gerais a partir de 2007 até o momento atual.

Vice-Presidente Luis Carlos Fontes Academia/Sergipe

Secretário

Executivo

1 Anivaldo Miranda Pinto

2 Yvonilde Medeiros

1 Secretário de Recursos Hídricos Alagoas

2 Academia/BA

Fonte: Revista do Comitê da Bacia do Rio São Francisco (CBHSF, 2007).

Como já discutido, o Comitê foi criado à luz da Política Nacional de Recursos

Hídricos, aprovada em 1997. Ele representou uma inflexão na discussão sobre o projeto,

pois criou um novo fórum que permitiria a participação da sociedade civil no processo

decisório sobre os recursos hídricos. Até então a sociedade civil dispunha de pouco espaço

nas Assembleias Legislativas e não detinha, em conjunto com outros atores, como usuários

e comunidades indígenas, canais formais para limitar a ação do governo no setor.

Mas, considerando a composição das diretorias do CBHSF, o espaço foi

monopolizado por representantes do grupo político que desde 2000 lutava nas Assembleias

Legislativas e na Câmara dos Deputados contra o projeto75. A sociedade civil organizada

75 Fonte: NVIVO – sets 2000, 2001. Através do material coletado, nos anos de 2000 e 2001, foi detectada intensa atividade parlamentar na Bahia (Deputados Clóvis Ferraz/DEM/BA e Edson Duarte/PV/BA, por exemplo). A Assembleia de Minas Gerais também têm atividades como o Ciclo de Debates sobre a Transposição/2000. A efervescência seguia a discussão que ocorria no Grupo de Trabalho instituído na Câmara. Os representantes indicados ao Comitê não aparecem no material analisado até o ano de 2004. José Carlos de Carvalho, antes de ser Secretário Executivo do MMA, foi Secretário de Meio Ambiente em Minas Gerais (1995-1998). Acredita-se que, por contexto e/ou oportunidade política, as pessoas passaram a se envolver mais efetivamente com a discussão do Projeto após sua nomeação para a Diretoria do Comitê. Elas

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alinhou-se com as forças do grupo político que dominou o Comitê a fim de obter um meio

para cancelamento da obra.

A academia também conseguiu espaço no Comitê, fornecendo os subsídios técnicos

para os manifestos e documentos formulados naquele fórum.

Na visão de parte da sociedade civil organizada, a eleição de Lula significou

redução de autonomia na contestação. Entre outros elementos, lideranças dos movimentos

passaram a ocupar cargos no Governo. Tornou-se difícil criticar a obra como um projeto

cuja visão de desenvolvimento estaria inserida nos moldes tradicionais da “modernização

conservadora”. De acordo com Menezes (2009), a greve de Dom Cappio deu novo fôlego à

oposição, visto que os movimentos sociais estavam desnorteados no que se referia à luta

contra a transposição.

Menezes (2009) chama a atenção para o fato de que representantes ligados a

projetos de agricultura irrigada na bacia eram influentes no Comitê. Estes atuavam no

Comitê defendendo os interesses de irrigantes do oeste baiano, Projeto Jaíba-MG e Projeto

Salitre-BA. A autora afirma que o Comitê era um ambiente político heterogêneo, “ao invés

de um livre articulador da sociedade civil, (o Comitê) passaria a representar um conjunto

de segmentos, num espaço institucionalizado de participação social” (MENEZES, 2009, p.

65).

Além do Fórum de Defesa, outras redes de articulação de organizações da

sociedade civil obtiveram mais visibilidade com a greve de Dom Cappio. A Articulação

Popular São Francisco Vivo (APSF, 2010)76, em sua página, reconhece que a atitude do

religioso permitiu utilizar a discussão sobre a transposição como meio para lutar por suas

bandeiras. Com o Governo Lula precipitando o início do Projeto de Transposição, o enfrentamento deste acaba polarizando e identificando a APSF. Ao final de 2005, acontece o primeiro jejum (11 dias) de D. Luiz Cappio contra o projeto; e a APSF, ao dar-lhe apoio local e repercussão mais ampla, passa a se pautar prioritariamente pela luta contra a transposição (APSF, 2010).

Entende-se que essas organizações obtiveram pouca participação nas discussões nas

Assembleias Legislativas, em especial no Governo FHC. A greve de fome do Bispo e a

relação do PT com essas organizações determinaram mais visibilidade da atuação desse

grupo a partir de 2005. Seus manifestos e questionamentos pautaram as falas de políticos e

representavam forças políticas que desde o ano 2000, pelo menos, atuavam no debate. A partir disto, infere-se que o Comitê foi trespassado por “correntes” que utilizavam o projeto para a defesa de uma “bandeira”. 76 A Articulação é um movimento composto por Comissões Pastorais da região, incluindo uma Comissão Pastoral de Pescadores.

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algumas de suas preocupações tornaram-se ações do Governo Federal. A sociedade civil

deu mais ênfase e relevância, na discussão, à necessidade de um plano de desenvolvimento

para superação dos antigos padrões de ação governamental que apenas reforçavam a

exclusão social.

6.3.3 Participação da Igreja Católica

No resgate histórico apresentado no capítulo anterior evidenciou-se a participação

da Igreja Católica na formação social e religiosa do semiárido. A força da Igreja também se

tornou concreta na discussão sobre o projeto. A CNBB-NE e organizações da sociedade

civil ligadas à Igreja, como a Comissão Pastoral da Terra, participaram, desde os primeiros

anos analisados, em eventos nas Assembleias Legislativas77.

As dioceses tiveram importante papel na formação de organizações locais

(MENEZES, 2009). Estas, por sua vez, uniram-se em fóruns e articulações para obter mais

força na luta contra o projeto.

A Igreja organizou o primeiro seminário (“Rio São Francisco: uma questão de vida

ou morte em 2000”) que formulou os princípios que norteariam toda a crítica ao projeto.

Ela colocou em pauta a necessidade de um plano de desenvolvimento e pôs em xeque o

fato de a obra ser parte da “indústria da seca”.

Mas, além do Comitê, o religioso Dom Cappio tornou-se um ícone dos grupos

contrários à transposição. Sua primeira greve de fome, em 2005, chamou a atenção da

mídia para um conflito que vinha se desenrolando há anos. Ela foi pauta de discursos nas

Assembleias78 e o risco de suas consequências para o projeto preocupou o Governo

Federal mais do que a criação do Comitê de Bacia do Rio São Francisco79.

Burocraticamente, o Governo teria a palavra final no Conselho Nacional de Recursos

77 Fonte: NVivo – case CPT – há participação de representante em evento na Assembleia da Bahia em 2000, enquanto nesta época não há participação efetiva de outras organizações da sociedade civil nos eventos analisados. NVivo – free nodes referências religiosos – em 1999, o Deputado Augusto Bezerra PFL/SE informa que a CNBB do Nordeste e Diocese de Propriá assinaram documento contra a transposição. 78 Fonte: NVivo – free node referências religioso – as menções concentram-se em deputados da Assembleia da Bahia que em sua maioria solidariza com o religioso. Deputados da Assembleia do Ceará rechaçam a atitude e informam que outros representantes religiosos, como Dom Aldo Pagotto, apoiam a obra. 79 Na fala de Ciro Gomes e do técnico entrevistado, o Comitê demandou a paralisação dos estudos sobre a obra até que fosse concluído o Plano Decenal. O Governo atendeu à reinvindicação e esperou a conclusão do plano. Ao final o plano proporcionou ao Governo um número que tornou a obra defensável. Ou seja, o plano estabeleceu a existência de 360 m3 alocáveis. O número englobava a expansão dos projetos de irrigação na bacia e a implantação da Integração de Bacias. Proporcionou base comum para a defesa de que o rio dispunha de vazão alocável.

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Hídricos (BRASIL, 2005b). Já no campo simbólico/místico as consequências da greve do

religioso eram imprevisíveis.

O Bispo Dom Cappio também já havia comparecido à Assembleia da Bahia em

1998. Naquele momento, ele criticou o projeto, argumentando que este sempre reaparecia

em épocas de eleição. O religioso também defendeu a urgência da revitalização. Pontuou

um dos grandes conflitos na discussão, que é a percepção de que o rio não dispõe de vazão

alocável. “Só se dá aquilo que se tem. E antes de só se pensar em tirar, tirar e tirar do Rio

São Francisco, vamos pensar em garantir sua sobrevivência, sua perenidade

comprometida”80.

Houve, entretanto, divisão na Igreja em relação à obra. O Arcebispo Dom Aldo

Pagotto liderou a criação de um Comitê Pró-Transposição no estado da Paraíba. Uma das

estratégias utilizadas para defesa do projeto era a distribuição de material informativo em

escolas da rede pública e privada de todo o país (SAID, 2009).

6.3.4 A participação da Academia

O Modelo de Coalizões de Advocacia assenta-se em uma disputa movida pelo

confronto de informações técnicas e conhecimento. As crenças políticas são percepções

sobre o problema e soluções legitimadas no embate a partir do momento em que obtém

fundamentação científico-técnica. Sabatier (1993) define as crenças como, em suma,

posicionamentos técnicos.

Vieram da academia os principais números e estudos que fundamentaram a

discussão sobre o projeto. Têm-se, por exemplo, os estudos de Aldo Rebouças, as

comparações e artigos escritos por João Abner e João Suassuna e estudo de Alberto Daker

sobre custos para a irrigação.

O Governo, por sua vez, atuou fundamentado em estudos oriundos de consultorias.

Isto não impediu, entretanto, o posicionamento favorável de alguns acadêmicos como

Tânia Bacelar e José Otamar Carvalho. Técnicos do DNOCS, em especial, confrontavam

os números apresentados pelos acadêmicos críticos à obra. A disputa era principalmente

sobre a existência ou não de déficit hídrico no semiárido81.

80 Fonte:NVivo – source Assembleia da Bahia (2005), Clóvis Ferraz. O Deputado Clóvis Ferraz PFL/BA citou esse fato. Os discursos obtidos da Assembleia da Bahia remontavam apenas ao ano de 1999. 81 Fonte: NVivo – source: Câmara dos Deputados (2007) – fala Manfredo Cássio Borges.

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A elaboração do Plano Decenal da Bacia consistiu também em subsídio técnico

para argumentação tanto favorável quanto contrária à obra.

A necessidade do apoio e atuação em conjunta com segmentos que poderiam

formular “conclusões científicas” sobre as crenças defendidas foi essencial. A referência a

algum estudo ou acadêmico era utilizada como forma de tornar verossímeis as opções

políticas defendidas.

6.4 Conclusão

O Projeto da Transposição mobilizou diversos atores do meio político, da academia

e da sociedade civil. A partir da oposição ou defesa ao projeto eles formularam e

expuseram publicamente as suas visões e interesses para o desenvolvimento do semiárido.

Como observado no capítulo teórico, as crenças consideradas são as expressas. Elas

não contam diretamente quais são os verdadeiros anseios ou interesses das pessoas.

Entretanto, a forma como a argumentação para defesa da crença é elaborada indica com

mais clareza as expectativas por trás do posicionamento público. Desta forma, foi possível

perceber nuanças entre grupos/pessoas que à primeira vista eram homogêneos.

No que se refere à revitalização, o grupo que a defendia possuía clivagens. A

principal diferença foi entre a percepção da revitalização como ação de reforço da vazão do

rio e consequente aumento do potencial de atividades econômicas, por um lado. Por outro

lado, estavam aqueles que defendiam a revitalização ambiental e as ações relacionadas de

melhoria das condições sociais.

A análise das falas em defesa das crenças corroborou a influência de elementos

históricos nas preocupações das pessoas. Particularmente na discussão sobre população a

ser beneficiada com o projeto, eram feitas referências de que ele manteria os “velhos

esquemas de dominação e exclusão”, como a indústria da seca. A crítica à solução

hidráulica era estendida à obra, que muitos avaliavam ser a continuidade das políticas

praticadas pelo DNOCS.

Conforme visto no capítulo 5, a legitimidade das crenças dependia de embasamento

técnico. Este, por sua vez, era propiciado com o resgate de estudos e atuação em conjunto

com membros da academia. Assim sendo, os acadêmicos desempenharam papel central em

todo o processo.

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Pode-se pensar que a aproximação com a linguagem técnico-acadêmica passa a

imagem de que as ideias defendidas superam esquemas tradicionais de dominação. Em

especial na discussão sobre o semiárido, recorrer a estudos científicos significava

posicionar-se como neutro em termos de interesses ou de reforço ou acesso ao poder.

Aprofundar nesta análise foge, entretanto, ao escopo deste estudo.

A análise das crenças demonstrou que o conflito em torno do projeto foi um

confronto entre posicionamentos de qual deveria ser a região e o público priorizados.

Também evidenciou percepções distintas sobre qual seria o mecanismo para o

desenvolvimento da região. A formulação do problema do semiárido como sendo o da falta

de água era alvo de críticas fundamentadas no histórico mau-uso das águas reservadas nos

açudes.

Ao mesmo tempo, ressaltar a irrigação como meio para a melhoria da região era

rejeitado por aqueles que questionavam o agronegócio. Mas, para o grupo que “apostava”

na irrigação, esta deveria ser priorizada na própria bacia.

No capítulo seguinte será discutida a dinâmica de interação entre os atores. O

compartilhamento de crenças e a atuação coordenada permitem analisar o debate sobre a

Integração de Bacias como uma disputa para moldar a ação do Governo na região. Dessa

forma, serão apresentadas as coalizões, quais eram as políticas propostas e as

consequências de todo o processo de embate sobre o Projeto São Francisco no pensamento

e ação do Governo Federal para o semiárido.

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7 COMPREENDENDO A DINÂMICA DO CONFLITO SOBRE O

PROJETO E IMPACTOS SOBRE A QUESTÃO DA “SECA”

7.1 Introdução

O envolvimento dos atores e o debate sobre o Projeto de Integração reforçaram as

linhas teóricas que enfatizam o papel das ideias no processo das políticas públicas. As

decisões não são apenas resultantes de interesses e exercício puro da força política. O

processo envolve, além da barganha e do poder político, a negociação e tentativa de

persuasão.

Os atores agem inspirados pela percepção que têm sobre os problemas e soluções.

Mesmo motivações estritamente materiais estão inscritas nesse sistema de crenças ou de

posicionamentos que pessoas/grupos defendem ao longo de um processo político. Por sua

vez, em temas como o problema da seca no semiárido, as crenças foram moldadas por anos

de experiência em políticas públicas e extensa produção intelectual.

Neste capítulo, objetiva-se demonstrar o compartilhamento de crenças entre

atores/grupos envolvidos na discussão sobre o projeto. A dinâmica é compreendida como

uma disputa entre coalizões de advocacia, uma vez que, além das crenças em comum, as

pessoas/grupos agiram de forma coordenada ao longo de vários anos tentando influenciar a

decisão política.

Alguns temas, como o Projeto São Francisco, despertam questões que superam

opiniões sobre aspectos instrumentais da ação do Estado. Considerando as teorias de

“aprendizado político” (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993c) e de mudança de

“paradigma político” (HALL, 1993), a motivação para atuação de atores/grupos pode ser

estratificada em uma hierarquia.

Em um nível mais elementar estão as preocupações com soluções políticas

específicas ou crenças secundárias (construir canal ou adutora). Em um segundo nível

estão as ideias programáticas ou crenças políticas (priorizar população urbana ou difusa).

