entre imagens e palavras: discursos de prevenção ao crack (dênis petuco)
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Artigo crítico sobre o modelo hegemônico de prevenção ao uso de drogas, a partir do estudo de caso de uma destas campanhas.TRANSCRIPT
ENTRE IMAGENS E PALAVRAS Discursos de prevenção ao crack
Nunca houve uma só cultura em que não se verificasse o uso de drogas. Por trás
da ideia de “uso de drogas”, escondem-se diferentes usos de diferentes substâncias com
objetivos diversos e sentidos variados (ESCOHOTADO, 1996; VARGAS, 2008;
CARNEIRO, 2008). No Brasil, somente no século XX o debate público em torno do
tema ganha importância. Na injunção de saberes sanitários e jurídicos, engendrou-se
toda uma série de dispositivos de criminalização da produção, circulação, comércio,
porte e consumo de uma série de substâncias psicoativas qualificadas como ilícitas.
Os primeiros indícios de uma política proibicionista sistematizada
(CARVALHO, 2007, p. 8) em torno da cadeia produtiva de substâncias tornadas ilícitas
irão aparecer apenas na década de 1940. Para a lei de drogas do Estado Novo, a
“toxicomania” é uma “doença de notificação compulsória”, para a qual é obrigatória a
internação em “hospital para psicopatas” ou estabelecimentos privados. O comércio e o
uso eram penalizados da mesma forma (Lei 891/1938).
Com a Ditadura Militar, o Brasil ingressa no cenário internacional de combate
às drogas (CARVALHO, 2007, p. 14). É dever de todos “[...] colaborar na prevenção e
repressão”, e quem se recusa é considerado “colaborador” (Lei 6.368/1976). Ganham
força os binômios dependência–tratamento e tráfico-repressão, reforçando as noções de
consumidor-doente e traficante-delinquente (CARVALHO, 2007, p. 23).
Ao mesmo tempo em que diversos países da América do Sul eram submetidos a
governos ditatoriais articulados (GUAZZELLI, 2004), o mundo ocidental vivia o
desmoronamento do Estado de Bem Estar Social e o avanço avassalador do ideário
neoliberal, com ênfase na flexibilização e precarização das relações de trabalho
(CASTEL, 2003), e na diminuição das atribuições assistenciais do Estado, articulada à
ampliação dos investimentos em repressão (WACQUANT, 2001).
Trocar a mão acolhedora das políticas assistenciais pelo braço forte da
repressão é coerente não apenas com o Consenso de Washington, mas também com as
diretrizes globais que surgem a partir da Convenção Única de Entorpecentes de 1961
(UNODC, 1961). A meta era erradicar o ópio em 15 anos, cocaína e maconha em 25;
não obstante, a produção e o consumo não apenas não diminuíram como aumentaram
muito, sem falar no surgimento de novas drogas (JELSMA, 2008).
Neste contexto, o crack surge como alternativa à política de controle dos
precursores químicos necessários ao refino de cocaína (notadamente éter e acetona),
planejada pelo governo dos Estados Unidos, e endossada pelas Nações Unidas
(ESCOHOTADO, 1996, p. 182). A pedra tornou a cocaína acessível às classes menos
favorecidas, diminuindo custos de fabricação e transporte.
Em meio ao triunfo neoliberal, com milhões de pessoas “[...] excluidas de modo
permanente” (BAUMAN, 2009, p. 22), o crack é “[...] capaz de rascar el bolsillo de los
indigentes con la misma eficacia que [la cocaína] arañaba el de los ricos”
(ESCOHOTADO, 1996, p. 182). Neste contexto, que tipos de educação sobre drogas
vêm sendo produzidas, por quem, para quem, e quais seus efeitos?
2. TEMA, OBJETO E MÉTODO DA PESQUISA
Importa à Educação uma campanha de prevenção? Existiriam contribuições ao
campo político-reflexivo das drogas, a partir deste estudo? Estaria ajudando a construir
alternativas aos problemas relacionados, tanto ao uso problemático de drogas, quanto à
inadequação de muitas das estratégias desenvolvidas para o enfrentamento da questão.
Ao campo político-reflexivo das drogas, que contribuições podem emergir?
