entre espaÇos, uma novela: teletopias de uma #avenida...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social Rafael Fonseca Drumond ENTRE ESPAÇOS, UMA NOVELA: Teletopias de uma #avenida em trânsito Belo Horizonte 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

Rafael Fonseca Drumond

ENTRE ESPAÇOS, UMA NOVELA: Teletopias de uma #avenida em trânsito

Belo Horizonte

2014

Rafael Fonseca Drumond

ENTRE ESPAÇOS, UMA NOVELA: Teletopias de uma #avenida em trânsito

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação e Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação. Área de concentração: Midiatização e Processos de Interação. Orientador: Maria Ângela Mattos e Eduardo Antônio de Jesus. Bolsista CAPES (Coordenação de Pessoal de Aperfeiçoamento de Nível Superior).

Belo Horizonte

2014

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Drumond, Rafael Fonseca

D795e Entre espaços, uma novela: teletopias de uma #avenida em trânsito / Rafael

Fonseca Drumond. Belo Horizonte, 2013.

186f.: il.

Orientadora: Maria Ângela Mattos

Coorientador: Eduardo Antônio de Jesus

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social.

1. Telenovelas. 2. Carneiro, João Emanuel - Avenida Brasil (Telenovela) –

Crítica e interpretação. 3. Interação social. 4. Twitter (Rede social on-line). 5.

Subúrbios – Aspectos sociais. 6. Espaços públicos. I. Mattos, Maria Ângela. II.

Jesus, Eduardo Antônio de. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. IV. Título.

CDU: 654.197

3

Rafael Fonseca Drumond

ENTRE ESPAÇOS, UMA NOVELA:

Teletopias de uma #avenida em trânsito

Dissertação apresentada ao programa de

Pós-Graduação da Faculdade de

Comunicação e Artes da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais

como requisito parcial para obtenção do

título de Mestre em Comunicação.

__________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Ângela Mattos (Orientadora) – PUC Minas

__________________________________________________________

Prof. Dr. Eduardo Antônio de Jesus (Co-orientador) – PUC Minas

__________________________________________________________

Profa. Dra. Ângela Cristina Salgueiro Marques – UFMG

__________________________________________________________

Profa. Dra. Vanessa Cardozo Brandão – PUC Minas

Belo Horizonte, 25 de fevereiro de 2014

4

RESUMO

Nesta dissertação, exploro a teleficção brasileira a partir de sua dimensão espacial.

Para tanto, proponho um estudo de caso da telenovela “Avenida Brasil” (Rede Globo,

2012) a partir de dois eixos estruturantes: sua produção narrativa e as dinâmicas de

circulação/interação social a partir da trama. Diante dessa configuração, efetuo recortes

analíticos voltados a cada eixo discriminado: no que se refere à novela, destaco a

“montagem de mundos” sobre os espaços do subúrbio, bem como os modos de

representação de uma possível identidade de classe (a “nova classe média”); já em vista

dos processos de circulação social, reflito sobre as dinâmicas de interação descortinadas

pelas mídias digitais, com foco nos espaços de conversação gerados pelo Twitter. No

decorrer desse percurso, proponho o conceito de “teletopia” como forma de dar a ver a

relação mútuo-reativa que aproxima os mundos organizados pela ficção aos espaços do

cotidiano, o que, por sua vez, sustenta o fundamento sociológico que atravessa as

telenovelas brasileiras.

Palavras-chave: Telenovela; Espaço; Teletopia; Interação; Subúrbio; Twitter.

5

ABSTRACT

This dissertation explores the brazilian telefiction from its spatial dimension. In

this regard, I propose a case study of the soap opera "Avenida Brasil" (Rede Globo, 2012)

from two structural axes: its narrative production and the dynamics of circulation/social

interactions from the plot. Given this setup, I make analytical approaches that address

each of those axes: regarding the soap opera, I highlight the "montage of worlds" on

spaces of the suburbs, as well as the modes of representation of a possible class identity

(the "new middle class"); and referring to the processes of social circulation, I reflect on

the dynamics of interaction unveiled by digital media, focusing on conversational spaces

generated by Twitter. Along this journey, I propose the concept of "teletopia" as a way to

see the mutual-reactive relationship that approximates the worlds organized by the fiction

to spaces of everyday life, which, in turn, sustains the sociological foundation that crosses

brazilian’s soap operas.

Keywords: Soap Opera; space; Teletopia; Interaction; Suburb; Twitter.

6

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÂO..................................................................................................... 8

1.1 Sobre as “Teletopias” ........................................................................................ 8

1.2 Sobre “Avenida Brasil” ..................................................................................... 10

1.3 Sobre os Novos Trânsitos .................................................................................. 12

2 NOTAS METODOLÓGICAS ............................................................................. 18

3 TELETOPIAS ....................................................................................................... 23

3.1 Alguns Norteadores ............................................................................................ 23

3.2 O que Entendo por “Teletopia” ........................................................................ 24

3.2.1 A Origem do Conceito ...................................................................................... 27

3.3 O Espaço no (Com)Texto das Teletopias ......................................................... 31

3.4 O Gênero como Fundamento da Experiência Teletópica ............................... 36

3.4.1 Além dos Espaços Diegéticos: Contribuições de Mikhail Bakhtin ................. 36

3.4.2 Um Espaço de Multimediações: Contribuições de Jésus Martín-Barbero ..... 40

3.4.3 Crise dos Gêneros? ............................................................................................ 45

3.5 Matrizes Sociais e Ficcionais do Espaço............................................................. 47

3.5.1 Espaços em Movimento .................................................................................... 47

3.5.2 Teleficção em Trânsito ..................................................................................... 52

3.5.3 A Crescente Midiatização da Teletopias ........................................................... 57

4 PERCORRENDO “AVENIDA BRASIL” ........................................................... 63

4.1 Pré-lançamento .................................................................................................... 64

4.2 Estreia ................................................................................................................... 71

4.3 Clímax ................................................................................................................... 84

4.4 Desfecho ................................................................................................................. 96

5 ESPAÇOS DE UMA NARRATIVA TELEVISIVA ............................................ 108

5.1 Uma “Avenida” de Entre Lugares ..................................................................... 110

5.2 O Espaço do Subúrbio ......................................................................................... 117

7

5.3 Um Novo Espaço para uma Nova Classe ........................................................... 121

5.3.1 A Periferia como Recurso Mediativo ................................................................ 128

5.3.2 A Paródia da Periferia ....................................................................................... 131

5.4 O Lixão de Mãe Lucinda: à Margem da Margem ............................................ 136

5.5 Uma Novela entre Espaços .................................................................................. 141

6 ESPAÇOS DE CIRCULAÇÂO FICCIONAL ..................................................... 145

6.1 Ficção em Doses de Cotidiano ............................................................................ 146

6.2 TV + web = novos circuitos de interação ........................................................... 148

6.3 O Twitter como Dispositivo Interacional: “Papo de Audiência” ..................... 154

6.4 Discursividades online: interações em 140 caracteres ...................................... 163

CONCLUSÂO ............................................................................................................ 174

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 180

CRÉDITOS “AVENIDA BRASIL” ......................................................................... 185

8

#OIOIOI1 INTRODUÇÂO

1.1 Sobre as “Teletopias”

Refletindo sobre qual seria o título mais adequado a este trabalho, cheguei à

composição “Entre espaços, uma novela”, mas não sem antes cogitar o seu inverso: uma

novela entre espaços. Apesar do preterimento, esta última opção contava com a vantagem

de se apresentar como uma construção livre, dessas que percorrem o papel sem saltar

vírgulas, travessões, parênteses. Contudo, o título ligeiro não dava a ver aquilo que, de

fato, estava sendo colocado por esta dissertação, no caso, um sentido de trânsito cujo

movimento foi ironicamente introduzido através da pausa de uma vírgula. Explico: ao

meu ouvir, a opção descartada sugeria uma novela tensionada entre diferentes espaços,

ou ainda, uma ficção que, justamente por estar em uma posição de “entre”, encontrava-se

em uma perene condição de passagem. Em outra medida, o título escolhido parece dizer

de uma novela que, no vácuo de uma pontuação, percorre e interliga diferentes

espacialidades, sendo, em todas elas, novela.

Considerando essa segunda leitura, proponho percorrer alguns espaços que

atravessaram e foram atravessados pela telenovela “Avenida Brasil”1 (Rede Globo,

2012). Tendo em vista a expressividade do folhetim – um dos maiores fenômenos da

mídia nacional nos anos recentes –, volto minha reflexão para aspectos marcantes da

narrativa e de sua reverberação, em busca por dinâmicas que evidenciem a complexidade

dos processos comunicativos contemporâneos, sobretudo diante de um contexto no qual

a convergência midiática vem rearticulando nossos modos de produção simbólica e de

experimentação espacial.

A partir desse preâmbulo, exponho os eixos fundantes do objeto desta pesquisa: o

espaço de narrativização da novela, correspondente à trama televisiva exibida pela Rede

Globo de Televisão e seus espaços de circulação, recortados a partir de interações entre

1 Novela escrita por João Emanuel Carneiro, direção de núcleo de Ricardo Waddington, direção geral de

Amora Mautner e José Luiz Villamarim (créditos no final da dissertação). Ficha completa disponível em:

<http://gshow.globo.com/novelas/avenida-brasil/creditos.html>.

9

internautas nas redes digitais, mais especificamente sobre o Twitter2. Essa divisão, por

sua vez, relaciona-se a uma abordagem que visa acercar-se de diferentes espacialidades

que integram nossos processos comunicativos, permitindo, assim, uma leitura com

trânsito entre as texturas midiáticas massivas (espaço televisivo) e as configurações de

uma sociedade em rede (espaço digital).

Por outro lado, importante dizer que a experiência que busco circundar não se

assenta, de forma apartada, sobre tais esferas (produção/circulação), relacionando-se,

ainda e fundamentalmente, aos modos de entrelaçamento que convertem esses e outros

espaços discursivos em espacialidades do cotidiano – processo aqui nomeado de

“teletopia”. Nesse caso, a mesma vírgula que separa os termos do meu título, justamente

para fazê-los convergir, atua sobre esse modo bipartido de operacionalizar o objeto;

afinal, os dois eixos analisados dão a ver uma só dinâmica, ainda que moduláveis de

acordo com a especificidade de cada espaço colocado em relevo.

Trata-se, assim, de uma forma de atravessamento espacial que se coloca contra as

dicotomias, particularmente aquelas que desvinculam agentes, apartam processos e

unilateralizam juízos. Nessa direção, as teletopias rogam pelo reconhecimento de um

espaço que seja não somente visível e socialmente concreto, mas também constituído por

certa imaterialidade, localizado que está em um entre que só pode se converter em textos

e contextos, ainda que, em sua origem simbólica, não pertença originalmente nem a um,

nem a outro. Esse espaço de mediações, pela perspectiva à qual me filio, recebe o nome

de gênero – um modo de produzir sentidos que converte os circuitos de circulação em

novelas do cotidiano, assim como, na direção contrária, transforma a “dramaturgia social”

em ficção televisiva.

Dentro dessa prerrogativa, parece-me importante reconhecer que nossa vivência

espacial não se resume às modulações físicas dos espaços em que habitamos; ao contrário,

o espaço é o resultado dinâmico de uma série de fluxos que estão, a todo tempo,

rearticulando suas disposições, seus modos de agência e sua própria mutabilidade. Nas

2 “O Twitter é uma ferramenta para a publicação de micromensagens na qual, originalmente, os usuários

são convidados a responder à pergunta ‘O que você está fazendo?’ em até 140 caracteres. Ali, é possível

construir uma página e ‘seguir’ e ser ‘seguido’ por outros ‘twitters’. Cada Twitter seguido tem suas

mensagens publicadas (também chamadas de ‘tweets’) para os seguidores. É possível também optar por

seguir outros usuários e acompanhar aquilo que publicam. As mensagens que utilizam uma “@” seguida

do nome de um usuário viram links e podem ser rastreadas pelo usuário citado, aparecendo para ele em uma

aba ‘Respostas’ ou ‘Replies’.” (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011). Acrescento, ainda, que o

Twitter é frequentemente identificado como um “microblog”, e que, apesar de certa controvérsia em relação

à propriedade da nomenclatura (a plataforma não é um blog), opto por manejá-la em vista de sua

usabilidade.

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teletopias, esse trânsito espacial advém de um modo sutil de gerar sentidos a partir de um

conjunto de interações entre sociedade e sujeitos. Esse modo de presença da teleficção,

apesar de facilmente revertido em materialidades cotidianas (uma música, um bordão, um

nome, uma roupa...), possui antes uma natureza simbólica, estética e afetiva: ele nos faz

lembrar que o espaço, mesmo quando impositivo, nunca é dado; assim como a ficção,

antes de ser espelho ou reflexo do real, é um projeto “entre mundos”, um modo de

prescrever ou encerrar horizontes e, sempre, uma forma de conferir “espaços ao olhar”.

Nesse contexto, minha proposta acerca das teletopias justifica-se como uma

estratégia de angulação do gênero, uma maneira de abordá-lo a partir de um certo

referencial, para, assim, solicitar novos aportes para pensar “Avenida Brasil”. O “espaço”,

mais que um objeto propriamente teórico ou empírico, constituiu uma dimensão a partir

da qual pude cartografar um fenômeno prenhe de urgências. Nessa medida, acredito que

a reflexão espacial tenha me permitido entrelaçar uma série de objetivos e/ou questões

que me interessam destacar nesta dissertação, entre os quais enumero: (1) propor uma

forma de abordar a narrativa televisiva de “Avenida Brasil” a partir de suas singularidades

(espaços de encenação, modos de construção narrativa – fílmica e dramatúrgica –,

enquadramentos sociais); (2) sublinhar a característica mediativa que define as teletopias,

em vista dos hibridismos que situam o gênero como dialética entre temporalidades sociais

e subjetivas, bem como entre modos de enunciação; (3) trabalhar aspectos fundantes da

atual cultura de mídias do país, na qual multiplataformas – logo, múltiplas espacialidades

– são dinamizadas por diferentes práticas de produção recepcional; (4) apontar a expansão

dos espaços de circulação e interação teleficcional, bem como refletir sobre a qualidade

dos regimes de interação verificados nesses extensionamentos.

1.2 Sobre “Avenida Brasil”

“Avenida Brasil” não poderia ter sido batizada com melhor título. Afinal, o

folhetim, enquanto teletopia, caracterizou-se por trânsitos intensos entre diferentes

lugares narrativos e sociais. Em seus percursos fabulativos e de circulação junto às

audiências, a novela mostrou e deu a ver uma avenida de mão dupla, uma via de idas e

vindas através da qual um país (aparentemente) “conecta” o seu eixo norte-sul. Nessa

“Avenida” de novas periferias e velhos centros, o “popular” emergente encontrou o

11

“popular” de todos os tempos, resultando em uma narrativa do presente com sabor de

estória conhecida.

Talvez tenha sido esta, a propósito, a maior virtude da novela: promover espaços

de trânsito responsáveis não somente em apresentar uma mudança de época, mas, ainda,

em amalgamar, narrativamente, uma diversidade de tempos. A partir de uma colagem

entre diferentes referências e variadas estratégias de enunciação, o espaço televisual da

novela multiplicou sua oferta de lugares, isto é, aqueles pedaços confortantes de espaço-

ficção onde um sujeito encontra suas referências, não necessariamente no sentido de uma

autorepresentação (direta ou contrafractual), mas em função daquilo que é identificado

como repertório e que se afina a um juízo de gosto e/ou moral. Essa “cultura da colagem”

dá a ver uma superposição de diferentes temporalidades, sendo ainda, uma “manifestação

muito visível das interações, adaptações e fusões que diversos setores sociais fazem do

novo, do velho, do imprevisível”. (OROZCO, 2006, p.86). Diante de outros trânsitos

midiáticos da contemporaneidade – através dos quais uma audiência está sempre à deriva

da outra e o consumo simbólico reveste-se de valores distintivos –, uma trama como

“Avenida” reafirma o espaço da telenovela enquanto “narrativa da nação” (LOPES,

2007), suspendendo, ainda que temporariamente, os nomadismos de uma audiência

dispersa. Nesse sentido, a novela de João Emanuel Carneiro, ao justapor diferentes

elementos em uma só narrativa, ensejou modalidades interativas que ultrapassaram a

relação espectador-novela, adquirindo um sentido interacional entre sujeitos (internautas

ou não), que, a partir da novela, moviam discursividades sobre toda espécie de tema.

Ainda no que se refere aos trânsitos, é significativo perceber que foram justamente

as novas condições de produção e de interação que possibilitaram a ancoragem de

“Avenida Brasil” sobre o campo das práticas anguladas historicamente pelo gênero. Do

ponto de vista da narrativa, destaco que o folhetim tematizou aspectos típicos ao

melodrama televisivo, como a vingança, a conflituosidade das relações familiares e a

alternância entre núcleos cômicos e dramáticos. Contudo, no que tange à produção, a

novela dialogou com outros lugares fabulativos, gerando intertextualidades oriundas do

cinema, dos seriados estrangeiros, da literatura e do teatro. Desse processo, “Avenida”

conjugou, em uma só espacialidade narrativa, fluxos advindos do tempo do melodrama

(as vicissitudes construídas ao longo de muitos capítulos) e o dinamismo do mercado

global das ficções, marcado, entre outros fatores, por tramas movimentadas, reviravoltas

narrativas e uma edição rápida e eletrizante.

12

Além disso, pela perspectiva do meu segundo eixo de análise (campo de

circulação/interação social), a audiência encontrou novas modalidades de assistir

“Avenida Brasil” e de interagir a partir da trama, o que lhe permitiu revestir um “velho”

hábito com diferentes tonificações. Ainda que “Avenida” não tenha sido pioneira no

trânsito “TV e web”, por outro lado, a novela foi o primeiro folhetim “coqueluche” das

redes sociais – como coloca o crítico e blogueiro Nilson Xavier –, sendo os fluxos online,

em grande parte, responsáveis por agenciar o sucesso da trama, até mesmo diante

daqueles que não possuem hábitos de navegação digital. Nas redes dessa natureza, o que

vimos foi um conjunto de novas interacionalidades entre a audiência, caracterizadas por

uma criativa produção recepcional e, sobretudo, por redes de socialização e conversação

a partir do folhetim.

Em vista desses trânsitos, “Avenida Brasil” construiu uma trama ágil,

multifacetada, que envolvia sua audiência à moda de Sherazade – a mãe das narrativas

seriadas, cuja sedução através das palavras lhe rendeu a vida. No caso do folhetim de João

Emanuel Carneiro, as técnicas de enredamento narrativo valeram-se não apenas do bom

enredo construído por seu universo ficcional, mas, ainda, da promoção de uma cultura de

engajamento da audiência em relação ao folhetim. A combinação entre esses elementos

respondem pela elevação da novela ao patamar de “marco da teledramaturgia brasileira”.

(LOPES; MUNGIOLI, 2013). Por esses e outros fatores que serão explorados no conjunto

dessa reflexão, “Avenida Brasil” firmou-se como uma teletopia digna de análise,

sobretudo em vista do seu modo particular de trafegar e tensionar as texturas midiáticas

de um Brasil contemporâneo, um país cujas as minorias, as elites e as coletividades,

articulam-se, cada vez mais, em redes.

1.3 Sobre os Novos Trânsitos

Se as mídias integram a “textura geral da experiência” (SILVERSTONE, 2002),

na contemporaneidade, essa presença vem se recrudescendo a cada dia, sobretudo diante

das recentes rearticulações introduzidas pela cultura digital. Em vista desse contexto de

intensa midiatização, as teletopias no Brasil estão sendo reconfiguradas, particularmente

no que se refere às novas passagens, ou brechas, que interligam os espaços narrativos das

novelas às espacialidades concretas do cotidiano. Por conseguinte, na última década, a

experiência teleficcional modificou-se velozmente, segundo fatores que estão

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reestruturando a estética da circulação comunicacional em sua acepção mais ampla –

espaço carregado de sentidos sociais.

No intuito de localizar esses reordenamentos em relação ao contexto das

teletopias, estabeleço um panorama dividido em sete frentes que, confluídas, ilustram as

complexidades midiáticas da contemporaneidade, particularmente no que se refere ao

mercado teleficcional. São elas:

(1) O aumento da oferta de ficção televisiva, em vista de fatores como: o acesso

online a produções de todo mundo, tanto atuais quanto de outras épocas; a

expansão dos canais a cabo e do número de antenas receptoras, de forma

legalizada3 ou clandestina; o surgimento de produtoras de conteúdo

exclusivamente para a web e os novos circuitos de difusão de ficções

independentes. Diante desses e outros fatores, o consumo teleficcional tem se

tornado cada vez mais dinâmico e multifacetado, sendo, assim, caracterizado por

condições de fácil acessibilidade (a um click) e pronta disponibilidade (em

qualquer tempo). Em outra medida, o crescimento dessa oferta e, sobretudo, sua

transnacionalização, implica em diferentes intertextualidades ao jogo ficcional

das narrativas televisivas, o que concorre para a diversificação dialógica dos

formatos, uma vez que diferentes estéticas são incorporadas ao imaginário dos

agentes midiáticos em questão. Pontuo, ainda, que a abertura a esse mercado

simbólico vem trazendo novas textualidades à dramaturgia do melodrama, e

mediando, de forma intensa, as relações entre a dimensão histórico-nacionalista

da telenovela e os processos de globalização das imagens-mundo.

(2) Novas tecnologias e novos modos de produção. Nas novelas atuais, câmeras

potentes criam efeitos surpreendentes, além de gerar texturas inusitadas a uma

imagem que, no âmbito televisivo, passa por um processo de reinvenção. Nesse

contexto, as possibilidades de edição, inclusive sonora, são mais acionadas

enquanto recurso de construção da linguagem televisiva: os longos planos-

sequência, de câmera parada e diálogo “bate-e-volta”, cedem espaço a uma

filmagem interagente e criativa. Além dessas realterações de caráter televisual,

3 Segundo a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicação), em junho/2013, quase 17 milhões de

brasileiros tinham registro de TV por assinatura domiciliar. Disponível em:

<http://oglobo.globo.com/tecnologia/anatel-em-abril-numero-de-lares-com-tv-por-assinatura-sobe-095-

8599003>.

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destacam-se, ainda, os deslocamentos ocorridos no âmbito da audiência, tanto

pelo surgimento de novos mecanismos de interação e socialização a partir da

teleficção, quanto pela introdução de novas agências simbólicas – a produção e a

circulação dos conteúdos gerados por receptores em meio às plataformas digitais.

(3) Crossmidiação e transmidiação da ficção televisiva. “Crossmidiação” e

“transmidiação” são termos próximos utilizados para referenciar o movimento

centrífugo das narrativas midiáticas em direção a multiplataformas. A diferença

entre eles, sumariamente, reside no fato de que a crossmidiação é uma migração

semântica que não envolve uma extensão narrativa, constituindo-se, portanto, na

tradução de um mesmo universo ficcional para diferentes suportes. Já o conceito

de “transmidiação” remonta à obra de Henry Jenkins, “Cultura da convergência”

(2009), na qual o autor propõe que as narrativas transmídias caracterizam-se pela

filiação a uma narrativa-mãe, a relativa autonomia da parte frente ao todo

ficcional, e, ainda, por uma originalidade responsável pelo extensionamento da

obra de referência. Sobre esses termos paira certa discussão teórico-conceitual4,

sendo que, independente das formas de nomear o fenômeno, o que me parece mais

profícuo é apontar o espraiamento das obras de ficção televisiva por múltiplas

plataformas, tanto de forma oficial e controlada, administrada pelas emissoras,

quanto de maneira difusa e espontânea, através da atividade criativa de fãs e/ou

internautas que selecionam e editam textos, imagens e vídeos a fim de colocá-los

em circulação na web.

(4) Novas tecnologias de veiculação, representadas, por exemplo, pela digitalização

do sinal de transmissão (a partir de 2007/2008), e pela sofisticação da aparelhagem

televisiva, que se tornaram não só mais funcionais, como também mais acessíveis.

Além disso, a disponibilização dos capítulos online vem gerando uma recepção

em trânsito dotada de mobilidade espaço-temporal, o que estende as narrativas

teleficcionais para além dos domínios televisivos, implicando em uma

reestruturação nos modos de agenciamento do palimpsesto5. Ressalvo, assim, a

4 A Rede Obitel Brasil (Observatório Ibero-americano da Ficção Televisa) tem se dedicado a explorar as

possibilidades teórico-conceituais do termo “transmidiação”, além de mapear possíveis experiências

transmídias sobre o campo da teleficção nacional. Nesse contexto de pesquisa, destacam-se uma variedade

de propostas cross/transmidiáticas: a partir do site da novela, das redes sociais, de blogs, das lojas virtuais,

entre outros. Além disso, os pesquisadores envolvidos no projeto identificam, em cada estratégia, um tipo

de interação (visualização, interação na rede, co-presença...), assim como diferentes níveis de interatividade

(passiva, ativa, ativa/criativa) e variados tipos de competências acionadas (interpretação, consumo,

ludicidade, compartilhamento, discussão...).

15

proliferação em múltiplas telas dos conteúdos teleficcionais e a promoção de

diferentes formas de ver novela: da TV propriamente dita até o computador

pessoal, passando pelos espaços já conquistados nos veículos impressos e pelos

novos suportes de difusão midiática, como os dispositivos portáteis.

(5) Diferentes regimes de conversação informal, inaugurados, particularmente, pelas

tecnologias destacadas nos itens anteriores. Nesse sentido, destaco a

intensificação da recepção em rede articulada em torno de um conjunto de

usuários (internautas), que, de diferentes pontos territoriais, passam a gerir e

ocupar um mesmo espaço de interações sobre a novela. A geração desse espaço

dá a ver um território midiático que amplia os lugares mediativos do gênero,

estendendo as tradicionais redes da família, dos amigos, do bairro e do trabalho

para outras engenharias interativas: nesse novo modelo, a relação com o outro

receptor ultrapassa as relações físicas de proximidade, o que sugere a introdução

de novas mediações e a diversificação das competências de apropriação

teleficcional. Nessa direção, as teletopias sofrem alterações profundas em suas

dinâmicas recepcionais, uma vez que, fundidas à trama das tecnicidades

operantes, surgem ritualidades que agenciam modos inéditos de estar junto e de

estar em relação aos conteúdos televisivos. Na esteira desse processo, as

sociabilidades também são deslocadas, abarcando não somente as relações

domésticas de cotidianidade, mas também os laços sociais mediados pelas formas

eletrônicas e digitais de visibilidade estendida.

(6) Acirramento da competitividade no mercado interno, isto é, disputa por público

entre as empresas nacionais que atuam em redes abertas. Nesse âmbito, destaco

os investimos recentes da Rede Record de Televisão na produção de telenovelas.

Essa crescente profissionalização, apesar de não abalar a liderança da Rede Globo,

trouxe novas configurações ao mercado teleficcional brasileiro, tanto em relação

à conquista da audiência, quanto à geração de outros mapas profissionais ao setor

(quadro de atores, escritores, diretores, técnicos).

(7) Renovação profissional. A última década da televisão brasileira foi marcada pela

emergência de novas figuras ficcionais e de modos diversos de operacionalizar a

5 O termo “palimpsesto” faz referência aos pergaminhos ou papiros nos quais um texto é apagado para

permitir novas escrituras. No contexto da novela, o uso do termo evidencia um dispositivo de memória que

aponta para o jogo ficcional entre sucessivas dramaturgias, uma após a outra, sempre nos mesmos horários

programados pela emissora.

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linguagem televisiva. Especulo que esse processo de renovação das estratégias de

comunicabilidade da telenovela deva-se, entre outros fatores conjunturais, à

contratação de profissionais filiados a gerações mais recentes, tendo em vista a

mobilização de energias e repertórios que estão redinamizando os modos de fazer

TV no Brasil. A própria audiência nacional, nos últimos anos, tem afirmado sua

preferência por narrativas que tragam certa inventividade, tendo em vista o

preterimento de autores e fórmulas que, em outros tempos, mobilizavam grandes

audiências. Esse processo, a meu ver, elucida parte do sucesso de João Emmanuel

Carneiro – um novelista até pouco tempo desconhecido que se tornou tão popular

quanto sua trama.

A partir desse panorama de fundo, contextualizo minha reflexão acerca de

“Avenida Brasil” enquanto teletópos nacional, assim como seu modo de estruturação no

presente trabalho. Minha problematização de base orbita em torno de aspectos emergentes

da relação telenovela e espaço, tendo vista os dois eixos já colocados nesta introdução: o

espaço narrativo da trama e o espaço de circulação nas redes digitais, especificamente o

Twitter. Para tanto, apresento, na sequência, notas metodológicas com relação aos

percursos desta pesquisa, evidenciando, particularmente, algumas especificidades da

cartografia online. No capítulo seguinte, combino diferentes perspectivas teóricas em

torno do conceito de “teletopia”, exercício através do qual reporto ao conceito de

heterotopia desde a origem do termo – inspiração em Michel Foucault –, bem como

referências extraídas das perspectivas de Mikhail Bakhtin, Jésus Martín-Barbero, Milton

Santos e José Luiz Braga, entre outros. No quarto capítulo, apresento “Avenida” a partir

de sua composição narrativa e circulatória, no caso, orientado por um compilado de

informações sobre a novela, responsáveis não só em situar a trama de João Emanuel

Carneiro, mas também de oferecer subsídios para as análises tecidas em torno dessa

telenovela. Os textos analíticos, por sua vez, encontram-se divididos em dois capítulos,

um relativo à cada eixo de problematização: o capítulo 5 refere-se a uma leitura narrativa

de “Avenida”, com ênfase sobre a guinada espacial em direção ao subúrbio do “Divino”

e suas derivações sociomidiáticas; por fim, no capítulo 6, traço uma análise dos espaços

de circulação da novela, com foco nas redes sociais digitais, especificamente o Twitter.

Acredito que, tal como a novela que me serve de empiria, esta dissertação percorre

diferentes lugares de pertencimento, tendo em vista trânsitos teórico-conceituais e uma

colagem de referências que circulam entre o midiático e o acadêmico. Espero, assim, não

17

apenas gerar um modo de ler e refletir sobre “Avenida Brasil”, mas também oferecer uma

contribuição para que novos espaços sejam entrevistos aos estudos críticos de televisão.

À título de “conclusão inicial”, diria que, uma vez “solto pelo espaço”, pude percorrer as

longitudes de um objeto complexo: uma tentativa de espalhar vírgulas sobre o vento das

sociabilidades contemporâneas, sem me deixar de ater ao asfalto que, da cidade à ficção,

aparta o norte do sul.

18

#OIOIOI2 NOTAS METODOLÓGICAS

Durante a exibição de “Avenida Brasil”, dividi minhas atenções entre a televisão

e o computador, certo de que, em ambos as telas, verificava práticas bastante interessantes

de experimentação teleficcional. Enquanto na TV acompanhava a proposta diferenciada

da equipe de produção da novela, no ambiente digital – mais especificamente, nas redes

sociais – dava-me conta da potência criativa dos internautas, que, a partir do universo de

“Avenida”, engendravam formas diversificadas de interação e sociabilidade.

Em vista desses macro recortes (televisão e web), adotei estratégias de observação

orientadas a cada espacialidade. Quanto à narrativa televisiva, passei a acompanhar

diariamente o folhetim, o que ocasionou minha inserção junto ao universo fabular de

“Avenida Brasil”. Por intermédio desse procedimento, coloquei-me a par da textualidade

da novela (cerca de 160 horas de conteúdo), para, daí, antecipar questões, testar hipóteses

e avaliar possíveis direcionamentos às análises que viria tecer. Já o âmbito da circulação,

a meu ver, trouxe maiores complexidades quanto à escolha do objeto, motivando, em

parte, a escritura deste capítulo. Assim, no intento de clarificar esse e outros recortes,

reporto algumas particularidades que atravessaram meu percurso reflexivo, sobretudo, no

que se refere às estratégias de observação e análise dessas interações online.