Por sua vez, o terceiro nível refere-se a ideias filosóficas ou crenças essenciais que são

mais difíceis de serem mudadas (água é um direito humano e não mercadoria).

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A mudança na política ocorre quando, por fatores internos ou externos ao

subsistema político, as ideias (1º, 2º e, dificilmente, as de 3º nível) da coalizão dominante

ou de pessoas que ocupam cargos estratégicos se transformam.

Ainda é cedo para avaliar se a obra proporcionará mudança de terceira ordem ou de

paradigma82. Mas, no debate, esta era uma preocupação cuja difusão pode ser atribuída à

atuação da Igreja Católica via relação com a formação social e dos movimentos sociais nas

duas regiões. A Igreja Católica pautou a necessidade de rompimento com velhos

paradigmas e adoção de novos, como o da convivência com a seca. Esse discurso foi

absorvido por outros grupos sociais como pescadores, indígenas e alguns poucos membros

do grupo político.

Esse discurso alinhou-se com as preocupações de pessoas e grupos com a

preservação ambiental. Esse grupo tinha voz, especialmente, na Assembleia de Minas

Gerais. Envolvia políticos e acadêmicos com atuação na área ambiental, seja como

secretários de meio ambiente ou participantes de organizações da sociedade civil atuantes

no tema. Juntaram-se a esses membros do Ministério Público, consolidando a criação de

eventos como o Fórum Permanente de Defesa do São Francisco.

Também atuando contra a obra, identificou-se um grupo composto basicamente de

políticos estaduais e federais que atuavam pela priorização da alocação do recurso público

na bacia. As falas e defesas recorrentes de seus redutos eleitorais como Barreiras-BA,

Juazeiro-BA e região do Baixo São Francisco demonstram que grande parte do embate

tinha o intuito de garantir água e recursos para ações de governo em suas regiões.

Supõe-se que esta também é uma disputa baseada em crenças. Apesar de não

questionarem paradigmas ou serem movidos por ideias mais abstratas, alguns membros do

grupo político possuem anos de atuação contrária ao projeto. Tanta dedicação e esforço

levam à conclusão de que de fato possuíam uma visão sobre quais deveriam ser os

objetivos e instrumentos da política pública.

Em relação aos atores que se posicionavam favoravelmente à obra, os dilemas da

ação coletiva podem servir para explicar a reduzida exposição e pouca participação da

sociedade civil em manifestações de apoio. Mas ao longo dos anos atores políticos e

técnicos agiram em defesa do projeto.

82 O uso do termo mudança de “paradigma” pode ser visto como problemático. Isto porque, em suas raízes kuhnianas, a mudança representa a superação de um paradigma por outro. A repetida constatação de anomalias no paradigma existente determina a sua substituição por outra compreensão de mundo/teoria. Já no contexto político, velhas ideias e práticas convivem com novas. Neste contexto, flexibiliza-se o uso do conceito de paradigma kuhniano para incorporar a percepção de que são introduzidas incrementalmente novas práticas/teorias. Mas as crenças predominantes e a coalizão dominante incorporam o novo.

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A partir da leitura do material e de entrevista com consultor do Governo Federal

(1o/10/2010) atribui-se a “gestação” do projeto a quadros políticos e técnicos que possuíam

voz na Assembleia do Ceará. Tecnicamente, a formulação do projeto foi conduzida por

engenheiros que desde a década de 1980 envolveram-se no projeto, em especial pessoas

oriundas do quadro do DNOCS83 cuja sede é em Fortaleza-CE. As vozes favoráveis foram

reforçadas com a atuação de bancada da Paraíba.

Pretende-se discutir a avaliação recorrente de que o Governo Federal “atropelou” os

que eram contrários à obra e, principalmente, o Comitê de Bacia do Rio São Francisco.

Com este objetivo serão avaliadas mudanças de 2º nível e possíveis mudanças de 3º nível

que os longos anos de conflito podem ter ensejado em ações do Governo Federal

relacionadas às crenças que estavam em embate.

7.2 Coalizões de advocacia atuantes

A dinâmica do subsistema é fruto da interação entre as coalizões de advocacia e

destas com o contexto. A discussão da transposição representou o embate de diversos

atores e organizações. Ela foi o choque de propostas diferentes no que se referia a ações

que deveriam ser priorizadas, público e forma de atuação do Governo Federal para a

solução do problema da seca.

Em relação à persistência de atores no processo, observou-se que são recorrentes

falas que atestam o envolvimento dos atores com a discussão do projeto há vários anos:

Mas é natural que isso aconteça. Ao longo desses anos, estou nesse debate há quatro anos, só temos evoluído e aprendido. As pessoas que estão preocupadas com o Estado brasileiro, com a probidade administrativa, estão preocupadas com o lado maléfico dessa obra em relação ao Estado. E nós estamos advertindo os nossos dirigentes.

O que é que está acontecendo? O nosso discurso está se uniformizando, o discurso do Governador é o mesmo, por exemplo, do Secretário de Minas e Energia de Minas Gerais, é o mesmo do político daqui dos estados, é o mesmo discurso dos técnicos. Por que isso? Porque é a verdade que está aparecendo. Esses discursos não poderiam ser diferentes, porque essa é a verdade, a verdade verdadeira (JOÃO ABNER, ACADÊMICO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN, ASSEMBLEIA DA BAHIA, 2005).

83 A versão do projeto financiada pelo Banco Mundial na década de 1980 foi coordenada pelo engenheiro José Ribamar Simas (ENTREVISTA 29/09/2010).

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Estou nesta Casa há 19 anos e, em quase todos eles, defendendo o São Francisco nessa luta contra a transposição de suas águas, porque tenho a convicção plena de que é um investimento que não tem retorno, é chover no molhado, como disse o professor João Abner. Enfim, é incompreensível a determinação do Presidente da República de fazer essa obra (DEPUTADO ESTADUAL PEDRO ALCÂNTARA, PARTIDO LIBERAL - PL/BA, ASSEMBLEIA DA BAHIA, 2005).

Em 1992, tive a honra de participar de um trabalho que considero um dos mais importantes na minha jornada parlamentar, que foi a Comissão Interestadual de Estudos para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia do Rio São Francisco, a chamada CIPE São Francisco. Na época, o assunto da transposição das águas do São Francisco estava, como agora, em discussão (DEPUTADO ESTADUAL JOSÉ BRAGA – PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA - PDT/MG, ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2000).

Discutimos essa intenção de água no São Francisco para o semiárido desde 1994, desde quando o Dr. Aloísio Alves queria levar 350 m3/s (JOSÉ THEODOMIRO, TÉCNICO CEEIVASF, ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2001).

Além disso, atores referência participam de eventos em diversas Casas Legislativas

ao longo dos anos84. Sendo assim, pode-se dizer que a discussão sobre o projeto conformou

um subsistema político específico e maduro.

Constatou-se, na análise das crenças (capítulo 6), que três clivagens foram

fundamentais na discussão: priorização do semiárido da bacia x semiárido Nordeste

Setentrional (crença 1.1), priorização da revitalização do rio x uso da água (crença 1.2) e

percepção sobre existência ou não de déficit hídrico nas áreas a serem beneficiadas (crença

1.3). Diante disto, utilizou-se o software NVivo8 para identificação de grupos de atores

que compartilhavam as mesmas crenças. Para tanto, foram consideradas as três crenças

políticas que concretizavam as principais divergências sobre a obra:

• Choque entre a priorização do semiárido nordestino versus superação da pobreza

na região sanfranciscana cujos indicadores sociais são alarmantes;

• divergência na percepção de que há déficit hídrico na região a ser atendida pelo

projeto;

• choque entre a priorização de uma ação pública para aumento do uso da água do rio

versus percepção de que o rio estava na UTI, sendo urgente sua revitalização.

A partir desses três grupos de crenças políticas, agruparam-se os atores que

compartilhavam os conjuntos de crenças identificados no QUADRO 8.

84 No NVivo8, essa constatação pode ser observada em sets, foram criados conjuntos para todos os anos e as falas dos atores foram organizadas por anos. Desde 1999 (primeira data obtida do material em arquivo digital), há atores que permeiam o debate nos outros anos. Pelo material impresso obtido da Assembleia Legislativa do Ceará, há participação desses mesmos atores em discussões que remontam ao ano de 1994.

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QUADRO 8

Coalizões de advocacia identificadas

Coalizão Política

Materialista

(contrária)

- A opção deve ser o desenvolvimento da bacia. A obra indisponibilizará

água para os projetos de irrigação na bacia, deixando-se de irrigar grande

área com potencial. Sem benefícios generalizados para a população a ser

atendida pelo projeto.

- Não há déficit hídrico no semiárido. Necessário priorizar ações para uso

mais eficiente e melhor distribuição.

- O rio já se encontra muito degradado, sem condições de fornecer água

para novos projetos. Revitalização econômica com desenvolvimento da

região é urgente, sendo necessário o reforço da vazão do rio.

Coalizão Política

Idealista

(contrária)

- A opção deve ser o desenvolvimento da bacia. A obra indisponibilizará

água para os projetos de irrigação na bacia, deixando-se de irrigar grande

área com potencial. Sem benefícios generalizados para a população a ser

atendida pelo projeto.

- Não há déficit hídrico no semiárido. Necessário priorizar ações para uso

mais eficiente e melhor distribuição.

- O rio já está muito degradado. Revitalização ambiental e social é urgente.

Coalizão Política

Tecnocrática

(favorável, mas

motivação técnico

burocrática)

- Não há incompatibilidade entre os dois objetivos. Projetos de irrigação na

bacia não serão prejudicados, visto que a obra utilizará apenas vazão

alocável após identificação de projetos existentes e expansão de grandes

projetos como Jaíba, Salitre e Baixio de Irecê.

- Há déficit hídrico no semiárido. Obra em conjunto com outras soluções

permite superar este problema.

- O rio já se encontra muito degradado, mas ainda há vazão alocável sem

comprometê-lo muito. Pode-se realizar a obra da transposição, mas com a

revitalização do São Francisco.

Coalizão Política

Materialista

(favorável)

- A opção deve ser priorização do desenvolvimento do semiárido do sertão

norte pela agricultura e abastecimento urbano. Para a Bacia do São

Francisco, deve ser priorizada a execução de outras ações.

- Há déficit hídrico no semiárido. Obra em conjunto com outras soluções

permite superar este problema.

- O rio já se encontra muito degradado, mas ainda há vazão alocável sem

comprometê-lo muito. Pode-se realizar a obra da transposição, mas com a

revitalização do São Francisco.

Fonte: Elaboração da autora.

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Com número mais reduzido de atores, pode-se analisar a interação entre estes,

recursos e estratégias, assim como identificar e caracterizar quais são as coalizões de

advocacia envolvidas e seus principais atores.

7.2.1 Coalizão política materialista: contrária

Esta coalizão é composta de políticos estaduais e federais. Considerando as

Assembleias Legislativas analisadas, alguns políticos capitaneavam a crítica: Pedro

Alcântara PL/BA, Clóvis Ferraz DEM/BA, Augusto Bezerra DEM/SE e Wanderley Ávila

PPS/MG. No âmbito federal, destacam-se os Deputados Clementino Coelho PPS/PE e

Haroldo Lima PMDB/BA e acrescenta-se o senador Waldeck Ornelas DEM/BA85. O ex-

Governador João Alves DEM/SE também se encaixa nesta coalizão. A esses políticos

alinhavam-se membros do grupo técnico, como José Theodomiro, e da sociedade civil

(Comitê da Bacia do Rio São Francisco). Sobre estes últimos, eram pessoas que ocupavam

cargos nas Secretarias de Meio Ambiente e que também passaram a ocupar diretorias no

Comitê.

Esse grupo objetivava, em suma, garantir políticas públicas que propiciassem oferta

de água e recursos para obras e ações nas regiões de seu eleitorado. A disputa pela água e

recursos públicos para irrigação concretiza-se na ligação dessas lideranças com regiões da

bacia em que esta é a principal atividade (Juazeiro-BA, Petrolina-PE e oeste baiano).

A disputa entre desenvolvimento do semiárido do sertão norte e desenvolvimento

da bacia era movida por crença essencialmente material em que interesses políticos e

econômicos entremeavam-se. Nas argumentações dos atores são indicadas diversas obras

que deveriam ser priorizadas: Barragem de Pão de Açúcar-AL-SE, Perímetros de Irrigação

de Pontal-PE, Salitre-BA, Baixio de Irecê-PE, entre outras.

O conceito de revitalização para esse grupo era o “ambientalista restrito”. A

preocupação era com a execução de ações que propiciassem o aumento da vazão do Rio.

Alguns defendiam a transposição do Tocantins, mas a principal defesa era a construção dos

barramentos nos afluentes. Este era o projeto alternativo defendido pelo ex-Governador

João Alves DEM/SE.

85 Esta é uma listagem indicativa das lideranças, apreendida com o material obtido. Outros podem ter tido participação ativa, mas sem prejuízo aos objetivos do estudo.

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A preocupação com a redução na produção de energia pela CHESF era levantada

por alguns políticos, mas em especial por membros da academia que orbitavam nesta

coalizão. No Governo FHC, o apagão elétrico proporcionou argumentação contrária à obra,

visto que qualquer redução no potencial de geração era um tema sensível.

No Governo Lula, a preocupação também era com a limitação no potencial de

geração e aumentos dos custos da energia elétrica na região86. Chamam a atenção falas

recorrentes de membros da academia sobre os riscos de limitação do crescimento do

Nordeste por falta de energia e os impactos que a transposição teria no sistema nacional.

Membros do Ministério Público também fazem coro a essa preocupação87.

Componentes do grupo academia embasavam a desconstrução do problema da falta

de água no semiárido. Esta coalizão defendia que este era um falso problema. Eram

comuns comparações com Israel e outros países que obtiveram desenvolvimento, mas cujo

índice pluviométrico era mais baixo do que o do semiárido nordestino. Além disso, a

construção de milhares de açudes e o número sobre capacidade acumulada na região a ser

beneficiada foram recorrentemente levantados.

Aliado à defesa de que o projeto assenta-se no falso problema de falta de água, esta

coalizão compartilhava a argumentação de que a população não seria beneficiada mediante

aumento de oferta para consumo humano, e sim que água seria utilizada em grandes

projetos de irrigação. Na argumentação era usada a imagem de que a água do São

Francisco não propiciou bons indicadores sociais para aquela região. A partir disto,

questionavam o fato de que o aumento de oferta de água não levaria ao desenvolvimento.