Não são poucos os autores a dizer que a educação não se faz apenas na sala de
aula. Faz-se na própria história (FREIRE & GUIMARÃES, 2000); nas lutas e manhas
do povo (FREIRE, 2000; 2008); no trabalho social (FREIRE, 1979); no encontro com o
outro, no mundo (FREIRE, 1996); nas raras e preciosas conquistas (FREIRE, 1992).
Muñoz (2004) nos fala em “pedagogia da vida cotidiana”, e muitos autores falam de
uma “educação pelo trabalho” (FREINET, 1998). É na vida que aprendemos. E também
no contato que estabelecemos com os produtos da atividade humana. É possível
perceber implicações de uma “cultura da mídia” nos processos de produção de
subjetividades na contemporaneidade. Estamos imersos em um verdadeiro oceano de
estímulos sensoriais. Imagens que exercem poder sobre nós, em meio às quais
navegamos sem guardarmos a necessária lucidez:
Somos cercados por diversos tipos de imagens: fotografias, desenhos, pinturas, outdoor, escultura, charges, estampas, computador, televisão, filmes e outros. Na maioria das vezes, não nos damos conta das mensagens que elas nos transmitem: valores sociais, políticos, econômicos e culturais, o que requer uma leitura crítica. (SILVA, 2008, p. 57)
Erenildo João Carlos (2008, p. 15) lembra Paulo Freire em “A importância do
ato ler”, com respeito à importância que há em ler o mundo que nos cerca, para além da
leitura da palavra. Para o autor, tal compreensão deveria nos levar à busca de uma
educação que tornasse mais crítico o olhar (CARLOS, 2008, p. 33).
Cartazes em uma campanha de prevenção são dispositivos pedagógicos,
passíveis de serem tomados como objeto de estudo no campo da Educação. É muito
importante, pois, que estudemos os dispositivos de prevenção que vem sendo
construídos para lidar com os usos de drogas. Será que eles produzem efeitos? Que
efeitos são estes? A simples boa intenção é o bastante?
É importante avaliar não apenas o quanto estes processos de educação sobre
drogas têm surtido efeito, mas também que efeitos são estes. No campo da Saúde, o
conceito de iatrogenia designa situações em que ocorrem agravos à saúde individual ou
coletiva, decorrentes de intervenções cujos objetivos eram o de melhorar a saúde. Uma
prática iatrogênica é uma prática que tem como objetivo a promoção de saúde, mas que
termina por trazer consequências piores que o problema que buscava dirimir.
O estudo aqui apresentado consiste da análise do discurso em uma campanha de
prevenção ao uso de crack, veiculada por um grande grupo de comunicação da região
sul do Brasil. Para tanto, optei por tomar os cartazes, e uma peça audiovisual. Esta
campanha teve duração de dois anos, do início de 2009 ao final de 2010, e foi dividida
em duas etapas, das quais, para efeitos deste artigo, tomo a primeira. Os cartazes foram
analisados a partir de uma caixa de ferramentas teórico-metodológicas amparada na
perspectiva da análise arqueológica do discurso de Michel Foucault (2005).
Ferramenta por excelência, a escrita. Com ela percorro a superfície de inscrição
dos enunciados, descrevendo-os em sua objetividade, e nas articulações entre múltiplos
elementos enunciativos expressos na campanha de prevenção descrita nesta pesquisa.
Uma escrita com estas características não aceita resumir-se a mero elemento de
descrição das descobertas decorrentes da pesquisa, mas é, ela mesma, instrumento de
pesquisa, de produção de conhecimento:
Como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber de nossa ignorância e que transforma um no outro. (DELEUZE, 2006, p. 18)
3. IMAGENS DA CAMPANHA
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Im. 03 Im. 04
Começo pela imagem de uma mulher, nariz e olhos machucados, cabelos
desgrenhados, maquiagem borrada. Veste jeans e tênis rasgados, sujos e envelhecidos.
Está sentada sobre pedaços de papelão e tecido, suas costas encostadas numa parede de
concreto. Por trás dela veem-se caixas de madeira e pedaços de concreto. Ao fundo, um
ponto de iluminação pública esclarece que a imagem se situa em ambiente externo, e a
luminosidade, que a cena se desenrola no amanhecer. Ao lado direito, o texto: “Vender
o corpo por uma pedra de crack. Não experimente esta sensação”.