Importante dizer, então, que minha primeira estratégia de pesquisa na web

envolveu a tradicional técnica de “ir a campo”: no caso, empreendi incursões regulares

aos espaços online, acionando como “norte navegador” todo e qualquer discurso que

remetesse à novela. Executei, assim, uma netnografia sobre alguns dos espaços de

circulação digital percorridos por “Avenida”, colocando-me, portanto, em uma situação

de imersão através da qual buscava sondar as conexões e interações que dinamizavam

esses ambientes comunicacionais. Nessa etapa, minha observação era difusa, uma vez

que, tal como os conteúdos gerados por usuários, ela circulava entre multiplataformas,

principalmente o Facebook, Twitter, YouTube, sites de notícia e blogs. Em certo sentido,

essa netnogrofia multiespacial persistiu até o final do trabalho sobre a web, ainda que,

durante a exibição do folhetim, tenha-me focado no Twitter como espaço de

acompanhamentos mais regulares. Algumas observações inerentes a essas incursões

19

digitais (relatos de campo) encontram-se dispostas na construção do objeto empírico desta

pesquisa, por sua vez, apresentado em detalhes no capítulo 4.6

Considerando as interações mediadas por cada um desses espaços digitais, efetuei

recortes que atenderam a seguinte escala de restrição: (1) opção por analisar uma rede

social, tendo em vista as relações de sociabilidade alimentadas por e nessas plataformas;

(2) escolha do Twitter, em desfavor do Facebook, como espacialidade digital analisada,

ainda que ambas sejam igualmente expressivas no que se refere às formas de reverberação

teledramatúrgica. Nesse caso, minha decisão justifica-se por diferenças entre as

modalidades de conversação verificadas em cada plataforma e os seus modos de trânsito

entre as esferas do “público” e do “privado”7; (3) concentração, no escopo do Twitter,

sobre as interações em torno das hashtags8 da novela.

Exponho, ainda, que o microblog oferece uma ambiência mais propícia à

consecução de regimes conversacionais diretos, sobretudo em função da geração de um

espaço de interação entre a audiência durante a exibição da novela: no caso, através das

hashtags (#oioioi, por exemplo), um usuário pode acessar outras postagens identificadas

pela tarjeta, sem necessariamente “seguir” os internautas envolvidos na dinâmica. Nesses

espaços de interação, a utilização de uma mesma hashtag cria um território

6 Esta é a segunda pesquisa na qual faço uso de metodologia etnográfica, sendo que a anterior – iniciação

científica – caracterizava-se pelo trabalho de campo junto a contextos domésticos de recepção. Nesse

sentido, registro, a partir da comparação entre as duas abordagens, alguns benefícios e limitações do método

aqui adotado: (1) o trabalho netnográfico não envolve deslocamentos físicos por parte do pesquisador, o

que evita desconfortos e perigos oriundos do “mundo da rua”; (2) por outro lado, enquanto a etnografia traz

os sujeitos interagentes, em corpo, para o espaço da interação, no campo da web, o pesquisador lida com

processos mediados por avatares, discursos, materiais midiáticos... Contudo, friso que ambas as situações

são igualmente indiciadoras de processos subjetivos e sociais de interação midiática, ainda que de formas

distintas. (3) Cada espaço requer suas técnicas de sondagem, sendo que, na web, o anonimato é uma

ferramenta que traz ubiquidade e invisibilidade ao pesquisador, que pode se colocar de “fora” dos

fenômenos interativos, sem romper com suas processualidades cotidianas (ao contrário da etnografia

doméstica, que lida não só com relação sujeitos-mídia, mas também com os modos de vinculação entre

pesquisador-pesquisado).

7 O Facebook sugere uma articulação em torno de redes de contato e de amizade, o que, de alguma forma,

envolve laços de sociabilidade atravessados por certo nível de proximidade entre os interagentes (no sentido

dos usuários possuírem relações para além da rede social). Essa dinâmica “privada” sobre a rede “pública”

pode ser percebida a partir de fatores, como: o nome da plataforma propõe que a imagem dos interagentes

seja o seu rosto, isto é, que se traga o “sujeito”, através de imagens faciais, ao contexto da interação; o ato

de se tornar “amigo” de alguém indica algum nível de solidariedade (em geral, são pessoas que o usuário

conhece a partir de relações extra ou mesmo intraweb). Já no Twitter, além da impessoalidade do “seguir”

e “ser seguido” não solicitar qualquer vínculo mais estreito entre os internautas, a lógica da comunicação

rápida imprime um fluxo de informações que transita, com mais porosidade, entre as dimensões do público

e do privado. 8Hashtags são palavras-chave antecedidas pelo símbolo "#" que designam o assunto que está se discutindo

em tempo real no Twitter. No contexto dessa pesquisa, as hashtags funcionam como chaves de acesso a um

determinado espaço/lugar informativo e interacional, acionado pelos usuários de acordo com seus

interesses.

20

comunicacional onde usuários de todas as partes do mundo compartilham opiniões e

replicam conteúdos (fotos, montagens, vídeos, links). Conforma-se, assim, uma espécie

de “espaço público” no Twitter no qual os telespectadores “conversam” sobre a novela

que estão assistindo na televisão. Outros fatores justificam ainda a recorrência de regimes

de conversação sobre o microblog: sua microdiscursividade (posts de poucos caracteres)

traz rapidez e “oralidade” à plataforma, e ainda, os tweets podem ser comentados

(conversa direta entre usuários) ou “retweetados”, o que amplia a visibilidade de um

discurso e/ou espaço de conversação para um número maior de usuários.

Também destaco que a escolha do Twitter relaciona-se à centralidade ocupada

pelo “espaço” no que se refere à proposta de interação do microblog. Nele, o ato de se

vincular a outro interagente, recebe nomenclaturas espaciais (“seguir” e “ser seguido”),

sendo que, desse processo de “linkagem”, define-se quais serão os espaços de navegação

do usuário, isto é, suas possibilidades de trânsito entre discursos e informações. Ou seja:

seguir ou não um usuário pelos espaços do Twitter não implica, necessariamente, em

vínculos interpessoais estreitos; por outro lado, especulo, o gesto de seguir outros usuários

nesta rede social tende a conformar circuitos interativos em torno de uma “cesta” de

consumo e de participação midiática (sigo pessoas que admiro, veículos de comunicação

que, editorialmente, me interessa etc.). Outro fator importante a ser destacado é que, como

resultado de sua política de micromensagens (texto de no máximo 140 caracteres), o

microblog é permeado por links que apontam para outros domínios da internet,

funcionando, portanto, como uma plataforma altamente remissiva. Nesse sentido, destaco

a expressividade do Twitter como lócus de pesquisa, tendo em vista que sua lógica

produz, a um só tempo, um espaço interno de conversação e um diálogo com outras

espacialidades digitais, o que, no caso deste trabalho, permitiu um foco de análise e uma

visão de conjunto.

Acrescento, ainda, que tanto no que diz respeito à constituição da empiria, quanto

das análises, os espaços de circulação da novela também contam com material retirado

de outras plataformas e sites, apesar da centralidade do Twitter. Essa estratégia visa

oferecer um panorama das interações dinamizadas pela telenovela “Avenida Brasil”,

assim como qualificar, através de certos contrastes, as dinâmicas propriamente

analisadas.

Pelo exposto, tomo como apresentado meus dois objetos de análise: o discurso da

narrativa televisiva de “Avenida Brasil” e as interações desenvolvidas nos espaços

digitais, com foco sobre o Twitter e nas hashtags que aludiam à novela. Em vista desse

21

dimensionamento, apresento, de forma sistematizada, o desenho metodológico

estruturado nesta dissertação:

(1) Nível narrativo de “Avenida Brasil” - trama veiculada pela Rede Globo de

Televisão, composta por 179 capítulos, veiculada de 26/03/2012 a 19/10/2012.

Nesse caso, apresento o folhetim a partir de um compilado de

informações/elementos narrativos, tais como: espacialidades de destaque,

principais personagens, momentos emblemáticos, estéticas videográficas e

proposta dramatúrgica. Para tanto, utilizo-me de textos, veiculação de cenas

(DVD em anexo) e edição de imagens. Opto por não trabalhar “Avenida Brasil”

a partir da produção institucional de narrativas cross ou transmídias, já que, na

trama em relevo, a emissora não investiu em estratégias significativas de

extensionamento ficcional. Busco, ainda, percorrer a novela a partir de diferentes

momentos de veiculação (pré-lançamento, estreia, clímax, desfecho), visando,

assim, oferecer uma visão panorâmica da telenovela, capaz de abarcar seus

diferentes fluxos de narrativização e formas de vinculação.

(2) Circulação de “Avenida Brasil” – conjunto de discursos produzidos a partir da

novela e que circularam nas redes sociais. Busco caracterizar esse material de

forma ampla, visando registrar parte dos conteúdos e discursividades gerados em

torno de “Avenida”. Além disso, em vista da análise sobre as interações mediadas

pelo Twitter, efetuei uma coleta de postagens a fim de discriminá-las quanto suas

motivações discursivas. Para tanto, efetuei uma codificação aberta (FRAGOSO;

RECUERO; AMARAL, 2011, p.96) focada “na identificação, descrição e

categorização do fenômeno encontrado em campo”. A coleta de dados contou com

três amostras aleatórias de 300 tweets cada, em diferentes períodos da trama: (1)

estreia da novela, hashtag #AvenidaBrasil; (2) centésimo capítulo, hashtags

#AvenidaBrasil e #Oioioi100; (3) último capítulo, hashtags #AvenidaBrasil e

#Oioioi179.

Tendo em vista os resultados de implementação dessa estratégia, avalio que, por

um lado, foi positivo e metodologicamente viável trabalhar o campo da circulação a partir

dos discursos disponibilizados no universo online. Acredito que este desenho

metodológico (tanto em termos de exposição, quanto de análise) abarque a envergadura

22

sociológica e midiática que me interessa elucidar, sobre a qual reitero um ponto: ainda

que as instâncias da produção e da circulação possam ser decupadas e,

metodologicamente, separadas, esse processo deve ser visto a partir de uma angulação,

de fato, interacional, no sentido do reconhecimento da intensidade dialógica que

transforma a telenovela em uma dinâmica entre espaços e entre sujeitos. Nesse contexto,

o Twitter e as dinâmicas interativas aqui analisadas funcionam como links que nos enviam

a um mundo dinâmico e complexo, sendo, o próprio microblog, uma espécie de

micromensagem acerca da multiplicidade das experiências contemporâneas.

Apenas uma dentre muitas pistas a se “seguir”.

23

#OIOIOI3 [TELE]TOPIAS

3.1 Alguns Norteadores

Tendo apresentado as principais questões mobilizadas por esta pesquisa, exponho,

no presente capítulo, algumas explorações possíveis em torno do conceito de “teletopia”,

particularmente no que se refere a uma abordagem sobre as matrizes espaciais articuladas

em torno da teledramaturgia brasileira. Conforme aprofundado na sequência, esse

percurso é derivado das proposições de Michel Foucault acerca dos espaços

heterotópicos, reflexão a partir da qual busco problematizar o contexto da experiência

teleficcional brasileira em suas diferentes alçadas.

Instigado pelas perspectivas do geógrafo Milton Santos, tramo uma noção

dinâmica de espaço, pautado pela heterogeneidade das matrizes que conformam as

experiências dessa natureza. Nessa direção, ressalto que, por um viés epistemológico, o

reconhecimento da interrelação entre “ficção” e “espaço” sugere uma revisão sobre o

estatuto dos gêneros discursivos, movimento capitaneado por Mikhail Bakhtin. Segundo

tal orientação, os gêneros passam a ser entendidos não somente como domínios narrativo-

estilísticos, mas, sobretudo, como mediações de natureza sociológica, conforme proposto

por Jésus Martín-Barbero.

Já no campo da Comunicação, esse reposicionamento sinaliza uma concepção

interacional sobre os fenômenos midiáticos, implicando, no contexto da teleficção, em

modos de interrelacionar os folhetins aos componentes da experiência cotidiana, ou ainda,

em formas de significar o espaço a partir dos seus mais variados fluxos de circulação

narrativa. Em vista desse arranjo mútuo-reativo, reflito acerca da experiência espaço-

ficcional segundo diferentes orientações, que, amalgamadas, apontam para a

complexidade característica aos espaços contemporâneos, sejam eles sociais, midiáticos

ou teletópicos.

Diante de tal projeção, a partir da segunda metade do capítulo, traço sumários

percursos que interpelam as matrizes espaciais a partir do âmbito geral da experiência,

inclusive no que se refere aos processos diretamente mobilizados pela teleficção

24

brasileira. Mediante tal retomada, sublinho algumas características que atravessam os

hodiernos modos de produção social do espaço, entre as quais destaco uma espécie de

“efervescência” espacial alimentada por novos arranjos sociotécnicos. No caso das

teletopias, dimensiono esse processo em vista da pluralização dos fluxos interativos e

discursivos ensejados pelas novelas, tendo em vista, notadamente, as condições cada vez

mais complexas de produção e circulação dessas narrativas, assim como a intensificação

das atividades recepcionais em plataformas online.

3.2 O que Entendo por “Teletopias”

Cada telenovela aborda em suas narrativas um conjunto de espaços ou

espacialidades9. Na maior parte das vezes, esses espaços possuem referentes no mundo

real, tornando-se facilmente reconhecíveis a partir de nossas experiências diárias – seja

por aí vivermos, por já termos estado neles ou por sua veiculação através de outras formas

de representação, midiáticas ou não. É o caso da orla carioca, dos arranha-céus de São

Paulo, das praias do Nordeste, dos pampas gaúchos, entre outros. Também é comum,

sobretudo nos primeiros capítulos de um folhetim, a narrativização sobre espaços

estrangeiros, quase sempre cartões-postais mundiais, como as cidades históricas da

Europa, as regiões exuberantes do Oriente, as belezas naturais e museológicas da América

Latina. Ademais, a teleficção costuma retratar lugares imaginados, espaços concebidos a

partir da colagem de múltiplas referências que compõem ambiências francamente

ficcionalizadas.

As espacialidades narrativas das telenovelas implicam ainda em modos de olhar e

experimentar os espaços reais, uma vez que os fluxos significantes da ficção não se

restringem à textualidade dos folhetins; ao contrário, integram um raio mais amplo de

ação sobre o qual se fundamentam práticas sociais e subjetivas. Nessa medida, cada

espaço televisionado conota, em nível social e moral, uma série de valores, tensões e

conflitos responsáveis por desencadear diferentes formas de receptividade e apropriação

ficcional. Logo, a heterogeneidade da audiência desencadeia modos variados de perceber

9 Não opero uma distinção necessária entre os conceitos de “espaço” e “espacialidade”, tendo em vista a

complexidade filosófica que envolve precisar as fronteiras entre tais dimensões. Por outro lado, pontuo, na

esteira do pensamento de Milton Santos (1997, p.73), que “o espaço é o resultado da soma e da síntese,

sempre refeita, da paisagem com a sociedade, através da espacialidade”. Nesse sentido, o geógrafo pontua

que o espaço apresenta características estruturais e históricas, enquanto a espacialidade revela traços

funcionais ligados à experiência individual e/ou coletiva.

25

e interagir com tais espaços narrativos, tendo em vista, entre outros fatores de

semantização, os contextos de mediação relativos a cada telespectador.

E ainda: no atual contexto de sociedades midiatizadas, o uso das redes digitais

para circulação de conteúdos vem ampliando e remodelando fluxos interativos a partir da

teledramaturgia, particularmente em função de novas manifestações de sociabilidade e da

promoção de outros regimes interativos. Em decorrência desse processo, a circulação

ficcional sobre domínios online produz espaços inéditos de aproximação e/ou dissociação

entre diferentes agentes midiáticos, agora, capazes de promover intensa produção

recepcional, amplamente comunicante e disseminada por múltiplas plataformas.

Considerando esses novos arranjos espaciais – definidos pelo cruzamento das

imagens televisivas aos espaços concretos e virtuais da experiência cotidiana –, proponho

sondar, teórico e empiricamente, o teletópos da novela “Avenida Brasil”. Conforme

exposto na introdução, as teletopias são urdiduras espaciais, formas de significar e

experimentar o espaço que parte tanto do âmbito das novelas, quanto das práticas

recepcionais que, no campo da circulação e das multimediações sociais, operacionalizam

tais narrativas. Trata-se, assim, de pensar como a atual ecologia midiática – no caso deste

estudo, a partir das mídias televisiva e digital – imprime outra densidade à

experimentação dos espaços da contemporaneidade, sobretudo diante da vertiginosa

centralidade das lógicas midiatizadas quanto à produção de sentidos sobre a experiência

em sociedade (segundo apontado por teóricos da midiatização, entre eles: SODRÉ, 2002;

BRAGA, 2006; FAUSTO NETO, 2008).

O esforço de mobilizar perspectivas teórico-conceituais em torno das teletopias

deriva da aplicabilidade da abordagem espacial ao estudo de caso da telenovela brasileira

– particularmente, no sentido de nortear a elaboração de uma cartografia atenta às

fronteiras hibridizadas10 (LOPES; MUNGIOLI, 2013) que complexificam as agendas

metodológicas das pesquisas em Comunicação. Busco, assim, uma sintonia em relação a

uma agenda holística que abarque tanto a peculiaridade de experiências inovadoras (como

aquelas verificadas sobre o campo digital), quanto práticas socioculturais tradicionais, e,

10 O termo “híbrido” remete à proposição teórico-conceitual de Néstor García Canclini (1997). Segundo o

sociólogo, o processo de modernização na América Latina não gerou sociedades modernas, mas sim,

sociedades modernizadas que carregam uma marca de heterogeneidade na constituição de suas identidades

culturais, expressa desde a desigualdade social até a diversidade de etnias, imaginários e vivências,

individuais ou coletivas. O autor articula esses hibridismos a partir da interrelação entre culturas populares

e as mediações tecnomassivas, em vista da complexidade do consumo simbólico e da multitemporalidade

característica a essas experiências.

26

ainda, a forma como tais dimensões imbricam-se, mutuamente, em torno de processos

sociais, comunicativos e ficcionais.

Nesse sentido, a categoria do “espaço” mostrou-se, em sua natureza filosófica,

uma forma de entrever a experiência em sociedade segundo essa amálgama temporal: um

recurso para abordar passado, presente e futuro a partir de uma lógica sincrônica,

desprovida de falsas contradições (SANTOS, 1986). Assim sendo, o liame que conecta

as atuais práticas teleficcionais – das mais emergentes, como a transmidiação espontânea

empreendida por uma comunidade de fãs, às mais residuais, como a repetição dos clichês

melodramáticos – torna-se sintomático dessa multitemporalidade que, dos textos

televisivos às textualidades cotidianas, conforma o arranjo híbrido de nossas

experimentações teletópicas.

Em sintonia com essa reflexão, o sociólogo André Jansson (2013) ressalta que

pensar a midiatização enquanto um conceito socioespacial implica no reconhecimento de

que as dinâmicas emergentes imbricam-se a um campo de “pré-condições” (sociais,

espaciais, comunicativas), processo este que fomenta distintas configurações e texturas

midiáticas. Nessa direção, o teórico adverte que

(...) a apropriação dos novos meios de comunicação (que também operam

como meios de espacialização) podem, de fato, alterar os padrões da vida

social, como uma força de moldagem (Heep, 2009), mas a forma dessas

alterações depende de arranjos socioespaciais pré-existentes, que são, por sua

vez, saturados por valores arraigados ou metafísicos, relacionados aos

espaços/lugares, à mobilidade e à comunicação. (JANSSON, 2013, p.280).11

Tendo em vista essa dialética entre temporalidades, conforma-se, em torno das

teletopias brasileiras, um instigante conjunto de processos comunicacionais, tanto do

ponto de vista da produção quanto da circulação narrativa. A criação dos folhetins, por

exemplo, segue o ritmo e as regras do mercado, sendo que, no Brasil, a baixa concorrência

entre os canais abertos conforma um cenário marcado pela concentração empresarial e

por intensos investimentos sobre o setor; em outra medida, o irrompimento de contextos

recepcionais cada vez mais complexos e diversificados traz à tona outras tonificações aos

11 Livre tradução. Trecho original: “(...) the appropriation of new means of communication (also operating

as means of spatialization) may indeed alter the patterns of social life, as a “molding force” (Heep, 2009),

but the shape of this alterations are dependent on pre-existing sociospactial arrangements, which are, in

turn saturated with deep-seated values, or metaphysics, related to space/place, mobility and

communication (cf. Cresswell, 2006)”. Acrescento as referências citadas pelo autor no fragmento: HEPP,

Andreas. Differentiation: Mediatization and cultural change. In: LANG, Peter. Mediatization: Concept,

changes, consequences. New York: K. Lundby (Ed.), 2009. CRESSWELL, Tim. On the move: Mobility in

the modern Western world. London: Routledge, 2006.

27

hibridismos culturais da atualidade, definindo, assim, novos arranjos espaço-temporais

entre tradições e modernidades, processos de individualização e formas de sociabilidade.

De modo correlato, as audiências vêm desenvolvendo, de modo aleatório, porém cada

vez mais dinâmico e efetivo, seus mecanismos de interação midiática, descortinando

processos que complexificam as possibilidades de trânsito entre espaços socioficcionais.

Nesse sentido, percebe-se o acionamento de dispositivos, que, a partir da instauração de

novos espaços discursivos (notadamente, os digitais), intensificam, através de múltiplas

telas, o campo simbólico das disputas e dos vínculos entre os atores sociais.

Pelo exposto, ressalvo que o enfoque analítico-reflexivo sobre as teletopias afina-

se à perspectiva interacional da Comunicação, abordagem a partir da qual busco

aproximar as dinâmicas de produção e recepção midiática, sem, contudo, perder de vista

o tensionamento necessário entre as diferentes competências e estratégias que conformam

a especificidade de cada forma de agência. Essa perspectiva, por sua vez, filia-se ao

paradigma relacional dos fenômenos comunicativos, entendido por Vera França (2012,

p.39) como “uma dinâmica de globalidade, caracterizada por sua natureza prático-

simbólica”12. Dessa forma, as teletopias voltam-se à uma dialética que conjuga diferentes

matrizes culturais, discursivas e tecnológicas em torno de um mesmo produto midiático

– dinâmica através da qual os espaços reais da audiência enredam-se às espacialidades

concebidas por diversas mídias a partir de um conjunto extenso de atividades interativas.

3.2.1 A Origem do Conceito

O termo “teletopia” foi cunhado a partir da reflexão de Michel Foucault sobre as

heterotopias13 – conceito proposto pelo filósofo em vista dos diferentes modos de

12 Ainda nas palavras da autora: “A comunicação é da ordem das relações: compreende um processo

interativo entre sujeitos (individuais ou coletivos) marcado pela flexibilidade e pela mútua afetação. Este

pressuposto afasta definitivamente o modelo linear ‘emissor → mensagem → receptor’ e a crença em

cadeias fechadas de determinação (emissores com poder de manipulação; mensagens que provocam efeitos

definidos; receptores autônomos que reagem a partir de posicionamentos individuais ou de grupos, etc.).

Inversamente ele indica a presença atuante de vários elementos – sujeitos emissores e receptores, produto,

meio, situação – e sua interpendência, estabelecendo uma dinâmica circular e um sentido de totalidade.”

(FRANÇA, 2012, p.39-40).

13 Utilizo-me como fonte bibliográfica a conferência radiofônica proferida por Michel Foucault em 1966,

intitulada “Utopias e Heterotopias”. Como tal pronunciamento não foi traduzido para o português, recorro

à versão em espanhol disponibilizada online pela Revista Fractal (http://www.mxfractal.org/). O filósofo

também discorre sobre as heterotopias no texto “Outros espaços”, publicado no Brasil no terceiro volume

da série “Ditos e Escritos” (Editora Forense Jurídica, 2001).

28

organização e experimentação do espaço social (no caso, articulados a partir de uma breve

historiografia do Ocidente, organizada sobre as variações entre as matrizes espaciais mais

próprias à cada época). Para o filósofo francês, as heterotopias constituem-se como

espaços diferentes, lugares outros nos quais os sujeitos não se encontram, mas que os

referenciam em suas respectivas situcionalidades. Tratam-se, assim, de contraespaços:

“(...) lugares que se opõem a todos os demais e que de alguma maneira estão destinados

a apagá-los, compensá-los, neutralizá-los ou purificá-los”14 (FOUCAULT, 2008, s/p). Em

vista desse entendimento, o teórico propõe uma reflexão centrada na heterotopologia,

“(...) ciência cujo objeto seriam esses espaços diferentes, esses outros lugares, essas

impugnações míticas e reais do espaço em que vivemos”15. (FOUCAULT, 2008, s/p).

Seguindo rastros dessa formulação teórico-conceitual, entendo as teletopias como

espacialidades marcadas por relações de telealteridade, isto é, certas formas de referência

psicossociais operadas a partir de dinâmicas de ficção. Proponho, assim, que as texturas

teletópicas desenvolvem-se a partir dos exercícios imaginativos que compõem a

virtualidade dessas experiências (as heterotopias da imagem, das múltiplas telas e da

dramaturgia ficcional), assim como dos mecanismos que “realizam” tais universos em

meio às matrizes estruturantes de uma realidade socialmente compartilhada. Desse

processo de mútua-afetação – no qual espaços reais geram espacialidades ficcionais, e

estas, por sua vez, redimensionam as experiências cotidianas – resultam as heterotopias

que almejo destacar, mais precisamente, as espacialidades sociais e subjetivas que

atravessam as teletopias de “Avenida Brasil”.

Trabalho, portanto, com a perspectiva de que a teleficção atua sobre a

configuração dos espaços concretos, sendo próprio a cada sociedade o desenvolvimento

de seus processos de fabulação sobre o contexto social, cultural e psíquico experimentado

por seus integrantes. Nessa direção, as teletopias compõem espaços de interação sobre os

quais se projetam formas de existência, que, mesmo não sendo necessariamente factíveis,

acabam por referenciar os sujeitos na consecução de seus atos e na constituição de suas

mundividências. Essa relação explica como o consumo de bens simbólicos pode

estruturar modos de ver e interagir com a vida social, desde sua dimensão mítica,

14 Livre tradução: “Entre todos esos lugares que se distinguen los unos de los otros, hay aquellos que son

absolutamente diferentes; lugares que se oponen a todos los demás y que de alguna manera están

destinados a borrarlos, compensarlos, neutralizarlos o purificarlos.” 15 Livre tradução: “Pues bien, yo sueño con una ciencia – y sí, digo una ciencia – cuyo objeto serían esos

espacios diferentes, eses otros lugares, esas impugnaciones míticas y reales del espacio en que vivimos.”

29

espiritual ou cosmológica, até práticas mais triviais, como o entretenimento e a distração.

Afinal, as faculdades criativas da linguagem permitem que os homens criem seus

mecanismos de transbordamento existencial, suas formas de ir além das arbitrariedades

da natureza, garantindo-lhes fugaz e imprescindível residência sobre os mundos

suspensos da ficção; o que, por ventura, acaba por “apagar, compensar, neutralizar e

purificar” os dias feitos de “real”.

Essa suspensão frente aos fluxos de cotidianidade é sugestiva daquilo que

Foucault chama de heterocronia – formas de suspender ou cortar o tempo que

acompanham à experiência heterotópica. Nessa medida, enquanto exercício de imagem e

fabulação, as narrativas dessa ordem operam uma inevitável dissociação entre o tempo

cronológico da experiência diária e a temporalidade suspensa da ficção. Desse modo,

parece-me plausível conceber a fruição teledramatúrgica, em sua eventualidade, como

uma faísca de heterocronia; algo que, mesmo assentado sobre o campo das práticas

cotidianas, abarca uma temporalidade especial, suscetível a oferecer o que Foucault

define como formas de “impugnação ao real e fonte de imaginário”.

Este é o ponto no qual, indubitavelmente, nos aproximamos do mais essencial

das heterotopias. Estas são uma impugnação de todos os demais espaços, que

podem exercer de duas maneiras: (...) criando uma ilusão que denuncia o resto

da realidade como se fosse ilusão, ou então, ao contrário, criando outro espaço

real tão perfeito, meticuloso e arranjado como o nosso está desordenado, mal

disposto e confuso. (FOUCAULT, 2008, s/p).16

Nesse contexto, as teletopias erigem-se como lugares nos quais realidade e ilusão

se tensionam, na medida mesma em que se complementam. Frente à desencantada rotina

dos espaços cotidianos – avenidas feitas de asfalto, engarrafamento e violência –, a ficção

televisiva ainda desempenha o papel heterotópico de territorializar parte de sua audiência

em espaços outros, no caso, lugares imaginativos atravessados por diferentes

temporalidades e formas de conceber o mundo. Mediante aos processos de

mercantilização das relações sociais, esses espaços de representação tornam-se cada vez

mais estratégicos no sentido de restabelecerem, pelas vias sensíveis da imaginação, o elo

com as razões de encantamento da vida. No caso da telenovela brasileira, no qual as

imagísticas e as narrativas televisivas respondem por parte significativa do consumo

16 Livre tradução: “Es en este punto en donde indudablemente nos acercamos a lo más esencial de las

heterotopías. Éstas son una impugnación de todos los demás espacios, que pueden ejercer de dos maneras:

(...) creando una ilusión que denuncia al resto de la realidad como si fuera ilusión, o bien, por el contrario,

creando otro espacio real tan perfecto, meticuloso y arreglado cuanto el nuestro está desordenado, mal

dispuesto y confuso.”

30

ficcional de milhões de telespectadores, essa dimensão revela-se marcante, tendo em vista

que sobre tais teletopias transitam fluxos de significação perpassados por construções

simbólicas que alcançam o imaginário de todo um país.

Ainda no que se refere à relação de “impugnação ao real e fonte de imaginário”,

pergunto: não seria o último capítulo de um folhetim, com sua moral de justiça e correção

social, a manifestação dessas heterotopias assentadas sobre certa dose de “ilusão”?

Mesmo que, de alguma forma, o ethos de cristandade da teledramaturgia venha sofrendo

deslocamentos – inserindo-se, cada vez mais, em outra economia simbólica (menos óbvia

e nem tão politicamente correta) –, o último capítulo segue exercendo uma garantia

utópica de controle e regência sobre os processos pouco orquestráveis do cotidiano.

Afinal, ao menos na novela, a imagem que se congela sob a chancela do ponto final

permite uma ilusão de completude que escapa à experiência ordinária, mas que,

fortuitamente, a ficção simula com a competência que lhe é própria.

Ainda nesse âmbito de reflexão, resgato a inspirada comparação de Foucault entre

a atividade novelesca (uma referência à origem literária do gênero “novela”) e as práticas

de jardinagem – exemplo elencado pelo filósofo, ao lado dos tapetes orientais, como

heterotopias nas quais “o mundo inteiro é convocado a cumprir sua perfeição

simbólica”17. Tendo em vista que, nesses espaços, busca-se justapor elementos que

garantam, simetricamente, a representação de todas as belezas existentes, Foucault

desenvolve que

(...) o jardim, desde a mais remota Antiguidade, é um lugar de utopia. Quiçá

tenhamos a impressão de que as novelas se situam facilmente em jardins; é

que, de fato, as novelas nasceram da mesma instituição dos jardins: a atividade

novelesca é uma atividade de jardinagem. (FOUCAULT, 2008, s/p)18.

17 Livre tradução: “Pero quizás el más antiguo ejemplo de heterotopia sea el jardín: el jardín, creación

milenaria que ciertamente tenía una significación mágica en Oriente. El tradicional jardín persa es un

rectángulo dividido en cuatro partes, las cuatro partes representan las regiones del mundo, los cuatro

elementos de los cuáles éste se compone; y en el centro, en el punto en el que se unen esos cuatro

rectángulos, había un espacio sagrado, una fuente, un templo; y alrededor de ese centro, toda la vegetación

de mundo debía hallarse reunida. Ahora bien, si pensamos que los tapetes orientales están en el origen de

las reproducciones del jardín (…), comprendemos el valor legendario de los tapetes voladores, de esos

tapetes que recorrían el mundo. El jardín es un tapete en el que o mundo entero es convocado para cumplir

su perfección simbólica, y el tapete es un jardín que se mueve a través del espacio.”

18 Livre tradução: “El jardín, desde la más remota Antigüedad es un lugar de utopía. Quizás tenemos la

impresión de que las novelas se sitúan fácilmente en jardines; y es que, de hecho, las novelas nascieron sin

duda de la institución misma de los jardines: la actividad novelesca es una actividad de jardinería.”