Os participantes desta coalizão criticavam os padrões de intervenção do Governo

Federal no semiárido. As falas são permeadas por críticas ao paradigma da solução

hidráulica e inserção da obra em um contexto de “indústria da seca”. Há uma fala mais

categórica criticando a solução modernizadora88. Não se constatou proposta de novo

paradigma a ser adotado. A falta de uma proposta de ruptura alinha-se com a pouca ênfase

86 Como já dito anteriormente, um entrevistado informou que o principal opositor era a CHESF (entrevista 1o/10/2010). A partir do material obtido, a fala do representante da CHESF, apesar de ameaçar sobre o risco de aumento do custo da energia elétrica, expressava postura de não confrontar a decisão do Governo Federal (fonte: NVivo8 internals Mozart Araújo/CHESF – Câmara dos Deputados, 2000). 87 Fonte: NVivo8 – internal Apolo Lisboa (Assembleia de Minas Gerais, 2003 e 2007; Assembleia do Ceará, 2007); João Suassuna (Câmara dos Deputados, 2007); João Abner (Assembleia de Minas Gerais, 2004); Luciana Khoury (Assembleia da Bahia, 2005). 88 “[...] da forma como o projeto está apresentado, sou contra, porque ele nos divide e porque ele está sendo implantado com os mesmos erros e os mesmos vícios que a CHESF, a CODEVASF e o DNOCS cometeram. O DNOCS tem 90 anos e não resolveu o problema, por quê? Porque ele iludiu, mudou de rumo, de objetivo e não se preocupou com o prioritário. Esse projeto, dentro desse universo viciado que está aí de DNOCS e CODEVASF, não tem condições de ser operado e implantado” (DEPUTADO FEDERAL CLEMENTINO COELHO, GRUPO DE TRABALHO CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

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na necessidade de melhoria das condições de vida das populações mais pobres e grupos

com demandas específicas. Constata-se que o quadro de pobreza é sempre citado, mas sem

considerações sobre ações e propostas mais específicas.

A defesa de um plano de desenvolvimento para a região oscila entre intervenção

mais abrangente do Governo na região e planos específicos, como o Plano Decenal de

Recursos Hídricos do semiárido. As intervenções propostas podem ser inseridas no

paradigma da “solução hidráulica”89. Alguns sugerem até mesmo “uma grande obra

redentora para a região”90.

A defesa pela elaboração de um conjunto mais estruturado e mais amplo de ações

pode ser vista como uma estratégia da coalizão de adiar o início da implementação da obra.

Até mesmo a inserção da transposição do Tocantins, que era muito defendida, em especial,

pelos deputados baianos, também poderia consistir uma estratégia para adiamento, visto

que esses estudos estavam em fase preliminar. Por outro lado, a inserção da transposição

do Tocantins poderia contribuir para o desenvolvimento da irrigação no oeste baiano, já

que as águas daquele rio chegariam ao São Francisco através de afluentes situados naquela

região91.

O montante de recursos alocados na obra também era combatido com a

argumentação de que seria muito dinheiro para beneficiar menos de 2-5% da população do

semiárido. Alguns concluíam, portanto, que o Governo Federal continuaria gastando com

as ações de alívio dos efeitos da seca.

A viabilidade do projeto era questionada com base nos estudos do Professor

Alberto Daker, da Universidade de Viçosa-MG. Este salientou que os custos da água

transposta tornariam inviável a atividade agrícola irrigada. Além disso, era questionado o

dimensionamento do canal em face do volume médio de água que transportaria.

89 “Indico e reitero, nesta data de comemoração ao dia Mundial da Água, ao Excelentíssimo Presidente da República, Doutor Fernando Henrique Cardoso, autorizar a implantação e execução imediata de um Programa Decenal de Recursos Hídricos e de Desenvolvimento Sustentável que tenha como principal objetivo assegurar a disponibilidade hídrica no Nordeste, via construção de barragens, adutoras, perenização de rios, perfuração, instalação e recuperação de poços artesianos, instalação de dessalinizadores, a implementação de tecnologias eficientes de manejo e gerenciamento de bacias hidrográficas, barragens e manejo de água e solo” (CLÓVIS FERRAZ DEM/BA, ASSEMBLEIA DA BAHIA, 2000). 90 Deputado Federal Haroldo Lima PMDB/BA, Assembleia de Minas Gerais, 2000. 91 As águas do Tocantins chegariam através dos Rios Sapão e Rio Preto.

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A existência de coordenação entre esse grupo é identificada mediante atividades

como a criação da CIPE São Francisco, em 1991. A Comissão agrega deputados dos

estados em que a bacia se insere92.

Verifica-se que nas atividades parlamentares analisadas há pouca participação da

sociedade civil. As referências que são feitas a atores deste segmento concentram-se em

pessoas atuantes no Comitê de Bacias e que têm ligação com o grupo político. Mas, apesar

das poucas referências encontradas, políticos atuantes desta coalizão também participaram

de eventos em conjunto com organizações da sociedade civil. Como, por exemplo, o

seminário que deu origem ao Manifesto “Rio São Francisco: questão de vida ou morte” do

ano 2000.

Essa atuação em conjunto com a Igreja, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e

CREA faz parte de um dos recursos típicos desta coalizão, que é a sua capacidade de

mobilização da opinião pública. Outros recursos disponíveis para esse grupo são coleta de

assinaturas, elaboração de moções, propagandas na mídia.

A principal estratégia utilizada pelos membros desta coalizão é o

credenciamento/descredenciamento de agências de governo. São recorrentes as falas que

desqualificam a forma de atuação dos Ministros da Integração Nacional. Alguns afirmam

que a defesa da obra pelos Ministros que ocupam aquela pasta é decorrente de interesses

eleitoreiros e a postura adotada é caracterizada como autoritária. O DNOCS também é

criticado com o argumento de que não teria condições de executar um projeto dessa

magnitude93.

Alinhado com os recursos disponíveis, uma segunda estratégia direta utilizada é a

publicação de relatórios e manifestos. No caso, moções e assinatura de manifestos em

conjunto com academia e sociedade civil.

Como estratégias indiretas, a consistência técnica do projeto é o ponto de maior

questionamento. À época do Governo FHC, apresentavam-se falhas e ausência de estudos

necessários. A viabilidade técnica também era questionada, em especial devido ao

consumo de energia para elevação das águas. Já no Governo Lula, houve mais uso da

92 A importância da CIPE na coordenação das atividades dos deputados foi aferida mediante busca do termo “CIPE” nas fontes. Obteve-se que deputados de diferentes estados e inseridos na coalizão citam a Comissão. Fonte: NVivo8 – queries – results – referência à CIPE São Francisco. 93 No início da discussão sobre o projeto, percebe-se tendência a que a execução fosse coordenada pelo DNOCS, o que se explica pelo fato de o órgão ser mais forte no Ceará, estado onde o projeto foi gestado, mas, principalmente pelo fato de técnicos daquele órgão participarem ao longo dos anos na elaboração e defesa do projeto.

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estratégia indireta de credenciar/descredenciar leis ou regras. A ênfase dos membros da

coalizão era por obediência às decisões do Comitê da Bacia do Rio São Francisco.

No Governo Lula, em especial, a judicialização do conflito foi uma estratégia

essencial. Diversas ações judiciais foram iniciadas para barrar licitações, licenciamento e

reuniões decisórias (como a reunião do CNRH, que deveria ter acontecido em novembro

de 2004 para decidir sobre o projeto). A atuação conjunta com o Ministério Público,

principalmente o da Bahia, tentava barrar o andamento do projeto. Uma argumentação

gestada foi a de que a captação ocorreria em terras indígenas (oficialmente localizada a 80

m do território Truká). Portanto, o Executivo teria desconsiderado a previsão

constitucional de que o Congresso Nacional deveria aprovar o uso de recursos naturais

situados em território indígena.

7.2.2 Coalizão política idealista: contrária

Esta coalizão é composta de políticos estaduais e federais com ligações com o

movimento ambientalista. As ligações e participação da sociedade civil são mais intensas

nesta coalizão. Alguns deputados referência são Edson Duarte PV/BA (estadual), Fernando

Gabeira PV/RJ, Fernando Ferro PT/PE e Sarney Filho PV/MA94. As crenças defendidas

por este grupo político também são compartilhadas com membros da sociedade civil e da

academia. A principal convergência é sobre a necessidade da revitalização do rio, que

represente novo equilíbrio social e ambiental.

Destaca-se que nesta coalizão a crítica vai além da garantia de água e recursos para

outros projetos na bacia. Utiliza o debate sobre a obra como oportunidade para defesa de

um novo paradigma de desenvolvimento, que é o da convivência com o semiárido.

Também tratava o déficit hídrico como um falso problema. Ma, as principais

argumentações sobre essa crença ditavam que o problema não era a falta de água, mas sim

condições sociopolíticas. Os números sobre água acumulada também eram utilizados em

especial pelos representantes do grupo político.

Nesta coalizão surgem questionamentos mais recorrentes sobre a situação das

populações difusas que não seriam atendidas pelo projeto. Acreditam que o projeto será

94 Em 1998 e 2002 elegeu-se Deputado Federal pelo PFL/MA.

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apenas outra obra que excluiria os “pequenos” em favor dos “grandes” ou grupos

empresariais ligados à produção irrigada.

O processo de licenciamento ambiental foi muito questionado pelas coalizões

contrárias. Nesta coalizão há um tom de desapontamento com a posição da então Ministra

do Meio Ambiente, que liberou a execução da obra. No Governo FHC, o Ministério do

Meio Ambiente era um aliado e instrumento desta coalizão95. A crítica era quanto à

consistência do EIA/RIMA e o processo de licenciamento foi paralisado, entre outros

fatores, por força deste órgão.

Com a criação do Comitê na transição entre os dois Governos, este se tornou o local

e o meio para barrar o licenciamento da obra. A estratégia foi limitar a outorga de água

para usos externo apenas em casos de comprovado déficit hídrico e com o propósito de

abastecimento humano e dessedentação animal. Os números e argumentos obtidos junto à

academia poderiam comprovar a inexistência de déficit; além disso, apresentavam dado do

EIA de que 70% da água do projeto seriam para a agricultura irrigada. Mas a definição do

Comitê não foi acatada no Conselho Nacional de Recursos Hídricos.

Esta coalizão defendia que a alternativa à obra seria o rompimento de paradigma

para adoção em maior escala de ações inseridas no paradigma de convivência com a seca.

Em termos de infraestrutura hídrica, neste entendimento, as obras são de cisternas,

barragens subterrâneas e tecnologias sociais.

As tecnologias sociais estavam sendo adotadas em paralelo ou em alinhamento com

políticas públicas realizadas por outros Ministérios. De acordo com os movimentos sociais,

há mais de 20 anos esse tipo de ação estaria sendo realizado com sucesso por organizações,

principalmente aquelas com ligação com a Igreja Católica. Em 2005, foi publicado o Atlas

do Nordeste da Agência Nacional de Águas (ANA, 2005b). O Atlas também se tornou um

instrumento de apoio ao argumento de que existiriam opções melhores do que o projeto96.

A principal estratégia direta identificada era credenciar o Comitê de Bacias como

instância decisória sobre a obra. O Comitê foi criado em 2001 pelo decreto do então

Ministro do Meio Ambiente e um dos líderes da coalizão. Ele foi visualizado como meio

para barrar a obra, visto que abriria as portas de parte do processo decisório para atuação

daqueles que eram contrários à mesma. O papel do Comitê na discussão do projeto já foi

analisado em outros trabalhos (EMPINOTTI, 2007; KLEEMANS, 2010;

MASCARENHAS, 2008).

95 Esta constatação é feita na dissertação de mestrado de Marcela Menezes (2009). 96 Fonte: NVivo 8 – queries – results – Citação ATLAS NORDESTE

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O Comitê foi um instrumento tanto das coalizões contrárias quanto favoráveis à

obra. Sua criação foi uma estratégia para se estabelecer um fórum que poderia barrar a obra

(estratégia coalizão político-idealista). Ele também serviria de instrumento para barganha

devido à sua capacidade de mobilizar opinião pública ou, em última instância, para barrar a

obra (estratégia coalizão político-materialista).

Para a coalizão que pretendia implementar a obra, o Comitê daria a argumentação

técnica (Plano Decenal) suficiente para que as críticas ao projeto perdessem

fundamentação. Em entrevista, o então coordenador do projeto informou que os números

que seriam produzidos pelo Plano Decenal já eram de conhecimento do Governo,

decorrentes dos estudos que há anos este vinha conduzindo para o projeto (ENTREVISTA

1o/10/2010).

A consistência técnica também era questionada e, para tanto, alguns membros da

coalizão utilizavam dados e relatórios de organismos internacionais, em especial os do

Banco Mundial.

Sobre os recursos, manifestações públicas e manifestos eram os instrumentos mais

comumente utilizados. Foram observadas falas em que o acesso a pessoas importantes no

processo decisório era enfatizado. Assim, o convencimento de técnicos do Governo e

políticos com poder de decisão era estabelecido como ação necessária para o alcance dos

objetivos da coalizão.

7.2.3 Coalizão político-tecnocrática

O posicionamento moderado de técnicos e políticos responsáveis pela condução da

obra corrobora os padrões encontrados por Sabatier e Jenkins-Smith (1993a). Apesar do

objetivo de realização da obra, técnicos do Governo e os indicados políticos que ocuparam

o cargo de Ministro da Integração Nacional adotam falas que buscam conciliar as

diferentes demandas. Em alguns momentos houve ruptura com a sociedade civil. Por

exemplo, nos dois eventos em que o Bispo Dom Cappio fez greve de fome. Para tentar

solucionar, a negociação sobre a obra foi transferida para a Casa Civil mediante a criação

de um Grupo de Trabalho.

Outros eventos de ruptura ocorreram quando Ministros da Integração Nacional

afirmavam que iriam realizar a obra “na marra”, nem se precisassem levar a água “na

cabeça”. Uma percepção de membros do Governo Federal era a de que este não soubera

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conduzir a negociação sobre a obra nem propiciara à população em geral informações

sobre em que ela consistiria.

A atuação deste grupo intermediário ocorre, em especial, no desenvolvimento e

coordenação dos trabalhos técnicos para suprir os diversos questionamentos e demandas

que surgem. Participam de grupos de trabalhos interministeriais, dos eventos públicos e das

reuniões de trabalho do Ministério.

Também faz parte desse grupo alguns políticos interessados na obra e que atuam

para realizar a mediação entre os desenvolvimentos técnicos e as discussões políticas.

Neste contexto, o discurso é que a realização da obra não comprometeria o

desenvolvimento da Bacia do Rio São Francisco. As duas ações de governo não seriam

incompatíveis. Assim, a execução da obra poderia acontecer juntamente com a

revitalização do rio. A realização do projeto não significaria uma escolha entre grupos

beneficiados, visto que políticas específicas para o problema levantado na discussão seriam

executadas97.

Como defendem a obra, eles partem do pressuposto de que há déficit hídrico na

região a ser beneficiada. A principal informação utilizada é a de que o rio é a única fonte

hídrica disponível no Nordeste que poderia atender ao crescimento da demanda projetada

em 30 anos.

Observa-se que alguns atores do grupo técnico integrantes da coalizão atuaram no

projeto desde o Ministro Aluízio Alves, no Governo Itamar. Atribui-se a este grupo a

manutenção da ideia do projeto ao longo do tempo. Por sua vez, a gestão da coalizão

política materialista favorável ao projeto determinava o resgate do mesmo por Ministros da

Integração.

7.2.4 Coalizão político materialista: favorável

Esta coalizão é liderada por políticos como os Deputados Estaduais Wellington

Landim PSDB/CE, Chico Lopes PC do B/CE, Zé Maria Pimenta PSDB/CE (estes três

97 A concretização desta conciliação pode ser vista na carteira de investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento. O PAC incorporou as ações mais importantes para propiciar a implementação do projeto, bem como ações em resposta às críticas das diferentes coalizões atuantes no processo. Por exemplo, incluiu os perímetros de Jaíba-MG, Salitre-BA, Irecê-PE e Pontal-PE. Também foram incluídos os estudos dos barramentos nos afluentes do rio. Atendendo às demandas da coalizão política idealista, destinou-se mais de R$ 1 bilhão de reais para ações de revitalização ambiental do rio e inclusão do Programa Água para Todos, que levaria água para os ribeirinhos.