“Vender o corpo” remete à prostituição. Mas o texto no cartaz não nos fala em
“prostituição”. As prostitutas costumam ser representadas por mulheres maquiadas,
roupas sensuais, em seu trottoir noturno. Não é esta a imagem que temos, tampouco é
de prostituição que se fala. Fala-se de “vender o corpo por uma pedra de crack”, e o que
vemos é uma mulher atirada sobre trapos de tecido, escorada em uma parede que parece
o pilar de um viaduto. Quando articulo a imagem desta mulher ao escrito sobre vender o
corpo, eu penso em uma mulher que foi usada e descartada.
A segunda imagem traz um homem, também atirado ao chão. Suas costas
escoram-se em uma espécie de muro. Há feridas no supercílio e nas mãos, e manchas de
sangue no seu pescoço. À semelhança da imagem anterior, aqui também a rua é o lugar
da ação. Indica-o não a iluminação pública, mas os faróis dos carros que passam ao
fundo e abaixo do local onde está o homem. Embaixo, os carros apressados, no vai e
vem da vida cotidiana; em cima, atirado junto aos chicletes velhos na calçada, o homem
negro também parece colado ao chão. Seu corpo parece pesar no chão, em comparação
aos automóveis que flutuam na avenida, dos quais só se veem os faróis acesos, pintando
listras coloridas na penumbra da noite.
No texto, a frase: “perder todos os amigos. Não experimente esta sensação”. A
ideia de “sensação” remete a algo vivido no limite entre o instinto e a racionalidade. O
uso de drogas produz diferentes sensações, a depender do tipo de droga, do contexto, da
pessoa que faz a experiência. Mas, o efeito da droga pode ser comparado ao abandono?
Pode-se dizer que a perda dos amigos é uma “sensação”?
Por que este homem está só? Por que perdeu os amigos? A resposta não precisa
ser buscada nas entrelinhas, em uma interpretação externa ao enunciado: este homem
encontra-se nesta situação, porque “o crack é uma droga tão poderosa que pode viciar
logo na primeira vez”. Eis que me é permitido ver algo que explica toda a imagem.
Assim como nas imagens anteriores, a escuridão é moldura para a terceira cena.
De dentro dela surge uma escada de concreto, e os restos do que poderia ser a murada
desta escadaria. Posso ver três degraus, e para além deles, novamente as sombras. Sobre
estes, um jovem: cotovelo direito sobre o degrau de baixo, o esquerdo no de cima,
cabeça no degrau do meio. Sua pele é cinza. Seus olhos estão entreabertos. Há feridas
em seu rosto, lábios e pescoço.
Ele não parece estar simplesmente dormindo. Parece desacordado, ou morto.
Por entre suas pálpebras semicerradas, um tênue brilho em seu olho esquerdo, e no
direito, apenas uma cor branca, opaca. Há também algo de vermelho – de sanguíneo –
em seus olhos, contrastando com o azul de sua íris. Seu olho direito, este parece mais
uma mancha borrada, sem definição ou brilho.
Se eu já disse que a escadaria está suja, eu pouco falei sobre da sujeira em si.
Bem próximo à cabeça do rapaz, há pedaços de concreto e muita poeira. Tudo conspira
para que se veja não um tipo qualquer de escadaria, mas uma escadaria suja e
abandonada, destruída, em ruínas. Há manchas que lembram urina descendo escada
abaixo, e outras que parecem cuspe na poeira. Ali jaz o rapaz, junto ao catarro e à urina.
A frase que compõe o enunciado é: “Perder todos os amigos”. Abaixo dela, em
letras douradas, a não mais inédita “Não experimente esta sensação”, seguida da
igualmente conhecida “O crack é uma droga tão devastadora que pode viciar logo na
primeira vez”. Quando olho este jovem no chão, na parte de baixo do cartaz, e vejo a
frase que denuncia a perda da dignidade, vejo reforçar a associação da perda da
dignidade com a metáfora de estar por baixo, no chão, na base de uma escadaria, aos
pés do observador. Na sarjeta. Sua degradação é pública: todos podem vê-lo nos
degraus de uma escadaria pública, misturado à imundície que o cerca.
A última das quatro peças traz a frase “Bater na própria mãe. Não experimente
esta sensação. O crack é uma droga tão devastadora que pode viciar logo na primeira
vez”. “Bater na própria mãe” configura-se como uma “sensação” relacionada ao uso do
crack. Ao lado, das sombras, emerge uma senhora com o rosto bastante machucado.