31

No meu entender, Foucault sinaliza através dessa passagem que as heterotopias

podem operar a contraditória missão de espacializar esses sítios que não pertencem a

nenhum lugar, mas que são concebidos pelos homens “(…) no interstício de suas

palavras, na espessura de seus relatos, ou melhor, no lugar sem lugar dos sonhos, na

vacância de seus corações” (FOUCAULT, 2008, s/p)19. A novela como atividade de

jardinagem (aproximada às telenovelas pela mútua filiação ficcional, e não pela

coincidência homônima) aponta para o efeito de “cultivo” sobre o campo simbólico dos

espaços de representação, lugar de imaginários onde se fabricam outras cartografias do

real. Nesse contexto, ressalto que, apesar da dimensão industrial e lucrativa da telenovela,

sua função social remete aos espaços onde as ilusões e as impugnações ainda vivem,

sobretudo quando tomamos como referência um folhetim de sucesso no qual milhões de

telespectadores acomodam-se sobre os tapetes volantes da ficção.

3.3 O Espaço no (Con)Texto das Teletopias

No estudo das narrativas ficcionais, sejam elas televisivas ou não, o espaço é

correntemente abordado como traço composicional de um exercício de “montagem de

mundos” – “ways of worldmaking” (GOODMAN apud ISER, 1996). Nesse âmbito,

toma-se como premissa que os espaços narrativos não se reduzem a uma condição neutra

diante de eventos supostamente testemunhados por ambiências aleatórias. Ao contrário,

as escolhas dessa natureza implicam em formas específicas de narrar, em estratégias

voltadas à construção de personagens e conflitos, em singularidades linguísticas e

poéticas, enfim, em um modo basilar de proposição do jogo comunicativo de uma obra

ficcional.

Nessa medida, o espaço assume diferentes graus de entrelaçamento aos aspectos

dramatúrgicos de uma narrativa, podendo desempenhar funções como: gerenciar

informações sobre uma obra, na medida em que as estruturas físicas e psicológicas de

19 Livre tradução: “Hay pues países sin lugar alguno e historias sin cronología. Ciudades, planetas,

continentes, universos cuya traza es imposible de ubicar en un mapa o de identificar en cielo alguno,

simplemente porque no pertenecen a ningún espacio. No cabe duda de que esas ciudades, esos continentes,

esos planetas fueron concebidos en la cabeza de los hombres, o a decir verdad en el intersticio de sus

palabras, en la espesura de sus relatos, o bien en el lugar sin lugar de sus sueños, en el vacío de su corazón;

me refiero, en suma a la dulzura de las utopías.”

32

seus personagens imbricam-se a um espaço de enunciação e vice-versa (tal como

realizado pela corrente realista-naturalista na Literatura Brasileira, cujas heranças

encontram-se, ainda hoje, presentes na estética da teledramaturgia20); marcar lugares de

consciência subjetiva e/ou social, assim como distribuir, espacialmente, relações de poder

e conflitos de classe (dimensão marcante em “Avenida Brasil”, como sugerido pelo

próprio nome da trama, um espaço de passagem que conecta Zona Sul e Zona Norte,

centro e periferia, elite e classes populares); evidenciar certa camada semiológica

(FOUCAULT, 2001) de um enredo a partir das simbologias espaciais (em “Avenida”, o

lixão idílico de Mãe Lucinda desempenhou esse papel metaforizante: situado em um

plano de densa simbolização, desprovido de um interesse mimético frente às dinâmicas

reais do espaço referenciado, tal ambiência apresentou uma suspensão espaço-temporal

em relação à própria ficção).

Nessa medida, vale destacar a importância de se pensar o espaço como possível

centro organizador de uma narrativa, sobretudo em função de operações autorais

atravessadas pela seleção21 e pela combinação22 de elementos que, no mundo concreto,

encontram-se dispostos de maneira bastante distinta. Nesse sentido, Iser coloca que esses

procedimentos evidenciam uma intencionalidade que “faz com que determinados

sistemas de sentido da vida real se convertam em campos de referência do texto e estes,

por sua vez, se transmutem no contexto de interpretações recíprocas” (ISER, 1997,

p.118). Essa intencionalidade, pensada sobre o ponto de vista da seleção e da combinação

de espaços, revela que a ambiência narrativa de uma ficção pode extrapolar um traço

representativo (o que demandaria apenas uma caracterização cenográfica mais ou menos

20 A meu ver, o jogo realista-naturalista da teleficção possui uma dimensão mais estética– composição

imagística e narrativa que simula uma situação como real – do que ética – no sentido da representação

calcada em um compromisso de registro frente às experiências concretas do cotidiano. De qualquer forma,

a ideia positivo-determinista do meio como ambiência formatadora da psique dos personagens ainda é

estruturante das narrativas teledramatúrgicas, responsável, em certa medida, por algumas das

estereotipações que permeiam os enredos dessa natureza.

21 “Como produto de um autor, cada texto literário é uma forma determinada de acesso ao mundo

(Weltzuwendung). Como esta forma não está dada de antemão pelo mundo a que o autor se refere, para que

se imponha é preciso que seja nele inserido. Inserir não significa imitar as estruturas existentes de

organização, mas sim decompô-las. Daí resulta a seleção, necessária a cada texto ficcional, dos sistemas

contextuais preexistentes, sejam eles de natureza sócio-cultural (sic) ou mesmo literária.” (ISER, 1997,

p.16, grifos do autor).

22 “Como ato de fingir, a seleção encontra sua correspondência intratextual na combinação dos elementos

textuais, que abrange tanto a combinalidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto

os esquemas responsáveis pela organização dos personagens e suas ações. A combinação é um ato de fingir

porque também ela possui a caracterização básica: ser transgressão de limites.” (ISER, 1997, p.18-19, grifos

do autor).

33

cuidadosa), relacionando-se, ainda, a um campo de atuação que modaliza a experiência

fictícia e é por ela modulado.

Nessa medida, destaco que a intencionalidade matriciadora da construção de

espaços narrativos pode ser entendida como uma pré-mediação que conecta a lógica da

montagem textual aos fluxos cotidianos, uma vez que, ainda segundo Iser (1997; 2011),

o fictício é um objeto transicional que opera entre a dimensão real e a dimensão

imaginária da experiência. Essa mediação relaciona-se a um exercício criativo e

composicional que regula certos modos de operacionalização fictícia, tendo sido

abordada, no contexto mais amplo da produção midiática, nos estudos de pesquisadores

como Martín Serrano e Guillermo Orozco23.

Nesse contexto, coloco que, no decorrer da história da telenovela brasileira, a

mediação operada pelo fictício revelou uma intencionalidade marcada pela conjugação

entre diretrizes autorais (sobretudo de novelistas24) e práticas consolidadas pelo gênero

teledramatúrgico no país. No primeiro caso, podemos citar diversos exemplos de marcas

autorais que construíram nossos modos de teleficcionalização, como o extraordinário

esforço de modernização narrativa, empreendido por Janete Clair a partir do final da

década de 60, o realismo fantástico de seu marido, Dias Gomes, ou ainda, mais

contemporaneamente, a marca “bossanovista” de Manoel Carlos, o orientalismo de Glória

Perez e as tramas policialescas de Gilberto Braga (entre outros). Por outro lado, a autoria

na telenovela brasileira encontra-se fortemente vinculada ao ethos de teleficcionalização

23 Na obra La Mediación Social (2008, [1978]), o teórico espanhol Martin Serrano – um dos pioneiros na

abordagem do conceito de mediação no campo comunicacional – propõe um modelo de análise dos meios

de comunicação de massa a partir da interferência cognitiva dos produtores midiáticos nos processos

criativos. Serrano aponta três tipos de mediações relacionadas à elaboração dos produtos e discursos

midiáticos. São elas: (1) mediação institucional, aquela que seleciona o que ganhará visibilidade e

veiculação; (2) mediação cognitiva, relacionada à construção de relatos que apresentam representações e

noções de mundo; (3) mediação estrutural, relativa às condições de produção disponibilizadas pelos

suportes midiáticos. Já o teórico Guillermo Orozco (apud JACKS; ESCOSTHEGUY, 2005) nomeia o

processo de formatação das mensagens televisivas como pré-mediações, relacionando-as, por sua vez, à

forma pela qual a TV produz significados sociais que operacionalizam a relação entre o mundo real e as

representações veiculadas. Nesse segundo caso, a utilização do prefixo “pré” deve-se ao fato de que a teoria

comunicacional acionada por Orozco situa as mediações no campo das práticas sociais, isto é, nos processos

circulatórios que conformam o comunicativo a partir do jogo complexo da produção de sentidos entre os

diversos participantes da cultura midiática.

24 Os traços de autoria dos escritores/novelistas não são os únicos que compõem a estética da

teledramaturgia, já que tais obras encontram-se inseridas em uma engenharia criativa ampla e complexa da

qual outros agentes produtivos fazem parte. Entretanto, Maria Carmen Jacob de Souza aponta que, no caso

da telenovela brasileira, “(...) a autoria ou a expectativa de controle sobre a passagem da estória/roteiro para

imagens e sons tende a estar centrada no roteirista-autor que trabalha com diretores que exercem a função

de produtores, os diretores de núcleo e os diretores gerais”. (SOUZA, 2013, p.12). Porém, a autora ressalva

que “(...) o grau de autonomia de roteiristas-autores de telenovelas depende do modelo da gestão empregado

nas empresas em que atuam” (p.14).

34

operante no Brasil, isto é, às práticas narrativas e socioculturais ancoradas na memória e

no cotidiano da televisão brasileira, tanto em seus aspectos produtivos, quanto

recepcionais. Essa modulação, proveniente das práticas mais ou menos estáveis do

gênero, é responsável pela dinamização da teledramaturgia e, a partir de sua atuação, a

criatividade autoral passa a ser constituída, quando não constrangida, por uma série de

intencionalidades sociais como, por exemplo, as lógicas mercantis das empresas, os

valores e as moralidades do público, a amplitude (sobretudo etária e geracional) da

audiência e a exequibilidade das filmagens.

Nessa direção, saliento que a memória espacial do gênero exerce forte influência

sobre a criatividade produtiva quanto à montagem dos mundos teleficcionais. Apesar das

exceções que consolidam a regra, a espacialização dessas narrativas foi repetidamente

articulada em torno do contraste entre certos espaços, no caso, tomados a partir de

diferenças entre paisagens geográficas e práticas culturais (como, por exemplo: o rural e

o urbano, o interior e a “cidade”, o bairro dos ricos e o aglomerado dos pobres). Na

montagem dos mundos contemporâneos, as tramas dificilmente escapam ao circuito Rio

– São Paulo, e, quando o fazem, migram para as “representações postais” que, quase

sempre, reduzem as expressões regionalistas à caricatura de um país “bonito por

natureza”. E ainda, a questão da diferença de classe – força motriz para as narrativas

melodramáticas –, independente do espaço montado, introduziu, no cerne das narrativas

teleficcionais, a moral espacial da “casa grande” e da “senzala”, sendo que, das matrizes

oriundas dessas espacialidades, desponta a energia criativa que orienta de forma distinta

parte das relações de drama e comicidade dos folhetins.

Exponho, assim, que o gênero teleficcional – pensado a partir de sua dimensão

imaterial, porém, “socioculturalmente” reverberante25 – atua não só como mediação

incidente sobre o vir a ser dos folhetins, em termos de espacialidade ou de qualquer outro

componente narrativo, mas, ele próprio constitui-se como um espaço multimediado por

distintos vetores sociais – sistematizados e apresentados na sequência por Martín-Barbero

(2004, 2006a) como um cruzamento entre matrizes culturais, formatos industriais, lógicas

produtivas e competências recepcionais.

25 Sobre essa condição imaterial, François Jost (2007) escreveu que o gênero é uma promessa (ontológica

e pragmática) de um mundo organizado em função da coerência do conjunto. Este mundo, por sua vez, é

remissivo a outros mundos (arquigêneros). Em suas palavras: “Em vez de partir da imagem, que não é

senão a superfície visível do mundo (o fenômeno), parece-me preferível partir do gênero, que é seu

fundamento inteligível. (...) Todo gênero repousa sobre a promessa de uma relação com o mundo, cujo

modo ou nível de existência condiciona a adesão ou a participação do receptor. (JOST, 2007, p.91, grifos

meus).

35

Diante dessa condição mediativa do gênero, faz-se importante sublinhar a

multiplicidade dos lugares ocupados pela ficção televisiva em contextos diversos de

recepção. Entendo o conceito de “lugar” em consonância à proposição de Fábio Duarte e

Rodrigo Firmino (2010): tipo de espacialidade definida por sua dimensão simbólica,

caracterizada pelo afeto e pela escolha, em contrapartida à esfera instituída do “território”,

este constituído por suas marcações de poder, conduta e constrangimento. Para os autores,

evidencia-se, na primeira ocorrência, um caráter afetivo pelo qual valores culturais são

projetados sobre uma determinada porção do espaço. Segundo eles: “um lugar é o reino

da simplicidade, onde algumas pessoas ou grupos se sentem culturalmente ligados a uma

parte geográfica do espaço”. (DUARTE; FIRMINO, 2010, p.34).

No caso das teletopias, essa multiplicidade de lugares deve-se a especificidade do

papel sociocultural desempenhado pela telenovela no Brasil e na América Latina –

sintomático daquilo que Martín-Barbero (2006a, p.306) definiu como a “expressividade

social e a materialidade cultural” desempenhada pela televisão. Em tal contexto, os

sentidos ficcionais enredam-se, intimamente, à produção de sentidos subjetivos e

socialmente compartilhados, levando o teórico a apontar que o gênero melodramático,

mais do que um operador narrativo, é uma unidade de análise sociológica, sendo que a

diversidade de usos e apropriações da teledramaturgia geram variantes recepcionais

correlatas à heterogeneidade de seus espaços de consumo e circulação.

Na América-latina, onde a tardomodernidade importou modelos de

desenvolvimento de culturas mundializadas, sem, contudo, renunciar à cimentação social

das solidariedades tradicionais, e ainda, sem superar as heranças coloniais da pobreza e

da desigualdade, a diversidade dos lugares teledramatúrgicos manifesta-se através de

dialéticas que arranjam, de formas mais ou menos anacrônicas, hibridismos e diferenças;

mediações simultâneas entre a mitologia do campo e a racionalidade da cidade, entre o

lugar sagrado da casa e o espaço profano da rua; mediações que situam a TV como palco

de representações sociais e esfera de visibilidade às minorias; e ainda, que conectam

emoções genuínas da audiência à estética comercial dos mercados globalizados.

Nessa medida, as teletopias configuram-se, a um só tempo, como espacialidades e

formas de experimentação do espaço; intencionalidade autoral convertida em montagem

de mundos ficcionais e, por conseguinte, materialidades reverberantes na projeção de

mundos cotidianos; constructo mediado tanto pelo percurso histórico-diacrônico das

práticas do gênero, quanto pelas formas contemporâneas de produzir imagens e discursos

sobre experiência do presente.

36

3.4 O Gênero como Fundamento da Experiência Teletópica

3.4.1 Além dos Espaços Diegéticos: Contribuições de Mikhail Bakhtin

Em sua origem literária, os gêneros foram interpretados como propriedades

textuais. Nesse contexto, foram relacionados às características autorais e/ou escolásticas

que, narrativo e estilisticamente, organizavam experiências de mundo. Este entendimento

conferiu relevos artísticos ao conceito, uma vez que a estética composicional mais ou

menos comum a uma série de textos seria supostamente capaz de evidenciar um horizonte

de perspectivas subjetivas, políticas, sociais e filosóficas. Filiado a esta tradição, Tzvetan

Todorov (apud BORELLI, 1996, p.172) afirma que “os ‘gêneros’ são a própria vida da

Literatura; reconhecê-los inteiramente, ir até o fim do sentido próprio de cada um,

mergulhar profundamente na sua consciência – produz verdade e força”.

Sem refutar a pertinência desta ou de outras acepções artísticas do conceito, o

gênero que venho sublinhando nesta reflexão escapa à composição intratextual das obras

ficcionais, tendo em vista que, no caso teledramatúrgico, o complexo sígnico capaz de

expressar estado de “consciência” reside, particularmente, nos modos de conversão que

transformam as narrativas ficcionais em teletopias de um país. Em vista dessa multitude,

a possível verdade, força e poética da teledramaturgia extrapola as intencionalidades

matriciadoras dos textos televisivos, compondo-se, inextricavelmente, de um emaranhado

perceptivo que interrelaciona diferentes agentes midiáticos durante os meses de

produção/exibição de uma telenovela.

Essa discussão sobre a natureza do gênero remonta às reflexões filosóficas tecidas

em torno da linguagem, dentre as quais destaco o pensamento histórico-pragmatista de

Mikhail Bakhtin (2003) como uma importante matriz de suspeição frente à centralidade

das análises diegéticas sobre os gêneros do discurso – sobretudo no que diz respeito às

reservas deste autor em relação ao estruturalismo linguístico de Ferdinand Saussure.

Enquanto este defendia perspectivas sistêmicas que subordinavam os atos de fala ao

universo abstrato de suas possibilidades expressivas, Bakhtin busca situar a produção de

discursos no campo histórico e prático das enunciações, apostando, assim, na

eventicidade dos fenômenos como potencial de realização da língua.

Nos estudos sobre os diversos gêneros discursivos, essa diferenciação implica na

consideração de que os sentidos organizados por um texto não se restringem a uma

materialidade enunciadora supostamente capaz de se aproximar, com maior ou menor

37

êxito, à essência saussuriana da linguagem; ao contrário, esses sentidos encontram-se

profundamente ligados às dinâmicas anteriores e ulteriores de produção textual,

notadamente, àquelas que conferem ancoragem espaço-temporal aos seus enunciados.

Essa concepção alargada sobre os gêneros pode ser entendida como um esforço de

Bakhtin em trabalhar a organicidade da produção discursiva, localizando-a no campo vivo

da produção de linguagem, e não apenas nos limites intergenéricos do campo literário.

Sendo “todo enunciado (...) um elo na cadeia da comunicação discursiva” (BAKHTIN,

2003, p.217), o teórico afirma que

(...) toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo, é de natureza

ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso),

toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera

obrigatoriamente: o ouvinte se torna um falante. (BAKHTIN, 2003, p. 217).

Assim, Bakhtin reconhece os atos de linguagem, a produção de discursos e, logo,

a composição dos gêneros (sejam eles textuais ou não26) como práticas imanentemente

dialógicas, uma vez que nenhuma leitura é passiva, uma vez que o alocutário – ouvinte,

leitor, telespectador – gera sempre respostas, isto é, engaja-se em diferentes níveis e

planos de interpretação; assim como, em outra medida, todos os enunciados encontram-

se previamente ancorados em um campo de interações moduladas sócio-historicamente

(de cunho pessoal, no nível da autoria, e cultural, do ponto de vista das práticas

habitualizadas pelo gênero). Nessa medida, o dialogismo da linguagem constitui,

reciprocamente, locutores e alocutários, tendo em vista que, nos atos comunicativos,

aquele que fala é interceptado pela figura, real ou pressuposta, de um “outro” que constitui

e funda o seu lugar de enunciação.

Na teledramaturgia, a composição dialógica dos folhetins gera uma produção de

discursos francamente inclinada às prerrogativas das alteridades. No caso, a composição

indistinta e heterogênea da audiência (em níveis etários, geracionais, étnicos, classistas,

culturais) multiplica os perfis possíveis de alocutários, o que torna as práticas dialógicas

tão extensas quanto delicadas – quanto mais atores sociais, mais complexo será o lugar

de enunciação fundado a partir do “outro”. Além disso, as diferentes formas de

26 No sentido de evitar um equívoco ao qual o próprio Bakhtin se coloca em desencontro (a redução do

gênero às características internas do texto, obliterando sua dimensão circulatória), o filósofo faz uma

importante distinção conceitual. Trata-se da divisão entre gêneros primários – entendidos como gêneros

simples, manifestados em situação de comunicação discursiva imediata, a partir das ideologias não

formalizadas ou do cotidiano – e os gêneros secundários – práticas complexas oriundas de formas

diferenciadas de sociabilidade e nexos culturais organizados, portadores de ideologias formalizadas como

a literatura e a ciência.

38

receptividade do público e a memória do palimpsesto (“outras” teleficções) fundamentam

parte dos princípios da produção industrial e social dos textos televisivos. E ainda: com a

reconfiguração sociotécnica colocada em marcha pelo atual estágio da midiatização,

sobretudo a partir da diversificação e da intensificação das formas de retorno midiático,

a incorporação do discurso do “outro” sulca as enunciações teleficcionais de vozes

oriundas do campo da recepção, além de gerar um espaço de conversação social no qual

a interlocução entre membros da audiência suscita novas competências interativas – no

caso das interações online a partir da novela, competências mediadas pela lógica de um

sistema que é, a um só tempo, recepção dos conteúdos televisivos e produção de outros

discursos colocados em circulação.

Eis por que a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e

se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados

individuais dos outros. Em certo sentido, essa experiência pode ser

caracterizada como processo de assimilação – mais ou menos criador – das

palavras do outro (...). Nossos discursos, isto é, todos os nossos enunciados

(inclusive as obras criadas) são plenos de palavras dos outros, de um grau

variado de alteridade ou assimilabilidade, de um grau vário de

aperceptibilidade e de relevância. (BAKHTIN, 2003, p.294-5, grifos do autor).

Nessa medida, o caráter dialógico revela-se inerente à condição comunicante da

linguagem, uma vez que, através dele, os sujeitos em situação interativa (interpessoal,

social ou midiática) constroem uma série de pontes móveis que conectam o “eu” falante

a “outros” alocutários. Assim, o dialogismo (factual ou possível, explícito ou latente) cava

espaços que aproximam distintas consciências, uma vez que, através dos fluxos

simbólicos da linguagem (seja na forma de fala, texto, vídeo, performance...), cria-se uma

zona de interação interpessoal e/ou social atravessada por variadas manifestações de

afetos, conflitos, interesses e engajamentos. Estas pontes móveis, entendidas como

espaços modalizados por fluxos interacionais, evidenciam o que Foucault (2000, p.167)

denomina como “ser espacial da linguagem”, uma vez que, segundo o filósofo,

(...) de fato, o que se está descobrindo hoje, por muitos caminhos diferentes,

além do mais quase todos empíricos, é que a linguagem é espaço. Tinha-se

esquecido isso simplesmente porque a linguagem funciona no tempo, é a

cadeia falada que funciona para dizer o tempo. Mas a função da linguagem não

é o seu ser: se sua função é tempo, seu ser é espaço. Espaço porque cada

elemento da linguagem só tem sentido em uma rede sincrônica. Espaço porque

o valor semântico de cada palavra ou de cada expressão é definido por

referência a um quadro, a um paradigma. Espaço porque a própria sucessão

dos elementos, a ordem das palavras, as flexões, a concordância das palavras

ao longo da cadeia falada obedecem, mais ou menos, às exigências

simultâneas, arquitetônicas, por conseguinte, espaciais, da sintaxe. Espaço,

39

enfim, porque, de modo geral, só há signos significantes, com seu significado,

por leis de substituição, de combinação de elementos, portanto, por uma série

de operações definidas em conjunto, por conseguinte, em um espaço.

(FOUCAULT, 2000, p.168).

A espacialidade da linguagem refere-se, assim, a sua condição de fluxo

significante, à energia criativa que parte de uma consciência e de uma intencionalidade

para atingir outras, transmutando-se nesse processo. A condição de fluxo – de ir e vir, ou

de ir e circular – transforma os processos de interação em matrizes espaciais que

aproximam ou distanciam temporalidades distintas, sejam elas de natureza subjetiva,

social ou histórica. Dessa maneira, o dialogismo configura-se como uma forma de

espacialização a partir da linguagem, tendo em vista à consecução de pontes interativas

que geram outros desenhos à arquitetura visível e invisível dos espaços, assim como, por

extensão, à forma através da qual os experimentamos.

No caso da teledramaturgia, a produção de espaços a partir da linguagem e das

narrativas televisuais possui uma origem histórico-diacrônica, caracterizada tanto pelos

fluxos de narrativização oriundos da matriz melodramática (com seu enfoque sobre as

relações desenvolvidas a partir do âmbito da casa, da família e das vicissitudes de classe),

quanto pelas funções sociais desempenhadas pelo consumo dos folhetins (de forma

análoga, relacionadas ao espaço doméstico, à cotidianidade familiar e a outras formas de

socialização). Além disso, a modulação dos espaços no contexto das teletopias tem se

intensificado mediante à intensificação dos processos de midiatização social, em função

de fatores como: a proliferação de múltiplas telas e a migração dos conteúdos televisivos

para outras plataformas, sobretudo, digitais e móveis; as novas possibilidades de conceber

e trabalhar os aspectos imagéticos dos textos televisivos, o que acarreta outros grafismos

à experiência ficcional dos espaços narrados; o aumento da disponibilidade de

ferramentas criativas que permitem aos receptores atuarem, mais incisivamente, como

usuários/produtores de conteúdos midiáticos, gerando pontes interativas que descortinam

espaços inéditos de interação.

Esse processo de reconfiguração torna-se, a meu ver, uma dinâmica fundamental

dos processos contemporâneos de experimentação teledramatúrgica, sobretudo no que diz

respeito à reflexão sobre a verticalidade simbólica imputada pelas lógicas produtivas e

por formatos narrativos. Conforme exposto com mais detalhes adiante a partir das

contribuições de Jésus Martín-Barbero, o gênero opera múltiplas mediações, o que, por

certo, implica na consideração de que os formatos engendrados pela indústria não

sintetizam apenas uma forma específica de intencionalidade, mas, dialogicamente,

40

interagem com uma série de matrizes que o situam socioculturamente. Por outro lado, o

reconhecimento dessa dialética dos produtos culturais não deve incorrer no risco de

considerar seus processos interacionais a partir de uma perspectiva homeostática,

obliterando, assim, o espaço de luta, tensão e assimetrias que também é constituinte das

pontes da linguagem e, consequentemente, das espacialidades descortinadas pela

teleficção.

Nesse contexto, coloco que, se, por um lado, o espaço produzido pela linguagem

é sempre dialógico – na medida em que essa é a própria natureza da linguagem –, por

outro, a comunicação entre o “eu falante” e sua exterioridade (“outros” alocutários) nem

sempre gerará espaços polifônicos. Afinal, de acordo com Bakhtin (2003), a polifonia

ocorre não somente pelo diálogo (que pode ser assimétrico, superficial ou

desinteressado), mas pela condição de equipotência que aproxima e contrapõe diferentes

vozes narrativas no nível de uma mesma enunciação. Neste caso, o “outro” torna-se um

fundamento da experiência enunciativa (um grau profundo de assimilabilidade), uma

força que configura relações entre isotopias e exotopias (lugares comuns e lugares de

diferença), formando, assim, pontes de linguagem dotadas de consistência e

complexidade.

Essa discussão demonstra-se bastante fértil ao caso teledramatúrgico, no qual o

expressivo dialogismo sociocultural de seus produtos parece obscurecer um índice nem

tão considerável de polifonia. Nesse sentido, uma pergunta que, em grande parte, motiva

esta pesquisa relaciona-se aos novos fluxos de circulação ficcional: estariam eles sendo

capazes de gerar espaços ou criar brechas que intensifiquem a qualidade das vozes e dos

discursos que giram em torno das telenovelas?

3.4.2 Um Espaço de Multimediações: Contribuições de Jésus Martín-Barbero

O reconhecimento da dimensão espacial do gênero, particularmente em seus

domínios extratextuais, possibilitou um salto epistemológico quanto ao tratamento do

conceito, capaz de entrevê-lo não apenas em seus estratos narrativos e diegéticos, mas

também a partir de sua vocação sociológica no que se refere à construção de uma

realidade compartilhada. Na esteira dessa prerrogativa e afinado às proposições de

Bakhtin, Jésus Martín-Barbero – a partir de um lugar de escritura latino-americano –,

reforça a importância das reflexões sobre o gênero transcenderem à semântica e a sintaxe

41

textual, uma vez que, segundo o teórico, suas dinâmicas situam-se, mais propriamente,

sobre os jogos socioculturais que atravessam os modos de organização dessas narrativas.

Nessa medida, Martín-Barbero refuta a “redução taxonômica empreendida pelo

estruturalismo”, assim como abdica da noção de gênero como “propriedade de um texto”;

ao contrário, afirma que, no sentido que lhe interessa, “um gênero não é algo que ocorra

no texto, mas sim pelo texto, pois é menos uma questão de estrutura e combinatórias do

que de competência. (MARTÍN-BARBERO, 2006a, p.313-4, grifos do autor).

Nessa direção, Martín-Barbero empreende uma revisão epistemológica que

transcende ao estatuto do gênero enquanto conceito, exprimindo, através da

especificidade desse objeto teórico e empírico, um movimento mais amplo que abrange

o próprio campo comunicacional.

Os gêneros não podem ser estudados sem uma redefinição da própria

concepção que se teve da comunicação. Pois seu funcionamento nos coloca

diante do fato de que a competência textual narrativa, não se acha apenas

presente, não é unicamente, condição de emissão, mas também da recepção.

(MARTÍN-BARBERO, 2006a, p.304, grifos do autor).

O reconhecimento da amplitude social do gênero afina-se, assim, à perspectiva

interacional que, há algumas décadas, vêm se consolidando enquanto paradigma dos

estudos em Comunicação Social. Afinal, tanto Bakhtin quanto Martín-Barbero articulam

o conceito de gênero a partir das práticas de interação, isto é, com foco no terreno

empírico das relações que se angulam sócio-historicamente e que se atualizam em meio

a diversas esferas de ação discursiva. A redução dos fenômenos dessa natureza ao

domínio do texto, ao contrário, possui equivalentes nas perspectivas comunicacionais

mediacêntricas, na medida em que, em tal concepção, a engenharia produtiva dos media

sobrepõe-se às sondagens recepcionais e suas atividades criativas de apropriação.

Nesse contexto, o conceito de gênero assume a dimensão de uma categoria

cultural estratégica a partir da qual Martín-Barbero experimenta, no nível empírico e

metodológico, as premissas tracejadas por seu mapa noturno (no sentido de exploratório)

sobre o campo das relações entre comunicação e cultura. Na busca pela compreensão da

natureza comunicativa das relações culturais – isto é, a processualidade que insere as

práticas de comunicação em um universo pragmático de condicionantes ou estruturantes

de distintas naturezas – o teórico propõe um deslocamento analítico das articulações

mediacêntricas em direção ao lugar estratégico das mediações. Endosso, portanto, que o

lugar mediativo desempenhado pelo gênero não se refere apenas às competências de

42

interpretação e/ou apropriação do âmbito recepcional, perspectiva sugestiva de um

racionalismo dualista (produção – recepção) que pouco contempla a globalidade do

processo comunicativo (GOMES, 2011). Dessa forma, as mediações, para Martín-

Barbero, representam, entre outras acepções27, um espaço de atravessamento no qual se

imbricam formas distintas de produzir sentidos, onde atores sociais e práticas culturais se

urdem a partir de uma heterogeneidade de lógicas e competências. É nesse sentido das

mediações enquanto espaço – e não apenas como processo de cognição subjetiva, destreza

discursiva ou competência recepcional – que o teórico situa a complexidade dos gêneros,

particularmente, a dos gêneros televisivos, objeto empírico nucleador de suas

investigações. Por esse viés, o gênero projeta uma arquitetura comunicacional que opera

mediações entre a lógica dos formatos – princípios gramaticalizados pelo ritmo industrial

e pela competividade de mercado – e as lógicas do uso ou consumo28 – habitus de leitura

orientados pelas práticas cotidianas de recepção e pelos circuitos de circulação.

(MARTÍN-BARBERO; MUÑOZ, 1992; MARTÍN-BARBERO, 2003; MARTÍN-

BARBERO; 2006a).

Assim, Martín-Barbero articula o gênero a partir das matrizes históricas de um

horizonte prescrito socioculturalmente, inscrevendo-o, concomitantemente, no jogo

relacional que confere sentidos práticos aos processos comunicativos. Dessa forma, o

pesquisador aborda o conceito como ato pragmático de enunciação, assim como

processualidade sedimentada por saberes narrativos, técnicos e expressivos. Através de

caracteres transmissivos e recicláveis, essa dupla ancoragem (nas matrizes históricas e

nas dinâmicas contemporâneas) garante as condições de atualização e permanência do

gênero, o que, no caso da teleficção latino-americana, aponta para heterogeneidade

discursiva própria a tais arranjos de linguagem.