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assumiram posteriormente mandatos na Câmara Federal). Em âmbito federal, a coalizão

era composta pelos Deputados Marcondes Gadelha PFL/PB e Henrique Alves PFL/RN,

por exemplo. Assumiam a liderança desta coalizão os Ministros da Integração Nacional

Aluízio Alves PFL/RN, Fernando Bezerra PFL/RN e Ciro Gomes PSB/CE.

Juntamente com os políticos, a coalizão era composta de engenheiros envolvidos

com o projeto, alguns desde a sua elaboração no período Andreazza e com a questão dos

recursos hídricos. Esses técnicos desenvolveram suas ideias em especial a partir da atuação

e vivência da realidade hídrica em estados como o Ceará. A partir da academia, da

experiência profissional, foram modificando o conceito de gestão de águas até chegarem

ao conceito de “segurança hídrica”.

Ele é o conceito que fundamenta o novo formato do projeto apresentado no

Governo FHC. Esses técnicos, pela atuação nas Secretarias Estaduais de Recursos

Hídricos, mantêm relações com os políticos que atuaram na defesa do projeto nas

assembleias estaduais e no Congresso Nacional. Eles incubavam a concepção do projeto a

qual era reacendida em momentos de crises como as secas ou em momentos em que

poderia ser eleitoralmente utilizados.

Os técnicos transitavam na coalizão político-tecnocrática quando assumiam cargos

na administração pública federal. A eles estavam alinhados políticos estaduais e federais

que defendiam a obra radicalmente. Num panorama de escassez de recursos, este grupo

defendia a priorização da execução da obra. Não percebiam como condição a execução da

ação de revitalização do rio, o que poderia atrasar e até mesmo prejudicar a execução da

interligação de bacias. Viam as duas questões como independentes.

Os políticos da coalizão acreditavam que o paradigma da solução hidráulica deveria

ser aperfeiçoado mediante melhoria na gestão. Já os técnicos defendiam que a obra

estruturava um novo conceito nos objetivos da intervenção do Governo no tema. Esse novo

conceito era o de sinergia hídrica.

A coalizão utilizava como estratégia a realização de reuniões em conjunto com

deputados e governadores dos estados que apoiavam a obra. No Governo Itamar, esta

atuação exprime-se na “Carta de Fortaleza” entregue ao Presidente em 1994. O Ministro

Aluízio Alves foi então designado para executar a obra. Ao passar o governo para

Fernando Henrique, Itamar deixou o legado de compromisso com o projeto98. A pressão

das coalizões político-idealistas e político-materialistas contrárias determinou o adiamento

98 Esta informação foi extraída das falas do ex-Presidente Itamar Franco e do ex-Ministro Aluízio Alves no Grupo de Trabalho da Câmara, em 2000.

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do projeto. Este evento é expresso no documento “Compromisso pelo São Francisco”, de

1995. Em 1997, ocorreu uma reunião da qual participaram os governadores do Ceará, Rio

Grande do Norte e Paraíba. Apenas o Governador de Pernambuco, Miguel Arraes, não

participou do encontro. No final do mesmo ano aconteceu uma audiência conjunta das

Assembleias Legislativas, com a participação de Pernambuco. Nesta foi recolhido 1 milhão

de assinaturas apoiando a demanda de que o presidente Fernando Henrique cumprisse o

acordado em 1994 no município de Brejo dos Santos.

Outra estratégia foi a criação de Comitês estaduais de defesa do Projeto. Foram

criados o Comitê Cearense em Defesa do Projeto em 2005, composto de deputados

estaduais, membros do Poder Executivo estadual, Judiciário estadual e segmentos da

sociedade, e o Comitê com o apoio da Igreja Católica na Paraíba.

7.3 Mudança política de segundo nível

A mudança política de segundo nível refere-se a redefinições nas crenças políticas

(núcleo político) das coalizões que participaram do debate. A modificação nos

posicionamentos pode ser decorrente de novos estudos que transformam a percepção sobre

o problema e soluções. De forma não exaustiva, há também a possibilidade de revisões das

crenças a partir da interação com as outras coalizões.

Além da dinâmica interna ao subsistema, as crenças podem ser modificadas por

choques externos. Esses choques têm sido avaliados como os principais fatores para a

mudança política em temas complexos e com alto grau de conflito (MUNRO, 1993).

No caso da transposição, a análise das crenças que moveram o debate demonstrou

que a clivagem entre os atores era tão grande que não havia possibilidade de diálogo.

Membros das coalizões contrárias ao projeto argumentavam que o Governo Federal não

quis negociar sobre a obra, iniciando a mesma à revelia de seus posicionamentos. No

entanto, para estes, a negociação representava a suspensão da obra.

As divergências nas crenças políticas eram profundas, em especial no que se referia

aos temas da revitalização, existência ou não de déficit hídrico e a priorização de

desenvolvimento (crenças 1.1, 1.2 e 1.3, ANEXO A). Seria impossível chegar a meio

termo, visto que as coalizões produziam e reforçavam os seus argumentos com números e

dados técnicos oriundos, em especial, da academia. Os posicionamentos eram vistos como

tecnicamente fundamentados.

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Diante de situações similares, conforme conclusões já atingidas por Hall (1993) e

Sabatier e Jenkins-Smith (1993a), o impasse tendeu a ser solucionado com decisão

sumariamente política. Pode-se, assim, compreender a atuação do Governo Federal para a

aprovação do projeto no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. A restrição deliberada

pelo Comitê de uso da água apenas para consumo humano e animal foi revista no CNRH,

no qual o Governo detinha a maioria da representação.

Mello (2008) sugere que o Governo Federal errou ao tentar negociar a obra apenas

em termos técnicos. Sua estratégia consistiu em criar números e apresentar avaliações que

demonstravam a viabilidade e atendimento aos procedimentos previstos para execução da

obra. Este foco pode ser atribuído à concentração da representação do Ministério da

Integração Nacional e do Governo Federal nos engenheiros que há anos estudavam a obra

ou que ocuparam os cargos de coordenação do projeto.

Nesta linha, constata-se na fala das coalizões opositoras a insatisfação de que o

“Presidente” não os teria escutado (tanto FHC quanto Lula). A crise causada pela greve de

fome de Dom Cappio, em 2005, levou à criação de um grupo de trabalho na Casa Civil da

Presidência da República para ouvir as demandas. Entretanto, as reuniões não tiveram

continuidade e o nível de desconfiança era tão elevado que as posições acirraram-se ainda

mais (ENTREVISTA 1o/10/2010, ANEXO B).

De acordo com assessor da Casa Civil que participou das reuniões, as críticas

realizadas eram sobre como o processo de negociação vinha sendo conduzido. Nas

reuniões, os grupos contrários não se posicionavam pela paralisação, apesar de atuar em

outras vias, como a judicial, para tanto. Nessas reuniões, ainda, Governo e representantes

da coalizão político-idealista discutiram a divisão de recursos entre as linhas de ação da

revitalização99 (ENTREVISTA 17/01/2011b).

Desta maneira, além das modificações em especificações técnicas do projeto, os

anos de embate proporcionaram a incorporação de ações que se inscreviam nas crenças das

coalizões atuantes no subsistema de discussão do projeto. O Governo Federal criou ou

expandiu programas que abarcavam algumas das principais crenças em pauta.

99 O cálculo do valor a ser implementado na revitalização foi realizado considerando a proposta da Emenda à Constituição do Senador Antônio Carlos Valadares (PSB/SE). Esta objetivava criar um fundo de revitalização hidroambiental do Rio São Francisco por período de um ano, que asseguraria 0,5% do orçamento da União, excetuados os recursos vinculados pela Constituição, para obras de restauração, de reflorestamento, de saneamento básico nas margens do São Francisco e em toda a Bacia do Rio São Francisco. Seriam destinados em torno de 300 milhões de reais por ano. A partir deste valor, calculou-se para o PAC R$ 1,2 bilhão para revitalização do Rio São Francisco (investimentos a serem realizados no período de quatro anos).

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Considerando publicação do ano de 2010100, não se percebe mudança nos

posicionamentos e argumentações de representantes das coalizões As falas analisadas no

NVivo8 também não mostraram a variação nas crenças e argumentos dos atores. A partir

disto, infere-se que não houve alteração significativa das crenças políticas entre as

coalizões fruto dos longos anos de embate entre as coalizões.

Dois indicadores obtidos em entrevistas reforçam a conclusão de que as percepções

das pessoas não mudaram. Técnica do Ministério do Planejamento informou que, em

reuniões de atualização do Plano Decenal da Bacia realizadas no ano de 2010,

representantes do MI apresentavam o projeto com o objetivo de propiciar a irrigação no

semiárido (ENTREVISTA 17/01/2011a). Além disso, o MI, quando apresentou a sua

proposta de carteira do PAC no ano de 2006/2007, deixou de sugerir a incorporação da

revitalização. A revitalização foi incorporada por “lembrança” de sua importância pela

assessoria da Casa Civil (ENTREVISTA 17/01/2011b).

Diante disto, discutem-se algumas hipóteses101 do Modelo de Coalizões de

Advocacia as quais pressupõem o poder de alinhamento e de construção de consenso

quando os conflitos são gerados por temas cuja natureza seria sumariamente técnica. De

acordo com o modelo, a pesquisa e a produção de conhecimento técnico-acadêmico seriam

uma linguagem comum que permitiria o diálogo, proporcionando o “aprendizado político”.

Desta forma, a decisão sobre transpor ou não partiria da respostas às seguintes

perguntas (ALVES FILHO, 2010):

• Deve haver excesso de água na bacia doadora;

• falta de solos irrigáveis na bacia doadora;

• ampla disponibilidade de terras irrigáveis na bacia receptora;

• total inexistência de recursos hídricos na bacia receptora para atender a demandas

presentes e futuras da população.

Aparentemente, a decisão é de cunho técnico, as repostas a estas perguntas

deveriam ser obtidas com base na verificação das técnicas existentes de elementos que são

100 O livro em questão é de autoria do jornalista Marcelo Quintiere, que organizou textos de atores que apoiavam ou eram contrários à obra. Não se observa alteração substantiva no posicionamento dos atores que escrevem artigos para a publicação: João Alves Filho, Manoel Bonfim, Luis Carlos Fontes, Pedro Brito, entre outros. 101 Sabatier e Jenkins-Smith (1993c) identificam hipóteses oriundas da aplicação do Modelo de Coalizão de Advocacias. Acredita-se que estas seriam mais pressupostas. Elas parecem estabelecer condições iniciais de operação do modelo. Em estrito termo, caso fossem hipóteses, seria clara uma relação de causalidade e identificáveis a variável independente e a variável dependente em sua redação, o que não é o caso.

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concretos – quantidade de água, quantidade de terras, por exemplo. Considerando as

seguintes hipóteses extraídas do livro “Policy Change and Learning” (SABATIER;

JENKINS-SMITH, 1993a), o esforço dos engenheiros que representavam o Governo

Federal e o Ministério da Integração em explicar e fundamentar tecnicamente o projeto

estaria corretamente orientado:

• Hipótese 1 - “Problemas em relação aos quais existem teorias e dados quantitativos

aceitáveis são mais conducentes a aprendizado político entre sistemas de crenças do

que aqueles em que a teoria e os dados são em geral qualitativos, muito subjetivos

ou ausentes”.

• Hipótese 2: “Problemas que envolvem sistemas naturais são mais conducentes a

aprendizado político entre sistemas de crenças do que aqueles que envolvem

sistemas puramente políticos ou sociais, porque, nos primeiros, muitas variáveis

críticas não são estrategistas ativas e experiências controladas são mais factíveis”

(SABATIER; JENKINS-SMITH, 1999, apud ARAÚJO, 2007).

Considerando a hipótese 1, ao longo da discussão deveria ter sido observada, entre

as coalizões, modificações das crenças que elas possuíam mediante apreensão de novos

números e estudos apresentados por outros atores. Entretanto, não é isto o que se observou.

As seguidas reduções das vazões do projeto devem-se à pressão da CHESF. No

Governo FHC, em especial, era muito sensível comprometer o potencial de geração de

energia no rio, visto que o país viveu um apagão energético. O conceito de segurança

hídrica e a concentração populacional nos centros urbanos propiciaram elementos

empíricos para justificar as seguidas reduções das vazões. Mas a pressão para tanto ocorria

nos fóruns técnicos, como o Grupo de Trabalho criado em 2000, assim como a adequação

da proposta.

As coalizões político-materialista e político-idealista, contrárias à obra, não

recuaram diante da argumentação de que existia água no Nordeste. Elas argumentavam que

o problema era a falta de estrutura para interconectar açudes e poços que poderiam ser

perfurados nas áreas em que houvesse aquíferos (ALVES FILHO, 2010; RIBEIRO, 2010).

Reforçam números sobre a acumulação de água na região e não cedem na crença de que

não há déficit hídrico.

Por outro lado, os representantes da coalizão técnico-burocrática apresentam outras

fontes para demonstrar que a região possui déficit hídrico e legitimam o seu dado com a

informação de que a Agência Nacional de Águas, que seria um ator neutro, analisou as

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previsões recebidas dos estados e avalizou a limitação ao desenvolvimento das regiões por

falta de água (NASCIMENTO; CAGNIN, 2010).

Identifica-se um ponto de modificação nos termos do conflito. As coalizões

contrárias não conseguiram refutar a situação crítica do estado da Paraíba e do sertão do

Pernambuco e aceitaram a existência de déficit hídrico neste estado. A implementação do

Eixo Leste foi aceita por todas as partes ainda no Governo FHC.

Por outro lado, nem mesmo o avanço do conhecimento sobre a bacia, por meio do

Plano Decenal, permitiu algumas respostas consensuais para os critérios de análise para a

execução ou não de um projeto de transposição. A criação do Comitê da Bacia do Rio São

Francisco, parte da Política Nacional de Recursos Hídricos, não facilitou o consenso. Mas

consistiu em um fórum em que as diversas coalizões obtiveram representação.

O Comitê institucionalizou mais ênfase à necessidade da revitalização do rio.

Apesar da representação de diversos segmentos que se opunham ou não à obra, este foi

dominado pelas coalizões político-materialista e político-idealista contrárias102 e a

revitalização era imposta como a política de governo a ser executada, mas em detrimento

da obra da Integração de Bacias.

Considerando o papel desempenhado pelo Comitê, apreende-se que, em relação ao

objeto de estudo, uma terceira hipótese de trabalho do Modelo de Coalizão de Advocacia

também pode ser discutida.

• Hipótese 3 - aprendizado político entre sistemas de crenças é mais provável quando

existe um fórum que é: a) prestigiado o suficiente para forçar profissionais de

diferentes coalizões a participar; b) dominado por normas profissionais.