Quando articulo esta imagem ao dístico inscrito no lado esquerdo do cartaz, percebo de
pronto que se trata da representação da mãe referida anteriormente. Há uma luz que
ilumina seu rosto retirando-o das sombras, permitindo a visão de uma expressão de dor,
de tristeza. Há uma lágrima abaixo do seu olho direito. Há ferimentos em diversas
partes de seu rosto, e sua mão direita, também machucada, acaricia a própria face.
Por detrás do rosto desta mulher, há uma escadaria deserta, iluminada pela luz
da lua ou de uma fraca iluminação pública, a indicar a noite como tempo em que a cena
se desdobra. É deste lugar que vem a mãe, rosto machucado. Seria possível dizer que
acabou de ser agredida, justamente nas escadas ao fundo. É de lá que ela vem; o filho ou
a filha segue nas sombras. Talvez dormindo num degrau desta escada, ou jogado numa
calçada; talvez siga sentada entre trapos, debaixo de um viaduto.
4. O DISCURSO EM SUA DISPERSÃO
Antes de tudo, as sombras. É delas que emanam todas as cenas analisadas. Eis
um mote comum, não apenas a esta, mas a diversas outras campanhas preventivas
preocupadas com o uso de álcool e outras drogas. Visitar campanhas de prevenção é
como percorrer vastos territórios escuros, sombrios, trevosos. Como se os enunciados
encontrassem na escuridão uma regularidade de origem, em que tudo parte das sombras,
para lá retornar; como uma janela ao mundo de sombras das drogas.
Im. 05
Im. 06
Mais um exemplo, que assim como a campanha analisada neste estudo, também
foi organizada por um grupo de comunicação, desta vez na Paraíba. Identificada pelo
dístico “crack jamais”, os aspectos visuais guardam grandes semelhanças com os da
campanha gaúcha. O fundo é composto por este mesmo preto, por esta mesma
obscuridade que se dispersa na superfície do discurso preventivo sobre o crack. Detalhe
para a caveira fantasmagórica na extremidade direita, e para o usuário de crack a utilizar
um cachimbo improvisado em uma espécie de garrafa de vidro - esta sim, uma
referência pouco comum no Brasil, onde predominam as imagens de latas de cerveja ou
refrigerante.
No material elaborado pelo
Governo Federal sobre o tema “ál-
cool e direção”, em 2009, duas
mãos emergem das sombras, por
entre as grades de uma cela. As
grades da cela mostram que a
pessoa pode ser presa caso misture
álcool e direção; a outra possibili-
dade é a morte.
Há outra campanha de prevenção
do Governo Federal. No Natal de 2009,
apareceu uma mídia televisiva sobre
crack. Uma voz acompanhava um texto
na tela; dizia não ser aquela a melhor
época para se tocar naquele assunto.
Concluía afirmando que o crack “[...]
causa dependência e mata”. Mais uma
vez o fundo preto; um fundo ativo, que
invadia as cores das palavras.
Im. 07
Há também a peça de prevenção ao uso de crack elaborada pela Associação
Parceria Contra as Drogas (APCD), que se dedica a criação de peças preventivas sobre
drogas já há alguns anos. Interessa aqui a peça sobre crack, que alcançou sucesso à sua
época (agosto de 2007). “Muito prazer, meu nome é crack”, diz uma mulher de vestido
longo vermelho, maquiagem abundante. Mas, no momento em que começa a falar dos
efeitos, todo o glamour desaparece, e a mulher aparece suja, assustada, roupas rasgadas,
agachada em um canto. Novamente, as sombras.
Im. 08
5. ARTICULANDO ACHADOS ARQUEOLÓGICOS
5.1 Território vivido
As sombras estão presentes em todos os conjuntos analisados, constituindo
macabra moldura. Não se trata de moldura geometricamente calculada, um passepartout
que protege uma imagem, mas de uma margem difusa, nebulosa, que ameaça a imagem.
É destas sombras que os personagens emergem, é para lá que retornarão, assim que o
instantâneo nas imagens preventivas desapareça. Produz-se o efeito de captura de um
momento, antes e depois do qual tudo persiste.
As sombras produzem efeitos de regularidade. Em todos os cartazes, as cenas
ocorrem à noite. Uma inscrição de tempo, uma determinada temporalidade, permeando
todas as peças. É nesta fatia de tempo entre ocaso e alvorada que se situa o risco. Ali,
uma jovem vende seu corpo, um rapaz negro perde os amigos, um branco, a dignidade,
uma mãe apanha do próprio filho. Tudo por causa do crack.