27 O termo mediação é aplicado por Martín-Barbero com flexibilidade conceitual, assim como a amplitude

semiológica de sua obra permite níveis variados de análise. Logo, tal operador suscitou, entre pesquisadores

e comentadores, tantas significações quanto críticas metodológicas. Explicito, assim, que a angulação

matriciadora deste trabalho relaciona-se, mais diretamente, à noção de lugar mediativo como zona de

enunciação e tensionamento de sentidos sociais. Sobre os sentidos possíveis relativos ao conceito de

mediação, ver o trabalho de Luiz Signates, “Estudos sobre o conceito de mediação”, publicado pela Revista

Olhares (2008). Disponível em: <http://revistas.usp.br/novosolhares>. 28 Consumo entendido em sentido complexo, isto é, “(...) no sólo reproducción de fuerzas sino producción

de sentido: lugar de una lucha que no se agota en la posesión de los objetos pues pasa aún más

decisivamente por los usos que les dan forma social y en los que se inscriben demandas y dispositivos de

acción que provienen de las diferentes competencias culturales.” (MARTÍN-BARBERO; MUÑOZ, 1992,

p.5). Livre tradução: “(...) não apenas reprodução de forças mas também produção de sentido: lugar de uma

luta que não se esgota na posse dos objetos pois passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes dão

forma social e nos quais se inscrevem demandas e dispositivos de ação que provêm das diferentes

competências culturais”.

43

Nessa medida, o gênero teledramatúrgico transforma-se em uma terceira via a

partir da qual se costura um emaranhado de intencionalidades sociais, o que engendra

espaços de urdidura entre formatos e imaginários, textos e textualidades, narrativas e

sociabilidades. Logo, o gênero não se resume às obras teleficcionais, nem mesmo aos

seus fluxos de circulação e tampouco à junção dessas práticas. Ainda que cada novela

movimente e atualize a teledramaturgia de uma forma específica, o gênero, em sua

dimensão imaterial, constitui uma terceira margem mediadora das linguagens

mobilizadas por certas condições enunciativas, tanto no âmbito das televisualidades,

quanto das narratividades colocadas em circulação pelas práticas recepcionais.

Nesse contexto, apresento a cartografia das mediações publicada por Martín-

Barbero no prefácio à 5ª edição espanhola do livro “Dos meios às mediações” (2006a,

[1999]), desenvolvida, posteriormente, em “Ofício de cartógrafo” (2004). Aqui, interessa-

me situar o conceito de gênero no bojo articulador de todas as categorias propostas pelo

teórico – o centro ocupado no desenho original pela interseção entre comunicação, cultura

e política –, entendendo que este exercício sinaliza um esforço em particularizar um

modelo de ampla envergadura a partir dos traços de um jogo específico de linguagem.

Essa conjunção entre a dimensão abstrata da cartografia (especulativa ou tentativa do

ponto de vista teórico-metodológico) e um conjunto de manifestações empíricas, sustenta

parte considerável das reflexões do próprio autor, o que sinaliza a pertinência em retomar,

neste espaço, tais categorias.

Figura 1: Mapa das mediações (Adaptado). Fonte: MARTÍN-BARBERO, 2006a, p.16.

Localizo, assim, o gênero sobre os dois principais eixos que compõem o mapa

representado na Figura 1: o eixo diacrônico estabelecido entre Matrizes Culturais (MC)

44

e Formatos Industriais (FI) e o eixo sincrônico situado entre as Lógicas de Produção (LP)

e as Competências de Recepção (CR).

O primeiro desses eixos caracteriza-se por uma relação de diacronia entre seus

operadores, isto é, pelo caráter trajetivo que, a partir de um nexo espaço-temporal, dá

forma a sucessivos estados narrativos e socioculturais. Situar o gênero teledramatúrgico

sobre tal dialogismo histórico implica na consideração, por exemplo, das origens teatrais

do melodrama, das estratégias de comercialização dos folhetins impressos, dos recursos

expressivos da radionovela, das condições produtivas e recepcionais dos primórdios da

televisão e das diferentes fases da teledramaturgia nacional. Em contrapartida, a sincronia

entre as lógicas produtivas e as competências recepcionais conforma-se a partir das

mediações práticas que, em situações concretas do cotidiano, modulam o jogo de

discursividades do gênero. Nesse sentido, interessam as condições sociais, políticas,

econômicas, culturais e comunicacionais que, num dado período, concorrem para o

funcionamento da economia teleficcional.

A partir das relações suscitadas pelo cruzamento desses eixos, Martín-Barbero

propõe quatro instâncias de mediação dos processos comunicativos. Seccionando o mapa

em seu eixo sincrônico, percebe-se que o teórico aponta a atuação de duas mediações em

cada um dos polos evidenciados. Nesse esquema, as lógicas produtivas encontram-se

mediadas por relações de institucionalidade – que, imbricadas às matrizes culturais,

traduzem uma trama densa de interesses e poderes contrapostos – e de tecnicidade –

relacionadas aos formatos industriais desencadeadores de diferentes competências

comunicativas; na outra secção, as competências recepcionais encontram-se mediadas

pela sociabilidade – complexo interacional estabelecido a partir de um conjunto de

relações cotidianas – e pela ritualidade – nexo simbólico que sustenta as práticas de

comunicação em função da relação público/formato.

Por fim, destaco que Martín-Barbero vem trabalhando, desde o início da última

década, a partir da mediação da tecnicidade, com foco na variante da visualidade. Sobre

tal angulação, o teórico situa a tecnologia em um lugar cada vez mais operante dentro da

cultura e das sociedades contemporâneas, articulando-a a partir da condição estruturante

de seus aparatos, já que, “a tecnologia remete hoje não a novas máquinas ou aparelhos,

mas a novos modos de percepção e linguagem, a novas sensibilidades e escritas”.

(MARTÍN-BARBERO, 2003, p.35, grifos do autor). Nessa direção, o pesquisador pontua

que “(...) a envergadura atual das hibridações entre visualidade e tecnicidade (...) resgata

as imagísticas como lugar de uma estratégica batalha cultural”. (MARTÍN-BARBERO;

45

REY, 2002, p.16). Nesse contexto, diante do enfraquecimento da cifra simbólica que

interrelaciona passado e futuro – processo desencadeado pela des-ordem cultural e pela

fragmentação social –, a mediação efetuada pelas imagens passa a desempenhar um duplo

papel: de um lado, o espetáculo transforma o desejo de saber em pulsão de ver, o que

deflagra a “encenação de uma liberação perversa do desejo cujo outro não é mais que o

simulacro fetichista de um sujeito que, ele próprio, se tornou objeto”. (MARTÍN-

BARBERO; REY, 2002, p.16, 17, grifo dos autores).

Em outra medida, o pesquisador vislumbra novas formas de organização do

espaço público a partir da complexificação do circuito midiático: afinal, a mediação da

visibilidade estendida por múltiplas telas abre brechas à representação e ao

reconhecimento de minorias, fazendo emergir figuras de cidadania que pluralizam a

arena política. (MARTÍN-BARBERO; REY, 2002; MARTÍN-BARBERO, 2006b).

Assim, constata-se que a visualidade eletrônica abriga os anseios de uma visibilidade

cultural, empreendendo novos modos de simbolização e ritualização dos laços societários

a partir dos espaços gerados pelas redes de interação e por fluxos audiovisuais.

3.4.3 Crise dos Gêneros?

Em decorrência das reconfigurações resultantes das práticas de globalização,

Martín-Barbero (2006b) sugere que os movimentos de desterritorialização estão minando

lugares tradicionais de pertencimento sociocultural. Enquanto, por um lado, o teórico

enquadra a lógica da proliferação dos formatos no campo das estratégias comerciais –

combinatória sem conteúdo, arranjo puramente sintático –, por outro, busca mensurar o

gênero a partir de sua densidade simbólica e da conservação dos efeitos de

reconhecimento em uma comunidade cultural. Nessa medida, chega à conclusão de que,

em um contexto de crescente des-ordenamentos, os gêneros estariam em crise e formatos

expandindo-se.

Entretanto, interponho que, a meu ver, o que parece estar em crise não é a

concepção de gênero enquanto espaço de mediações, mas sim, a perspectiva do gênero

como instrumento mediador de certa forma de produzir e consumir narrativas. Assim,

torna-se fundamental investir em uma distinção entre o gênero como instância, fator ou

instrumento de mediação e o gênero como lugar mediativo. A primeira dessas acepções

abrange a dimensão do gênero como horizonte de espera (TODOROV apud BORELLI,

46

1996) ou horizonte de expectativas (JAUSS, 2011), remetendo, assim, às características

estáveis que padronizam a fabulação a partir das “promessas” produtivas e recepcionais.

Em certa medida, o gênero como “instrumento de mediação das projeções e identificações

na relação com o público receptor” (BORELLI, 1996, p.180) sinaliza um importante

aspecto heurístico dos textos produzidos sobre certa alçada narrativa e estilística.

Tal horizonte – que acredito ser constitutivo da experiência genérica, mas não em

sua completude – relaciona-se, no âmbito da produção, ao conforto da padronização

(modus operandi que operacionaliza fórmulas de sucesso), enquanto, pela ótica da

recepção, ancora-se no princípio do reconhecimento narrativo – este, colocado por

Martín-Barbero (2006a) como fonte de legitimidade das matrizes melodramáticas através

da ativação de competências culturais fundadas sobre estratos da memória coletiva. Por

outro lado, essa dimensão mediativa do gênero é diferente daquela que venho articulando

preferencialmente nesta reflexão. Nesse sentido, destaco não apenas as mediações que se

dão a partir do gênero (como atributo de cognição, seja da produção – competência

comunicativa –, seja da recepção – competência leitora), mas, particularmente, as

mediações que se desenrolam sobre o nível do gênero isto é, o liame comunicativo que

revela a natureza interacional desse tipo de experiência, as marcas dialógicas de sua

presença sócio-histórica, e ainda, as formas de espacialização que conectam produtores e

receptores a partir de diversas textualidades.

Nesse âmbito, Silvia Borelli (1996, p.188) afirma que “a reposição de matrizes

culturais tradicionais por meio dos gêneros ficcionais colabora na salvação das origens,

no resgate da memória individual e coletiva, e na restauração da experiência”. Ainda no

entendimento da autora, esta suposta salvação das origens só seria possível a partir de um

processo de aclimatação29, isto é, pela renovação da ecologia midiática sobre a qual se

fundam as relações em torno do gênero. Contanto, aquilo que, a princípio, figuraria uma

contradição – a mudança como fator de manutenção de uma origem – evidencia uma

lógica constitutiva da própria experiência teledramatúrgica, a saber, as condições de

transmissibilidade que deslocam certa família de narrativas pelo eixo das diacronias

29 Sílvia Borelli aponta que, em perspectiva mais abrangente e antropológica, os gêneros ficcionais se

revelam como elementos de constituição do imaginário e das mitologias contemporâneas, através dos quais

concorrem para “reposição arquetípica, aclimatação do padrão originário a uma nova ordem e instrumento

de mediação das projeções e identificações na relação com o público receptor”. (BORELLI, 1996, p.180,

grifos meus). Tais facetas traduzem o jogo entre a produção industrial das narrativas teleficcionais e os

canais de infiltração das demandas populares nas brechas do entretenimento massivo. Nesse sentido,

destacam-se os mecanismos de (re)composição da memória e do imaginário coletivo, responsáveis em

acionar, a partir de competências narrativas e textuais, matrizes culturais que alimentam diversos grupos e

temporalidades sociais.

47

espaço-temporais, conferindo-lhe espessura e densidade simbólica a partir de sucessivas

transmutações, para, assim, assentá-la sobre o campo da memória e da tradição social.

Nessa medida, pergunto se a alegada crise dos gêneros não pode ser interpretada

como sintoma dos movimentos que – lento e diacronicamente, ou rápido e

sincronicamente – reconfiguram o campo prático de produção, veiculação e circulação

ficcional. Afinal, conforme coloca Bakhtin (2003, p.293), “os gêneros do discurso, no

geral, se prestam de modo bastante fácil à reacentuação”. Os atuais deslocamentos

teleficcionais seriam, assim, um reflexo dessa mobilidade narrativa ou, em razão

contrária, sinalizariam outros fluxos ficcionais, responsáveis até mesmo pelo rompimento

frente certas origens da telenovela?

Sem adotar nenhuma resposta definitiva, coloco que, a meu ver, algumas

mudanças abalam e/ou readequam tradições teledramatúrgicas, tanto no nível produtivo

quanto recepcional/circulatório. Por outro lado, reafirmo que a alegada crise no gênero se

dê, mais perceptivelmente, em suas formas instrumentais de mediação, isto é, nas

tipicidades que condicionam, textualmente, fórmulas narrativas e modos de apropriação.

Nesse sentido, os gêneros em geral, e a teledramaturgia em particular, sofrem violenta

crise quando comparados aos formatos bem delineados de décadas atrás. Entretanto,

valendo-se da condição pragmática que semantiza as manifestações genéricas – princípio

teórico presente tanto em Bakhtin, quanto em Martín-Barbero – essa suposta crise parece

refletir um conjunto mais amplo de mudanças abarcado pela contemporaneidade (em

nível narrativo, social, cultural e comunicacional), sendo sua manifestação um indício da

afinidade intrínseca entre as telenovelas e as condições extratextuais que lhe garantem

ancoragem no presente. Ao que me parece, no caso da telenovela, a crise do gênero

sinaliza apenas um esforço, consciente ou não, em prol de sua sobrevivência.

3.5 Matrizes Sociais e Ficcionais do Espaço

3.5.1 Espaços em Movimento

A experiência espacial de uma sociedade não pode ser analisada à parte do conjunto

de práticas que, simbólico ou materialmente, confere uma série de usos, funções e valores

a um dado contexto histórico-social. Nesse sentido, as sociedades de poucos séculos atrás

inscreviam-se em uma dimensão espaço-temporal radicalmente diferente daquela

48

vivenciada hoje. Desse comparativo emerge um revés curioso, definido por condições nas

quais “(...) se o sujeito da modernidade primeira estava feito de tempo, o de hoje em dia

também está, e ainda mais, de espaço”30. (MARTÍN-BARBERO, 2006c, s/p).

Percebe-se, assim, que os espaços não correspondem apenas ao conjunto de

fisicalidades que compõem certa paisagem geográfica – seus aspectos visíveis –, mas

relacionam-se ainda aos fluxos sociais que lhes permitem distintas configurações e

possibilidades de experimentação. Logo, as matrizes espaciais advêm de diversas origens,

relacionando-se tanto às condições naturais e/ou artificiais de modulação paisagística,

quanto aos fluxos criativos que geram formas de espacialização a partir dos usos,

apropriações e trânsitos sociais (configurações oriundas da organização dos meios de

produção, das relações de sociabilidade, dos horizontes morais, da mobilização de

imaginários, entre outros).

Essa reflexão filia-se às perspectivas espaciais de Milton Santos, para quem o

espaço é constituído pela interação entre um sistema de objetos e um sistema de ações,

sendo que, a partir da mútua afetação entre tais fatores, “o espaço encontra a sua dinâmica

e se transforma”. (SANTOS, 2008, p.52). O teórico afirma ainda que esses objetos e ações

encontram-se arranjados por uma lógica que é, ao mesmo tempo, “a lógica da história

passada (sua datação, sua realidade material, sua causação original) e a lógica da

atualidade (seu funcionamento e sua significação presentes)” 31. (SANTOS, 2008, p.63).

Por sua vez, essas dialéticas espaciais – entre objetos e ações, ou fluxos e fixos (SANTOS,

1997), e ainda, entre múltiplas temporalidades – nos leva a inferir acerca da natureza

histórica e multicondicionada da experiência social.

Seguindo os rastros foucaultianos em direção às trilhas históricas de diferentes

composições espaciais, interponho que, séculos atrás, o espaço marítimo era tão

misterioso e desafiador quanto, contemporaneamente, nos é a infinitude do espaço sideral.

Em decorrência de um período no qual o desenvolvimento tecnocientífico ainda não

permitia condições amplas de mobilidade, o mundo da vida do homem comum àquela

30 Livre tradução. Trecho original: “(...) si el sujeto de la modernidad primera estaba hecho de tiempo, él

de hoy en día está hecho también, y tanto más, de espacio”.

31 Acredito que a mudança do binômio “fixos/fluxos” para “sistema de objetos/sistema de ações” deva-se,

particularmente, a uma revisão de Milton Santos acerca do estatuto das condições materiais do espaço.

Nesse sentido, substituir o termo “fixo” – sugestivo de uma ideia de “enraizado” – pela expressão “sistema

de objetos” traduz uma perspectiva epistemológica que relativiza a positividade das modulações

geográficas sobre as formas de produção espacial. Por outro lado, no caso desta reflexão e da aplicação do

termo às teletopias da ficção, opto por trabalhar com o par conceitual “fixos/fluxos”, tendo em vista a

simplicidade da notação e, logo, a possibilidade de utilizá-la de forma mais corrente.

49

época atrelava-se fortemente ao contato com a terra e ao determinismo de suas raízes –

ou seja, ao solo mãe a partir do qual se desenhava a geografia física e humana de uma

porção de planeta que lhe valia como a totalidade do globo. Nesse espaço de limites –

onde, a dimensão do lugar ampliava-se em função de contingências territoriais (nos

termos de DUARTE; FIRMINO, 2011) –, as temporalidades profundas das heranças

campesinas assomavam-se ao fascínio temerário despertado pelos espaços “outros” dos

marinheiros, o que o filósofo Walter Benjamin (1993) identificou como matéria-prima

para narração da experiência forte.

A partir da guinada cientificista iniciada na transição entre os séculos XVII e XVIII,

percebe-se o princípio de uma mudança nas condições de produção e, logo,

experimentação espacial, marcada, progressivamente, pela passagem da ruralidade de

outrora para a potência de uma tecnoracionalidade em curso. Nesse processo, inscrevem-

se os primeiros movimentos de emancipação frente as hierarquias espaciais que, até então,

cartografavam a vida em sociedade – os chamados espaços de localização32

(FOUCAULT, 2006) –, tendo vista o surgimento de novos fluxos que alteraram os

sistemas arranjados pelas hegemonias feudais e pelas cartilhas de poder. Já nos séculos

recentes, inaugura-se um novo regime de experimentação social, caracterizado, entre

outros fatores, por múltiplas formas de espacialização – arranjos mais flexíveis que

friccionam diferentes matrizes espaciais, na medida mesma em que promovem uma densa

economia de intercâmbios entre culturas e sociedades. Mediante as rearticulações da

contemporaneidade, outras configurações espaciais tomam forma social, no caso, os

chamados espaços de posicionamento (FOUCAULT, 2006) – modos flexíveis de

articulação e conversão de uma experiência espaço-temporal em outra, o que, a todo

tempo, aproxima e afasta diferentes matrizes sociais e subjetivas. Na avaliação de

Foucault, esse dinamismo espacial faz com que nossa época seja, sobretudo, a época do

espaço. Diz ele: “(...) vivemos na época da simultaneidade: nós vivemos na época da

justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado e do disperso”. (FOUCAULT,

2006, p.54).

32 Os espaços de localização remetem à Idade Média, ao “conjunto hierarquizado de lugares: lugares

sagrados e lugares profanos, lugares protegidos e lugares, pelo contrário, abertos e sem defesa, lugares

urbanos e lugares rurais (onde acontece a vida real dos homens); para a teoria cosmológica havia lugares

supra celestes opostos ao lugar celeste e o lugar celeste, por sua vez, opunha ao lugar terrestre; havia o lugar

onde as coisas se encontravam colocadas por elas tinham sido violentamente deslocadas e depois os

lugares, pelo contrário, onde as coisas encontravam sua localização e seu repouso naturais. Toda essa

hierarquia, essa oposição, esse entrecruzamento de lugares era o que se poderia chamar bem grosseiramente

de espaço medieval, espaço de localização”. (FOUCAULT, 2001, p.57).

50

As formas de gerar e entrever os espaços sofrem, portanto, intensos deslocamentos,

tendo em vista o desenvolvimento de condições que amplificam os modos de interação

social, gerando, por consequência, espacialidades estendidas que englobam contextos que

distam léguas entre si. Diante dos processos mais hodiernos – marcados pela sofisticação

tecnológica e pela intensificação da cultura digital online –, Pierre Lévy (1999) sublinha

que a esfera cada vez mais generalizada do virtual vem alterando concepções espaço-

temporais a partir de fluxos de desterritorialização e desprendimento, que, valendo-se de

operações tecno-imagísticas, concorrem para certas formas de reinventar o mundo (afinal,

a mediação das visualidades é cada vez mais espessa e constitutiva dos regimes

contemporâneos de sociabilidade). A virtualidade arma-se, portanto, como uma dimensão

modalizadora da experiência, o que revela fecundas intersecções entre os fluxos

significantes que compõem a materialidade do cotidiano e suas projeções imagísticas e

discursivas. Nesse contexto a dimensão virtual adquire a condição de extensionamento

das experiências sociais – como coloca Muniz Sodré (2002), uma função reguladora de

prótese pela qual a organização das formas de bios (costumes, condutas, cognição,

sensorialismo) passa a ser ordenada por exterioridades técnicas que hipersimbolizam (e,

não raro, dessemantizam) os vínculos sociais33.

Ressalvo, porém, que tal análise evoca certa disparidade quanto às perspectivas

crítico-reflexivas lançadas sobre as experiências contemporâneas, particularmente, no

tocante à virtualização das práticas de interação social. Por um lado, denuncia-se a

banalização dos atuais mecanismos de sociação, bem como sua subserviência econômica,

cultural e midiática aos princípios do capital – estes ligados às estruturas de poder de

natureza supranacionalista, à lógica padronizante da cultura do entretenimento e ao

esvaziamento das relações interpessoais. Por outra visada, menos delatória, os regimes

espaciais e as dinâmicas de socialização da atualidade são vistos em razão de sua

multiplicidade constitutiva, sendo variáveis de acordo a cada contexto interacional, e,

ainda, condizentes a processos diacrônicos que lhes conferem espessura histórico-social.

Nessa direção, as atuais matrizes espaciais não podem ser colocadas em razão de

33Interponho que a ideia de um espaço virtual – “criação computadorizada de ambientes artificiais e

interativos” (SODRÉ, 2002, p.16) – não deve, conforme adverte o próprio Pierre Lévy, ser interpretada

com base numa oposição simplista às chaves oferecidas pela realidade concreta. Afinal, o intercruzamento

das experiências de mundo com as mediações tecnológicas constitui a própria natureza humana, sendo a

técnica uma dimensão da linguagem que revela as “razões de ser” de nossa racionalidade. Esta conclamação

de esforços para um pensamento único global sobre a dimensão simbólico-material da experiência almeja,

entre outros objetivos, evitar a polarização valorativa que ufaniza os entes do real em contrapartida à

pejoração dos fenômenos virtuais, estes reduzidos à condição vicária de mentira ou simulação.

51

suspensão frente às diacronias que lhe assentam sobre condições pragmáticas de

socialização, isto é, um conjunto de condicionantes que permitem a operacionalização de

certas transformações em meio a uma formação sociocultural.

Um exemplo dessa variedade de implicações das atuais disposições sociotécnicas

foi diagnosticado por André Jansson (2013) através de trabalho empírico junto a famílias

de classe média de uma pequena cidade sueca. A partir de entrevistas em profundidade,

o pesquisador concluiu que “(...) a natureza social e moralmente moldadora das texturas

transmídias (...) tende a reforçar mais os padrões sociais centrípetos do que os

centrífugos”34 (JANSSON, 2013, p.282). Ao contrário do pressuposto à individualidade

das tecnologias digitais (no sentido da portabilidade/pessoalidade dos suportes e do

fascínio com a dimensão virtual do self), Jansson observou que, nas famílias interpeladas,

as texturas transmídias conduziram os fluxos de comunicação e as possibilidade tecno-

interativas em direção ao “coração doméstico” das experiências sociais, ou seja, ao bojo

de suas práticas familiares e/ou afetivas. Esse apontamento sugere que as crenças, os

valores e os hábitos não necessariamente desaparecem mediante à expansão das

ideologias individualistas modernizantes, uma vez que o fato da sociedade ser, por

natureza, heterogênea, produz diferentes dinâmicas e alternativas de experienciação.

No caso das teletopias, essa ambivalência crítico-reflexiva direcionada às matrizes

espaciais da contemporaneidade revela-se a partir do âmbito produtivo/narrativo e

recepcional/circulatório. No primeiro sentido, o intercâmbio entre espaços ficcionais

mundiais (no audiovisual, representados, particularmente, pelas séries de televisão e pelo

cinema) geram formas de representação simbólica que, não raro, acabam rendendo-se à

estética do entretenimento “globo-americanizado”, apostando em fórmulas de sucesso e

repetindo clichês da indústria (pop)cultural. Em outra medida, essa apropriação acaba por

evidenciar matrizes locais que, ao operar dialéticas, dialogismos e/ou hibridismos,

definem múltiplas e singulares formas de “ser mundo”. Em outras palavras, nenhuma

cultura midiática e ficcional traduz as hegemonias simbólicas de forma equivalente, o que

significa pensar a globalização como “fluxo” e as estruturas mais arraigadas no campo da

cultura e da memória como “fixos”, sendo a dialética entre tais elementos responsável

pela geração de “múltiplas e diferentes globalidades”. Nessa direção, a pesquisadora Ien

Ang acrescenta ainda que

34 Livre tradução. Trecho original: “the socially and morally molded nature of transmedia textures (...)

tends to reinforce centripetal rather than centrifugal social patterns”.

52

(...) essa modernidade capitalista global não só representa um mundo cada vez

mais interconectado e interdependente, mas também tem gerado a proliferação

de novas versões da cultura moderna – incluindo a cultura televisiva – que

acentuam a importância de identidades particulares e suas diferenças com um

americanismo hegemônico. Em suma, essa cultura global é caracterizada

simultaneamente pela homogeneização e heterogeneização, por suas

similaridades e suas diferenças. (ANG, 2010, p.92).

Do ponto de vista recepcional, por sua vez, as experiências interativas em rede

geram novos modos de estar junto e de estar em relação, o que confere diferentes

densidades às relações desenvolvidas em diversos âmbitos da vida (familiar, pessoal-

profissional, amoroso, cidadão...). Nesse sentido, as texturas transmídias podem conduzir

ao coração doméstico ou a outras cartografias afetivas (incluindo aí as mais

individualistas e presenteístas35), o que, a meu ver, evidencia que a “razão de ser” da

tecnologia reside não apenas em uma questão de disponibilidades pré-programáveis, mas

também em formas de usos e apropriações. Assim sendo, no contexto da telenovela, a

web pode atuar como mecanismo de reposicionamento recepcional, no sentido de retirar

o telespectador de uma hipotética interação presencial (em grupo, familiar ou não) e

transportá-lo a outros espaços, no caso, marcados pela virtualidade e por diferentes

lógicas socializantes; por outro lado, a produção recepcional divulgada na rede também

pode ser compartilhada em nível familiar, e ainda, a própria web-audiência pode constituir

habilidades interativas que se desenvolvam tanto nos espaços de interlocução online

quanto presenciais.

Afinal, conforme já colocado, diferentes estruturas culturais e temporalidades

sociais colocam-se em atritagem através das teletopias, seja pelo ponto de vista pessoal-

cognitivo (articulação de competências comunicativas e leitoras), seja pela disputa por

sentidos materializados em textos ficcionais (oficiais ou espontâneos). Nesse âmbito,

considero mais proveitoso adotar, como perspectiva crítico-reflexiva, a pluralidade e a

heterogeneidade da experiência espaço-ficcional contemporânea. Afinal, é desse campo

de diferenças que os nexos de sociabilidade retiram sua significância, sua articulação, seu

sentido social enquanto força agregativa e discriminatória (no sentido daquilo que nos

pertence e/ou representa, e aquilo que não). As teletopias, tomadas como espaço

35 O pensador francês Michel Maffesoli (2005) define o presenteísmo como uma espécie de força agregativa

que organiza “grupos efêmeros, sem a obsessão da continuidade ou da perspectiva extensiva (ex-tendere),

mas interessados na qualidade da participação, (...) perspectiva intensiva (in-tendere)”. Esse deslocamento

das formas de sociabilidade – dos laços tradicionais e verticalizados à composição efêmera e aleatória –

pode ser verificado no caso teledramatúrgico, quando, sintomaticamente, a recepção começar a galgar

espaços outros nos quais os sentidos são, coletivamente, tecidos, indo além (sem, necessariamente estar

aquém) das salas de televisão.

53

mediativo de disputas tão reais quanto simbólicas, e como tal, espaço de constituição de

solidariedades e desigualdades, dinamizam-se a partir das inovações e de memória, e,

principalmente, pela forma única singular como tais fatores são conjugadas através das

interacionalidades do gênero.

3.5.2 Teleficção em Trânsito

Assim como os espaços sociais e cotidianos, as espacialidades organizadas sobre

ou a partir da teleficção também são dotadas de dinamismo histórico, tendo em vista,

sobretudo, a ação mediativa do gênero e seus consequentes fluxos de atualização. Nessa

direção, entre outras mudanças verificadas sobre os atuais modos de produzir, consumir

e fazer circular a teleficção, destaco a forma como tais narrativas vêm gerando diferentes

espaços de narração e de sociabilidade, principalmente quando se compara a atual

tessitura teletópica aos lugares originalmente ocupados pelas novelas na cultura midiática

do país.

Dentro desse contexto, relembro que, com o advento da televisão no Brasil (anos

50 do século passado), os folhetins tiveram sua origem ligada ao teleteatro e à

radionovela, de forma que grandes nomes da arte brasileira – atores e diretores – passaram

a atuar no veículo. Do ponto de vista da audiência, a amplitude de públicos era tão restrita

quanto a incipiente produção ficcional, já que apenas uma seleta classe possuía condições

financeiras para adquirir a tecnologia televisiva. Nessa medida, a origem da

teledramaturgia não evidenciou a “comunidade imaginada”36 então aclarada por outros

formatos, como, por exemplo, as novelas radiofônicas. Ao contrário, sua primeira década

de veiculação foi marcada pelo teste de fórmulas no âmbito produtivo e por limitações no

campo receptivo, sendo que, à grande massa, cabia vislumbrar fragmentos de imagens

em televisores espalhados por pontos estratégicos do espaço público e nas lojas de

eletrodomésticos. Diante desse contexto, o consumo da teleficção na primeira década da

36 O conceito de “comunidade imaginada” foi cunhado originalmente por Benedict Anderson em referência

aos sentimentos de identificação coletiva gerados pelos estados nacionais europeus. O termo foi apropriado

por Lopes (2002) para análise da comunidade de sentidos articulada em torno das narrativas teleficcionais

– transposição cuja pertinência justifica-se pela atuação da telenovela na prescrição de imaginários

nacionalizantes, pela amplitude das representações telemediadas, e, sobretudo, pela capacidade de

arregimentação massiva dos folhetins. Dessa forma, a presença teledramatúrgica alicerça a sociedade sobre

espaços ficcionais que referenciam processos de interação social (as teletopias da ficção), estabelecendo

assim, uma esfera comum de projeções simbólico-afetivas.

54

TV encontrava-se demarcado por territorialidades econômicas, sociais e culturais que

transformavam a tecnologia televisiva em um instrumento de diferenciação entre classes.

Anúncio publicado na revista “O Cruzeiro”. Destaque para o texto que oferece não somente os aparelhos

televisores, mas a oportunidade de ver, nas lojas “General Eletric”, “a televisão em funcionamento regular”.

“Vá ver a Televisão nos revendedores G.E.!”. Fonte: Acervo da Associação Brasileira de Imprensa

(extraído de BARBOSA, 2010).

Por outro lado, a chegada da televisão ao país assentou, desde suas primícias, uma

relação que, anos mais tarde, revelar-se-ia uma marca indelével da cultura midiática

55

brasileira. Se, por um lado, as imagens em movimento já não eram, propriamente, uma

novidade (a primeira sessão de cinema havia ocorrido no final do século XIX), por outro,

sua projeção doméstica gestou uma sensação de progresso que conectava cada espectador

aos rumos da modernidade anunciada; assim, mesmo aqueles que apenas admiravam a

pequena tela no espaço público, experimentavam outra cidade mediante aos fluxos de

imagens preto-e-branco que emanavam de algumas poucas vitrines. A TV sintonizou-se,

portanto, aos projetos desenvolvimentistas da época – conduzidos, particularmente, pelo

presidente Juscelino Kubitschek –, sinalizando, desde tal origem, a potência

nacionalizante de sua mediação tecnossimbólica.