O considerado “atropelo” do Governo Federal em relação à deliberação do Comitê

de Bacias sobre usos externos da água pode ser explicado como ação para resolver um

impasse que nunca seria resolvido, haja vista que o conflito subjacente era causado por

choque em crenças políticas. Como menciona o representante do Governo Federal, é

insustentável social e financeiramente aduzir água apenas para o abastecimento humano,

sendo que as pessoas precisam também de atividades produtivas para sobreviver

(ENTREVISTA 1o/10/2010).

102 Esta afirmação é feita a partir do domínio das lideranças do Comitê por pessoas ligadas a políticos estaduais e à academia. Essas pessoas, portanto, participavam das coalizões. o que foi corroborado pela análise realizada no NVivo.

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Deve-se ponderar que o Comitê da Bacia do São Francisco não incluía a

representação dos grupos das bacias que seriam receptoras da obra de Integração. Dessa

forma, ele não era, em última instância, um fórum em que todas as partes podiam

participar. Caso sociedade civil, mercado e políticos das bacias receptoras tivessem

participado de um fórum mais amplo, o processo poderia ter sido diferente.

7.3.1 Choque externo e mudança política

Em relação ao Governo Fernando Henrique (1995-2002), o Governo Lula (2003-

2010) gerou um choque externo que modificou os resultados políticos no subsistema da

transposição. Desde o Governo FHC, a obra estava praticamente paralisada por liminares

concedidas na Bahia devido à tramitação de ações que contestavam, em especial, o

processo de licenciamento ambiental da obra. Nessas ações argumenta-se, entre outros, que

o Estudo de Impacto Ambiental deveria ter considerado a Bacia do São Francisco e não

apenas as áreas de influência direta e influência indireta situadas no Nordeste Setentrional

(BRASIL, 2006a; CARITAS, 2010)103.

Além disso, a paralisação pode ser atribuída ao fato de FHC ter cedido às pressões

contrárias à obra e apenas esperou o momento certo para retroceder sua decisão

(ENTREVISTA 03/12/2010). O adiamento da obra foi formalizado com a publicação do

decreto de criação do Comitê de Bacia do Rio São Francisco, de 05/06/2001, por pressão

do então Ministro do Meio Ambiente e membro da coalizão político-idealista. A situação

econômica e as restrições na produção de energia também impediram uma oportunidade

para que a execução da obra fosse retomada.

No Governo Lula, por sua vez, diversas oportunidades políticas foram criadas para

a execução da obra. Em entrevista (29/09/2010), foi informado que o Presidente havia

tomado conhecimento da obra nas Caravanas da Cidadania104. Em 2003, Lula formalizou a

103 Havia diversas ações judiciais promovidas por organizações como o Ministério Público Federal, Ministérios Públicos da Bahia, Sergipe e Minas Gerais, Fórum Permanente de Defesa e por Organizações não Governamentais (ONGs). Essas ações tramitavam em tribunais em vários estados. Em 18/12/2006, o STF, alegando conflito interfederativo, chamou para si a responsabilidade de julgar as ações. O STF liberou o prosseguimento do licenciamento ambiental enquanto as ações fossem julgadas (CARITAS, 2010). 104 Lula viajou pelo país na denominada Caravana da Cidadania no primeiro trimestre de 1993. Nessas viagens, ele obteve conhecimento sobre a obra por meio de nota elaborada a pedido do assessor José Graziano a Otamar de Carvalho (ENTREVISTA 29/09/2010). Ainda nesse processo, Lula teria participado de reunião em Sousa, na Paraíba, onde o projeto foi reapresentado pelo técnico José Ribamar Simas. O evento foi liderado pelo Instituto Tancredo Neves ligado ao PFL. Nesse evento, Lula posicionou-se contrário

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decisão de retomada da obra e instituiu grupo de trabalho105 para analisar propostas e

viabilizar a obra. Os estudos ambientais foram retomados.

A execução da obra tornou-se uma realidade a partir do momento em que foi

inserida no Programa de Aceleração do Crescimento. O Programa insere-se na agenda de

retomada dos investimentos em infraestrutura e numa concepção de Estado

desenvolvimentista. Essa reorientação mais geral sobre políticas públicas e a

disponibilidade de orçamento decorrente permitiram o avanço do projeto.

Essa oportunidade política mais ampla e outras características do Governo, como as

diversas alianças partidárias e com os movimentos sociais, também determinaram a

incorporação de ações que atenderiam aos interesses e ideias que foram defendidos ao

longo de todo o processo de discussão.

O PAC de Recursos Hídricos consistiu em uma consolidação das diversas

demandas das coalizões. Incorporou também outras ações relacionadas à obra da

transposição. O PAC viabilizou politicamente a transposição, atendendo aos interesses, em

especial, da coalizão político-materialista.

Todavia, nem todos saíram satisfeitos. Participantes da coalizão político-idealista

realizaram acampamentos em Brasília (março de 2010) e no canteiro de obras entre os dias

26/06/2007 e 04/07/2007. O Bispo Dom Cappio iniciou uma segunda greve de fome em

27/11/2007. Estes atos vinculados demonstraram a insatisfação desse segmento e

incompatibilidade entre os conceitos da obra e a sua visão sobre o tema.

Apresenta-se a seguir um quadro com ações que podem ser atribuídas ao processo

de discussão da transposição e representativas de um processo de aprendizado político ou

de barganha para obtenção do apoio das coalizões contrárias.

A tabela foi elaborada considerando-se as ações do Ministério da Integração

Nacional e coligadas. Esses órgãos são os principais responsáveis para solucionar o

problema da seca na região, assim como elaborar e promover planos de desenvolvimento

regionais. Uma primeira versão foi feita a partir da experiência profissional no

monitoramento das ações desse Ministério no PAC 2007-2010. A tabela foi então

submetida à técnica do Ministério do Planejamento que acompanha o Ministério da

ao projeto e João Alves Filho favorável ao mesmo (ENTREVISTA 03/12/2010). Atualmente, Lula é um ardoroso defensor e João Alves é visceralmente contrário. 105 Portaria 15/07/2003 - designou servidores para analisar as propostas existentes e propor medidas para viabilizar a transposição de águas para o semiárido nordestino (Vice-Presidência – José de Alencar; Casa Civil, Ministérios da Fazenda, Planejamento, Meio Ambiente e Integração Nacional).

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Integração e que vivenciou alguns anos do embate. E foi submetida ao assessor da Casa

Civil que participou das discussões desde o ano de 2005.

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QUADRO 9

Avaliação da mudança política de 2º nível

Crença Argumentação Situação Inicial (Programa 1997-2002)

Situação Final (Programa em 2007)

Coalizões Predomi-

nantes Avaliação da Mudança Política e outras observações

1.1Desenvolvimento do semiárido x

desenvolvimento da Bacia do São

Francisco

Comprometimento Projetos de

Irrigação na Bacia

Perímetros de Pontal-PE, Jaíba-MG,

Salitre-BA e Baixio de Irecê-BA

contavam com R$ 20 milhões/ano no PPA

2000-2003

Alocação expressiva de recursos no PAC para Pontal-PE, Salitre-BA, Jaíba-MG, Baixio de

Irecê-BA

Político-Materialista Não houve mudança de crenças. Barganha política.

Pobreza e falta de abastecimento

na bacia Programa Conviver

- Programa Água para Todos (foco no público do Conviver em até 15 km da

margem do rio para implementar

abastecimento de água) - Inserção PAC de grandes adutoras e

projetos de abastecimento: Proágua Nacional, Canal Adutor

do sertão alagoano

Político-Materialista

Choque externo – visão desenvolvimentista do Governo Lula possibilitou recursos para conclusão de obras vistas como prioritárias para resolver o problema da água no semiárido. Barganha política – Programa Água para Todos foi criado a partir de intensificação das ações do Programa Conviver para abastecimento da população que reside até 15 km das margens do rio. Avalia-se que sua criação deve-se a acordo político na mudança de Ministro da Integração que passou para o comando de Geddel Vieira, PMDB/BA.

1.2 Uso da água e preservação ambiental

Reforço da vazão do rio Não houve ações

Recuperação ambiental

Programa de Revitalização criado

em 2001 (PPA 2004-2007: R$

194,7 milhões)

Programa de Revitalização foi

associado ao Projeto São Francisco (PPA 2007-

2010: R$ 1, 2 bilhão)106

Político-Materialistae Político-Idealista

Houve mudança de crenças. Revitalização foi incorporada com recursos significativos na ação de governo e permanece como ação prioritária visto que foi mantida no PAC Entretanto, coalizão político-idealista informa que a revitalização adotada não atende. CODEVASF é a executora do programa, avanços têm sido obtidos na implementação de esgotamento sanitário. Outras ações não obtiveram prosseguimento. Técnicos do Governo argumentam que baixa operacionalização do programa advém de restrições na capacidade de gestão, tanto do MMA quanto do MI/CODEVASF.

106 Valores extraídos de apresentação da gestora do Programa de Revitalização até o ano de 2008. Disponível em: http://www.antaq.gov.br/portal/pdf/Palestras/PalestraKarlaArns.pdf. Acessado em: 12/01/2010.

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Continua QUADRO 9

Crença Argumentação Situação Inicial (Programa 1997-2002)

Situação Final (Programa em 2007)

Coalizões Predomi-

nantes Avaliação da Mudança Política e outras observações

1.4 Abastecimento humano x Produção

de energia

Não houve ações. Vazão comprometida com o projeto não modificou o padrão de priorização no uso das águas do rio.

1.3 Existência de déficit hídrico no

semiárido

Não há déficit hídrico na região a ser beneficiada

pelo projeto

Aceitação da existência de déficit hídrico no interior da

Paraíba levou à aceitação do Eixo

Leste

Incorporação efetiva do Eixo Leste no Projeto

Aprendizado político – ainda no Governo FHC, o Eixo Leste foi aceito por todos diante da situação da Paraíba. No Governo Lula, o Ministro Ciro Gomes aceitou o Eixo Leste desde que não enfraquecesse a decisão pela implementação do Eixo Norte (ENTREVISTA 17/01/2011b)

1.5 População beneficiada

Projeto prioriza o agronegócio e não atende à

população em geral

Mecanismo do projeto era apoiar primordialmente a

produção. A partir da geração de empregos,

pessoas em áreas urbanas e rurais obteriam melhor qualidade de vida

Mecanismo do projeto é assegurar abastecimento

em áreas urbanas

Político-idealista

Aprendizado político – ênfase na agricultura foi reduzida, apesar de ainda manter-se como objetivo do projeto. Argumentação do Governo foi modificada para defender a importância de segurança hídrica e evitar crises de abastecimento como as ocorridas em Fortaleza-CE e Campina Grande-PB. Entretanto, o MI, de acordo com o seu representante, emite posicionamentos diversos sobre a obra, seu objetivo principal oscila entre irrigação e abastecimento humano. A posição formal do Governo, considerando a outorga emitida pela ANA, é a de que a obra prioriza o abastecimento humano.

1.6 Paradigma de desenvolvimento

Iniciativas isoladas não mudarão o

quadro socioeconômico

da região, necessária à

elaboração de um plano de

desenvolvimento sustentável

Não havia proposta de um plano de

desenvolvimento específico para a

região

Determinada a criação de Grupo de Trabalho para elaboração de plano de desenvolvimento que

integrasse a bacia com as áreas a serem

beneficiadas (não iniciado).

Em 2005, foi elaborado o Plano Estratégico de Desenvolvimento do

Semiárido

Coalizão político-idealista

Aprendizado político – foi incorporada à fala do Presidente e primeiro escalão a necessidade de um plano de desenvolvimento que compatibilizasse as diferentes necessidades da região. As falas eram para um plano para o Nordeste e não específico para o semiárido. Governo apresentou plano específico para o semiárido em 2005 e em 2009 um levantamento das ações que estavam sendo realizadas na bacia e na área de influência do projeto

Fonte: Elaboração da autora. Conferência por meio de entrevista com técnica do Ministério do Planejamento e assessor da Casa Civil que desde 2005 participou da discussão (ENTREVISTAS REALIZADAS EM 17/01/2011).

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7.4 Mudança política de terceiro nível: transformação no pensamento e ação de

governo para a solução do “problema da seca”

Como visto na seção anterior, houve um processo de aprendizado no sentido de que

o Governo foi se apropriando, em suas ações, de diversas demandas realizadas pelas

coalizões. Por um lado, não é possível afirmar que o aprendizado confinou-se apenas ao

que Hall (1993) caracteriza como sendo de 1o ou 2o níveis. Apesar de diversas ações que

foram incorporadas estarem no âmbito do paradigma de convivência com a seca (programa

de cisternas, por exemplo), não é possível dizer que houve transição paradigmática na

atuação do Governo no semiárido.

Um forte indicativo de que não houve ruptura foi a ausência de uma política de

reforma agrária profunda na região. Apesar do decreto determinando desapropriação para

fins de reforma agrária ao longo dos canais, esta ação não obteve prosseguimento107. Não

obstante, não se identificaram, nos documentos analisados, propostas ou preocupações

sobre transformações nas relações de trabalho. Ou seja, as precárias condições dos

trabalhadores rurais do semiárido não são objeto de reavaliação. Não constam ações

específicas para a região que regularizem as relações trabalhistas e que proporcionem

segurança jurídica em casos de secas e desmantelamento do sistema produtivo em que se

inserem.

Ao longo dos anos, a crítica de que o projeto beneficiaria apenas o agronegócio fez

com que o Governo Federal reorientasse a sua argumentação para apresentar que o

problema a ser superado com a obra seria o de abastecimento em núcleos urbanos. O Plano

de Desenvolvimento do Semiárido foi elaborado em 2005, com o objetivo de demonstrar

essa nova proposta do Governo. Entretanto, em livro publicado em 2010 com os

posicionamentos de diversos atores que atuaram nas discussões, os representantes do

Governo Federal à época retomaram o objetivo de usos múltiplos, mas enfatizando a

importância da irrigação (QUINTIERE, 2010).

Relatório do Banco Mundial sobre a irrigação no Brasil publicado em 2003108

serviu de embasamento para o reforço da importância da irrigação pelos atores que

atuaram na discussão. De acordo com o relatório, a irrigação gerava maior quantidade de

emprego com um volume menor de investimentos em comparação com outros setores. Os

107 Além do consumo de água, percebeu-se que a proposta não foi para frente devido à qualidade das terras por onde os canais passariam. 108 Banco Mundial. Impacto social da irrigação no semiárido brasileiro. 2003.

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atores do Governo retomam a ênfase de que o projeto também necessita beneficiar a

irrigação, visto que apenas água para beber não garantiria condições de desenvolvimento

sustentável na região.

Sobre este ponto, apura-se, então, que não houve transformações que indiquem

mudança do foco para o desenvolvimento da região. Não houve flexibilização na aposta da

irrigação como meio de “salvação” do semiárido nordestino.

Isto é corroborado por análises de quadros do Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES) que indicam a agricultura irrigada como o setor pioneiro

que poderia iniciar um processo de desenvolvimento. De acordo com os autores, a

competitividade da agricultura está vinculada apenas a solos férteis e mão-de-obra barata,

insumos de que a região dispõe (KAPLAN; SANTOS, 2009).