À dimensão temporal da escuridão, soma-se a dimensão simbólica das sombras.
Diz-se sombrio daquilo que é triste, taciturno. É comum dizer que a coisa está preta
diante de dificuldades. Para além das metáforas, a escuridão designa ausência de luz. É
escuro o objeto de cor preta (ou cuja cor seja uma variação em suas nuances mais
próximas do preto), mas é obscuro o que não queda claro, que não é dito de modo claro.
Pode-se, portanto, opor claro e obscuro, para além da óbvia oposição entre claro e
escuro: enquanto a primeira fala das diferenças de cor ou de luz, a segunda fala das
diferenças de transparência, de visibilidade ou mesmo de compreensão. Penso também
em práticas, processos ou períodos que podem ser pensados a partir da noção de
obscurantismo. A Idade Média, por exemplo, é designada por muitos como a noite de
mil anos, principalmente por causa das lutas por meio das quais a Igreja Católica buscou
submeter toda uma multiplicidade de discursividades no período medieval. Além disto,
lembro também da metáfora noturna nas canções de protesto do período ditatorial
brasileiro, em que a noite era sempre associada aos militares no poder, ao passo que a
manhã era a metáfora para a democracia. Assim, vemos as sombras como adversárias
das luzes, naquilo que possuem de representativo do período iluminista, com sua
racionalidade característica, ou da manhã democrática, no caso brasileiro.
Há a noite, pedaço de tempo objetivo entre o fim da tarde e o início do
amanhecer, e há a noite como tempo simbólico, metafórico, que empresta à escuridão
traços de obscuridade; um tempo aonde as coisas não são claras, e carecem de certa
racionalidade (cartesiana?). Tempo de obscurantismo, portanto de perigo. Um tempo
durante o qual seria mais adequado proteger-se, esperando pelo tempo das luzes, pelo
alvorecer, pelo fim desta noite perigosa.
Neste ponto, observo uma segunda regularidade inscrita nas unidades
enunciativas analisadas. O espaço. Todas as cenas ocorrem na materialidade da
espacialidade urbana, em sua concretude, delineada na materialidade concreta do
discurso. É sempre na exterioridade do espaço público urbano que as cenas são
representadas: a mãe que teve seu rosto marcado pela violência do filho; os rapazes que
perdem amigos e dignidade; a jovem que troca seu corpo por crack: todos eles vivem
estas “sensações” na rua.
Que mais dizer desta rua. Primeiro, é preciso dizer que esta rua não designa a via
urbana pela qual transitam automóveis, e onde se situam casas e edifícios que podem ser
encontradas por meio de uma numeração que indica o endereço das pessoas que ali
moram ou convivem; esta rua designa o oposto a casa, na acepção estruturalista de
Roberto da Matta (1985), em “A casa e a rua”. Além do mais, não se trata do contrário
da “casa” apenas pelo fato das cenas não estarem ambientadas sob um teto e entre
paredes, mas por ocorrerem no espaço público. Por fim, não se trata de qualquer espaço
público, incluindo praças e outros logradouros, mas de ambientes caracteristicamente
urbanos. Trata-se, como já dito acima, da exterioridade do espaço público urbano.
Não é preciso reconhecer a paisagem que compõe as unidades enunciativas em
questão, ainda que isto seja fácil a qualquer portoalegrense1. Uma rápida espiadela nos
cenários onde ocorrem as cenas inscritas nos cartazes é o bastante para remeter qualquer
pessoa à ideia de espaços urbanos cor de cinza, sujos, degradados, típicos de certas
áreas centrais das grandes capitais brasileiras. Regiões de intenso trânsito diurno de
pedestres, que quedam quase abandonadas durante a noite.
Esta junção entre temporalidade e espacialidade me instiga a uma reflexão
sobre o conceito de território, conforme experimentada no âmbito da geografia, ou
mesmo na antropologia. Para além de uma mera região ou área, o território possui
dimensões que estão para muito além da mera concretude da terra, da espacialidade
terrestre. Discutir território implica reflexões éticas, estéticas, políticas, subjetivas,
culturais. Que o digam os trabalhadores sociais que realizam atividades extramuros,
junto das pessoas nos locais onde vivem e/ou convivem, como agentes comunitários de
saúde, redutores de danos2, policiais, acompanhantes terapêuticos...