A partir da década de 1970, os aparelhos televisores já estavam em franco processo

de popularização. Nesse período, a telenovela aproxima-se de formatos mais sólidos,

marcados por estruturas produtivas complexas (novas rotinas de trabalho, produção diária

de capítulos, profissionalização das emissoras), além de modos próprios de

ficcionalização (modernização narrativa, apelos realistas, suavização dos barroquismos

melodramáticos). Essas transformações, por sua vez, foram fundamentais para que a

televisão deixasse de ser um instrumento de territorialização de classes e pudesse se

converter em um lugar de diferentes mediações socioculturais, expressando, desse modo,

sua dimensão amplamente socializante, conectada às dinâmicas de construção da

realidade “nacionalmente” compartilhada.37

De forma análoga, percebe-se que, na atualidade, os processos contemporâneos

de narrativização e recepção teleficcionais seguem transmutando-se, o que resulta em

novas configurações às experiências teletópicas. Diversos fatores concorrem para essa

mudança, como, por exemplo, a naturalização do fluxo televisivo, o desenvolvimento de

competências narrativas e tecnodiscursivas e a complexificação dos lugares

teledramatúrgicos. Além disso, conforme exposto na sequência, o contexto das

sociedades midiatizadas vem renovando a ecologia midiática, o que pluraliza e intensifica

os modos de relação entre os espaços e ficção.

37 Esse processo de implementação da indústria cultural no Brasil – potencializado pelo advento da TV e

pelo fortalecimento das redes e conglomerados nacionais de comunicação – foi analisado por Renato Ortiz

(1988) a partir da interrelação entre distintas temporalidades sociais, culturais e tecnológicas – fenômeno

descrito pelo autor como a “coexistência do não-coetâneo” (ORTIZ, 1988, p.32). Nesse sentido, a TV, ao

projetar fluxos de circulação nacional, gerou espaços nos quais modernas tradições passaram a ser

figuradas. Sobre essas tradições, Ortiz (1988, p.208) escreveu: “Poucas vezes pensamos como tradicional

um conjunto de instituições e de valores que, mesmo sendo produtos de uma história recente, se impõe a

nós como uma moderna tradição, um modo de ser. Tradição enquanto norma, embora temperada pela

imagem de movimento e rapidez.”

56

Diante desses reordenamentos, derivo uma breve reflexão sobre a TV enquanto

presença naturalizada pelos imaginários contemporâneos, decorrência, entre outros

fatores, da coloquialidade que familiariza o discurso televisivo a partir da simulação de

um contato (Martín-Barbero, 2006a). Nesse sentido, enquanto teletopia, o processo

diacrônico de naturalização televisiva indica a forma como tal mídia inseriu-se sobre a

vida social, atuando juntos aos circuitos domésticos e públicos do país – o que, a meu ver,

permitiu-lhe desempenhar os papeis de mediação que transformam essas narrativas em

agentes de intensa espacialização.

Entretanto, em vista do “boom tecnológico” das décadas recentes, os atores sociais

da contemporaneidade transitam por contextos midiatizados que naturalizam não apenas

a televisão, mas, inclusive, a própria cultura digital em rede. Assim, se na década de 1950

as imagens televisivas descortinavam uma janela para o progresso, atualmente, a TV

integra sítios de absoluta familiaridade. Nesse sentido, importante destacar que, se

enquanto mídia, a televisão foi plenamente incorporada às dinâmicas mais cotidianas, em

outra medida, as “aventuras da imagem”, em seus variados e cada vez mais sofisticados

modos de projeção, continuam perfazendo os imaginários da audiência, como nos mostra

a variedade de lançamentos que movimentam o mercado de televisores (aparelhos de

plasma, LCD, LED, 3D). Além disso, o sinal digital – lançado no Brasil entre 2007 e

2008, em processo de ampla implementação –, resulta em outras tonificações às

representações televisionadas, cada vez mais hiperrealistas, ocasionando, portanto,

distinta formas de entrelaçar espacialidades físicas e representações espaciais.

Afinado a esse contexto de diversificação e sofisticação tecnológica, à tradicional

sociabilidade desencadeada pelos folhetins – as discussões em família, a conversa de

vizinhos, o papo rápido entre desconhecidos – assomam-se outras formas de vinculação

a partir da teleficção, isto é, diferentes mecanismos de criação de audiências e de formas

de interação entre seus interlocutores. Entre eles, destacam-se as tecnologias digitais e em

rede, que, ao atuarem como espaços de circulação de sentidos sociais, redimensionam as

competências recepcionais e as próprias lógicas produtivas mobilizadas em torno das

telenovelas; afinal, as novas tecnologias desencadeiam processos que alteraram não

apenas a difusão de conteúdos e o imaginário da audiência, mas também a própria maneira

de conceber e produzir esse tipo de ficção no país.

57

3.5.3 A Crescente Midiatização das Teletopias

Encerro este capítulo teórico refletindo acerca das condições que, no contexto da

midiatização, vêm deslocando os modus operandi das teletopias brasileiras. Nesse

intento, opero, de saída, uma distinção entre a atual disposição sociotécnica das

sociedades midiatizadas frente à chamada “sociedade dos meios ou midiática” (FAUSTO

NETO, 2008). Nesta última, conforme indicado pela notação, a mídia configura-se como

um campo social autônomo, em vista de um espaço social e midiático assentado sobre

intensos agenciamentos simbólicos e materiais, no caso, oriundos de vetores específicos

e identificáveis; por sua vez, nas sociedades midiatizadas ou “em vias” 38 de midiatização,

a práxis midiática espraia-se pelos diferentes modos de arranjar e relacionar circuitos

informacionais, discursivos, mercadológicos, estéticos etc., o que implica na emergência

de novos vínculos de sociabilidade e possibilidades diversas de interação social; trata-se,

portanto, de uma nova conformação que rearticula, sem ultrapassar, o exercício das

agências de outrora.

Nesse contexto, Muniz Sodré (2002) entende a midiatização como reflexo de uma

nova forma de vida, um bios midiático que dá a ver um processo contemporâneo de

referenciação social e subjetiva, ambiência sobre a qual se constitui um ethos midiatizado

marcado por diferentes mecanismos interacionais e variados níveis de engajamento ou

vinculação social. Afinado à essa perspectiva, José Luiz Braga (2006) aponta que a

midiatização envolve dois níveis operativos interrelacionados: a midiatização de campos

sociais específicos (entretenimento, política, educação, práticas religiosas...) e a

midiatização da própria sociedade. O autor entende que as lógicas midiatizadas estariam,

progressivamente, atravessando as engrenagens funcionais de diversos processos

sociotécnicos, contribuindo, assim, para o compartilhamento de novos horizontes sociais.

Segundo essa perspectiva, o atual ethos midiatizado estabelece processos de referência

cada vez mais calcados nas lógicas da midiatização, isto é, na comunicação em rede que

intensifica as interconexões entre tecnologias e meios, sujeitos e instituições, campos

sociais e práticas culturais.

38A distinção traz certo incômodo. A meu ver, a chamada “sociedade dos meios/midiática” já era uma

“sociedade em vias de midiatização”. Nesse sentido, indago: qual a condição midiatizada que implicaria

um rompimento frente à “realidade dos meios”, isto é, o fim do percurso pressuposto a uma sociedade ainda

(e sempre) “em vias de”?

58

Entendemos que os processos interacionais de referência são os

principais direcionadores da construção da realidade social. O que

parece relevante, em perspectiva macrossocial, é a teoria de que a

sociedade constrói a realidade social através de processos interacionais

pelos quais os indivíduos, grupos e setores da sociedade se relacionam.

(BRAGA, 2006, p. 3).

Nesse contexto, André Jansson (2013) sublinha a importância das análises sobre

tais fenômenos serem postuladas menos em termo de imperativos midiáticos, e “mais

como metaprocesso envolvendo combinações de microprocessos moral e

ideologicamente flexionados, historicamente incorporados ao nível da vida social”.

(JANSSON, 2008, p.290-1)39. Ainda de acordo com o sociólogo, a midiatização

corresponderia a uma textura que agrega os processos e campos sociais em sua ampla

variedade de domínios, que por sua vez, tornam-se inseparáveis e dependentes das

mediações tecnológicas.

Por outro lado, o reconhecimento da midiatização em sua emergência não deve

reduzir os fenômenos dessa ordem às disponibilidades inauguradas pelo desenvolvimento

tecnológico. Conforme já exposto, a midiatização não significa o rompimento frente ao

passado, uma cisão de temporalidades a partir da qual mergulharíamos em um ato de pós-

história. Afinal, como coloca Martín-Barbero,

(...) nossos povos podem assimilar com certa facilidade as imagens da

modernização que as mudanças tecnológicas propõem, mas é em outro ritmo,

bem mais lento e doloroso, que podem recompor seus sistemas de valores, de

normas éticas e de virtudes cívicas. (MARTÍN-BARBERO, 2006b, p. 56).

Nesse sentido, parece-me sensato reconhecer os condicionantes socioculturais que

aportam sobre as formas de experimentação tecnológica. Logo, ainda que a mediação das

tecnicidades ultrapasse uma funcionalidade do tipo instrumental-mecânica (atingindo,

portanto, uma dimensão nuclear dos processos de subjetivação), tal espessura psicossocial

só se torna possível mediante processos adaptativos (muitas vezes “lentos” e

“dolorosos”), no sentido da conjugação entre tais emergências sociotécnicas a estruturas

39 Trecho original: “Mediatization is thus a concept that can help us think of media enhanced social

transformations in complex ways; not as the consequences of technological innovation or media “agency”

(Hjarvard, 2008), but in terms of a “metaprocess” (see especially Krotz, 2007), involving diverse

combinations of morally and ideologically inflected, and historically embedded, microprocesses at the level

of social life”. Acrescento as referências citadas pelo autor nesse fragmento: HJARVARD, Stig.The

mediatization of society: a theory of the media as agents of social and culture changes. Nordicom Review,

2008. KROTZ, Friedrich. The meta-process of Mediatization as a conceptual frame. Global media and

communication, 2007.

59

que as antecedem. Sob tal perspectiva, André Jansson (2013) articula o conceito de

midiatização a partir de uma abordagem socioespacial, de natureza holística, capaz de

descortinar, cientificamente, um horizonte crítico de reflexividade.

Tendo em vista que a midiatização, tal como definida aqui, refere-se às

dependências e normalizações no espaço social, o conceito reporta às mais

profundas questões morais e éticas da vida em sociedade, sendo assim

chamadas para uma agenda de pesquisa humanística nos estudos de mídia e

comunicação. (JANSSON, 2013, p.281).40

Por todo exposto, concebo a importância da reflexão direcionada ao atual estágio

de midiatização das teletopias (isto é, como o teletópos remodela-se mediante os atuais

regimes sociomidiáticos), tomando como partida os modos de imbricação entre a

teledramaturgia e os processos sociais de espacialização (forma de estar no mundo e

compartilhar sentidos em ampla escala). No caso, esses modos de imbricação possuem

uma origem sociocultural que, diacronicamente, situam a telenovela como o produto

ficcional mais consumido no Brasil, o que confere à teleficção uma incomparável agência

narrativa sobre as audiências nacionais. Conforma-se, assim, uma particular urdidura de

sentidos entre os fluxos que partem da pequena tela, em forma de imagens e dramaturgia,

e os espaços de circulação teleficcional. Nesse sentido, se a novela sempre funcionou

como referência social – no sentido de criar tendências de moda, introjetar bordões

populares, oferecer padrões de comportamento e consumo –, no contexto da midiatização,

os fluxos articulados em torno dessas narrativas adquiriram novos contornos, no sentido

da intensificação dos trânsitos que, “entre espaços”, transformam uma novela em

teletopia de um país.

Logo, da mesma forma que a invenção da televisão e sua difusão social ampliaram

a experiência ficcional sobre os gêneros de até então (a radionovela e o folhetim de

jornal), atualmente, o estágio da midiatização nos leva a inferir alguns deslocamentos

relevantes sobre as relações de produção, consumo e circulação teledramatúrgica. Sem

constituir um novo gênero, a rede-novela – desdobramento online das antigas práticas de

vizinhança – trouxe novas formas de vinculação ficcional, verificadas, particularmente,

através da antessala gerada pelas redes sociais, pela possibilidade de produção de

40 Livre tradução. Trecho original: “Since mediatization, as defined here, refers to dependencies and

normalizations in social space, the concept addresses the deeper moral and ethical issues of social life, and

thus calls for a humanistic research agenda in media and communication studies.”

60

conteúdo por parte de receptores-internautas, além de uma série de dispositivos que

ampliam a fruição do entretenimento a partir de modalidades interativas.

Nessa medida, as novas mídias e a celeridade do atual “sistema de resposta social”

(BRAGA, 2006) tornam-se fatores de redefinição dos espaços tradicionais da produção e

da recepção midiática, implicando em novas políticas comunicativas aos agentes sociais

e uma maior mobilidade entre esses campos – não apenas pelos internautas que passaram

a gestar conteúdos na rede, mas também por parte dos produtores midiáticos que se

tornaram receptores de diversos tipos de retorno41. Braga define o sistema de reposta

social como

(...) um terceiro sistema de processos midiáticos na sociedade, que completa a

processualidade da midiatização social geral, fazendo-a efetivamente

funcionar como comunicação. Esse terceiro sistema corresponde a atividades

de resposta produtivas e direcionadoras da sociedade em interação com os

produtos midiáticos. Denominamos esse terceiro componente da

processualidade midiática ‘sistema de interação social sobre a mídia’ ou, mais

sintaticamente, “sistema de resposta social”. (BRAGA, 2006, p.22, grifos do

autor).

Nessa nova configuração tecnocomunicacional, percebe-se que as textualidades

que compõem a tessitura do gênero teledramatúrgico se ampliam para além do texto

televisivo oficial, sem dele prescindir enquanto narrativa-mãe. Entretanto, a centralidade

dos conteúdos televisionados modifica-se em função dos novos lugares cavados pelas

mensagens produzidas a partir da televisão, o que nos leva, se não a alterar, ao menos,

reavaliar o tradicional esquema de Stuart Hall (2003) sobre o processo de codificação e

decodificação da mensagem televisiva. Por um lado, assumo, na esteira do pensamento

de Hall, a posição estratégica das mensagens televisivas nos contextos de experimentação

das teletopias, afinal:

Devemos reconhecer que a forma discursiva da mensagem tem uma posição

privilegiada na troca comunicativa (do ponto de vista da circulação) e que os

momentos de “codificação” e “decodificação”, embora apenas “relativamente

autônomos” em relação ao processo comunicativo como um todo, são

momentos determinados. (HALL, 2003, p.388, grifos do autor).

41 Braga (2006) difere o retorno da resposta social a partir da imediatez e da direcionalidade do primeiro.

O retorno caracteriza-se pela emissão direta de mensagens a uma determinada esfera produtiva. Já a

resposta social não necessariamente retorna ao polo de produção, constituindo-se de forma diferida e difusa,

logo, menos sistematizável.

61

Em vista dessa colocação, entendo que, apesar de toda dinamização dos atuais

circuitos de comunicação, a interatividade sobre a teleficção não sincroniza os âmbitos

produtivos e receptivos ao ponto de torná-los indistintos (uma espécie de cogestão

midiática), o que ainda justifica a delimitação dos lugares ocupados por tais esferas.

Porém, as atuais condições de circulação sugerem deslocamentos relativo ao grau de

midiatização que experimentamos hoje, dentre eles, a proliferação de conteúdos que dão

a ver uma série de mediações sociais, alterando o estatuto das próprias mensagens

difundidas pela televisão. Nessa medida, ainda que circulação e recepção sejam

“‘momentos’ do processo de produção na televisão, (...) reincorporados via certo número

de feedbacks indiretos e estruturados no próprio processo de produção” (HALL, 2003,

p.390), torna-se fundamental inserir esse retorno social em outra dimensão (distinta

daquela constitutiva das “sociedades midiáticas”). Afinal, esses feedbacks, outrora menos

imediatos, contam agora com um conjunto intenso de espaços que lhes confere horizontes

mais amplos de visibilidade. Tal processo permite a projeção de certas dinâmicas

recepcionais, assim como produz novos espaços de interação, sendo que, dessa

conformação, desponta uma terceira via que transcende aos processos empresarias de

produção e que tampouco se relacionam aos resultados imediatos das decodificações ou

leituras midiáticas.

É relevante, para percebemos o sistema de interação social sobre a mídia, que

a circulação de produtos midiáticos na sociedade não se faz apenas como

‘escolher e acolher’ segundo critérios culturais anteriores, mas gera um

trabalho social dinâmico: respostas. (BRAGA, 2006, p.29, grifos do autor).

Nessa medida, a conversação produzida sobre a mídia, expandida para além dos

espaços concretos e dos recursos da oralidade, constitui uma importante dimensão das

sociedades midiatizadas, nas quais um complexo sistema de resposta social confere outras

possibilidades de resposta midiática e, sobretudo, um nível diferenciado de engajamento

e conversação social. Pelo viés crítico-interpretativo (dimensão preferencial a partir da

qual Braga articula sua teoria), as engrenagens sociotécnicas da midiatização podem atuar

como um instrumento de fissura na ordem gerada pelos fluxos habitualizados pela

televisão. Sendo a linguagem um campo simbólico de disputa por sentidos e, logo, de luta

de classes (HALL, 2003), o rompimento com a verticalidade das produções midiáticas

emanadas da televisão aponta para a importância das configurações interacionais da

contemporaneidade, responsáveis não apenas pela repaginação interessada de velhos

temas e antigos preconceitos, mas também pela emergência de outras formas de olhar

62

para o passado e conceber o futuro. Considerando, na esteira de Stuart Hall, que as

diferentes áreas da vida social dispõem-se em domínios discursivos, hierarquicamente

organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais, talvez, o questionamento

sobre os modos de ficcionalização possa conduzir à reflexão sobre as matrizes

socioculturais que alimentam e são alimentadas em nossas teletopias; afinal, a mudança

nos modos de narrar diz da experiência ficcional em seu sentido mais amplo – a própria

forma pela qual a novela, entendida como fabulação, enreda-se às narrativas cotidianas

que elevamos à condição de realidade compartilhada.

63

#OIOIOI4 PERCORRENDO “AVENIDA BRASIL”

A telenovela “Avenida Brasil” tornou-se foi um dos maiores sucessos da história

da televisão brasileira. Nas palavras de Lopes e Mungioli (2013, p.129), um “fenômeno

midiático (media event), um marco de teledramaturgia, (...) uma ‘narrativa da nação’”.

A partir de qualidades oriundas de uma competente produção narrativa, assim

como das novas condições de socialização em plataformas digitais, “Avenida” retomou a

expressividade das telenovelas enquanto processo amplamente socializante, mesmo

diante de audiências cada vez mais fragmentadas e dispersas. Nessa direção, as autoras

supracitadas destacam que

(...) o sucesso e o impacto de “Avenida Brasil” decorrem de um conjunto de

fatores que, em nosso entender, elevou o grau de exigência do público e da

crítica a um novo patamar. Esse patamar se caracteriza pela adoção de recursos

narrativos e estéticos que colocam “Avenida Brasil” como um divisor de águas

em termos de telenovela. Como ocorreu com “Beto Rockfeller” (Tupi, 1968)

– considerada responsável pela criação de um novo paradigma de telenovela

pela adoção de um modo de narrar e de representar os brasileiros na TV –,

“Avenida Brasil” abordou temas e problemas já vistos em outras telenovelas,

mas o fez incorporando e traduzindo de maneira magistral o esprit du temp de

um país no qual ocorrem grandes mudanças sociais que criam espaços

simbólicos nos quais reverberam os discursos de novos protagonistas.

(LOPES; MUNGIOLI, 2013, p.156, grifos meus).

No intento de registrar parte dessa expressividade, exponho a novela a partir da

compilação de alguns dos seus elementos narrativos, valendo-me, para tanto, de recursos

como textos informativos, resenhas, diálogos, fotos e vídeos; em outra medida, em vista

da caraterização dos trânsitos do folhetim sobre os espaços digitais, integro ao presente

capítulo alguns discursos e conteúdos produzidos por internautas em suas atividades de

interação. Essa estratégia prospectiva afina-se não somente à singularidade de “Avenida

Brasil” no que refere a cada eixo analisado nesta dissertação, mas, ainda, aos mecanismos

de remissão e entrelaçamento que aproximam os mundos montados pela novela às

dinâmicas reais de produção do espaço, tanto social quanto subjetivo.

64

No intuito de percorrer os sete meses de exibição de “Avenida”, divido esta

apresentação em quatro momentos (pré-lançamento, início, clímax e desfecho), sendo

que, em cada uma dessas etapas, intercalo os acontecimentos televisivos aos registros

discursivos recolhidos nas mídias digitais. A partir desses recortes, busco entrever

diferentes elementos que constituíram e atravessaram as teletopias de “Avenida Brasil”,

sendo a estratégia de exposição cronológica uma forma de evidenciar processos que se

estenderam e se diferiram ao longo do tempo. Esclareço, nessa direção, que a seleção dos

elementos aqui reunidos e a combinação final do arranjo empírico evidenciam, nos termos

de Iser (1996), uma intencionalidade analítica voltada para as questões mais próprias à

dimensão do espaço, indiciadoras, portanto dos trânsitos que compõem aquilo que

entendo como “teletopia”. Justifico, ainda, que a construção desta empiria não

necessariamente apresenta um compromisso sequencial, na medida em que certos eventos

podem ser expostos de forma precoce ou tardia em relação ao curso da trama, cabendo às

contingências de cada texto determinar o momento mais oportuno para abordá-los.

4.1 Pré-Lançamento

42

Através desse tweet, a Rede Globo anunciou, no dia 25 de janeiro, sua nova novela

do horário nobre. Na televisão, o mesmo anúncio ocorreu cerca de um mês depois, quando

a emissora levou ao ar as chamadas do folhetim. Dentre esse material, destaco as

42 Tweet publicado pela conta oficial da Rede Globo. Fonte: Twitter. Por razões de economia discursiva,

observo que esse tipo de post não será identificado nas inserções seguintes, tendo em vista à

autorreferencialidade estética dos fragmentos (layout, fonte, posição da data, conta do usuário – “@...” -,

link “Expand”).

65

primeiras imagens veiculadas sobre a trama – um teaser43 de 15 segundos no qual a

pequena Rita transforma-se na vingativa Nina.

Fonte: Material coletado na Internet. Montagem autoral.

Rita: Ela levou minha família. Tirou minha casa. Nina: Mas isso não vai ficar

assim. Agora ela vai ter que pagar pelo que fez. Juro.

Narrador: Até onde você iria por justiça? (...)

(Primeiro teaser de “Avenida Brasil”, disponível no DVD em anexo).

43 A novela contou ainda, em sua fase de pré-lançamento, com outros teasers que apresentavam,

nominalmente, os personagens da trama. Nesses vídeos, destacam-se as primeiras maldades de Carminha

(maltrato e abandono de Rita, promessa de aplicar um golpe em Tufão), assim como o sucesso do jogador

de futebol junto ao time do Flamengo.

66

Após o término morno da novela “Fina Estampa” (Rede Globo, 2011-2012), a

nova trama de João Emanuel Carneiro se viu cercada de expectativas. Voltava ao ar o

universo criativo do autor de “A Favorita” (Rede Globo, 2008-2009) e, com ele, a

possibilidade da teledramaturgia brasileira ganhar outras narrativas de fôlego em seu

horário mais nobre44. Em sua quarta novela (a segunda na faixa das nove), o novelista

resolveu apostar na vingança como arcabouço narrativo, temática recorrente em outras

produções dramatúrgicas, inclusive na própria telenovela brasileira. No caso de

“Avenida”, junto ao teaser de lançamento, foi divulgado que a trama giraria em torno da

desforra da protagonista Rita contra a vilã Carminha – mulher esta que, no passado, havia

destruído a família e a vida da “mocinha”. Através desse conflito, e tal como em sua

novela antecessora, Carneiro voltava a tensionar as fronteiras morais que, nas cartilhas da

teleficção, costumam tipificar e segregar os personagens entre o “bem” e o “mal”; dessa

vez, o investimento foi, ao menos inicialmente, na construção da justiceira Nina/Rita,

uma espécie de “vilã às avessas” que adquiriu legitimidade dramática para fazer mal

àqueles que arruinaram sua infância.

O tempo passa, mas o ódio não. Rita em três momentos: ainda criança, ao ser abandonada pela ex-madrasta

em um lixão; já adulta, após ter sido adotada por uma família argentina; e, de volta ao Brasil, em meio ao

seu plano de vingança. Fonte: Portal UOL. Montagem do site.

44 “A Favorita” foi um grande sucesso de público e crítica, sobretudo em função do jogo ficcional proposto

pelo autor: no chamado “primeiro ato” da obra, o folhetim não deixava claro a moralidade de suas

protagonistas, de maneira que, durante esse período, não era possível identificar quem era a vilã e quem era

a heroína do enredo. Além disso, na trama em questão, João Emanuel já evidenciava características que,

amadurecidas em “Avenida”, concorreram para o sucesso de ambos os folhetins, tais como: inspirações em

dramaturgias clássicas, trama central forte, elenco reduzido e ganchos de suspense a cada capítulo.

67

Além da temática da vingança, outra escolha de João Emanuel, evidenciada antes

mesmo da estreia de “Avenida Brasil”, relacionava-se às ambiências selecionadas e

combinadas pelo autor na montagem de seu mundo ficcional. Nesse sentido, as primeiras

chamadas do folhetim e, particularmente, o nome escolhido para estória já demarcavam

a centralidade das modulações espaciais sobre o contexto da novela. Em vista do segundo

caso, nota-se que a referência a uma espacialidade real – uma avenida concreta – trouxe

um inusitado elemento para o coração da narrativa, gerando um estranhamento que

sinalizava, desde o seu pré-lançamento, alguns rearranjos operados pela trama. Quanto às

chamadas, registra-se, particularmente, a presença de duas espacialidades, ambas

marcadas por certa originalidade frente às escolhas cenográficas habitualizadas pela

televisão: um fictício bairro da periferia carioca, supostamente situado às margens da

avenida que nomeia o folhetim; e um aterro cenográfico, também ficcional, montado nos

estúdios da Rede Globo.

Na televisão, além dos teasers, a telenovela foi anunciada pela tradicional

chamada de elenco que antecede a estreia dos folhetins, mecanismo através do qual o

público passa a conhecer a escalação de atores da próxima produção da emissora. Nas

imagens, “Avenida Brasil” voltou a despertar curiosidade em torno de alguns elementos,

que, acentuados no decorrer da trama, viriam a configurá-la, estético e

dramaturgicamente: um elenco reduzido e um número considerável de atores estreantes;

uma fotografia escurecida; a música “Oi, oi, oi” (“Vem dançar contudo”, de Robson

Moura e Lino Krizz), um ritmo até então desconhecido; a inscrição da narrativa no

universo popular da periferia e do futebol.

Nesse período, além dos vídeos exibidos na TV, o público também passou a

conhecer “Avenida Brasil” a partir de informações que circulavam em outras mídias,

tanto em jornais e revistas, quanto em plataformas online. Dentre esse material, destaco

algumas declarações fornecidas pelo próprio autor da novela, como a entrevista

parcialmente compilada na página seguinte, concedida ao jornal “Folha de São Paulo”45.

Na matéria, João Emanuel Carneiro comenta, entre outros temas, a questão da

centralidade espacial da periferia em sua narrativa, assim como a relação entre tal escolha

45 “João Emanuel cria mocinha anti-heroína em nova novela”. Jornal Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada,

de 4 de março de 2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1056052-joao-emanuel-

carneiro-cria-mocinha-anti-heroina-em-nova-novela.shtml>.

68

e o fenômeno extramidiático de ascensão da nova classe média brasileira46, a famigerada

nova classe C. Nesse sentido, chamo a atenção para a afirmação de que, na concepção do

novelista, os espaços e personagens da trama, tomados a partir de suas inspirações

populares, não se relacionavam a nenhuma pretensão “sociológica” de abordar um “Brasil

real” e tampouco de dialogar com as questões emergidas dos câmbios sociais atravessados

pelo país: “Tanto que eu inventei um bairro que não existe, é o meu subúrbio, não tenho

de prestar satisfação a nada”.

Em vista de colocações como essas, João Emanuel buscou afirmar sua novela

como prática de livre de fabulação (“meu subúrbio”, criado na “minha cabeça”); ainda

que, em outra medida, tenha reconhecido certo exercício de “observação” quanto ao

“Brasil do Lula” e ao poder de consumo recém adquirido pela nova classe média. Nessa

46 Em estudo realizado no âmbito da Fundação Getúlio Vargas, Marcelo Neri (apud OBITEL, 2012) aponta

que, entre os anos de 2003 e 2011, cerca de 40 milhões de pessoas passaram a integrar a classe média

brasileira, sendo a classe C, à época do levantamento (2011), responsável por 52% do total da população

do país. Fonte: NERI, Marcelo. A Nova Classe Média. São Paulo: Caderno Mercado, Folha de São Paulo,

29/01/2012. Sobre o tema, ver também: NERI, Marcelo. A Nova Classe Média. O lado brilhante dos

pobres. Rio de Janeiro: CPS/IBRE/FGV, 2010.

69

direção, adianto que, percorridos os 179 capítulos do folhetim, de fato, o novelista

ocupou-se mais com a maquinação de seu universo dramatúrgico do que com uma

possível relação ficção/realidade. Em outra medida, mediante à expressiva reverberação

da novela, a “desambição sociológica” de Carneiro foi aquebrantada pelos jogos de

apropriação social da narrativa – movimento encarnado pelo próprio novelista que, ao

final da trama, reconheceu que o seu mundo “sem satisfações” veio de “uma antena boa

para sacar o Brasil”47.

Além das declarações de Carneiro, a fase de pré-lançamento da novela foi marcada

pela veiculação nas redes sociais de informações que giravam em torno da produção dos

primeiros capítulos, como pequenos spoilers, curiosidades de bastidores, informações

sobre o elenco, entre outros. Esse material vinha, quase sempre, da própria Rede Globo,

através de publicações no Facebook e no Twitter, sendo posteriormente replicado em sites

de entretenimento, em blogs especializados e pelos internautas em geral.

Do ponto de vista dos trânsitos recepcionais, pontuo que, nessa etapa, além de um

estado de expectativa em torno da nova fabulação de Carneiro, os internautas teceram

comentários que criticavam o papel social desempenhado pela telenovela no Brasil. Esse

comportamento revelou-se, desde o início, pouco recorrente nas redes sociais, sobretudo

no Twitter, o que, a meu ver, sinaliza a natureza dos vínculos de sociabilidade

estabelecidos a partir da telenovela nessas plataformas. Em contrapartida, nos sites

informativos (Portal Terra, UOL, IG, site da Folha de São Paulo, Revista Veja) e nos

blogs em geral (tanto particulares, quanto filiados a veículos de comunicação), nota-se,

mais sistematicamente, a presença de discursos contestativos, atravessados por denúncias

ao “poder de manipulação” da Rede Globo, à presença alienante da telenovela na cultura

brasileira, à banalização dos critérios jornalísticos (que elevam eventos teleficcionais à

categoria de notícia), e, ainda, à proposta dramatúrgica do folhetim (avaliada como

repetitiva, plagiosa).

Cartum88: Globo, a emissora que apoiou a ditadura sem mais.

Ana Lu: Mais do mesmo. O cara leu “O Conde de Monte Cristo” e

provavelmente era fã do seriado “Revenge” (que nada mais é que uma versão

modernosa da mesma história). Aí, pegou a receita que já deu certo, trocou a

loira pela morena num cenário carioca e voalá! Fez um remake do remake,

entendeu?

47 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/autor-de-avenida-brasil-promete-final-

surpreendente-para-carminha-6384443>.

70

Aventura_Alex: Apesar de não estar impressionado com o quadro de

atores escolhido, torço para o João Emanuel acerte de novo como fez com a

excelente “A Favorita”.48

RicBuiz: Incrível como grande parte do povo brasileiro ainda perde

tempo com novelas, quem sabe um dia isso melhore, aí seremos primeiro

mundo.