Em 1995, por intermédio do Projeto Áridas, foi possível detectar que 5 milhões de

hectares ou 3,2% da área do Nordeste poderiam ser irrigados. O posicionamento

governamental, considerando esse estudo, é o de que a orientação geral para o

desenvolvimento da região é a modernização da agricultura. A reorganização fundiária é

destacada como estratégia complementar. O estudo revela a necessidade de agregação de

propriedades para alcance de um mínimo de 100 hectares e redução daquelas propriedades

com tamanho médio acima de 1.000 hectares.

O Projeto Áridas reforçou o diagnóstico de que não há sustentabilidade hídrica nas

bacias nos rios Apodi-Mossoró, Piranhas-Açu e Jaguaribe (beneficiárias da transposição).

Ele acentuava: “a transposição do São Francisco dá condições para ser desenvolvida uma

grande atividade agrícola e agroindustrial imune aos efeitos da seca e altamente rentável,

com produção primária estimada em US$ 2 bilhões/ano” (VIEIRA, 1995, p. 181).

A expectativa de expansão da agricultura na bacia era concretizada no Plano

Diretor para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco (PLANVASF). Nesse estudo,

foi definido que poderiam ser implementados 800 mil hectares de agricultura irrigada sem

comprometimento da produção de energia (CODEVASF, 2010). Atualmente, mais de 200

mil hectares são irrigados na bacia.

O choque entre a criação de uma Califórnia brasileira às margens do Rio São

Francisco ou no Ceará e Rio Grande do Norte pode ser percebido quando ainda em um dos

relatórios do Projeto Áridas é dito que “[...] as terras que receberão as águas transpostas

são de excepcional qualidade, dispõem de melhor infraestrutura e estão mais bem

localizadas em relação aos portos de exportação” (VIEIRA, 1995, p. 180).

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Portanto, os diagnósticos que moveram as coalizões político-materialistas tanto

favoráveis quanto contrárias à obra definiam uma visão de desenvolvimento fortemente

arraigada na agricultura irrigada. A irrigação não é ideia nova para a região (PROJETO

ÁRIDAS, 1995). Em 1911 foi proposto o primeiro projeto de lei para a irrigação do

Nordeste, de autoria de Eloy de Sousa. A SUDENE, órgão que representou ruptura com a

“solução hidráulica”, também apostou na irrigação como meio de desenvolvimento da

região109.

Mas a crítica ao fortalecimento do agronegócio realizada pela coalizão político-

idealista e a sua atuação via Comitê de Bacia do Rio São Francisco determinaram revisão

dos conceitos fundantes do projeto. Pelo Comitê da Bacia, essa coalizão obteve

instrumento para impor sua percepção sobre o problema e ações que poderiam ser

realizadas.

Como visto, membros da coalizão político-idealista e outros pesquisadores

(ANDRADE, 2006; MENEZES, 2009; VIANA, 2005) concluíram que o Governo Federal

“atropelou” o Comitê. Esses segmentos consideram-se “atropelados”, visto que a

expectativa de paralisação da obra não foi atendida. Mas a outorga concedida pela ANA

para o projeto condicionou o seu principal objetivo ao atendimento das necessidades de

abastecimento humano e animal.

Considerando a outorga, a água do São Francisco só pode ser captada para outros

usos quando houver vertimento de Sobradinho. Naturalmente, o projeto poderá propiciar o

uso de maior quantidade das águas dos açudes devido à segurança hídrica. Com isto,

haverá aumento da oferta de água, a qual poderá ser utilizada para a irrigação.

A outorga concedida pela ANA formalizou a reconfiguração que o projeto sofreu

por atuação das coalizões. A prioridade no uso das águas é para o abastecimento humano.

Essa reformulação no pensamento e ação para a região é formalizada no Plano de

Desenvolvimento do Semiárido publicado em 2005. No documento, a irrigação ainda

consta como importante ação para propiciar o desenvolvimento do semiárido. Entretanto, o

foco do projeto passou a ser o abastecimento de uma população de 12 milhões de

nordestinos.

A situação de déficit hídrico já apresentado no Projeto Áridas é reforçada. Mas há

mais ênfase no aumento da demanda devido ao crescimento e concentração em áreas

109 Celso Furtado ponderou que a lei da irrigação era um meio para aprovação de reforma agrária na região, visto que o maior problema enfrentado era o da distribuição das terras. Entretanto, o projeto de lei foi aprovado, mas sem os dispositivos que tratavam da reforma. A atuação de grupos reacionários determinou a exclusão dos dispositivos que tratavam desse assunto. A Lei no 6.662 foi aprovada em 25/06/1979.

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urbanas. O projeto é apresentado como meio para efetivar melhor distribuição dos recursos

hídricos que estariam concentrados nos grandes açudes. Os conflitos estariam situados em

especial nas regiões metropolitanas, capitais e grandes aglomerações urbanas (BRASIL,

2005a).

Desta forma, levando em conta os impactos diretos, o problema a ser enfrentado

pela obra da Integração de Bacias obteve reorientação. Apenas quando a obra entrar em

operação será possível responder com mais precisão qual é o problema a ser enfrentado

(irrigação, abastecimento humano) ou se ela apenas reforça esquemas tradicionais da

“indústria da seca”.

Em relação ao aprendizado entre as coalizões de advocacia, dificilmente a

discussão poderia promover transformação nas suas crenças sobre como deveria ser o

pensamento e a ação do Governo Federal para a região. Os embates que estavam sendo

travados advinham de raízes profundas e que ao longo dos anos foram tornando-se cada

vez mais fortes, tanto entre aqueles que apoiavam o projeto quanto entre os contrários.

Pode-se dizer que o conflito enraizou alguns temas que se tornaram essenciais na

ação do Governo Federal. A revitalização do São Francisco, mesmo com dificuldades de

gestão as quais limitaram a sua implementação e escopo, tornou-se uma ação permanente

no PAC 2. A preocupação com o abastecimento humano e a situação crítica no

fornecimento de água em cidades no Nordeste constituem tema central no planejamento do

Governo Federal.

A impressão que se tem é que o pensamento sobre os meios para o

desenvolvimento da região ainda se concentram na agricultura irrigada. Apesar de 3,2% da

área total do Nordeste (5 milhões de hectares) poderem ser irrigados110, a coalizão

materialista-política que tem expressão por intermédio Ministério da Integração prioriza

essa solução. Conclui-se que o ciclo de valorização da irrigação ainda não chegou à sua

curva descendente, como chegou a “solução hidráulica” na década de 1970. Não se discute

a importância do tema, mas sim a sua adequação para ser a prioridade no esforço de

solução do problema da seca.

Acredita-se, ainda, que a implementação de grandes projetos industriais e de

logística como portos, siderúrgica e a transnordestina tende a deslocar a prioridade para o

desenvolvimento do setor industrial (o que foi uma tentativa da SUDENE). A força desses

segmentos pode também ter contribuído para mudar o foco do projeto para o

110 A extensão de terras é considerável, mas a sua concentração não permite um projeto de desenvolvimento de toda a região e não apenas de polos produtivos, com riqueza e extensão territorial reduzida.

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abastecimento de grandes centros urbanos. Possivelmente, eles foram novos atores que

mudaram o equilíbrio de poder entre irrigantes da Bacia do São Francisco e os das bacias

receptoras.

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acredita-se que com este trabalho foi possível contribuir na identificação de quais

foram os legados deixados pelos longos anos de embate sobre o Projeto da Transposição.

A obra ainda não está em operação. Como demonstrado, o embate foi movido, em especial,

pelas expectativas de diferentes segmentos sociais sobre qual deveria ser a ação do

Governo Federal para o desenvolvimento do semiárido.

A discussão sobre a obra da transposição consistiu em uma oportunidade política

para diversos atores que desejavam concretizar as suas percepções sobre o problema da

seca e suas soluções. Naturalmente, a discussão também propiciou que segmentos

motivados por interesses entrassem no processo para barganhar junto ao Governo Federal

obras e recursos, entre outros.

Os mecanismos de definição das políticas são complexos, visto que os resultados

finais originam-se de acordos, barganhas, negociação, persuasão, entre outros. O processo

político não é linear nem sequencial. Diversas organizações, pessoas, segmentos sociais

estão envolvidos e as políticas são resultado dessa dinâmica complexa.

Pelo Modelo de Coalizões de Advocacia foi possível organizar todo o debate em

torno da disputa entre crenças. Estas incorporam desde diagnósticos realizados para

obtenção de recursos materiais até posicionamentos sobre quais devem ser as preocupações

e prioridades de governo. A compreensão da discussão sobre o projeto como uma disputa

entre posições distintas sobre a seca no semiárido permitiu superar a ideia de que o

resultado final de todo o processo era a existência de “ganhadores” x “perdedores”.

A obra saiu do papel, mas diversos elementos que estavam em conflito permearam

novas e renovadas ações governamentais que foram inseridas como resultado direto de

todo o embate. As mudanças políticas e sociais são incrementais e sutis, mas pode-se

detectar os rumos que as políticas públicas estão seguindo a partir da identificação das

crenças que são predominantes entre aqueles que ocupam posições chaves nos documentos

que formalizam o posicionamento do Governo e as ações de governo, entre outros.

O MCA permitiu analisar, então, quais foram os resultados de um processo político

que tomou longos anos e envolveu uma multiplicidade de atores. Diante disto, pode-se

afirmar que o Governo Federal não “atropelou” os segmentos contrários à obra. A decisão

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política ocorreu, mas novas propostas e percepções que encontraram voz pelo embate estão

enraizando nas políticas públicas.

A dinâmica das coalizões também permite entender o processo como uma rede de

relacionamentos na qual atores de diversos segmentos se apoiam, compartilham recursos e

delineiam estratégias em comum. No início do debate até 2001, observou-se que a atuação

dos segmentos da sociedade civil, políticos e academia era mais isolada. Entretanto, a

partir, em especial, do Governo Lula, segmentos diversos reforçaram a atuação coordenada

com outros atores que estavam defendendo crenças similares.

Como discutido, percebeu-se que a atuação em conjunto foi motivada

principalmente pelo compartilhamento de posições sobre qual projeto de desenvolvimento

deveria ser priorizado (semiárido do Nordeste setentrional ou da bacia). Também foi

central o conflito sobre a existência ou não de déficit hídrico na região que seria atendida

pelo projeto. Esse aspecto reflete percepções sobre como se configura o problema da seca.

Por fim, um terceiro tema que motivou os atores foi a defesa da priorização da

revitalização em detrimento do prosseguimento da obra.

A discussão de fato não levou a um processo de aprendizagem ou de redefinição

das posições adotadas pelas coalizões. Ao longo do tempo, as posições tornavam-se cada

vez mais radicalizadas. Neste aspecto, o Modelo de Coalizões de Advocacia mostra uma

fragilidade. Ao apostar na capacidade de entendimento entre os atores pela evolução da

técnica e dos conhecimentos técnico-científicos, o MCA negligencia o fato de que técnica

e ciência não são tão objetivas. Na discussão sobre o projeto, as coalizões utilizavam

diagnósticos distintos para argumentar sobre um mesmo aspecto. Notadamente na

discussão sobre déficit hídrico, as partes diziam-se tecnicamente bem fundamentadas para

dizer que existia ou que não existia déficit hídrico no semiárido.

Por outro lado, o papel da informação e da argumentação tecnicamente foi

evidenciado na análise dos diversos discursos e testemunhos. Neste sentido, a elaboração

do Plano Decenal da Bacia serviu de instrumento para que a coalizão político-idealista

lutasse por suas visões para a bacia e sobre o semiárido, mas com números.

A criação do Comitê de Bacias também mudou os termos da discussão sobre o

projeto. Mas, longe de propiciar a formação do consenso, ele serviu de instrumento e arena

para expressar visões e interesses inflamados pelo Projeto de Integração. A outorga

concedida pela ANA referendou a preocupação de que as águas do rio deveriam ser usadas

prioritariamente para o abastecimento humano. Membros do Comitê não se consideram

ouvidos porque há margem de utilização das águas para outros usos, como em projetos de

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irrigação. Entretanto, quando se compara o que era o projeto da década de 1980 e início de

1990 com o que está hoje programado e condicionado pela outorga da ANA, apura-se que

houve mudanças importantes.

Não se identificou transformação no pensamento e ação social do Governo Federal

para o semiárido. A promoção da agricultura irrigada como o principal meio para resolver

o problema da seca é prioridade política muito forte. Percebe-se esse fato pelo perfil de

composição e atuação do Ministério da Integração Nacional, documentos técnicos do

Governo e pela inserção no Programa de Aceleração do Crescimento de diversas ações

relacionadas à expansão de perímetros públicos.

A outorga dada pela ANA redefiniu a prioridade da obra para o consumo humano.

Todavia, os elementos principais que moldam os rumos das políticas públicas (crenças das

pessoas que ocupam os cargos decisórios, documento, entre outros) indicam que o contexto

organizacional e de programas em que a obra se insere é moldado pela percepção da seca

como um resultado de estrutura econômica e falta de água. A partir disto, a reforma agrária

e a melhoria das relações de trabalho não constam como prioridades, e sim ações

complementares.

Os movimentos sociais trouxeram mais ênfase na necessidade de superação dos

antigos paradigmas que norteavam a ação pública na região. O novo paradigma defendido

é denominado de “convivência com a seca”. A pressão social, apoiada pela repercussão na

mídia, propiciou acréscimo na alocação de recursos em ações inseridas no paradigma de

convivência com a seca.

Em um cenário em que há orçamento disponível, há mais recursos para definir

políticas que atendam às crenças defendidas pelas coalizões. Este foi o pano de fundo da

discussão sobre a obra no Governo Lula. Em especial, a partir do Programa de Aceleração

do Crescimento foi possível incorporar linhas de ação em consonância com algumas

demandas das coalizões.

O fortalecimento do Programa de Revitalização por meio da alocação de mais

recursos é tido pela coalizão político-idealista como uma barganha ou moeda de troca para

a aceitação da transposição. Em termos de prioridade de governo essa ação arraigou-se,

visto que permanece no PAC 2. Entretanto, a execução do programa é centralizada na

CODEVASF, cujos quadros dirigentes e técnicos parecem compartilhar de uma percepção

mais restrita de revitalização. Ou seja, concentrada em intervenções de engenharia, em

especial na implementação de sistemas de esgotamento sanitário.

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No Governo FHC, membros da coalizão político-materialista favorável à obra

encontraram mais dificuldades para prevalecer. Eventos externos como a crise no setor

elétrico e a limitação de orçamento, por exemplo, restringiram a possibilidade de execução

de uma obra com o porte da transposição. Além disso, lideranças da coalizão política

idealista ocuparam cargos centrais nas organizações por onde passava o processo.

No Governo Lula, apesar da incoerência do governo do Partido dos Trabalhadores

decidir pela execução da obra e ir de encontro às expectativas de movimentos sociais,

houve convergência entre orçamento, elaboração técnica e determinação do presidente.

É difícil saber quais foram as motivações do Presidente para decidir pela obra.

Inicialmente, achou-se que seria uma moeda de troca para apoio político de Ciro Gomes

nas eleições de 2002. Em entrevista com o consultor do Governo (29/09/2010), este

informou que o Presidente fora sensibilizado sobre a obra durante as viagens que realizou

na Caravana da Cidadania. Em discurso no canteiro de obras111 do Eixo Norte o Presidente

informa que não se posicionou sobre a obra na campanha, mas indica que a considerava

uma ação de governo.