Entre estas territorialidades espacial e temporal, existiria uma territorialidade
dos afetos? Uma territorialidade em que se afetam, ambas? O que vejo nas injunções
1 O lugar que pode ser visto nos cartazes da campanha é o Viaduto da Avenida Borges de Medeiros, no centro de Porto Alegre. Patrimônio da cidade, o viaduto é uma das primeiras grandes obras de urbanização da capital gaúcha. Suas largas escadarias, suas calçadas no nível inferior e sua estreita passarela superior, na Rua Duque de Caxias, abrigam intenso trânsito de pedestres durante o dia, e intensa movimentação de moradores de rua, à noite. 2 Os redutores de danos são trabalhadores ou voluntários que executam ações de educação em saúde diretamente nos locais em que se reúnem pessoas que usam drogas (e também dentro de serviços de saúde). Seu objetivo é problematizar a relação das pessoas com as drogas, mesmo que estas não consigam ou não queiram deixar o uso (DOMANICO, 2006; RIGONI, 2006; PETUCO, 2007).
entre espaço e tempo, quando observo as articulações entre a representação da noite e a
representação do espaço urbano nos cartazes desta campanha de prevenção? Neste
ponto, creio que as reflexões de Félix Guattari a respeito das noções de territorialidade,
desterritorialização e reterritorialização podem indicar caminhos:
O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual o sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais e mentais [grifo nosso]. (GUATTARRI & ROLNIK, 2007, p. 388)
Tempo e espaço. A noção de território está para muito além da frieza do espaço
e do tempo em suas materialidades concretas. Neste sentido, uma praça que se apresenta
como território de artesanato ao longo do dia, pode transformar-se em território de putas
e moradores de rua durante a noite. Quando falo de território, portanto, é a um
determinado lugar situado no tempo e no espaço que eu me refiro.
Esta junção entre um território temporal e um território espacial produz um
terceiro território, ao qual chamarei, juntamente com Lucenira Kessler (2004), de
território vivido. Neste território se está exposto a “sensações” distintas de quem vive a
noite dentro de uma casa, ou de quem vive a rua durante o dia. Há algo que só pode ser
vivido nesta junção, neste encontro, nesta justaposição entre a noite e a rua. Igualmente,
há o que se pode viver numa outra injunção, dada entre o “dia” e a “casa”.
Segundo a campanha, é neste território sombrio e obscuro que medra o crack. Os
cartazes dizem - naquilo que silenciam - que a rua só oferece segurança durante o dia, e
que a noite só deixa de ser perigosa dentro de casa. Há, pois, um território de proteção, e
um território de exposição. Eis o discurso preventivo inscrito, não nas entrelinhas, mas
na transversalidade dos enunciados.
5.2 As cinzas
Há mais. Captura minha atenção as pessoas e cenas impregnadas de cinza, como
se pessoas e lugares estivessem cobertos por fuligem. As separações entre sujeito e
paisagem estão borradas. É como se a territorialidade mencionada anteriormente
impregnasse às pessoas que ali permanecem, e como se estas pessoas, por sua vez,
impregnassem também o cenário. Há uma diluição de qualquer nexo de causalidade,
que faz com o território ao mesmo tempo contamine e seja contaminado, que faz com
que as pessoas ao mesmo tempo degradem e sejam degradadas. É como se as pessoas
fizessem parte desta paisagem, e como se a paisagem fizesse parte das pessoas,
cobrindo seus corpos com sua materialidade poeirenta e fuliginosa.
Para o uso de crack, utilizam-se cinzas de cigarro. Toma-se um pedaço de crack,
que é colocado sob um montinho de cinzas de cigarro, que por sua vez está sobre o
fornilho do “cachimbo” (seja este cachimbo uma lata amassada de alumínio, ou
qualquer outro instrumento de uso). Este “fornilho” assemelha-se ao fornilho de um
cachimbo tradicional, apenas pelo fato de que a substância a ser consumida é colocada
neste mesmo local. Mais ou menos como nas imagens abaixo, colhidas após uma rápida
busca na internet:
Im. 09 Im. 10 Im. 11
Diferentes tipos de cachimbos, elemento silenciado nas peças da campanha, ao
contrário das cinzas, onipresentes. Em todas as imagens dos cartazes da campanha
analisada, o mesmo gradiente de tonalidades cor de cinza. As cinzas, elemento sempre
presente no uso do crack, e também comum aos ambientes que compõem os cenários
desta campanha de prevenção. As cinzas que posso ver sobre a pele das pessoas nos
cartazes, numa espécie de fuligem grudenta e gordurosa, impregnando a todos os
personagens desta campanha. As cinzas, que tornam precárias as divisões entre
personagens e cenários da campanha.