Anne Marie SchaimSterblitz: Agora que o Brasil passa por um

crescimento econômico, o cultural devia acompanhar. Está na hora da

população buscar alternativas melhores de entretenimento do que novela, BB,

programas de fofoca e idiotices em geral.

Alex Oliveira: Pensamento miúdo medir a inteligência de alguém por

certos hábitos. Às vezes alguém que é provido de boa cultura OPTA por

acompanhar uma novela sem deixar de ter acesso a outras formas de

entretenimento. Até porque, acima de tudo, a telenovela é uma ficção como

qualquer outra, por vezes superior a muitos filmes e literatura. Ao passo que

não gostar de assistir novelas e preferir filmes não atesta o valor intelectual de

ninguém.49

Já nos blogs sobre televisão e entretenimento, a repercussão antecipada de

“Avenida Brasil” apresentou enquadramentos críticos mais moderados. Nilson Xavier,

por exemplo, em seu blog vinculado ao portal UOL50, elencou uma série de aparentes

filiações entre a trama de João Emanuel e outras obras ficcionais, oriundas da literatura,

do teatro, da própria teledramaturgia nacional e, mais notadamente, da série de televisão

estadunidense “Revenge” (EUA, ABC, 2011). Entretanto, o blogueiro – que, com o

tempo, revelou-se um fã de “Avenida” –, encerrou seu texto fazendo referência à vocação

intertextual da dramaturgia folhetinesca, na qual, em sua acepção, “(...) as histórias se

repetem. Mas muda a embalagem e a forma de contar. E as inspirações podem vir de

várias fontes”.

Pelo exposto, percebe-se que, como é comum às novelas das 21h da Rede Globo,

o início de uma trama é amplamente divulgado, sobretudo diante das atuais possibilidades

de divulgação midiática em meio às redes sociais digitais. Tenta-se, como estratégia de

48 Comentários foram retirados do Portal UOL, em retorno à matéria “‘Avenida Brasil’ estreia com história

de vingança e alpinismo social”, de James Cimino e Thays Almendra, publicada em 26/03/2012. Disponível

em: <http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2012/03/26/avenida-brasil-estreia-com-historia-de-

vinganca-e-alpinismo-social.htm>.

49 Comentários retirados da matéria publicada pelo jornal “Folha de São Paulo”, descriminada na nota de

rodapé número 45.

50 Em matéria intitulada “Trama central da novela ‘Avenida Brasil’ lembra a série americana ‘Revenge’”,

de 05/03/2012. Disponível em: <http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2012/03/05/trama-central-da-

novela-avenida-brasil-lembra-serie-americana-revenge/>.

71

produção, gerar um clima de acontecimento midiático, o que, nesta fase, é recebido com

certa suspeita pelo público em geral. No entanto, a assinatura que João Emanuel vem

consolidando através de seus trabalhos51 – as telenovelas “Da Cor do Pecado” (Rede

Globo, 2004), “Cobras e Lagartos (Rede Globo, 2006) e “A Favorita” – foi responsável

por um frisson em torno de um novelista tido como inovador. Por outro lado, a

antecipação dos motes básicos da trama despertou comentários fastidiosos e negativistas

sobre a narrativa, ora centrados na falta de criatividade da TV, ora relacionados à pobreza

da “sociedade da telenovela”. De qualquer forma, essa primeira reverberação

teleficcional, ainda desvinculada de um projeto narrativo evidente e de formas

consistentes de engajamento afetivo, fez de “Avenida Brasil” um acontecimento

midiático em potencial, ainda bastante distante da dimensão massiva que, sete meses

depois, culminaria na completa midiatização de seu último capítulo.

4.2 A estreia

Avenida Brasil, Rio de Janeiro. 1999.

Bola e imagens em movimento. Pipa, futebol, bicicletas, suor, sol. Mais futebol.

Do campo ao trilho: o metrô. Pedestres. PF, ovo frito, almoço no boteco. Uma mangueira

e um carro: a rua. Uma mangueira, uma mulher e o calor: um corpo. Um corpo, um copo,

uma cerveja suada. Um gole. Gol! Cadeira de praia no asfalto, caixa de isopor, vizinhos.

51 “Avenida Brasil” tornou-se a telenovela da Rede Globo mais licenciada no exterior, tendo sido, até o

fechamento deste texto, traduzida para 19 idiomas e vendida para 125 países. Dados disponíveis em:

<http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/avenida-brasil-bate-recordes-e-e-vendida-a-125-

paises>.

72

Dia quente: a tela-pele transpira e acelera: metrô, gente, imagens, sinal, lotação, água,

mais rua, negros, música, dança, camelôs, mais gente, crianças. Enfim, periferia.

Na voz de Arlindo Cruz “(...) o meu lugar, é sorriso, é paz e prazer, o seu nome é

doce dizer...

É “Divino” ...

Sequência-epígrafe de “Avenida Brasil” (DVD). Fonte: Site oficial da novela. Montagem autoral.

Foi com a sequência descrita que João Emanuel Carneiro introduziu, na noite de

26 de março de 2012, a telenovela “Avenida Brasil”. Naquele dia, uma segunda-feira, o

folhetim alcançou a média de 37 pontos no Ibope, com índice de 57% de participação52 –

um desempenho razoável, ainda que inferior aos números de “Fina Estampa”, que, em

52 Um (1) ponto na audiência equivale a 1% do universo pesquisado pelo Ibope, sendo as amostragens

variáveis. Já a participação (ou share) representa o número de aparelhos sintonizados no canal diante do

universo de todos os aparelhos ligados (ou seja, no caso de “Avenida Brasil”, a cada 100 televisores, 57

estavam acompanhando a trama). Ambos os índices são avaliados em São Paulo e no Rio de Janeiro.

73

seu capítulo de estreia, atingiu, nos mesmos avaliadores, as marcas de 41 pontos e 57%

de share.

Contudo, se do ponto de vista da audiência o capítulo inaugural da “nova novela

da Globo” não foi surpreendente, enquanto produto televisivo, “Avenida Brasil” teve uma

estreia audaciosa. Pela ótica da narrativa, o folhetim trouxe, desde suas primeiras

imagens, aspectos expressivos que foram determinantes para o amplo engajamento de sua

audiência. No caso, a sequência de abertura – responsável por localizar temporal e

espacialmente a primeira fase da novela –, circunscreveu a “boa periferia” carioca como

ambiência narrativa, gerando impacto pela qualidade estética da composição fotográfica

de suas imagens. O fictício “Divino” começava a ganhar corpo na voz de Arlindo Cruz,

ou melhor, nas vozes em coro que substituíram o refrão de “Meu Lugar” – “Madureira,

la, laia...” – pelo nome do bairro carioca fabulado por Carneiro. Ainda na sequência, a

imagem de alta resolução, os planos com diferentes usos de luz, a câmera em movimento

e a edição sincopada aliaram-se à motivação dramatúrgica do novelista em estampar um

subúrbio de paz e boa vizinhança; espaço no qual a sociabilidade das ruas é extensão do

mundo da casa, lugar onde vive uma gente batalhadora e feliz, feita de lágrimas, suor e

risos. Nesse prelúdio, o espectador foi convidado a seguir pela avenida Brasil em direção

a um mundo ficcional não fortuitamente batizado de “Divino”, sendo que, dessa periferia

idílica e da classe social ali residente, a telenovela se construiu enquanto estética de

imagem e singularidade narrativa.

Essa concepção romântica da periferia carioca, a propósito, atravessou todos os

capítulos do folhetim. Além das cenas de abertura – uma epígrafe em tom de ode –, a

equipe de produção editou um vídeo que foi disponibilizado na página oficial da novela,

intitulado “O jeitinho ‘Divino’ de ser”. Nesse material, as cenas selecionadas reproduzem

todos os clichês que perfilam nosso imaginário de nação, tais como: uma partida de

futebol; mulheres “gostosas” desfilando em trajes reduzidos; um concurso de beleza (o

“Miss Chapinha”); mulheres nem tão corpulentas papeando no salão; cenas de botequim

(sinuca, tira-gostos e cerveja gelada); números coletivos de dança. Nas palavras do

personagem Diógenes – um bonachão carioca, técnico do “Divino Futebol Clube” e

proprietário de uma loja de confecção no bairro: “no tablado ou no gramado, ninguém

barra o nosso gingado”.

Sobre esse subúrbio margeado por “Avenida Brasil”, Lopes e Mungioli

escreveram que:

74

No local vivia quase a totalidade dos personagens, no qual pulsava a grande

paixão de seus moradores: O Divino Futebol Clube. (...) Nesse cenário, surge

a enunciação do subúrbio idealizado: as conversas de bar sobre futebol e

mulheres, as cadeiras na calçada, a solidariedade entre a vizinhança, o pagode,

a intensidade dos dramas familiares (...). (LOPES; MUNGIOLI, 2013, p.157).

O “Divino” em fragmentos espaciais: na parte superior, o salão de beleza da microempresária Monalisa e

o bar do malandro Silas; abaixo, a loja de Diógenes e a sede do “Divino Futebol Clube”. Destaque para o

colorido das composições. Fonte: Portal UOL. Montagem autoral.

Nesses termos, “Avenida” estabeleceu, desde sua estreia, uma marca espacial que

demarcou lugares ousados de encenação teledramatúrgica. Em decorrência do

protagonismo espacial da periferia na trama de João Emanuel Carneiro, o que vimos ao

longo de seus meses de exibição, reproduzido em diversos discursos – desde produtos de

mídia até conversações informais – foi que a novela diferenciava-se por trazer, à primeira

cena, uma situação de cotidianidade comum a milhares de brasileiros. Nesse contexto, o

fictício bairro do “Divino” protagonizou uma guinada teleficcional em direção à periferia

carioca – raro pretérito à televisionada Avenida Viera Souto e suas adjacências beira-mar.

Esqueçamos, portanto, os costumes bossanovistas e a política da agradável vizinhança do

Leblon e das “Helenas” de Manuel Carlos; no “Divino”, roupa suja se lava na rua, silêncio

é sinônimo de recalque e extravagância é indício de personalidade.

75

Outro traço “popular” inscrito sobre a narrativa de “Avenida Brasil” refere-se à

composição da abertura da novela (DVD). Finda a exibição do primeiro bloco da trama –

no qual vimos cenas da “boa” periferia carioca, do futebol e da madrasta má – entrava no

ar uma sequência escura, na qual um grupo animado dançava um ritmo africano

semelhante ao tecnofunk, o “kuduro”. Ou seja: nada parecido com o sofisticado tango

eletrônico que apresentava “A Favorita”, novela anterior de Carneiro. Além disso,

enquanto na trama de Flora (Patrícia Pilar) e Donatela (Cláudia Raia), a abertura era uma

síntese do conflito básico do enredo, arranjada por uma estética de grafic novel, em

“Avenida”, bailarinos incorporavam o ritmo “Oi,oi,oi” em um ambiente indefinido,

relacionável, a um só tempo, a uma casa noturna (na qual as pessoas dançavam), porém

situada sobre um espaço público (em vista da luz dos faróis e da presença de passarelas).

Cenas da abertura de “Avenida Brasil”. Fonte: Site oficial da novela. Montagem autoral.

No que pude perceber (nas redes sociais e em conversas cotidianas), o “oi, oi, oi”

da canção foi recebido com desconfiança, não evidenciando aquilo que, em poucos meses,

tornar-se-ia o principal signo acústico da novela, um índice altamente remissivo ao

universo fabular de “Avenida” (a repetição ritmizada do fragmento tornou-se um dos

bordões instalados pela trama, frequentemente acionado para identificá-la). De qualquer

forma, apesar da aparente desconexão narrativa frente ao enredo, a abertura da novela

sugeria a centralidade de uma periferia urbana e cultural, que, apesar de figurar em quase

todos os folhetins, raramente é elevada à condição de centro teledramatúrgico53.

53 Vale ressalvar que “Avenida Brasil” não foi a primeira telenovela a dar destaque à bairros periféricos.

Nesse sentido, destaco duas ocorrências mais recentes: (1) “Vidas Oposta” (Rede Record, 2006-2007),

novela de Marcílio Moraes que tematizava uma relação de amor entre protagonistas de diferentes classes

sociais, sendo a mocinha uma moradora de um perigoso morro do Rio de Janeiro; (2) “Duas Caras” (Rede

Globo, 2007-2008), trama de Aguinaldo Silva na qual um importante núcleo de personagens (Juvenal

Antena e cia.) vivia na fictícia favela da Portelinha. Além disso, em diversas outras tramas, o bairro popular

76

Nos espaços de circulação netnografados, esse esforço em contextualizar “Avenida

Brasil” a partir de uma estética da periferia movimentou parte das primeiras impressões

dos internautas sobre o folhetim: enquanto alguns telespectadores avaliaram

positivamente a retirada da teledramaturgia da redoma existencial das classes elitizadas,

outras inserções angulavam esse deslocamento a partir das estratégias de comercialização

da Rede Globo, no caso, orientadas para o mercado simbólico movimentado pelos setores

populares e emergentes da sociedade. No âmbito dessa discussão, a temática atrelada à

“nova classe C” motivou calorosas discussões nos blogs e sites de crítica especializada

(Nilson Xavier, Maurício Stycer, Hugo Gloss, Fernando Oliveira, Heloísa Tolipan, dentre

outros): de forma uníssona, os articulistas inseriram a produção de “Avenida” no contexto

da midiatização da nova classe média, em vista da qual nota-se o recrudescimento de

uma série de narrativas midiáticas filiadas a uma suposta estética de classe54.

Os internautas que comentavam as postagens, por sua vez, dividiam-se entre elogios

à narrativa de “Avenida”, críticas generalistas à televisão, e, no que me interessa destacar,

uma expressiva rejeição ao rótulo “nova classe média”. Nesse último sentido, os

argumentos variavam desde posicionamentos preconceituosos (“a televisão está se

rendendo à baixaria das classes populares ascendentes”), até colocações, no meu

entendimento, mais razoáveis (“essa nova produção ficcional está forjando um conceito

de classe que não se traduz enquanto materialidade sociocultural”). Outro argumento

levantado pelos internautas diz respeito à imprudência de um suposto enviesamento “de

classe” atribuído a uma ficção tão socializante quanto a telenovela; nessa direção, os

discursos endossam que, independente da origem social, o que determina a

expressividade do gênero é a comunicabilidade de uma boa estória, e não uma conjuntura

socioeconômica modeladora de personagens e espacialidades.

Raquel Alves: Coisa chata, essa de "a nova classe C". Não digo que esse

não é um grande público, mas sempre houve novelas que exploraram um

núcleo suburbano. Eu não sou classe C, e já estou gostando dessa novela, esses

tipos que estão sendo apresentados são muito mais reais e convincentes do que

aqueles que moram no Leblon e batem palmas para o Sol. Pra mim tanto faz a

classe social, o importante é ter uma história bem escrita.

– geralmente reduto da comicidade dos folhetins – coadjuvou junto aos tradicionais espaços de construção

dramatúrgica.

54 Telenovelas como “Aquele Beijo” (Rede Globo, 2011-2012), “Cheias de Charme” (Rede Globo, 2012)

e “Fina Estampa”; humorísticos como “A Grande Família” (Rede Globo, 2001) e “Tapas e Beijos” (Rede

Globo, 2011); programas de auditório como o “Esquenta!” (Rede Globo, 2011), entre outros.

77

Mauricio Silva: 1. Qualidade jamais pode ser considerada elitismo, pois

abrimos espaço para que a falta de qualidade seja considerada artimanha para

atrair o público. 2. Divisão de classe A, B, C, etc. é algo que não faz sentindo

no meio cultural, é discurso de economista dos anos 90, já que cultura e

consumo lidam com desejo e desejo ultrapassa fronteiras de classe social. 3.

Ricos engraçados e pobres dramáticos está longe de ser uma novidade em

novelas. 4. Por favor, vamos esquecer esse negócio de tendências, empobrece

o texto. E pobreza, segundo ti, está relacionado a drama!

Bruna Campos: Essa novela começou tirando o folego do

telespectador, com uma temática nova dentro do que estamos acostumados a

ver. Com um elenco de primeira e um texto afiadíssimo. Adriana Esteves pelo

o que apresentou nesse dois capítulos já posso dizer que ela será como Nazaré

Tedesco, vai estar pra sempre em nossa memória. Tomara que o público

responda a altura com relação a audiência.55

Leonardo Medina: Viva as TVs a cabo de todo o Brasil e a Sky....

DJLewis: Transformaram a "nova classe C" em clichê e associar a ela

uma estampa de sujo, suado, mal educado, trejeitos e linguagem coloquial,

povão etc., não concordo. Generalizar desse jeito um "espelho" soa esnobe,

com certeza vão carregar na tinta.

Christiane Silva: Só consigo pensar nas palavras de José Wilker em

uma entrevista para a revista Cultura de fevereiro: "Há uma coisa gozada no

caso do acesso que o Brasil está dando no audiovisual para as classes C e D,

abaixando o nível das produções. ISSO É CRIMINOSO. Vamos começar a dar

a eles alguma coisa mais substancial do que SE ADAPTAR À

PASMACEIRA."

SethSP: Ultimamente virou até um "hit" se falar em classe

C....Oras...nada contra pessoas subirem na escala social e ter mais bens de

consumo, mais dinheiro, mais conforto...Mas o que as pessoas não veem é que

essa mesma "classe" está estagnada culturalmente...Não se tem educação ali

(...). De nada adianta ter mais bens de consumo se não houver a palavrinha

mágica: EDUCAÇÃO...Pelo meu lado, vou passar longe dessa novela...

Marinho: Retrata a realidade brasileira? Só tem gente branca nessa

novela. Acho que retrata a realidade da Suécia.56

Ainda com relação à teletopia do subúrbio ensejada por “Avenida Brasil”, destaco

trechos da crônica “O bairro do Divino, o baile Charme e Madureira”, de autoria de Pedro

Alexandre Sanches, colunista do portal Yahoo. No texto, publicado meses após a estreia

55 Comentários em resposta ao texto “‘Avenida Brasil’ convida classes elitizadas a dançar kuduro”, de

Nilson Xavier. Disponível em: <http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2012/03/28/avenida-brasil-

convida-as-classes-elitizadas-a-dancar-o-kuduro>.

56 Comentários em resposta ao texto “‘Avenida Brasil’ oferece um espelho para a nova classe C”, de

Maurício Stycer. Disponível em: <http://televisao.uol.com.br/critica/2012/03/27/avenida-brasil-oferece-

um-espelho-para-a-nova-classe-c.htm>.

78

do folhetim, Pedro faz uma comparação entre o subúrbio ficcional televisionado pela

Rede Globo e Madureira, espacialidade real que inspirou a canção “Meu lugar”, de

Arlindo Cruz. Para tanto, o cronista convoca o olhar de Marcello Silva, em suas palavras,

“um filho de Madureira, morador do eixo Rio-Nova York, entusiasta do movimento

charme, líder do grupo ‘Dughetto’”. Em “Avenida”, o ritmo do charme embalava os

passos coreografados de Suelen, Darkson, Iran, Silas, entre outros personagens.

57

Além de assuntos relacionados ao contexto da periferia e da nova classe média, os

internautas também valeram das plataformas digitais para expressarem uma série de

elogios à trama de João Emanuel Carneiro. Em minhas incursões à rede, constatei uma

tendência elogiosa que atravessou parte significativa dos comentários postados nas redes

57 O texto na íntegra encontra-se disponível em: <http://br.noticias.yahoo.com/blogs/blog-ultrapop/o-

bairro-divino-o-baile-charme-e-madureira-125613388.html>.

79

sociais, sobretudo no Twitter e no Facebook. Ainda que, do ponto de vista quantitativo,

o folhetim de João Emanuel Carneiro não tenha alcançado nenhum grande feito em sua

estreia – a audiência mediana foi, inclusive, tema pautado pelas conversações –, do ponto

de vista qualitativo, a recorrência de comentários positivos já apontava para o sucesso

que marcaria o curso da novela. Em geral, os elogios dirigiam-se ao próprio novelista, à

ação eletrizante do capítulo, à qualidade da interpretação de alguns atores (sobretudo,

Adriana Esteves, Mel Maia e Tony Ramos), e, mais raramente, à textura diferenciada da

imagem levada ao ar e à competência da equipe de diretores.

Nesse sentido, coloco que, se, antes da estreia, o tema da vingança foi considerado

repetitivo, nas postagens publicadas no Twitter na noite do dia 26 de março, as denúncias

dessa ordem foram subsumidas em razão proporcional ao aumento de tweets otimistas,

muitas deles confiantes de que “Avenida Brasil” seria, “finalmente”, uma novela

diferente. Esses comentários exaltosos, não raro, tinham como motivação certa fadiga

frente às narrativas televisivas tradicionais e aos últimos folhetins produzidos pela Rede

Globo, constantemente acionados a título de comparação.

Além disso, nesse momento de estreia, o índice de tweets com indexação de outros

usuários (“@nome”) apresentou um percentual menos significativo do que nos momentos

de observação e codificação das interações no microblog58, sinalizando que a comunidade

de fãs online ainda estava em fase de formação e, portanto, não apresentava a motivação

vinculativa que marcaria as postagens futuras. Da mesma forma, os links externos se

limitaram a algumas matérias que já vinham circulando no período anterior à estreia e ao

material de divulgação lançado pela emissora, além de fotos da cobertura, ao vivo, do

encontro dos atores para assistir a exibição inaugural em uma churrascaria carioca. Nos

dias seguintes ao primeiro capítulo, alguns blogueiros apressaram-se em colocar suas

críticas para circular, utilizando-se do Twitter como espaço estratégico de remissão às

suas páginas pessoais, algumas filiadas a grandes portais (“Você já leu a minha crítica?

Veja em:”, “Minhas impressões sobre o primeiro capítulo de ‘Avenida Brasil’:”). Além

dessas indexações, nos dias seguintes a estreia, os portais de informação deram notas

sobre o primeiro capítulo da novela, destacando fatores já mencionados, como a audiência

pouco expressiva e a trama de fôlego levada ao ar.

58 Através da técnica de codificação aberta dos tweets, percebi um aumento significativo de postagens que

acionavam, diretamente, outros usuários do microblog. Enquanto na 1ª. Amostra (estreia da novela) o índice

de tweets com indexação era cerca de 25% das postagens analisadas (73/300), na última coleta (capítulo

final), esse índice correspondia a 44% do total de tweets avaliados (123/300).

80

A meu ver, o capítulo de estreia de “Avenida Brasil” foi uma parte importante do

percurso de êxito que marcou a novela. Em sua primeira exibição, o folhetim de João

81

Emanuel Carneiro ofereceu ao público um enredo provocativo, que, desde seus primeiros

movimentos, despertou um engajamento atípico sobre a audiência. Entre outros fatores,

essa dinâmica de vinculação foi despertada a partir da agilidade da trama – similar, em

termos de ritmo e composição, à estrutura episódica dos seriados televisivos. A propósito,

esse dialogismo ficcional intensificou a ação presente do enredo – conflito, clímax e

reviravolta em um só capítulo –, rompendo, em partes, com as temporalidades mais lentas

da telenovela59.

Com relação ao capítulo, observo que algumas cenas encontram-se disponíveis no

DVD em anexo: além da sequência-epígrafe, destaco ainda as imagens de Tufão, o craque

do futebol, o primeiro embate entre Carminha e Rita, esta ainda criança, e a morte de

Genésio. Em sua versão integral, a estreia contou ainda com a apresentação de outros

personagens, entre os quais destaco a cabelereira Monalisa, namorada de Tufão; Max, o

amante e comparsa de Carminha; e Cadinho, o empresário bígamo da Zona Sul.

Na trama, a alternância entre diferentes núcleos trouxe uma variação de tons

narrativos à novela: mudava-se de uma sequência de suspense, tensa e elétrica, para outra,

cômica e despretensiosa. Tal pendulação psicológica, característica estilística assumida

por João Emanuel Carneiro (e bastante típica às matrizes ficcionais do melodrama),

marcou todo o folhetim, sendo que, mais tarde, a narrativa amorosa também passou a

ocupar um lugar estratégico nesse comboio emotivo.

Entretanto, ressalvo: o primeiro capítulo de “Avenida Brasil” não tematizou o

amor, mesmo diante da centralidade deste tema no contexto da teleficção. Contrariando

a premissa de que as telenovelas sejam narrativas de tala ordem, João Emanuel propôs,

em sua estreia, uma estória de ódio. Em alternância ao amor à primeira vista, o que vimos

foi a genealogia de um sentimento íntimo de malquerença, alimentado por uma criança

bastante esperta contra sua terrível madrasta. No caso, a Branca de Neve do subúrbio,

retirada do palácio e colocada em uma casa ordinária de classe média, sofria com os

59Ao longo de sua exibição, “Avenida Brasil” foi comparada, em seus modos de ficcionalização, aos

seriados televisivos, marcadamente, aqueles de origem estadunidense e de ampla circulação mundial.

Conforme já destacado, esse apontamento surgiu ainda no pré-lançamento do folhetim, tendo em vista as

convergências temáticas entre a série “Revenge” e a novela brasileira. Independente da alegação de plágio

(a meu ver, despropositada, como se a temática da “vingança” houvesse sido inaugurada pela trama norte-

americana), de fato, “Avenida” revelou uma construção narrativa e estética próxima à serialidade episódica

do tipo semanal, na qual o volume relativamente baixo de filmagem possibilita um trabalho mais cuidadoso

de produção e um enredo mais “concentrado”. Nesse contexto, o folhetim se destacou por ter levado ao ar

uma trama não apenas bem acabada, do ponto de vista da imagem, mas também envolvente enquanto

fabulação.

82

maltratos da esposa de seu pai, uma mulher fria e dissimulada que estava prestes a aplicar

um golpe no marido.

- Sua mãe morreu. Tá morta e enterrada. Tá embaixo da terra. E as minhocas já

comeram todo o corpo dela. Você ouviu isso? As minhoquinhas comendo o corpo da

mamãezinha...

Primeiro confronto entre Carminha e Rita. Fonte: site oficial da novela. Montagem autoral.

Em outro núcleo, agora iluminado por milhares de refletores, conhecemos Tufão

– jogador de futebol do Flamengo, artilheiro do campeonato carioca e autor do gol que

dera a vitória do campeonato estadual ao time rubro-negro. Nessas cenas, um pequeno

estádio da cidade de Uberlândia transformou-se em uma Maracanã lotado, com direito à

narração icônica de Cleber Machado – conhecido locutor da Rede Globo. Do gramado à

rua, o artilheiro pede sua namorada, a “metafórica, estrogonôfica, mesopotâmica”

Monalisa, em casamento; com direito à carro de som, show man e plateia. A resposta:

Sim.

Fonte: site oficial da novela. Montagem autoral.

83

Ao som de Rita Lee – “Deus me proteja, da sua inveja, Deus me defenda da sua

macumba...” – as imagens tomam a Avenida Brasil em direção à Zona Sul. Lá, somos

apresentados ao universo nada crível de Cadinho, suas duas esposas e seus dois filhos.

Detalhe: elas não se conhecem, sendo que o sujeito engana ambas, passando metade do

tempo em casa e a outra metade viajando “a negócios”. Com uma música de espionagem

barata, intencionalmente cômica, ele ordena ao motorista:

- Toca para casa número 2.

Cadinho entre suas esposas. Fonte: site oficial da novela. Montagem autoral.

Fonte: site oficial da novela

- Vai pro inferno! – arremata a vilã.

Ao fim do capítulo, Carminha é

desmascarada por Rita e Genésio acaba

ferido pela esposa, que o faz rolar por um

lance de escadas. Ela parte pisando sobre

ele, enquanto a câmera, cúmplice da dor

do homem estirado ao chão, registra o

ocorrido através de um enquadramento

contra-plongee.

84

Cambaleante, Genésio sai pelas ruas. Sob forte chuva, cai no meio da Avenida

Brasil. Um carro ritmizado por uma música alegre – “Descobri que te amo demais,

descobri em você minha paz...” – é interrompido por uma súbita trepidação. No para-

brisa, a água da chuva mistura-se a sangue. No volante, Jorge Tufão se desespera.

A morte de Genésio. Fonte: site oficial da novela. Montagem autoral.

- Minha mulher, Carmem Lúcia. – balbucia o homem ferido, tentando dizer mais...

Enquanto Genésio falece nos braços do jogador, Tufão promete a sua vítima que

irá procurar sua esposa e cuidar dela.

4.3 O Clímax

Quinta-feira, dia 19 de julho de 2012. Capítulo 10060 de “Avenida Brasil”.

À altura do capítulo 100, a telenovela de João Emanuel Carneiro era um sucesso

inconteste. Nesse momento, os espaços digitais encontravam-se contaminados pela

euforia coletiva em torno do folhetim, traço revelador de sua ampla aceitação social.

Diante do engajamento do público, tanto nas redes sociais online quanto off-line, a quinta-

feira em questão tornou-se um significativo acontecimento dentre os vários pequenos

eventos ficcionais propostos pela trama de Nina e Carminha. Configurava-se, assim, uma

festividade – matriciada, particularmente, no Twitter, em torno da hashtag #Oioioi100 –

, que gerou grande expectativa sobre capítulo em questão.

60 Nesta seção, utilizo-me de um conjunto de ações dramatúrgicas que, simbolicamente, tiveram início no

capítulo 100, mas que se estenderam por cerca de uma semana.

85

Entre outras ações, o microblog contou com um bem sucedido flash mob61

organizado por duas blogueiras populares no âmbito da “noveloesfera”: no caso, Bic

Muller e Nana Matta convidaram os telespectadores a congelarem62 seus avatares em

referência à finalização de cada capítulo da novela. A ideia deu origem à hashtag

#avatarcongelado, que, por sua vez, alcançou o “TTBr” (Trending Topics Brasil) e

mobilizou milhares de internautas em torno da centésima exibição do folhetim. A

iniciativa contou ainda com a adesão de celebridades (como Willian Bonner, Suzana

Vieira, Preta Gil, Luciano Huck, entre outros), o que amplificou a dimensão do

acontecimento midiático promovido pelas blogueiras.

Famosos mobilizados pelo Flash Mob: Fernanda Paes Leme, Willian Bonner, Suzana Vieira, Narcisa

Tamborindeguy, Preta Gil e Aline Rosa. Fonte: Site “Ofuxico”.

61Flash Mobs são aglomerações instantâneas de pessoas em certo lugar para realizar determinadas ações,

em geral, inusitadas e previamente arranjadas.

62 O efeito de congelar marcava o fim de cada capítulo de “Avenida Brasil”. Acompanhado por uma trilha

musical que crescia em volume, todos os dias, um personagem era enquadrado. O escolhido (“ser

congelado” significava importância no contexto da novela) tonalizava-se em tons de preto e branco. O

sucesso foi tanto que foram disponibilizados na internet alguns tutoriais sobre como obter efeito semelhante

em programas de edição de imagem, o que permitiu aos telespectadores “congelarem” fotos pessoais e,

assim, publicá-las como avatares nas redes sociais.

86

Antenado a tal excitação, João Emanuel reservou para o capítulo 100 uma virada

no folhetim: na ocasião, Carminha descobre que Nina – sua “fiel” empregada – era, na

verdade, Rita, a menina que tivera sua infância destruída pela megera. A garota, após ter

sido criada por uma família argentina, regressou ao Brasil disposta a revidar o mal que

havia sofrido. Para tanto, infiltrou-se como cozinheira na mansão de Tufão – agora,

marido de Carminha –, aproximando, intimamente, da inimiga, o que lhe permitiu

recolher provas do seu adultério com Max (que, nessa altura, havia se casado com Ivana,

irmã do jogador de futebol).

Como estratégia de convocação ao capítulo, a emissora divulgou o que viria a

acontecer na trama, gerando um clima de intensa ansiedade pelas imagens que seriam

levadas ao ar. Dessa forma, João Emanuel e a equipe de produção da telenovela se

valeram de uma estratégia, até poucos anos atrás, pouco comum à teledramaturgia

nacional, aproximando-se, mais uma vez, das séries televisivas: afinal, nas séries, o

episódio de número 100, quase sempre galgado por uma trajetória de quatro a cinco anos

de produção, é comemorado como reconhecimento de um êxito, mérito de uma ficção

que conseguiu sobreviver em meio ao competitivo mercado de séries análogas. Já na

telenovela, o centésimo capítulo (garantia de quase todas as novelas que são levadas ao

ar) não costuma receber maiores atenções, até mesmo em função de um modelo de

serialização que, marcado pelo fluxo intenso e quase diário de conteúdos, dificulta a

individualização de cada capítulo. Pois bem, em “Avenida”, a estória foi diferente, e a

exibição de número 100 da telenovela tornou-se um marco na trama de João Emanuel,

momento decisivo que, para muitos internautas, foi avaliado como o final antecipado do

folhetim, tamanha a expectativa em torno da exibição.