Eu, então, nunca prometi. Eu falei: deixa ganhar as eleições que nós vamos trabalhar com muito carinho a possibilidade de construir essa obra. E posso dizer para vocês que essa obra vai ter uma parte pronta ainda no meu mandato e vai faltar 30% apenas para ser terminada já no outro Governo (DISCURSO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, 17 DE OUTUBRO DE 2009).

Isto corrobora a avaliação de que o Modelo de Coalizão de Advocacia não abarcava

outra característica do sistema político brasileiro, que era a concentração de poder no chefe

do Executivo. Esta é uma variável essencial para explicar mudanças políticas.

Além disso, o modelo não previa a ação isolada de atores que dispunham de

recursos e formulavam estratégias para influenciar a decisão. Em relação ao Projeto de

Integração de Bacias, significativo potencial “ganhador” no processo seria a CHESF.

Entretanto, a CHESF, apesar de ter representação em eventos analisados, não se

posicionava publicamente sobre a obra. Seus representantes informavam apenas que “a

CHESF não era a dona do São Francisco”112. As revisões significativas no projeto são

resultado das limitações impostas para a produção de energia no rio. Além disso, a

111 Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante encontro com trabalhadores das obras do Eixo Norte. Cabrobó-PE, 16 de outubro de 2009. Disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/exec/inf_discursosdata.cfm. Acessado em 30/11/2010. 112 Assembleia do Estado do Pernambuco debate sobre a transposição do Rio São Francisco, 1o de agosto de 1994.

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escassez de água na região e a interligação do sistema nacional de energia poderiam gerar

mais ganho com a venda de água para usos consuntivos.

Nos fóruns públicos ou nos eventos analisados não foi possível identificar essa

atuação da CHESF. O conflito era tácito. Aparentemente, o maior conflito seria entre

irrigantes da bacia contra novos projetos econômicos que envolviam a irrigação no Ceará e

Rio Grande do Norte. Aqueles atuavam movidos pela crença de que deveria priorizar-se o

desenvolvimento da bacia. Os que defendiam essa crença alegavam que a região da bacia

possuía piores indicadores sociais e um potencial considerável de terras que poderiam ser

irrigadas, sem os custos de transporte da água.

Em termos de lições aprendidas, a análise sobre a transposição permitiu um novo

olhar sobre o processo decisório. A administração pública é feita de procedimentos formais

e fluxos que, em tese, devem ser obedecidos. O processo decisório tende a seguir este

fluxo.

Mas, caso haja um grau muito alto de conflito e interesses em jogo, podem ocorrer

modificações, ações não previstas ou paralisações aparentemente injustificadas. A

identificação de crenças e o mapeamento de coalizões podem servir como instrumentos

para a compreensão consistente sobre a disputa pública. Conhecer as preocupações e

motivações dos atores e grupos envolvidos é importante para a negociação. A

argumentação deve ser construída considerando-se o universo de crenças e de significações

em que o ator/grupo se insere.

Na discussão sobre a transposição, membros do Governo Federal avaliam que o

Governo errou ao não conseguir comunicar com os opositores ao projeto, em especial com

a sociedade civil. A comunicação do projeto centrou-se em técnicos do Ministério da

Integração que davam muita ênfase a números, mas não conseguiam dialogar com os

anseios dos grupos.

Outro elemento fundamental é conhecer bem os fluxos e procedimentos pelos quais

o processo passará. Com isto, pode-se analisar a capacidade de uso de recursos e

estratégias que as coalizões identificadas possuem, podendo-se organizar eventos,

reuniões, conciliações que permitam uma ação construtiva. Também é essencial reconhecer

as lideranças do objeto de conflito e avaliar se a proposta tem sustentação política

suficiente para ocorrer.

Percebe-se que o maior desafio é a conciliação das diferentes preocupações e

interesses. Necessário catalisar alianças favoráveis, mas sem perder o objetivo final, que é

realizar mudanças positivas e demandadas no cotidiano das pessoas. Entretanto, nunca se

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saberá o que constitui um bom diálogo Estado-sociedade, visto que sempre existirão

grupos que não se acham ouvidos.

O equilíbrio em qualquer instância é algo difícil de ser encontrado, mas na política

pública considera-se praticamente impossível. Tendo-se, por exemplo, o Programa de

Revitalização, este possuía mais de R$ 300 milhões para execução de ações ambientais

(afora esgotamento sanitário).

A sua execução, entretanto, foi pífia. Ações em comunidades quilombolas,

indígenas, construção de infraestrutura para populações dispersas, revegetação e

desassoreamento não obtiveram boa execução. Questiona-se: onde estava o movimento

social para propor e cobrar a execução das ações? Onde estavam os políticos que

defenderam tão veementemente a revitalização?

Questiona-se, ainda, a pouca atuação dos políticos da coalizão política materialista

para pressionar por bons projetos e execução de acordo com o cronograma das obras que

pleitearam ao longo de tanto tempo.

O abstrato ganha votos e adesões, mas o desafio do servidor público e a

responsabilidade social de políticos e movimentos sociais é fazer o concreto, porque há

uma realidade objetiva de pobreza e aos poucos se pode chegar no novo.

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ANEXOS E APÊNDICES

ANEXO A – Crenças do núcleo político e instrumentais na discussão do Projeto São

Francisco

A seguir seguem-se as crenças elaboradas a partir do resgate histórico realizado no

capítulo 4. A partir das crenças é possível identificar as coalizões de defesa, uma vez que

estas consistem em grupos que compartilham crenças e atuam de forma coordenada. As

crenças foram inseridas no software NVivo8 como tree nodes. Partes dos discursos e falas

obtidos foram classificadas nas crenças, quando se avaliava que eram representativas das

crenças identificadas.

I Crenças do núcleo político

1.1 Desenvolvimento do semiárido x desenvolvimento da Bacia do São Francisco

• Não há incompatibilidade entre os dois objetivos. Projetos de irrigação na bacia não

serão prejudicados, visto que a obra utilizará apenas vazão alocável após

identificação de projetos existentes e expansão de grandes projetos como Jaíba,

Salitre e Baixio de Irecê.

• Há incompatibilidade entre os dois objetivos. A obra indisponibilizará água para os

projetos de irrigação na bacia, deixando-se de irrigar grande área com potencial.

Sem benefícios generalizados para a população a ser atendida pelo projeto.

• A opção deve ser a priorização do desenvolvimento do semiárido a partir da

agricultura e abastecimento urbano. Para a Bacia do São Francisco, deve ser

priorizada a execução de outras ações, que não agricultura, como meio para

desenvolvimento.

1.2 Uso da água e preservação ambiental

• O rio já se encontra muito degradado, sem condições de fornecer água para novos

projetos. O foco deve ser a revitalização do rio São Francisco.

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• O rio já se encontra muito degradado, mas ainda há vazão alocável sem

comprometê-lo muito. Pode-se realizar a obra da transposição, mas com a

revitalização do São Francisco.

• O rio possui vazão alocável, não havendo empecilhos para execução da

transposição. A revitalização não é condição necessária para a execução da obra da

transposição.

1.3 Existência de déficit hídrico no semiárido

• Não há déficit hídrico no Nordeste, sendo necessário priorizar ações para uso mais

eficiente e melhor distribuição.

• Há déficit hídrico no semiárido, mas também há necessidade de ações para o uso

eficiente da água e melhor distribuição.

• Há déficit hídrico e a obra resolve esse problema da região.

1.4 Abastecimento humano x produção de energia

• A produção de energia é atividade econômica essencial na Bacia do Rio São

Francisco. A execução da obra comprometeria a geração de energia na bacia.

• A produção de energia na bacia pode sofrer redução, mas sem comprometer o

sistema nacional. A execução da obra comprometeria a geração de energia, que

seria compensada com produção em outros locais.

• A produção de energia foi um dos focos de atividade econômica na bacia, mas a

prioridade no uso da água atualmente deve ser o abastecimento humano. Impõe-se

priorização da transferência de água para o semiárido e não acréscimo da produção

de energia no rio.

1.5 População beneficiada

• O semiárido nordestino é composto de populações difusas, sendo necessário

priorizar ações de governo que atendam a essa população. O projeto prioriza o

agronegócio no semiárido e não atende à população em geral.

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• O desenvolvimento do semiárido depende do desenvolvimento da agricultura e

abastecimento para manutenção das populações urbanas. O projeto atende ao

agronegócio ou produção irrigada no semiárido, mas atende também à população

de áreas urbanas do semiárido.

• O desenvolvimento do semiárido é reprimido pela falta de água nos núcleos

urbanos. O projeto deve atender preferencialmente às populações urbanas do

semiárido e, quando possível, a produção irrigada de alimentos.

1.6 Paradigma de desenvolvimento

• Obra insere-se no paradigma de desenvolvimento modernizador/reformista que

ainda é importante para a região.

• Obra representa novo paradigma de desenvolvimento para a região.

• Obra insere-se no paradigma de desenvolvimento modernizador ou reformista, que

já se mostrou ineficiente. Deve-se adotar um novo paradigma como o da

convivência com o semiárido.

II Crenças Instrumentais

2.1 Viabilidade financeira e técnica do projeto

• O projeto não é adequado. Há riscos de evaporação da água, alto custo da água

fornecida, as estiagens na Bacia do São Francisco e nas áreas atendidas pelo projeto

têm ocorrências coincidentes em muitos períodos e o conflito de uso pode se

acentuar.

• O projeto é adequado. Os requisitos técnicos foram atendidos para implementação

do mesmo (projeto básico e licenciamento ambiental).

2.2 Condução do processo de licenciamento ambiental

• O processo de licenciamento ambiental não foi consistente. O Estudo de Impacto

Ambiental não foi completo (desconsiderou a região doadora). As audiências

públicas foram insuficientes.

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• O processo de licenciamento ambiental foi consistente. Foram atendidos os

procedimentos definidos em lei.

2.3 Vazão alocável do rio São Francisco

• Não há água disponível no rio, a vazão já está toda comprometida.

• Há vazão alocável de 360 m3, sendo que 33 0m3 já estão outorgados e o restante

será alocado na transposição.

2.4 Soluções alternativas

• A obra não resolve o problema de falta de água do Nordeste, pois não atende

populações dispersas. Necessário adotar soluções alternativas e menos custosas,

como cisternas e poços.

• As soluções alternativas não atendem aos desafios do semiárido e a obra propicia a

segurança hídrica necessária.

• A obra atende parte dos desafios do semiárido que não seriam atendidos com

soluções como cisternas e poços, mas sua execução não suprime a construção

dessas soluções para a parte da população não atendida pela obra.

2.5 Alocação de orçamento

• A obra é muito cara e deveria ser dada prioridade à conclusão de obras inacabadas

ou a soluções mais baratas.

• A obra é cara, mas não se deixará de investir em outras obras para atendimento às

populações difusas ou outros programas, como o Proagua.

• A obra não é cara considerando os gastos para amenização dos impactos da seca.

2.6 Inserção em Projeto de Desenvolvimento

• Obra deve inserir-se em projeto mais amplo de desenvolvimento com melhor

distribuição da água projeto de desenvolvimento integrado do semiárido.

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• Obra insere-se em planos de desenvolvimento já elaborados para a região.

• Obra foi pensada isoladamente da elaboração de plano de desenvolvimento da

região. Mas ela não é contraditória com os planos existentes.

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ANEXO B – Carta sobre resultados do grupo de trabalho constituído para propiciar

“diálogo” sobre a obra

Salvador, 05 de fevereiro de 2005. Exmo. Sr. Luiz Inácio Lula da Silva MD. Presidente da República Caro Presidente Lula, Em outubro de 2005, depois de 11 dias de uma greve de fome que mobilizou a

opinião pública no Brasil e em outros países, o Governo Brasileiro assumiu publicamente um compromisso com o povo brasileiro por intermédio do Bispo Diocesano de Barra, de suspender qualquer iniciativa de efetivação do Projeto de Transposição do Rio São Francisco e estabelecer uma “ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente, até que se construa um Plano de Desenvolvimento Sustentável, baseado na convivência com todo o semiárido, para o bem de sua população, priorizando os mais pobres”.

Este compromisso teve desdobramentos práticos, a partir de audiência com Vossa Excelência, em dezembro de 2005, com a constituição de um Grupo de Trabalho composto por representantes do Governo Brasileiro (Casa Civil, Secretaria da Presidência, Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Integração Nacional) e da sociedade civil organizada. Este GT construiu de forma sólida e consensual uma metodologia para realizar o processo de debate acordado com D. Luiz Cappio.

A proposta construída estava centrada na busca de responder a duas questões centrais, capazes de elucidar a pertinência ou não do já citado Projeto de Transposição:

Quais as estratégias e ações necessárias para garantir água ao conjunto da população do semiárido, considerando as populações rurais difusas e as populações urbanas;

Qual o conjunto de ações necessárias para garantir o desenvolvimento com sustentabilidade no semiárido brasileiro.

A metodologia construída implicava na realização de dois seminários temáticos, em Brasília, e se estenderia para encontros ampliados em locais que contemplassem o conjunto da região semiárida. O intuito dos seminários temáticos propostos era levantar informações, buscar consensos e mapear dissensos. Os encontros realizados em seguida ampliariam esta discussão.

O primeiro seminário temático aconteceu nos dias 06 e 07 de julho de 2006, com ampla participação, envolvendo representantes governamentais e instituições como a CNBB, a ASA – Articulação do semiárido, Universidades, Comitê da Bacia Hidrográfica, Movimentos Sociais (MST, MAB e MPA), comunidades tradicionais (povos indígenas, quilombolas e pescadores), pesquisadores e o Ministério Público. A partir deste seminário deliberou-se pela criação de três Grupos de Trabalho incumbidos de aprofundar os debates sobre temáticas: a) desenvolvimento do semiárido; b) Projeto de Transposição do Rio São Francisco e c) ações de revitalização da Bacia Hidrográfica do São Francisco.

Este seminário foi considerado, pelos representantes da sociedade civil e do Governo, um marco importante na construção de saídas para a crise gerada pela tentativa de implementação de um projeto que é extremamente polêmico. O seminário também avançou na visibilidade de ações de convivência com o semiárido que efetivamente têm garantido melhoria de qualidade de vida e segurança hídrica às populações nordestinas.

Mesmo enfrentando desgastes com declarações à imprensa do então Ministro Pedro Brito, desqualificando a iniciativa conjunta, o GT realizou excelente trabalho. Durante todo

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este período as declarações do então Ministro da Integração Nacional foram classificadas pelos representantes do Governo Brasileiro no GT como “manifestações isoladas que não refletiam a posição do Governo Lula”.

Por solicitação dos representantes governamentais, que vinham conduzindo durante todo o processo as ações de forma democrática e coerente com os princípios propostos, as atividades do GT foram postergadas para período posterior ao período eleitoral. Desde então tentamos garantir a retomada dos trabalhos, sem recebermos por parte do Governo sinais claros sobre a continuidade deste processo que é fruto do acordo feito em Cabrobó e da audiência com Vossa Excelência ocorrida em 15 de dezembro de 2005 que reafirmou esse compromisso.