5.3 Os ferimentos
Vejo ainda as marcas de ferimentos em todas as pessoas que aparecem nos
cartazes. São marcas nas mãos, no rosto, nos braços... São hematomas, são feridas
(cicatrizadas ou não). Há manchas de sangue, e há lábios rachados. Em todas as
imagens, posso ver as marcas da dor, da violência. Vejo marcas de agressões, e outras
que poderiam ser causadas por descuido, por quedas, por pequenos acidentes. Pela
fragilidade da pele em contato com a dureza da vida.
Que dizem estes ferimentos? Uma pessoa com muitos ferimentos passou por
uma situação complicada (um acidente, uma briga...), ou se envolve frequentemente em
atividades com algum nível de risco de pancadas ou escoriações (um skatista ou um
alpinista, por exemplo). Obviamente, não é da prática de esportes radicais que se fala
nestes cartazes. Neles vejo justamente este contato com um território perigoso, do qual
já falamos anteriormente. Mas penso em outra regularidade da qual ainda não falei.
Penso na concretude que se faz presente em todas as imagens desta campanha de
prevenção. É da aspereza do concreto e da pedra que se fala aqui. De matéria dura
constituem-se os cenários que ambientam os cartazes da campanha. Da aspereza da já
referida exterioridade do espaço púbico urbano. São feitos de escadarias a céu aberto,
de calçadas, de viadutos e passarelas de pedestres, os cenários destas peças. De dureza,
são feitos; não há grama, relva, areia ou barro. Nada de orgânico. A sujeira que cobre os
personagens da campanha não é feita de poeira ou barro, mas de fuligem e cinzas.
Ferimentos resultantes da fricção entre a delicadeza da pele humana e a aspereza
da pedra, do concreto. Mesmo recoberta (protegida?) pela fuligem, a pele humana segue
sendo frágil e vulnerável, e neste contato tão intenso – nesta quase amálgama entre
sujeito e ambiente – é impossível que não se machuque. O machucado, por seu turno,
amplia ainda mais a zona de contato dos sujeitos com o cenário, abrindo uma ponte de
contato entre a exterioridade do ambiente e a visceralidade do ser. Penso na Ode
Triunfal de Fernando Pessoa: corpo triturado pela ação maquínica, trespassado por
engrenagens, queimado e penetrado pelo fogo e pelo ferro. Corpo futurista,
entusiasmado com os anos de ouro do capitalismo europeu, embriagado da modernidade
em sua juventude. Corpo que anseia viver até mesmo a degradação, posto ser esta
também um dos símbolos de uma urbanidade nascente, da qual o poeta deseja
embebedar-se. À qual o poeta deseja fundir-se:
[...]
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
[...]
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
(Fernando Pessoa – Ode Triunfal)
Na campanha analisada, o sonho pessoano se transforma em pesadelo. O corpo é
atingido por distintas expressões da contemporaneidade: espacialidade urbana, uso de
drogas, solidão, violência. O corpo frágil, que se machuca no contato direto das carnes
com a concretude do território, expresso em sua materialidade espacial, incide no modo
como percebo a materialidade temporal deste território vivido. A dureza como oposição
não ao macio, ao mole, mas àquilo que é delicado. A noite como o território da
brutalidade, da dureza; como território do qual a delicadeza se ausentou.Viver este
território da noite e da rua – este território vivido -, implica expor-se à dureza e à
brutalidade. Implica em expor o corpo não apenas ao contato, mas à possibilidade de
fusão com este ambiente. Possibilidade esta manifesta com toda clareza se volto ao
ponto de que parti: a margem de escuridão que envolve todas as cenas, como as sombras
afastadas pelo efeito de um flash fotográfico. Como já dito antes: assim que a claridade
do flash desaparecer – assim que cessem os efeitos do “dispositivo luz” – as sombras
voltarão a cobrir toda a superfície da imagem. Tudo ali inscrito retornará à mesma
obscuridade de onde tudo emergiu. Das sombras, às sombras.
6. REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zigmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
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