87

88

Nos dias seguintes à centésima exibição, a tensão só fez crescer. Na verdade, o

capítulo fatídico revelou-se bastante ordinário (no sentido de pouco especial), marcado

por blocos inteiros em torno dos núcleos coadjuvantes – o que, a propósito, gerou

reclamações e piadas entre os internautas, alguns revoltados pelo destaque dado às tramas

paralelas em um dia tão emblemático. O grande desenlace – a descoberta de Carminha –

deu-se apenas no último bloco do capítulo, quando vimos o processo de desconfiança da

vilã e suas averiguações. Nesse dia, a cena mais comentada foi aquela em que a

suburbana, ao descobrir que fora enganada por uma falsa Rita (a personagem Betânia,

amiga de infância da protagonista), sai dirigindo em estado de total descontrole.

Literalmente bufando, a megera recobra os episódios que envolveram a falsidade de Nina,

o que despertou ataques de ira e ódio na vilã do subúrbio.

Descontrole de Carminha em meio ao trânsito. Fonte: site oficial da novela. Montagem autoral.

O destaque da cena, segundo vários internautas, ficou por conta da atuação de

Adriana Esteves, intérprete de Carminha. A atriz, que já vinha construindo uma

personagem bastante expressiva (até mesmo careteira), aproveitou-se do tradicional close

89

facial da televisão63 para dar vazão a uma energia odiosa que conferiu vivacidade à

sequência em questão. Ao confirmar sua suspeita e, finalmente, descobrir a verdade, a

personagem foi congelada, indicando que o capítulo 100 chegava ao fim, ainda que fosse

apenas o início do clímax de “Avenida Brasil”.

No que se refere ao fluxo de circulação da telenovela nas redes digitais, como

parte do já mencionado entusiasmo da audiência, nota-se o surgimento ou a propagação

de alguns modelos específicos de discursividade. Nesse sentido, a partir da observação

do Twitter, destaco dois movimentos: (1) o primeiro relaciona-se ao aumento de

postagens compostas por referências fáticas à trama, no caso, utilizadas como

instrumentos de convocação e mobilização da audiência em torno do folhetim; (2) além

desse indicador, percebe-se o crescimento vertiginoso de práticas interativas assentadas

sobre discursos humorísticos – modulação também presente em outras redes sociais,

como o Facebook. Ambos os apontamentos contaram com o respaldo da codificação

aberta sobre os tweets: no caso, as postagens publicadas em torno do capítulo 100

constituíram uma segunda amostra de análise que, em relação à primeira, apresentou um

aumento de 51% nos discursos de mobilização narrativa, e impressionantes 240% sobre

as inserções de humor.

Dentre as apropriações comicizantes de “Avenida Brasil”, destaco a máxima “É

tudo culpa da Rita”, surgida antes mesmo do capítulo 100, quando Carminha, confiante

de que Betânia era sua ex-enteada, atribuía à garota a responsabilidade de qualquer

ocorrência negativa desenrolada em seu entorno. Valendo-se das imagens desesperadas

da vilã e dos dizeres em relevo, Rita tornou-se uma espécie de algoz nacional,

culpabilizada por toda e qualquer intempérie pela “boca” de Carminha: políticas públicas

duvidosas, articulações grevistas, condições meteorológicas indesejadas, entre outros.

63 Uma prática de filmagem comum nas telenovelas é a utilização de ângulos à altura dos olhos dos atores.

Esse enquadramento, não raramente, culmina em closes faciais que visam aproximar a imagem do estado

psicoemocional dos personagens, tendo em vista que, na televisão, esse tipo de expressão é recorrentemente

acionada enquanto recurso performático, muitas vezes em preterimento a técnicas corporais. Nesse sentido,

uma composição tradicional nas telenovelas é a inversão de tipo “plano e contraplano”, na qual as imagens

faciais dos personagens em diálogo são dispostas em regime de revezamento.

90

Fonte: Material coletado na internet. Montagem autoral.

Além das fotomontagens, muitos registros cômicos vinham com a transcrição,

ipsis litteris, de falas da megera. Assim, se a intenção inicial de João Emanuel era criar

uma história na qual o espectador pudesse torcer pelas crueldades praticadas pela mocinha

justiceira, o carisma de Carminha trouxe outra dimensão ao conflito, já que, muito bem

quista pelo público, tornou-se difícil não se simpatizar pela vilã inescrupulosa. Entre as

frases que fizeram sucesso – “as pérolas de Carminha”, segunda página criada no

Facebook – estão: “Pobre tá sempre segurando uma sacolinha”; “Sabe o que você está

parecendo? Uma bisnaga de padaria dentro de um saco de pão” (Reação à roupa parda

usada pela filha acima do peso); “Eu mandei você jogar a Rita no lixo e ela voltou como

Nina. É essa porcaria de reciclagem, né?” (Para Max); “Quando descobrirem a verdade,

negue até a morte e depois desmaie”.

Além de Carminha, outro núcleo explorado de forma humorística envolvia

Cadinho e, agora, suas três esposas. Diante da falência do empresário (desenvolvida a

partir da segunda metade da trama), as famílias de Cadinho (a essa altura, já cientes da

trigamia do malandro), viram-se obrigadas a mudar para o subúrbio: entretanto, para

91

Verônica, Noêmia e Alexia, o Divino só havia recebido um nome tão celestial em razão

de algum devaneio satírico, uma vez que, para essas madames de berço e postura, as

condições de vida na periferia eram torturantes. Quando Cadinho retorna de uma partida

do Divino Futebol Clube, fedendo à suor e gordura (“cheiro de macho”, em sua

avaliação), e comenta sobre o futuro promissor do jogador Leandro (“esse moleque vai

ganhar o mundo!”), Verônica prontamente devolve: “ao contrário da gente né, Cadinho?

Que saímos do mundo para encalhar aqui nesse Divino”. As dondocas reclamam ainda

da “indignidade” da faxina, das unhas desfeitas pela água fria da torneira e pela ausência

de cuidados com a aparência (o que as leva a correr para o salão de Monalisa, onde,

segundo Verônica, deveria haver uma boa manicure: “elas não são todas do subúrbio?”).

A madame, a propósito, revelou-se uma das personagens mais cômicas da trama

de João Emanuel Carneiro, em vista da sua ironia elitista diante dos modos nada discretos

de “ascensão da periferia”. Entre seus comentários mais reverberados estão: “Esse país

está virando um grande camelódromo, um churrascão na laje”; “Depois de namorar o

jogador de futebol da segunda divisão, você vai namorar o filho da cabelereira? Você faz

isso pra me provocar ou está querendo fazer um estudo sociológico sobre a nova classe C

brasileira?” (Sobre o histórico amoroso da filha); “O negócio tá feio! ‘Tão’ sequestrando

até suburbano!” (Reação ao sequestro forjado de Carminha). “Vou ter que ouvir pagode

no play? (...) É a invasão do Subúrbio” (Quando Monalisa se muda para Zona Sul).

Ainda no que se refere aos resultados da codificação, outra dimensão importante

revelada pelo comparativo entre as duas amostras de tweets (estreia e clímax) diz respeito

ao aumento das indexações, tanto de links externos (73% em relação aos primeiros

resultados), quanto de usuários (53%). Esse comportamento dos internautas indica que,

na altura do capítulo 100, já havia se formado no microblog uma considerável

comunidade de fãs da novela, da qual participavam artistas, blogueiros e espectadores

anônimos. Além disso, o crescimento do número de links externos sinaliza que, no

período em questão, circulava um elevado volume de material sobre o folhetim, entre os

quais destaco textos informativos, postagens em blogs, curiosidades de sites de

entretenimento, fotomontagens, memes, tumblrs e gifs64.

64 Memes, tumblr e gifs são termos que se referem aos conteúdos gerados por internautas. Os memes, no

contexto desta pesquisa, refere-se à todo tipo de material (foto, vídeo, charge, gifs) que se espalha pela rede,

tornando-se um viral. Os gifs – “gráfico para intercâmbio de formatos” relacionam-se a uma dada forma de

veicular imagens, tanto estáticas quanto em movimento, sendo apropriados, particularmente, para gerar um

curto efeito fílmico a partir de uma sobreposição imagética. Por fim, os tumblers são plataformas de

blogging que permitem ao usuários visibilizar e compartilhar textos, fotomontagens, vídeos e outros tipos

92

E, afinal, do ponto de vista narrativo e dramatúrgico, o que fez da centésima

exibição de “Avenida Brasil” um capítulo tão aguardado pelos espectadores e

internautas? Certamente, a virada prometida por João Emanuel Carneiro foi decisiva para

construção desse contexto de expectativas recepcionais, mas, por outro lado, toda novela

é feita por momentos emblemáticos e, certamente, poucos eventos ficcionais alcançaram

a projeção do embate entre Nina e Carminha.

Na terça-feira subsequente ao capítulo 100, por exemplo, “Avenida Brasil”

alcançou a média de 45 pontos com a transmissão da humilhação de Carminha (até então,

o índice mais alto conquistado pela trama no avaliador). Nesse mesmo dia, o capítulo

emplacou três Trending Topics65 na lista mundial de temas mais comentados no Twitter.

capa da mencionada edição: “Mensalão: o espetáculo da justiça no STF”66.

Sem entrar no mérito de uma questão jornalística – no caso, aquela que opta por

explorar a ficção como matéria de capa, mesmo que diante de processos ímpares para

história política do país – coloco que, do ponto de vista narrativo, “Avenida Brasil” foi

dinamizada por eventos desenrolados após a descoberta de Carminha sobre a real

identidade de sua cozinheira. Tais eventos, potencializados por um bom arranjo de

competências produtivas (texto, atuação, direção), marcaram o curso da trama e, arrisco,

de material sobre a novela. Em geral, as postagens nesses espaços tendem a ser curtas e dinamizadas por

recursos não textuais.

65 Os Trending Topics ou TTs correspondem a uma lista em tempo real das frases mais publicadas no

Twitter, tanto no âmbito nacional, quanto mundial.

66 Fonte: Revista Veja, 8 de Agosto de 2012. Edição 2281. Capa da revista retirada do site oficial da revista.

Disponível em: <http://veja.abril.com.br>.

A fabulação de Carneiro alcançou tal grau de

acontecimento midiático que, na mesma semana em

que se instalavam os processos jurídicos contra os

mensaleiros, a revista de maior circulação no país

optou por explorar um matiz ficcional como matéria

de destaque. “Vingança. A explosão em Nina e

Carminha da mais primordial das emoções faz de

‘Avenida Brasil’ um fenômeno sintonizado por 8 em

cada 10 televisores brasileiros.” No informativo, o

episódio político ganhou uma discreta chamada na

capa da mencionada edição: “Mensalão: o espetáculo

da justiça no STF”1.

93

a memória da televisão brasileira. As cenas referenciadas na sequência também integram

o DVD em anexo.

Na primeira das cenas, a mocinha desperta, com terra cobrindo-lhe os olhos,

momento em que a câmera recuada nos informa que ela fora enterrada viva em uma cova

profunda. No alto, Carminha surge sob uma luz vermelha, rindo diabolicamente do

desespero da cozinheira. Após ameaçá-la de morte – de forma bastante enfática e

convincente –, a vilã decide abandonar a ex-enteada em seu jazigo, mas não sem antes

escarrar sobre seu rosto quase totalmente imerso à terra.

Essa sequência foi interpretada por alguns comentadores (como Nilson Xavier e

Fernando Oliveira) como uma intertextualidade à obra do diretor Quentin Tarantino,

especificamente, em relação ao filme “Kill Bill” (EUA, Japão, 2003/2004). Em minha

avaliação, a “contravingança” de Carminha representou um dos momentos mais

expressivos de “Avenida Brasil” enquanto inovação e ruptura teleficcional. Tais cenas

revelaram a competente mão autoral do grupo de diretores responsável pela telenovela,

transformando um momento, até então, tido como obra do novelista e de atores, em um

jogo mais complexo de produção coletiva. Nessa medida, a comparação com “Kill Bill”,

apesar de motivada por uma equivalência de acontecimentos ficcionais (o enterro da

personagem viva), justifica-se, ainda, pela plasticidade cuidadosa da imagem e da edição

– prática criativa mais comum à indústria cinematográfica. Esses resultados foram

alcançados mediante diversos fatores, entre os quais destaco uma boa conjunção entre

imagem e som, o esmero da composição fotográfica, e ainda, a progressão do olhar

fílmico como instrumento de suspense, isto é, como geração de ansiedade e possibilidade

de surpreendentes revelações – “o que virá adiante?”. Nesse contexto, os enquadramentos

mínimos foram explorados no sentido de extrapolar os limites do quadro e revelar a

insuficiência da câmera mediante a dimensão dos acontecimentos narrados: por essa

perspectiva, o caminhar de uma formiga, por exemplo, capturado por uma lente atenta,

cresce em tamanho e fôlego ao revelar seu trajeto inusitado pelo rosto da jovem moça

estirada ao relento, conduzindo-nos por uma inusitada trama de horror.

94

Fonte: site oficial da telenovela. Montagem autoral.

Desse imbróglio, surge a última sequência de cenas que marcaram o clímax de

“Avenida Brasil”, quando Nina, recuperada do susto, regressa à mansão para chantagear

a ex-madrasta. Aproveitando-se da casa vazia – a família Tufão viajara em peso para

Cabo Frio – Nina obriga Carminha a se comportar como se fosse sua empregada,

servindo-lhe refeições de forma humilhante. Após uma série de rebaixamentos – “Me

serve, vadia!” –, a mocinha termina por cortar e descolorir o cabelo da emergente,

retirando-lhe sua artificial e garbosa loirice.

95

O sucesso “Me serve vadia”: (1) cena da vingança de Nina; (2) fotomontagem que circulou nas redes sociais

– “Carminha empreguete”, referência à novela “Cheias de Charme”; (3) as personagens de Ingrid

Guimarães e Julia Gam reencenam o conflito na novela “Sangue Bom” (Rede Globo, 2013).

Em certa medida, ao referenciar cenas emblemáticas como essas, amplamente

reverberantes nas redes sociais, busco mostrar que, na altura do capítulo 100, “Avenida

Brasil” encontrava-se em um lugar de ampla aceitação pública. Por um lado, essa resposta

extremamente positiva à telenovela, conforme já colocado, retomou a mobilização

massiva que, décadas atrás, caracterizava a teledramaturgia brasileira. Em contrapartida,

os discursos crítico-reflexivos produzidos a partir da telenovela diminuíram

consideravelmente, inclusive nos espaços anteriormente diagnosticados como mais

propensos a esse tipo de discursividade (blogs e portais de notícia). No Twitter, a maior

parte das postagens que manifestavam, explicitamente, algum traço de criticidade,

dirigiam-se a personagens e núcleos antipatizados, visando, assim, laurear o centro

narrativo que, de fato, arregimentava o folhetim. Ao contrário do ocorrido na estreia de

“Avenida” – no qual o elogio era motivado por uma crítica de base (“enfim uma boa

novela, diante de produções, em geral, medíocres”), nessa fase constatei uma inversão:

sobre a “crítica” escondia-se um elogio (“menos Cadinho e mais Carminha”), sendo o

ânimo laudatório aquele que dominava as interações tecidas sobre a trama.

Exemplo dessa “falsa crítica” foi a campanha “Um pen drive para Nina”. No caso,

um furo de roteiro (Nina perdeu as fotos que incriminavam Carminha porque só as tinha

em papel) motivou a circulação de uma série de piadas em torno da novela. Nesse caso,

talvez, a intenção fosse menos criticar João Emanuel Carneiro e mais provocar humor

diante das inusitadas situações de “Avenida Brasil”67 – “coisas de novela”.

67 Ainda que, por outro lado, apropriações dessa natureza não deixem de apontar certa destreza recepcional,

mediante a qual o público busca se atentar, cada vez mais, à lógica narrativa. Como, a propósito, Gloria

Perez, autora de “Salve Jorge” (Rede Globo, 2012-2013), deve ter percebido: sua trama, sucessora de

“Avenida Brasil”, foi marcada pelo “jogo dos sete erros”, todos prontamente apontados e compartilhados

pelos internautas/detetives de plantão.

96

Felipe Scavo: O capítulo (do enterro de Nina) foi espetacular. Sou

fanático por novelas, e nunca vi algo tão esplêndido, tão cativante, como nas

sequências de terror entre Carminha e Rita/Nina.

Thiciane Diniz: Capítulo absolutamente sensacional, e com cenas que

com certeza já entraram pra história da teledramaturgia brasileira! Atuações

soberbas, diálogos fantásticos, e cenas de suspense de arrepiar! Adriana

Esteves simplesmente espetacular, e Débora Falabella também arrasou!

Trabalho belíssimo de ambas! Palmas e mais palmas!! João Emanuel Carneiro

mostrando mais uma vez o autor brilhante que é!

Fran2021: Foi uma das cenas em novela que mais me sensibilizou, tanto

pela qualidade dos atores, como pelo teor da cena. Incrível.68

Jair Carlos Huttinger: É só uma novela, e como tal, uma bobagem sem

compromisso com a verdade/realidade. Porém, atingiu o objetivo: QUE

TODOS ASSISTAM, até àqueles que criticam como eu.

Fernando: Essa novela é um suco gástrico fantasiado de mel.

Daniela: Novela é tudo de bom, as pessoas falam, falam, mas na

verdade, depois de um dia estressante no trabalho, nada como ficar olhando

TV, sem compromisso, vendo as coisas sem noção que estão na novela.

Importante é desligar da realidade uns instantes. Eu curto. Mas quem reclama,

não se preocupe, logo, logo vem o horário político (que tb gosto) daí todos

vamos poder ver a realidade, discutir problemas e escolher quem queremos

para guiar nossa cidade, discutir temas reais e escolher o voto. Então, pra quem

não gosta de novela sem noção, calma, seus problemas já vão terminar.69

4.4 Desfecho

Último congelamento de “Avenida Brasil”: a bandeira do Divino Futebol Clube. Fonte: site oficial da

novela.

68 Comentários à matéria: “‘Avenida Brasil’ peca ao exibir capitulo emblemático num sábado, dia de menor

audiência”, assinada por Nilson Xavier. Disponível em:

<http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2012/07/22/avenida-brasil-peca-ao-exibir-capitulo-

emblematico-num-sabado-dia-de-menor-audiencia/#comentarios>.

69 Comentários à matéria não assinada “Os cinco momentos mais eletrizantes do capítulo 100”, publicada

no blog “Noveleiros”: Disponível em: <http://wp.clicrbs.com.br/noveleiros/2012/07/19/avenida-brasil-os-

cinco-momentos-mais-eletrizantes-do-capitulo-100/>.

97

“Novela é assim mesmo. Fala-se muito enquanto está no ar. Depois o tempo vai

passando e vamos nos esquecendo. (...) Inesquecível mesmo só ‘Avenida Brasil’.” –

Alberto Villas, articulista da revista "Carta Capital”70.

No dia 19 de outubro, sexta-feira, foi ao ar, pela Rede Globo, o último capítulo de

“Avenida Brasil”. Nesse dia, os marcadores do Ibope indicaram que o desfecho da trama

foi a maior audiência da TV em 201271, alcançando índices significativos de pontos (50,9)

e participação (72%). Além dos números, outros fatores endossaram a reverberação

massiva do término de Nina e Carminha: a presidente Dilma fez alterações em sua agenda

política (cancelamento de comício eleitoral), fato que alcançou repercussão em veículos

estrangeiros. Em Salvador, na Bahia, um dos candidatos à Prefeitura da cidade (Nelson

Pelegrino – PT) tentou retomar a tradição – agora, ilegal – dos showmícios, porém, com

uma diferença: no lugar dos cantores e das bandas de sucesso, a grande atração da noite

seria a exibição do último capítulo de “Avenida”. Nesse caso, o Tribunal Regional

boicotou a festa. Além dos episódios políticos, os noticiários brasileiros destacaram uma

Já nas redes sociais, a telenovela foi o assunto mais comentado da semana. Pelo que

pude constatar, no Facebook, as publicações oscilaram entre os tradicionais memes dos

personagens (entre outras postagens humorísticas) e manifestações de antipatia

antecipada a “Salve Jorge”. Registro também alguns apelos contra a recorrência de

discussões orbitadas em torno da novela, que, apesar da minoridade, apresentavam alta

adesão, sinalizadas por um elevado número de aprovações – “curtidas”. No Twitter, o já

citado “Oi, oi, oi” deu lugar ao “Tchau, tchau, tchau”, sendo que, nesse espaço, o folhetim

70 Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/cultura/avenida-brasil-3898.html>.

71 Fonte: Revista Exame. Disponível em: < http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/final-de-

avenida-brasil-quebra-recorde-de-audiencia>.

possível queda da energia após a esperada

exibição – período quando, finda a paralisação

em função da assistência, as pessoas retomariam

sincronicamente suas atividades, o que poderia

causar uma sobrecarga elétrica. Diante do risco

(que não se efetivou), a Agência Nacional de

Energia Elétrica (ANEEL) viu-se obrigada a

adotar medidas preventivas.

98

alcançou a proeza de emplacar as quatro primeiras posições do ranking dos assuntos mais

comentados no mundo.

Outra dimensão do acontecimento nos media: os próprios veículos enfocaram a

repercussão social da telenovela como critério de noticiabilidade (conforme matéria do

“Jornal da Globo” disponível no DVD). Na ocasião, o “Jornal Nacional” registrou, ao

vivo, a atipicidade do tráfego tranquilo de avenidas importantes no Rio de Janeiro e em

São Paulo, segundos antes do capítulo ser levado ao ar. Além disso, um grande número

de matérias avolumou-se em diversos sites na internet, o que contribuiu para configurar

um estado social de grande expectativa em torno do desfecho.

99

100

Do ponto de vista da narrativa, o final de “Avenida Brasil” foi previsível (tendo

sido, inclusive, divulgado antecipadamente como spoiler, ainda que entre inúmeros

outros “finais alternativos” que circularam nos dias que antecederam à derradeira

exibição. Nele, vimos a prisão de Santiago – o pai de Carminha que se revelou o

“arquivilão” da trama –, a revelação do assassino de Max72, o casamento de Cadinho e

suas três esposas, a felicidade de diversos casais da trama e, principalmente, o ato final

do embate entre Nina e Carminha.

Desse último ponto, mais uma vez, “Avenida” retirou sua potência dramatúrgica.

Enquanto no teaser de lançamento da novela, a pergunta era: “Até onde você iria por

justiça?”, a resposta sugerida pelo último ato do conflito “Nina e Carminha”, em

desconformidade ao esperado, não apontou para as últimas consequências de um desejo

incontrolável de vingança, mas sim para o valor do perdão. Carminha – a megera

suburbana e inescrupulosa – e Rita/Nina – a menina/ mulher que colocou seu plano

revanchista acima de seu amor por Batata/Jorginho – terminaram “Avenida Brasil”

hasteando bandeiras brancas. A vilã não deixou de ser castigada – três anos de detenção

e uma vida entregue ao lixo; além disso, para se mostrar digna do perdão da ex-enteada e

de sua conversão, Carminha salvou a vida de Nina e Tufão, impedindo que os planos de

Santiago dessem certo. Não o bastante, descobrimos o passado sofrido da megera, que,

na infância, havia presenciado o assassinato da mãe, era abusada pelo pai e fora despejada

em meio à miséria do lixão. Assim, a vilã emergente que, com carisma e humor,

conquistou o gosto da audiência, não foi condenada à fogueira da morte ou à loucura.

Porém, ainda que muitos quisessem Carminha rica, tomando “bons drinks”, vivendo um

sonho de beira de piscina, João Emanuel optou por uma via moderada, conjugando uma

pena judicial branda a uma redenção que, do meu ponto de vista, foi o ponto mais sensível

de “Avenida Brasil”.

Antes, contudo, de reportar a fausta reconciliação de Nina e Carminha, apresento

seu espaço de encenação: o lixão de Mãe Lucinda. Do ponto de vista cenográfico, trata-

se de uma das maiores e mais audaciosas empreitadas assumidas pela equipe de direção

de arte de uma novela da Rede Globo: reproduzir, em pleno estúdio, um aterro sanitário

72 Assim como a famigerada Odete Roitman (Beatriz Segall), Max foi assassinado na penúltima semana da

trama. A identidade do criminoso – Carminha – só foi revelada no último capítulo, o que motivou

especulações, apostas e bolões em torno de qual personagem seria culpabilizado. Nesse sentido, vale

pontuar que, nos últimos anos, a teledramaturgia vem optando pela mesma estratégia de solução do conflito

“quem matou?”: no final, descobre-se que o grande assassino era o grande vilão – tal como aconteceu em

“Celebridade”, “Paraíso Tropical” (Rede Globo, 2007) e “Passione” (Rede Globo, 2010-2011).

101

à céu aberto. Diante da encomenda, foi montado um lixão de 13km2, cuja “estrutura”

compunha-se de restos de construção que conferiam volume aos supostos montantes de

lixo, no caso, objetos “maquiados”, roupas usadas, sacos plásticos e reciclados. Tendo

em vista a segurança dos atores, todo material de construção foi refinado, eliminando-se,

assim, cacos de vidro, pregos, farpas e objetos perigosos. Além disso, alguns materiais

foram pintados para simularem resíduos orgânicos. De acordo com Ana Maria

Magalhães, diretora artística de “Avenida Brasil”, “todo material de cenário foi lavado”73,

o que garantiu uma característica fundamental à ludicidade do lixão de Mãe Lucinda: o

aterro sanitário da novela não fedia e, sequer, parecia feder.

O lixão cenográfico de “Avenida Brasil”: Jorginho, Nilo, Mãe Lucinda e suas crianças.

Fonte: G show. Montagem autoral.

Sobre esse espaço-lugar, atravessado por ambivalências tão marcantes quanto seus

protagonistas – Lucinda e Nilo –, desenrolaram-se não apenas as cenas finais do duelo

entre Nina e Carminha, mas outros momentos importantes à narrativa: o abandono de

73 Fonte: <http://www.greennation.com.br/>.

102

Rita, o casamento mágico da garota com Batata (DVD), a primeira noite de amor entre

Nina e Jorginho e o assassinato de Max. Se, em geral, “Avenida Brasil” é feita de

trânsitos, seu lixão é constituído por dualidades: para Ritinha, por exemplo, esse espaço

representou a violência de ter sido expulsa do lar e de ter sido privada do cuidado paternal,

ainda que, mais tarde, o lixão tenha permitido à garota (re)descobrir o amor em Lucinda

e Batata. Já o menino, assim como seus pais, Carminha e Max, tinha no aterro uma

origem, um passado que, de certa forma, conferia à sua trajetória de vida um sentido tão

categórico quanto as adversidades do aterro. Assim, do amor que une (Rita e Batata, Nina

e Jorginho), ao amor que destrói (Max e Carminha, Nilo e Lucinda); do aconchego

sombrio de uma mãe repleta e ausente de filhos, e ainda, pela miséria de um pai colocado

à margem, o lixão se fez enquanto espaço narrativo heterogêneo e complexo, um espaço

marginal de forte importância dramatúrgica.

A ambivalência do lixão, personalizada no inescrupuloso Nilo e na amorosa Mãe Lucinda. Destaque para

a caracterização das respectivas habitações. Fonte: sites diversos da internet. Montagem autoral.

Não fortuitamente, acredito, o lixão foi escolhido para protagonizar o desenlace

mais esperado do folhetim: a reconciliação entre Nina e Carminha (DVD). Como forma

de expiar seus pecados, a vilã redimida, após sair da prisão, “opta” por viver em meio às

condições duras do aterro. Transcorrido certo tempo, vemos a ex-emergente catando

103

recicláveis em meio ao lixo, esboçando feições de transtorno e sofrimento (alguns

internautas, a propósito, avaliaram a interpretação de Adriana Esteves como uma

referência à Estamira, personagem documentada por Marcos Prado em filme homônimo

de 2004).

De volta ao lixão, Carminha se emociona com a visita surpresa. Fonte: site oficial da novela. Montagem

autoral.

- Não achei nenhuma porcaria que prestasse hoje. Tô falando contigo velha, cadê

você? Velha cadê você? (...) Eu não esperava. Tão parecido com você, filho. (...) Risoto

de Frango. Tô tentando fazer umas coisas diferentes aqui nessa casa, porque se depender

dessa aí a gente só come bolinho de chuva. Você gostou filho? Tudo dica da outra aí.

Você me perdoou, depois de tudo que eu te fiz? Você é realmente superior a mim. Eu não

seria capaz de fazer o mesmo se fosse você. Só tô colhendo o que plantei. Pelo menos

agora tô vivendo uma vida de verdade. Adianta não perdoar?

Mãe Lucinda sugere um abraço. Nina toma a iniciativa e larga os talheres sobre a

mesa. Carminha vira o rosto. Nina se levanta. Carminha também. De pé, as duas se olham

e Carminha, delicadamente, abraça Nina, depositando a cabeça em seus ombros. Nina

chora e enlaça seus braços nas costas de Carminha, arrancando-lhe um gemido choroso.

Nina e Carminha fazem as pazes.

104

No fim, enfim, em paz. Fonte: site oficial da novela. Montagem autoral.

- Tá satisfeita agora velha? Alguém “qué” café?

Alguns fatores contribuíram para que a singularidade da sequência descrita, como:

a atuação de Adriana Esteves e Débora Falabela (sobretudo da primeira, que respondeu

de forma crível ao desafio da mudança repentina de sua personagem); o texto tragicômico

de João Emanuel Carneiro que, em meio às fortes emoções do desenlace, pincelou doses

bem medidas de comicidade (um humor denso, responsável por lágrimas tão ambíguas

quanto o lixão); e, por fim, à equipe de direção, pela sutileza da filmagem, na qual os

recursos de edição foram aliados, de forma equilibrada, à organicidade da ação

dramatúrgica, o que, por sua vez, situou os eventos em um campo sensível às interseções

entre texto e imagem.

105

Sobre esse episódio de perdão, Nilson Xavier74 escreveu: “Carminha cumpriu

pena, voltou para o lixão e teve o embate final com Nina. Sem gritaria e palavrões. Apenas

com o olhar atravessado das relações mal resolvidas.”. Na crítica, o blogueiro avaliou

ainda outras questões que perfizeram a trama de “Avenida Brasil”, entre as quais destacou

o feliz casamento entre a televisão e a internet no que se refere aos modos de interação

gerados a partir da novela.

O efeito coqueluche ao qual Nilson Xavier faz referência pôde ser verificado, por

exemplo, no Twitter, espaço onde os discursos circulantes sobre a trama proliferaram com

o decorrer da narrativa. Na última etapa de mapeamento dos tweets percebi que, de forma

74“Avenida Brasil: uma tragédia grega no subúrbio carioca”. Matéria publicada no blog do escritor, na

página da UOL, no dia 20/10/12. Disponível em:

<http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2012/10/20/avenida-brasil-uma-tragedia-grega-no-suburbio-

carioca/>.

106

geral, as motivações discursivas assemelhavam àquelas verificados na segunda

amostragem, sendo que, desse comparativo, aponto uma diferença: o crescimento de

quase 100% das postagens elogiosas, através das quais os internautas reforçavam os

aspectos positivos do folhetim e compartilhavam um estado de euforia pela exibição do

último capítulo. Dessa forma, o grupo de tweets dotados de alguma forma de criticidade

(quase sempre de caráter exegético, voltadas para reclamações contra o não “fechamento”

de algumas estórias, contradições narrativas e expectativas frustradas) apresentou baixa

recorrência diante da expressividade de comentários que endossavam, positivamente, o

folhetim, tanto através das inserções laudatórias, quanto de postagens de mobilização que

buscavam inscrever o final da telenovela em um contexto de intensa reverberação social.