Entretanto, o que nos causou maior perplexidade foi ver a decisão do STF e os repetidos anúncios veiculados pela imprensa, informando que as obras da transposição deverão ser retomadas e de forma breve, ainda para o mês de fevereiro de 2007 em total afronta ao quanto pactuado e ao caminho que vinha sendo trilhado conjuntamente em busca de soluções. No mesmo sentido, as informações recentes dão conta da realização de editais para projetos relacionados à transposição. E, por último, surpresa maior foi verificar no PAC a relevância que foi dada ao Projeto. Não é possível a retomada desta construção conjunta sem a suspensão imediata da implementação do Projeto de Transposição.

As buscas incessantes de respostas sobre a retomada do Diálogo resultaram até o momento infrutíferas. Diante disto nos perguntamos se o processo de diálogo que construimos conjuntamente foi efetivamente assimilado pelo Governo Brasileiro? Como dialogar acerca de possibilidades concretas de desenvolvimento sustentável do semiárido com ações concretas por parte do Governo Brasileiro no sentido de implementação imediata do Projeto de Transposição?

A realização do Diálogo prometido é mais do que necessária, traduz-se hoje para todo o povo brasileiro como respeito ao Estado Democrático de Direito que privilegia a participação popular na tomada decisão, mas somente será possível com transparência e hombridade, e para tanto, faz-se indispensável garantir os compromissos assumidos.

Acreditamos na possibilidade concreta da realização do quanto pactuado, principalmente por se tratar este Governo de um Governo constituído a partir das populações excluídas deste país.

Esperamos o mais breve possível que o Governo Brasileiro venha a público esclarecer se honrará o compromisso assumido não só com o Bispo da Barra, mas com o conjunto daqueles que buscam vida e o verdadeiro desenvolvimento para o semiárido Brasileiro e que garanta com ações concretas de modo uniforme a realização de um amplo e verdadeiro Diálogo participativo que garanta às populações da Bacia do São Francisco e/ou do semiárido brasileiro contribuições para a construção do nosso país.

Atenciosamente, ADRIANO MARTINS Representante de Dom Luiz Flávio Cappio LUCIANA ESPIENHIRA DA COSTA KHOURY Coordenadora Interestadual das

Promotorias de Justiça do São Francisco MARCELA MENEZES Representante do Fórum Permanente de Defesa do São

Francisco da Bahia YVONILDE MEDEIROS Secretária Executiva do Comitê de Bacia Hidrográfica

do Rio São Francisco CLÊUSA ALVES SILVA Membro da Coordenação Executiva da ASA Também subscrevem esse documento os demais integrantes da Comissão que

integram o segmento da sociedade civil: O Fórum de ONGs Mineiro, o Fórum de Comitês de Minas Gerais, a Frente Cearense por Uma Nova Cultura da Água, as populações indígenas da Bacia do São Francisco, as populações quilombolas da Bacia do São

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Francisco, os pescadores da Bacia do São Francisco, os técnicos que são críticos ao Projeto de Transposição e a Via Campesina. Fonte:http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2553&Itemid=2. Acessado em: 12/01/2010.

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ANEXO C – Mapa do Projeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco com as

bacias do Nordeste Setentrional

FIGURA 2 – Projeto de Integração.

Fonte: Página na internet do Ministério da Integração Nacional.

Descrição sobre o Projeto existente na página do Ministério da Integração Nacional:

“O Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do

Nordeste Setentrional é um empreendimento do Governo Federal, sob a responsabilidade do Ministério da Integração Nacional. É destinado a assegurar oferta de água, em 2025, a cerca de 12 milhões de habitantes de 390 municípios do Agreste e do sertão dos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.

A integração do rio São Francisco às bacias dos rios temporários do semiárido será possível com a retirada contínua de 26,4 m³/s de água, o equivalente a apenas 1,42% da vazão garantida pela barragem de Sobradinho (1850 m³/s), sendo que 16,4 m³/s (0,88%) seguirão para o Eixo Norte e 10 m³/s (0,54%) para o Eixo Leste”. Disponível em: http://www.integracao.gov.br/. Acessado em: 27/01/2010.

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APÊNDICE A – Entrevistas realizadas

29/09/2010 José Otamar de Carvalho – consultor do Governo Federal e coordenador da

elaboração do Plano de Desenvolvimento do Semiárido.

1o/10/2010 João Urbano Cagnin – coordenador técnico do Projeto até 2005.

03/12/2010 Deputado Federal Marcondes Gadelha – PSB/PB.

17/01/2011 Elisa Malafaia – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

17/01/2011b Pedro Bertone – Casa Civil da Presidência da República.

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APÊNDICE B - Linha do tempo da discussão do projeto

Ano Atividade 1817 O ouvidor da Comarca de Crato, José do Paço de Porbem Barbosa, fez a primeira defesa do projeto.

1847 Intendente do município de Crato no Ceará o Deputado Provincial Antônio Marco de Macedo manifestou a ideia de se buscar a água do Rio São Francisco. Defendia um canal de navegação, partindo da Vila Boa Vista e desembocando no Riacho dos Porcos, afluente do Jaguaribe, com 200 km de extensão.

1877 Deputado Tristão de Alencar Araripe propõe a canalização do Rio São Francisco para o Ceará. No mesmo ano, Instituto Politécnico do Rio de Janeiro aventou possibilidade de construir canal ligando o Rio São Francisco ao Rio Salgado no Ceará.

1906 Livro “O Problema das Secas no Nordeste Brasileiro” do Professor Clodomiro Pereira da Silva da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo defendeu a transposição do Rio São Francisco como método de regularização da oferta de água em contraposição ao sistema de açudagem que ele criticou.

1913 a

1919

Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas – IFOCS analisou viabilidade técnica, mas chegou à conclusão desfavorável, visto que ainda não existiam tecnologias adequadas. No dia 28 de agosto de 1913, o projeto de Marcos Antônio de Macêdo foi derrotado pelos argumentos técnico-científicos de Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa, Diretor da Inspetoria de Obras Contra as Secas - IOCS, pois os levantamentos tacmétricos demonstraram que havia diferença de nível de 190 metros entre o talvegue do Rio São Francisco e o do Rio Salgado, no Ceará.

1922 Comissão Rondon realizou verificação das obras no Nordeste. Criticou a indústria da seca e afirmou que o projeto não poderia parar por que dele dependia o futuro do Nordeste.

1953

Ministro da Viação José de Américo Almeida (também autor do livro A bagaceira publicado em 1928), em depoimento na Câmara dos Deputados, propôs a execução de canal de 400 km saindo da Cachoeira de Sobradinho até o Rio Moxoxó-PE. Ele encomendou estudos ao DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento).

1972 Assunto foi retomado pelo Deputado Wilson Roriz do Ceará. Foi aventada nova solução técnica para o problema de elevação das águas.

1985 Ministro Andreazza determina elaboração do projeto. DNOS elabora projeto. 1992 Criação da Comissão Interparlamentar – CIPE do São Francisco

1994

Carta de Fortaleza – políticos, técnicos, empresários, trabalhadores, estudantes, líderes comunitários defendem a transposição como a solução definitiva. Presidente Itamar Franco anunciou a abertura de licitação para os projetos básicos das obras para a transposição, mas o Tribunal de Contas da União propôs a suspensão, alegando que o projeto seria prejudicial às hidrelétricas e à irrigação em Minas Gerais e na Bahia. Decreto 06/07/1994 cria no Ministério da Integração Regional o Grupo de Ações Integradas para o desenvolvimento e supervisão do programa do Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco. Aluísio Alves assume o Ministério do Interior no Governo Itamar Franco com a condição de execução do projeto. Reúne 400 funcionários sob o comando do engenheiro Rômulo Macedo e coordenação do embaixador Villar Queiroz.

1997 Secretaria de Políticas Regionais do Ministério do Planejamento – criação de grupo de trabalho para estudar a obra.

1998 Seminário na Confederação das Indústrias sobre a obra. 1999 Criado o Ministério da Integração Nacional que incorporou a Secretaria de Políticas Regionais.

2000 Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco estava alocado no Programa Plurianual de Investimentos (PPA), de 2000-2003, o Plano Avança Brasil.

2001

Governo FHC gasta R$ 10 milhões para elaboração do projeto básico, mas disputas judiciais impediram o início da obra avaliada em US$ 3 bilhões. Seminário Rio São Francisco: uma Questão de Vida e Morte. Criação do Fórum Permanente de Defesa do São Francisco. Realização de passeata em Juazeiro-BA. Manifestação independente de pescadores em Penedo-PE.. Criação do movimento “Minas em Defesa das Águas”. Decreto de criação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, encerrada discussão sobre o Projeto no Governo FHC. Seminário 500 anos do Velho Chico e Carta de Salvador. Pacto Político dos Governadores a favor do projeto.

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2003 Apresentação Banco Mundial criticando projeto. Grupo de Trabalho Interministerial 1.

2004

Grupo de Trabalho Interministerial 2. Concluído o 2º Estudo de Impacto Ambiental. Nota técnica ANA no 492/2004 – garantindo disponibilidade hídrica para o projeto. 11/11 Grupo de Trabalho 3 - Portaria Interministerial MI nº 24 - definir e implementar o sistema operacional sustentável para o Projeto de Integração do Rio São Francisco com as bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional.

2005

26/09 a 06/10 - Dom Luiz Flávio Cappio faz jejum contra o Projeto de Transposição, em Cabrobó-PE. O presidente Lula, pressionado, envia o então ministro Jaques Wagner para negociar. A "greve de fome" encerra mediante a assinatura de um acordo. Resolução do Conselho Nacional de Recursos Hídricos no 47 de 17 de janeiro de 2005. Aprova o aproveitamento hídrico do Projeto de Integração do Rio São Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional. Governo Federal alegou urgência para a sua tramitação, desta forma não passou pela análise das câmaras técnicas. 2ª rodada de audiências públicas. 16/06 Fundação Getúlio Vargas – apresenta. 1o/08/2005 – Acórdão do TCU. Novembro - O Ministério Público Federal e o da Bahia, além do Fórum Permanente em Defesa do São Francisco na Bahia, entram com nova ação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e pedem a suspensão do processo de licenciamento ambiental em trâmite no Ibama.

2006

23/02 – Ofício é protocolizado para o Presidente Lula cobrando agenda para debate público sobre o Projeto de Transposição, prometido pelo Governo desde outubro de 2005. Assinam o documento Dom Tomaz Balduino, pela CPT, Dom Luiz Cappio, Ministério Público e Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco. 18/12 - O então Ministro Sepúlveda Pertence (STF) derruba as 11 liminares que impediam o início das obras do Projeto de Transposição. Ação Cível Originária - ACO 876 (BRASIL, 2006b). 19/12 – Decreto no 5.995 instituindo o sistema de gestão do Projeto de Integração do Rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional.

2007

22/01 - Lançamento do PAC. Recursos públicos no PAC destinados ao Projeto de Transposição: R$ 6,6 bilhões, no período 2007 a 2010. Fórum Permanente de Defesa do São Francisco na Bahia entra com recurso no STF contra a decisão do Ministro Sepúlveda Pertence que suspendeu as liminares. 12/02 – Procurador Geral da República, Fernando Antonio de Souza entra com recurso no Supremo Tribunal Federal e pede a cassação da licença ambiental para obra da transposição. 21/02 – D. Luiz protocoliza carta a Lula reivindicando a retomada do diálogo. Março - O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos recursos Naturais Renováveis (IBAMA) concede licença ambiental e autoriza o início das obras da transposição. 12 a 16/03 – Acampamento em Brasília "Pela vida do Rio São Francisco e do Nordeste, contra a transposição", com mais de 600 pessoas da Bacia do Rio São Francisco e de outros estados, como Ceará e São Paulo. 16/03 – Geddel Vieira Lima é nomeado Ministro da Integração Nacional no lugar de Pedro Brito. 16/04 – OAB/SE entra com ação contra o projeto do Governo Federal, de transposição do Rio São Francisco. Documento com 150 laudas traz estudos do Banco Mundial, relatos sobre a situação hídrica do Ceará, a escassez por má-distribuição e a afirmação de que seria sete vezes mais barato fazer obras para abastecimento no chamado Nordeste Setentrional. Maio – Exército reforça grupamentos que tocam a primeira parte da obra na área da tomada de água dos eixos norte e leste do Projeto de Transposição. 04/06 - Carta cobra de Geddel cumprimento de acordo firmado pelo Governo Federal, desde 2005. Assinam: Dom Luiz Cappio, Adriano Martins, Yvonilde Medeiros, Jonas Dantas (Fórum Permanente de Defesa do São Francisco), Luciana Khoury (Ministério Público da Bahia); Subscrevem: ASA (ARTICULAÇÃO DO SEMIÁRIDO, 1999), Frente Cearense por Uma Nova Cultura das Águas; Fórum Sergipano, Via Campesina Brasil, MST Brasil, comunidades quilombolas, pescadores e povos indígenas da Bacia, Ministério Público de Sergipe, professores João Suassuna e João Abner. 26/06 a 04/07 - Mais de 1500 pessoas ocupam o canteiro das obras do eixo norte do Projeto de Transposição, em Cabrobó (PE). Nos dias seguintes índios Trukás e Tumbalalás ocupam e retomam terras na mesma região.

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2007 cont.

Julho - Procurador geral da República, Antônio Fernando de Barros, entra com petição em que pede a suspensão imediata das obras de transposição. 19/08 a 1o/09 – Caravana em defesa do Rio São Francisco: contra a transposição e por uma nova estratégia em relação ao semiárido brasileiro percorre 11 cidades. 10 a 14/09 – Mutirão de trabalho na região do eixo leste do Projeto de Transposição. 03 a 10/11 – Mutirão de trabalhos na região do eixo norte do Projeto de Transposição. 27/11 – Dom Luiz Cappio retoma greve de fome e afirma que só irá cessar o ato se o exército for retirado da região e o projeto for arquivado definitivamente.

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APÊNDICE C – Plano de Desenvolvimento do Semiárido

O Plano de Desenvolvimento do Semiárido foi apresentado em 2005. No

documento, são propostas três áreas geoestratégicas do semiárido. A nova proposta é

elaborada diante de uma nova concepção logística que inclui, além das infraestruturas de

transporte, energia e telecomunicações, mas também um sistema capaz de garantir água às

cidades. Dessa forma, a região do ribeira do São Francisco desempenha papel fundamental,

pois “pode desempenhar uma nova função na estruturação do espaço regional, na medida

em que sedia complexos territoriais aumentando a densidade das redes e ocupando vazios

logísticos” (BRASIL, 2005a, p. 60).

A principal constatação do plano é que o desenvolvimento do semiárido deve ser

pensado diante do fato de concentração de sua população em áreas urbanas. Ressalta-se

que novas potencialidades estão na consolidação do rurbano, ou seja, interações entre o

rural e o urbano mediante atividades de geração de emprego como o turismo, por exemplo.

Importante salientar que o plano fundamenta o Projeto da Transposição, indicando

que esse é fundamental para o desenvolvimento da região do sertão norte; ou melhor, que

sem a garantia da água do rio não há como o sertão norte, região mais populosa e

urbanizada, desenvolver-se. Ao mesmo tempo ressalta o Programa de Revitalização como

ação prioritária para a ribeira do São Francisco. Reforça que o Projeto de Transposição não

pode ser efetivado sem a revitalização.

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FIGURA 3 – Plano Estratégico de Desenvolvimento do Semiárido: áreas geoestratégicas.

Fonte: Brasil (2005a).