Ainda com relação às postagens críticas (no Twitter e fora dele), os comentários dos

internautas dirigiram-se, de forma expressiva, aos possíveis furos na trama de João

Emanuel Carneiro (como a pena reduzida de Carminha, a liberação tardia de Mãe Lucinda

da prisão, e ainda, o desfecho não explicitado de Santiago). Alguns comentadores,

sobretudo em espaços críticos de maior fôlego, destacaram a “barriga” (narrativa

arrastada) gerada no folhetim a partir da sua segunda metade, período quando a trama

central se viu atrelada aos mesmos acontecimentos da sua primeira fase. Por sua vez, os

internautas que comentavam essas matérias posicionavam-se de forma mais reflexiva,

acionando perspectivas valorativas direcionadas a aspectos específicos do folhetim, assim

como para as características gerais das telenovelas.

Alex: Sempre se espera mais de algo que mobiliza, nem noveleiro eu

sou, mas confesso que assisti aos 10 últimos capítulos. No tocante à “moral da

história”, vale a pena ressaltar que, apesar da Carminha ser uma pessoa amoral,

ela teve um lampejo de consciência que me pareceu sincero, resignou-se com

seu final melancólico, vestiu a camisa que lhe foi imposta com sua derrocada

e resolver viver a sua vida. Final melhor e mais “educativo” que outros, como,

por exemplo, uma fuga de helicóptero mandando banana para outros.

Rogério Barbosa da Silva: Enquanto isso políticos corruptos tomam o

poder e fazem o que querem da nossa gente, que consegue no máximo se

mobilizar em torno de uma TV, é a cara do Brasil.

Nena: Achei que faltou um desfecho melhor e mais justo para Lucinda.

O neto rico poderia ter dado a ela uma casinha decente e uma boa ajuda de

custo para ela viver com as crianças do lixão em condições mais dignas e

salubres.75

75 Comentários à matéria “‘Avenida Brasil’ é mais ‘durante do que ‘finalmente”, publicada no site da

Revista Veja, dia 19/10/12. Disponível em:

<http://veja.abril.com.br/blog/quanto-drama/folhetinescas/avenida-brasil-e-mais-durante-do-que-

finalmente/>.

107

Fátima Valadares: Fiquei muito indignada com a Carminha voltando

para o lixão. Por que Tufão e Jorginho não deram uma vida mais digna para

vilã, já que a perdoaram? A mãe Lucinda merecia sair do lixão. E aquelas

crianças do lixão. Ninguém vai ajudá-las?

Walter Matos Jr: Chupeta, casamento, mocinho vence, mal perde...

Muita bobagem, pouca novidade. Nessa novela nem o primeiro capítulo

prestou. Antropologia de boteco.

Sidharta: Achei bastante emblemática a questão do lixão, no final tudo

acaba em lixo!76

Como balanço geral do último capítulo, diria, na esteira de internautas e

comentadores, que “Avenida Brasil é mais durante que finalmente”. Na altura do capítulo

final, os acontecimentos gerados pela telenovela eram mais significativos pelo ponto de

vista da mobilização do que, propriamente, pelo desfecho narrativo. Em seu percurso bem

sucedido, a novela de João Emanuel Carneiro evidenciou a potência do acontecimento

midiático construído coletivamente, reafirmando, assim, a tradição da televisão como

fogo no chão das sociedades contemporâneas. Nesse contexto, a dimensão do sucesso,

forma de agregar audiências, forneceu “novas” conotações ao sentido social de estar

junto, revigorando, por conseguinte, o sentido massivo de nossas práticas de interação

midiática. Diria, ainda, que, sobre o teletópos de “Avenida Brasil”, a audiência parece ter

encontrado um pedaço desses tapetes heterotópicos desenhados por Foucault: modos de

percorrer os mais diversos espaços – reais, digitais, concretos ou imaginativos – e de,

assim, experimentar esses subúrbios que só encontramos na ficção, por ventura capazes

de nos conduzir ao lixo das contradições que preferimos aterrar.

76 Comentários postados por portal UOL, seção “Televisão”, mediante ao questionamento: “O que você

achou do último capítulo de ‘Avenida Brasil’?”.

108

#OIOIOI5 ESPAÇOS DE UMA NARRATIVA TELEVISIVA

Neste e no próximo capítulo, analiso a novela “Avenida Brasil” a partir das

perspectivas teórico-conceituais mobilizadas em torno das teletopias da ficção. De acordo

com metodologia expositiva adotada, proponho dividir minhas considerações sobre dois

eixos – um vinculado ao âmbito narrativo, agenciado pela TV (aspectos da trama em sua

dimensão retórico-imagética), outro relacionado ao campo da produção recepcional, com

ênfase na circulação informal de discursos no Twitter.

Em referência ao mapa teórico-metodológico proposto por Martín-Barbero

(2006a), efetuo uma análise preferencialmente sincrônica, fundamentada sobre lógicas

produtivas e competências de recepção/consumo, uma vez que, desse exercício, busco

sondar interações que, contemporaneamente, espacializam diferentes agentes midiáticos

em torno de um mesmo universo ficcional. Em contrapartida, tal como empreendido no

capítulo anterior, traço contextualizações diacrônicas no intuito de circunscrever quadros

amplos de sentido, por sua vez, responsáveis em evidenciar o nexo histórico dos

fenômenos analisados. Entendo, assim, que os atuais modos de teleficcionalização podem

ser lidos a partir das transformações que, novela pós novela, contextualizam as teletopias

segundo diferentes modulações sociais, culturais, tecnológicas e imaginativas.

Dessa prerrogativa, assento minhas análises sobre a multitemporalidade inerente

às experiências teletópicas, assumindo o trânsito entre as persistências e as inovações

evidenciadas pela trama de “Avenida Brasil” e sua reverberação social. Tais movimentos

– que atualizam estruturas precedentes, na medida mesma em que garantem a emergência

de outras teletopias ficcionais – serão trabalhados a partir da dialética fundante da

experiência espacial, ou seja, as dinâmicas entre “fixos” e “fluxos” caracterizada por

Milton Santos (1997; 2008). Articulo, portanto, cada um dos eixos desta análise (espaço

televisivo e espaço digital online) a partir de seus devires de mutação e/ou continuidade,

tomando como princípio o movimento que conjuga e interrelaciona diferentes fluxos de

narrativização às práticas mais ou menos estabelecidas pelo gênero teledramatúrgico.

Nesta primeira parte da análise, destaco que a novela de João Emanuel Carneiro

efetuou uma sofisticada costura entre diferentes composições estilísticas e dramatúrgicas,

109

justapondo, de forma exitosa, variadas matrizes ficcionais. Segundo essa orientação,

aponto uma construção narrativa que conjugou estruturas teleficcionais tradicionais

(aspectos narrativos filiados ao melodrama) à produção complexa e inovadora de algumas

sequências (em suas múltiplas manifestações de autoria, mas, particularmente, em termos

de imagem e direção). Além disso, reflito acerca das implicações oriundas da guinada

espacial em direção ao subúrbio – traço composicional mais marcante de “Avenida

Brasil”. Sobre esse último aspecto, relativizo o movimento de “popularização” da trama

enquanto gesto de reconhecimento e representação das minorias não hegemônicas, isto é,

como forma de ascensão de novas “figuras cidadãs” ao plano da visibilidade midiática,

nos termos de Martín-Barbero (2006b). A partir desse argumento, demonstro como a

telenovela abordou a ascensão da chamada “nova classe média” de forma parodística,

apostando em uma montagem de mundos movida por intencionalidades cômicas que

revelavam severos distanciamentos em relação aos espaços e aos grupos sociais

referenciados. Na esteira das proposições de Bakhtin (2003), concluo que, enquanto

exercício ficcional, “Avenida Brasil” apresentou um teor somente dialógico frente ao

contexto das periferias brasileiras, ao passo que, narrativamente, a assimilabilidade do

“outro” não se deu enquanto atravessamento polifônico. Nesse sentido, a mudança

espacial do ponto de vista das fisicalidades (da orla carioca para zona norte) não

desencadeou uma revisão profunda sobre os fluxos de dramatização mais próprios a cada

um desses contextos, ensejando remodelações estéticas para episódios que, tomados em

sua dimensão moral, continuaram os mesmos.

Adianto ainda que, do ponto de vista recepcional-circulatório (próximo capítulo),

trabalho o pressuposto de que as atuais condições de midiatização vêm tensionando (sem

desfazer) os lugares que, outrora, verticalizavam a relação entre produtores e receptores

teledramatúrgicos – gerando, por conseguinte, certo embaralhamento das categorias

mediativas propostas pela cartografia barberiana. Nesse âmbito, discorro sobre os regimes

de conversação que caracterizam o sistema de resposta social (BRAGA, 2006) à

telenovela brasileira (diagnosticado a partir de “Avenida Brasil”, porém extensível a

outros folhetins). Em vista dessa caracterização, sublinho como práticas tecnodiscursivas

de caráter emergente, como a interatividade em rede e a produção de conteúdos por parte

de internautas, imbricam-se às mediações socioculturais de natureza diacrônica, como,

por exemplo, as raízes orais das nossas práticas de interação. Por fim, tal como no âmbito

narrativo, argumento que a proliferação dos espaços de circulação e interação em torno

da teleficção não necessariamente pluraliza os discursos pautados sobre a novela. A partir

110

do acompanhamento do Twitter – referência para minhas incursões netnográficas –, fica

patente como tal forma/espaço de produção recepcional coloca em circulação discursos

pouco afeitos à heterogeneidade. Nessa ambiência digital, a ânima instigadora dos tweets

relaciona-se, mais propriamente, à produção de humor, ao sentimento de fã ou a juízos

opinativos de caráter diegético (personagens favoritos, núcleos desprezados, erros de

continuidade, incoerências narrativas, etc.). Dessas observações, depreendo que a

interatividade online a partir da telenovela reflete, mais uma vez, a intensificação de

pontes dialógicas (uma vastidão de “outros alocutários”), ainda que, em outra medida, as

formas inferidas de apropriação do Twitter coloquem suspeitas sobre a heterogenia desse

sistema de resposta social. Nesse caso, a geração de outros fluxos – uma audiência que

pode se comunicar entre si, capaz de oferecer retornos mais eficientes à esfera de

produção midiática, e ainda, gerar, ela própria, conteúdos passíveis de ampla circulação

– não necessariamente leva a uma revisão dos gestos mais ou menos habitualizados em

nossas rotinas de interacionais.

Por fim, esclareço que ambas as análises contam com textos descritivos que visam

recuperar, apresentar e/ou endossar informações sobre a telenovela e sua repercussão,

além de referências que foram articuladas no capítulo dedicado à fundamentação do

conceito de “teletopia”. Trago, ainda, outras incursões teórico-reflexivas que não foram

abordadas anteriormente, bem como fragmentos de discursos sobre a novela coletados

através da pesquisa netnográfica.

5.1 Uma “Avenida” Entre Lugares

O primeiro teaser de “Avenida Brasil”, levado ao ar três semanas antes da estreia

da novela, provocava um estranhamento acerca do título escolhido para o novo folhetim

Global. Nas imagens, uma criança transformava-se em uma adulta vingativa, sendo a

sequência arrematada por uma locução que indagava: “Até onde você iria por justiça?”.

A partir deste preâmbulo, um questionamento se formava: afinal, por que “Avenida

Brasil”? A sensação de estranheza advinha, entre outros fatores, da identidade visual da

logomarca exibida – um fundo escuro, levemente manchado por círculos de tonalidades

quentes (vermelho e amarelo), com letras grafadas em branco: ou seja, nada próximo ou

relacionável à iconografia padrão dos símbolos pátrios, tendo em vista a ausência de uma

combinação de elementos que revelasse uma conotação “brasilis” ao inusitado título.

111

Essa aparente desconexão sígnica entre aquilo que a palavra “Brasil” indicia e a

composição estética da logomarca sugeria, já àquela altura, um sutil rompimento do

folhetim com a forma teledramatúrgica de evidenciar sentidos nacionalizantes, quase

sempre representados em conformidade ao imaginário verde-amarelo, tal como ilustrado

abaixo pela estética de outras produções da mesma emissora:

Fonte: Material coletado na Internet. Montagem autoral.

Sabe-se, no entanto, que a nomenclatura em questão, “Avenida Brasil”, é

utilizada, de forma nada exclusiva, para batizar uma série de vias deste país. Contudo,

considerando a preferência da emissora carioca por espaços narrativos locais, sobretudo

sua cidade sede, podia-se especular, à época do teaser, que a avenida referenciada pelo

título da trama consistia na principal via de ligação entre as Zonas Norte e Sul do Rio de

Janeiro. Sendo assim, deveríamos inferir, a partir da provocação do narrador – “até onde

você iria por justiça?” –, que a vingança daquela criança a levaria para uma avenida de

poucos atrativos? Como o plano revanchista da menina/mulher seria executado nesse

espaço de asfalto inóspito e de margens industriais, marcado por um trânsito selvagem

que dissolve a paisagem em meio a fluxos que, ali, raramente se fixam?

No decorrer da trama, contudo, o título foi se tornando menos opaco. A avenida

Brasil, a via de fato, apesar ter sido a primeira imagem televisionada pela novela (por um

travelling aéreo), pouco atuou enquanto espacialidade narrativa do folhetim. A escolha

pelo título deu-se, então, em razão de fatores conotativos, isto é, em função de uma

possível simbologia que poderia ser erguida em torno desse espaço marcado, no mundo

cotidiano, por um intenso tráfego urbano.

Nesse sentido, parece-me oportuno relacionar, metaforicamente, a natureza

espacial das avenidas, cariocas ou não, às marcas sociológicas do Brasil, clássicas e

contemporâneas: afinal, não seria o fluxo de pessoas, bens, serviços, veículos, a

característica fundamental dessas espacialidades, determinante de uma funcionalidade

(transporte, condução, ligação) que lhes serve como “razão de ser”? E ainda: tal como

112

uma avenida, não seria o Brasil, na esteira do pensamento de Roberto DaMatta77, um país

localizado “entre as coisas”?

Seria a partir dos conectivos e das conjunções que nós poderíamos ver melhor

as oposições, sem desmanchá-las, minimizá-las ou simplesmente tomá-las

como irredutíveis. Afirmo (...) que o estilo do brasileiro se define a partir de

um “&”, um elo que permite balizar duas entidades e que, simultaneamente,

inventa seu próprio espaço. (DaMATTA, 1985, p. 21, grifos meus).

Esse elo (&) pode ser pensado como sintomático dos movimentos híbridos

(CANCLINI, 1995) que caracterizam o jogo cultural e a vida social dos latino-americanos

– o tráfego mestiço que, na qualificação de Martín-Barbero (2004; 2006a), melhor traduz

as confluências identitárias desses povos austrais. Nesse sentido, “Avenida Brasil”

integraliza, de forma icônica, estruturas emergentes, dominantes e residuais – no sentido

de Raymond Williams (1979)78 –, que, na trama em questão, operacionalizam não apenas

a montagem ficcional da narrativa, mas também o campo das práticas recepcionais e da

circulação teledramatúrgica, desde a tradicional assistência familiar e a reverberação local

da novela, até o consumo coletivo nas redes digitais e a produção espontânea de conteúdos

online.

Figura-se, assim, uma “avenida” de múltiplas conexões, através da qual opera-se

uma competente harmonização entre modus operandis convencionais (tanto produtivos,

quanto receptivos) e as complexas mediações tecnológicas, discursivas e globalizantes

que atravessam as culturas midiáticas contemporâneas. Desse modo, o espaço narrativo

das telenovelas encontra-se sulcado por variadas estratégias de narrar e consumir ficção,

nem “velhas”, já que atualizadas, e tampouco “novas”, porque recicladas. Em virtude

desses gestos mediativos, “Avenida Brasil” potencializa e reafirma a telenovela como

lugar estratégico a partir do qual mediações históricas e disputas simbólicas são tornadas

77 De acordo com a sociologia literária de Roberto DaMatta (1979), um “entre as coisas” demarcado pelo

espaços-tempos que conjugam e segregam o mundo da casa e o mundo da rua, o carnaval e o trabalho, a

burocracia e a esperteza. Para o teórico, esse entrelugar identitário possui uma natureza cultural, tendo em

vista certos paradoxos que atravessam o sistema social brasileiro. Tal condição, por sua vez, relaciona-se a

uma dialética entre princípios modernos e ancoragens tradicionais, isto é, formas de mediação entre

diferentes temporalidades sociotécnicas, culturais e subjetivas.

78 Segundo Raymond Williams, as estruturas emergentes consistem na revelação de uma cultura em franco

estado de mudança. Por sua vez, as estruturas dominantes constituem-se de valores e sentidos hegemônicos

que configuram práticas sociais concretas. Já as estruturas residuais são formações elaboradas no passado,

mas que ainda desempenham um papel ativo nos processos culturais.

113

visíveis, o que, a princípio, reforça a singularidade das teletopias como espaço para as

“batalhas culturais” (MARTÍN-BARBERO; REY, 2002) encenadas neste país.

Nesse contexto, argumento que, do ponto de vista da narrativa, a trama de João

Emanuel Carneiro foi composta a partir da justaposição entre diferentes matrizes

ficcionais. De tal processo, “Avenida Brasil” gerou entrelugares ou espaços de mediação

que combinaram lógicas produtivas consolidadas (modos de ficcionalização assentados

sobre o melodrama) a formas estético-narrativas oriundas de outras práticas simbólicas

(isto é, gêneros dinamizados por diferentes mediações). A meu ver, na montagem da

trama, essa seleção e combinação de elementos geraram uma enunciação polivalente

matriciada por diferentes energias criativas, o que permitiu uma espécie de trânsito

narrativo entre passagens de tensão e entrechos despretensiosos, construções sofisticadas

e representações popularescas.

No sentido das permanências melodramáticas, destaco a centralidade dos

discursos sobre o âmbito da família, como dramas domésticos e relações de

reconhecimento entre pais e filhos, bem como a moral burguesa da superação pessoal79 e

a pendulação narrativa entre drama e comédia. Em outra medida, tendo em vista o

mosaico de textualidades que constituiu a obra, destaco a presença estilístico-

composicional de uma heterogeneidade de elementos, tais como: (1) composições teatrais

– momentos explícitos de encenação, responsáveis por fissurar o naturalismo da imagem

televisiva, conforme verificado na ludicidade do lixão; inspirações literárias - ancoragem

dramatúrgica e intertextualidades entre livros citados e o contexto material e/ou

psicológico dos personagens da trama; (3) estéticas cinematográficas – produção de

imagens diferenciadas, dotadas de complexidade visual, ousadia temática e

“subjetividade” fílmica, como o “enterro” de Nina e o assassinato de Max.

Ainda sobre os “elos” sugestionados pela trama, “Avenida” propôs figurações

responsáveis por inverter a tipicidade de algumas representações ficcionais, retratando,

por exemplo, uma mocinha sádica com sede de vingança, suburbanos em franco estado

79 No que tange ao reconhecimento parental – tema apontado por Martín-Barbero (2006a) como decorrência

da primordialidade das relações sanguíneas (factuais ou “simbólicas) nas narrativas melodramáticas –,

recorro, a título de exemplificação, ao caso de Carminha, a vilã inescrupulosa que amava o filho

incondicionalmente e que tentou, durante todo o folhetim, ser reconhecida por sua afetividade materna.

Quanto à moral da superação, destaco que, segundo Sílvia Oroz (1992), é comum ao melodrama trabalhar

sobre uma narrativa de caráter teleológico, na qual a jornada da protagonista, quase sempre uma mulher,

compreende a saída de uma origem humilde, caracterizada por privações, para alcançar uma condição social

confortável. Por essa perspectiva, conforme exposto na sequência, “Avenida Brasil” tematiza um contexto

de “boa periferia” no qual uma nova composição de classe é vinculada a esse projeto. Além disso, a mesma

ideologia pode ser percebida na personagem de Mãe Lucinda, a mulher que reinventou o lixo como forma

de transgressão à precariedade da miséria.

114

de ascendência social (em contraversão aos ricos) e um jogador de futebol com interesses

literários genuínos.

Nina surge diabólica em meio às sombras. Verônica (ex-rica) deleita-se no buffet de casa nova de Monalisa

(ex-pobre). Tufão descobre prazer na leitura. Fonte: Material coletado na Internet. Montagem autoral.

Além disso, a escolha pelo título “Avenida Brasil” densifica as camadas

semiológicas (FOUCAULT, 2005) implícitas ao folhetim, na medida em que, ao se

apropriar nominalmente da avenida carioca, o jogo comunicativo da trama passa a ser

revestido por leituras conjunturais, ou seja, leituras multidimensionais, de caráter social,

cultural, econômico, político. Logo, a dramaturgia do folhetim “ilumina-se” pela

referência a essa avenida chamada “Brasil”, trazendo, nessa montagem ou sobreposição

de mundos, o cruzamento entre uma espacialidade concreta e os relevos semânticos

implícitos à trama.

Nessa avenida de que estamos falando, o trânsito se dá, basicamente, por

brasileiros; no caso da ficção de “Avenida Brasil”, por “divinenses”, cidadãos nascidos

ou criados no idílico subúrbio que – este sim – protagonizou a composição espacial da

novela, agenciando uma das teletopias mais expressivas da história da teleficção nacional.

Nesse sentido, Vera França e Paulo Vaz (2013, p.116) afirmam que “o nome é sugestivo,

e sobretudo para os telespectadores não-cariocas, ele se abre a várias possibilidades

semânticas: é a via onde todos nós, brasileiros, estamos”. Os autores acrescentam ainda

que

a avenida Brasil, portanto, a avenida de mão dupla, que permite o

trânsito/tráfego entre distintos pontos geográficos do Rio de Janeiro (do

Brasil?), permite e mostra, no caso da novela, o estabelecimento de relações

entre distintas – e até então, muito distantes – classes sociais, através do

apagamento da hierarquia. A novela faz isso, e de forma bastante interessante:

ela coloca os pobres no lugar dos ricos, e os ricos no lugar dos pobres. Ela

embaralha as ordens, os lugares, os valores. (FRANÇA; VAZ, 2012, p.113).

Destaco que, no que tange ao embaralhamento de ordens, lugares e valores

operado pela trama e apontado por França e Vaz, o caso do trígamo Cadinho representa,

particularmente, uma forma de relacionar e mesclar Zona Sul e Zona Norte, capital social

115

e econômico. O processo de empobrecimento do empresário e de suas três esposas indica

as reversões implícitas aos fluxos de “mão dupla” dessa avenida Brasil, no caso, a partir

da revisão de benesses outrora inalienáveis à elite brasileira. Na obra ficcional, o processo

de transferência das dondocas às configurações popularescas da vida divinense rendeu

bons insights aos produtores do folhetim, particularmente, novelista e atores. Cadinho,

suburbano de infância, adaptou-se bem no retorno à vida na zona norte: segundo ele, “falir

não era a pior coisa do mundo”, uma vez que, de volta às origens, podia reviver os

prazeres do Divino – o ex-milionário bebia mais do que trabalhava, acompanhava o time

de futebol do bairro e ainda tinha três mulheres que, supostamente, cumpriam seus

afazeres domésticos. Suas esposas, por outro lado, encaravam o subúrbio de forma

diferente: para Verônica, Noêmia e Alexia, o Divino só havia recebido um nome tão

celestial em razão de algum devaneio satírico, afinal, para essas madames de berço e

postura, as condições de vida na periferia eram torturantes.

Ainda no contexto dos trânsitos sociais representados pela trama, “Avenida

Brasil” sinalizou alguns rearranjos verificados nos mapas profissionais do país. A

personagem Ivana, por exemplo, enchia a boca para dizer que, no Brasil, “tem muita

empregada doméstica ganhando mais do que médico”. Nina, seguindo o raciocínio da

irmã de Tufão, justificou (falsamente) seu interesse em trabalhar como cozinheira para a

família alegando que “tem muita gente com diploma de faculdade, até doutorado” que

não ganhava o dinheiro oferecido como salário pelos milionários da zona norte.

Outro exemplo da inversão dos fluxos semânticos na narrativa de “Avenida

Brasil” pode ser verificado na relação entre Tufão e a Literatura, ou ainda, entre uma

matriz cultural de natureza popular em face de outra, de caráter ilustrado (MARTÍN-

BARBERO, 2004; 2006a). Na trama, Nina – a refinada chef de cozinha da família do

subúrbio – sugere uma série de livros, clássicos mundiais, ao ex-jogador de futebol, que,

em função de seu tempo excessivamente livre, pode dedicar-se à fruição artístico-literária.

A brincadeira – a meu ver, um simples verniz literário – relativizou a figura social do

jogador de futebol enquanto sujeito ignorante, ainda que, por outro lado, sua esposa

Carminha insistisse em estabelecer um lugar de pouca intelectualidade à cultura popular:

“clássico pra mim é no Maracanã!”, dizia ela.

116

Fonte: site oficial da novela.

Portanto, essa “Avenida” de entrelugares tece conectivos que, estilisticamente,

aproximam não apenas diferentes territórios ficcionais, mas também interligam

espacialidades geográficas e socioculturais outrora segregadas por distâncias históricas

intrafegáveis. Nessa direção, entre as variadas significações atribuíveis ao título, acredito

que a escolha pela referência à avenida Brasil sinalize algumas das reconfigurações

recentes da sociedade brasileira, sobretudo em sua materialidade urbano-espacial e suas

correlatas dimensões (econômica, política, cultural, estética etc.). Conforme destacado

por França e Vaz (2012), a trama e seu título dão a ver a flexibilização das hierarquias

que, em outros tempos, cartografavam as espacialidades teleficcionais de forma mais

efetiva. No folhetim em questão, essa dissolução ou fissura dos lugares tradicionais de

narrativização pode ser percebida através da inversão do espaço hegemônico da zona sul

(socialmente central) para os subúrbios da zona norte (espaços periféricos). Na novela, o

capital econômico migrou da orla carioca em direção à “ZN”, gerando uma estratégia de

narrativização (uma representação telecômica) que dialoga com movimentos extra-

trama, notadamente, o poder de consumo da “nova classe média” e a redução dos

privilégios da elite brasileira. É sobre essa dialética entre fixos e fluxos de significação

socioespacial que analiso, nas próximas seções, o Divino de João Emanuel Carneiro.

117

5.2 O Espaço do Subúrbio

Ainda que outras tramas tenham efetuado o mesmo deslocamento espacial de

“Avenida Brasil”, o subúrbio80, em seus modos mais ou menos estabilizados de

representação, não havia logrado, até o advento da trama em questão, tamanha

centralidade na teleficção da Rede Globo. Na teledramaturgia, a lógica da montagem de

mundos (a partir de diferentes núcleos de personagens e suas correlatas espacialidades)

acompanhou, quase sempre, a lógica de segregação dos espaços reais, uma vez que, em

ambos os casos, os fluxos econômicos, políticos e artístico-culturais (entre outros)

parecem imprimir uma distinção espacial que hierarquiza a relação entre centro e bordas,

“morro” e “asfalto”, espaços de protagonismo e de coadjuvação teledramatúrgica.

Dessa forma, as narrativas teleficcionais que tradicionalmente centralizaram a

ação das novelas são aquelas que se encontram assentadas sobre as fisicalidades turísticas

de cidades postais; assim como sobre os fluxos significantes que acompanham os valores

e os sentidos habitualizados pelas práticas socioculturais desenvolvidas nessas

espacialidades. Essa política de representação espacial, no decorrer da história da

teledramaturgia, optou pelos mesmos lugares de performatização, e, não fortuitamente,

por espaços fundados sobre sistemas simbólicos hegemônicos, atravessados por

significantes de uma elite, a um só tempo, econômica, cultural, artística, geográfica e

racial. Conforme avalia o crítico e blogueiro Maurício Stycer, em sua coluna na seção

“Ilustrada” do jornal “Folha de São Paulo” de 19 de agosto de 2012:

Por décadas, a zona sul do Rio foi representada nas novelas como centro do

universo, um local mítico e charmoso a partir do qual se definia a moda, os

hábitos, as gírias e até o sotaque que os demais brasileiros, inclusive cariocas

da zona norte, adotariam. Diversas outras cidades, em especial São Paulo, têm

merecido a honra de servir de cenário às novelas da Globo, mas esse caráter

especial que se atribui à zona sul carioca, na caixa de ressonância de usos e

costumes, segue irredutível. (STYCER, 2012, p.E6).

Nesse sentido, o jornalista reconhece a singularidade e a expressividade da

montagem espacial de “Avenida Brasil”, ainda que, no decorrer de sua argumentação,

80 Entendo a periferia como espaço social marginalizado em relação às organizações hegemônicas. Nessa

medida, o termo envolve uma dimensão social, econômica e política. Já a designação subúrbio relaciona-

se a um tipo específico de periferia: no caso, aquelas que se encontram afastadas, geograficamente, desses

centros de poder, caracterizadas, por sua vez, por matrizes socioculturais de natureza popular. Em vista

dessa diferenciação, coloco que o “Divino” de “Avenida Brasil” é definido, sobretudo, como um subúrbio,

ainda que também seja uma periferia, o que me leva utilizar, indistintamente, ambas as notações.

118

Stycer relativize a projeção do “Divino” (suspeita à qual endosso e tratarei de discutir na

sequência). O protagonismo assumido pela periferia urbana na “montagem de mundos”

de “Avenida” relaciona-se à localização de quase todos os núcleos da novela sobre os

espaços marginais do “Divino” ou do lixão de Mãe Lucinda. Conforme já colocado, esses

espaços narrativos foram projetados em torno de espacialidades ficcionais supostamente

situadas na zona norte carioca, ligadas à parte sul da cidade pela avenida Brasil. Além

disso, de acordo com o exposto no capítulo anterior, o subúrbio de João Emanuel Carneiro

apropriou-se do “colorido” das misturas e dos ritmos populares para dar a ver dinâmicas

de sociabilidade atribuídas à “boa periferia carioca” – movimento afirmado já na

sequência-preâmbulo que introduziu “Avenida”.

A partir de caracterizações como essa, “Avenida Brasil” convidou sua audiência

a seguir em direção à Zona Norte, conferindo protagonismo espacial ao contexto da

periferia. Nessa medida, o assentamento ficcional sobre o subúrbio suscitou expressivos

movimentos fabulativos (não necessariamente inéditos), entre os quais destaco uma

forma distinta de interrelacionar as dinâmicas pública e privada de uma vida, a um só

tempo, social, familiar e subjetiva. Nesse sentido, quando comparadas às práticas de

sociabilidade dos espaços hegemônicos, as espacialidades da periferia imprimiram, sobre

o âmbito narrativo da novela, outras formas de interação entre os personagens do

folhetim. No que diz respeito a esse câmbio espacial, destaco, como forte derivação das

modulações da periferia, a extensão das práticas domésticas em direção aos espaços

públicos.

Nesse contexto, recobro que a centralidade espacial das telenovelas sobre o

entorno elitista das grandes cidades brasileiras, assim como o foco melodramático sobre

relações familiares (os dramas existenciais da média burguesia), contingenciaram essas

narrativas ficcionais aos espaços da casa – o grande palco para purgação e expiação das

obscuridades íntimas dos personagens folhetinescos. Afinal, vale considerar que o espaço

doméstico – propriedade fundamentalmente simbólica de nossa formação social classista

– sintetiza as ambiguidades que, da telenovela à política, fornecem noções distintivas,

ainda que cambiáveis, entre as dimensões do público e do privado. É nesse sentido que

DaMatta (1985, p. 27) afirma que, como espaço moral importante e diferenciado, “a casa

se exprime em uma rede complexa e fascinante de símbolos que são parte da cosmologia

brasileira, isto é, parte de sua ordem mais profunda e perene”.

Além disso, creio que a apropriação do lar como espaço privilegiado à

dramatização dos conflitos teledramatúrgicos deva-se, além das matrizes melodramáticas

119

de ordem ficcional (temáticas familiares) e sociológicas (soberania da vida privada), a

fatores produtivos como a exequibilidade das filmagens em estúdio (onde as cenas podem

ser realizadas com tranquilidade, sem interferências, sendo as construções cenográficas

aproveitáveis durante meses de gravação). Ressalto ainda que, grosso modo, o espaço

urbano público foi preterido por sintetizar, no contexto da domesticidade da elite

brasileira, os espaços de fora, contraponto ao lugar afetivo da casa; espaço onde as

mazelas de um mundo desigual se agigantam na forma de violência e vandalismo,

traduzindo, através do mundo da rua, a emergência do confronto, a inflexibilidade da

competição e a insegurança do anonimato.

Já em “Avenida Brasil”, em consonância à lógica das reversões, o espaço público

– ao menos o seu espaço público central, o “Divino” – apresentava-se como uma “casa

em forma de rua”: afinal, no subúrbio, vizinho é parente, do tipo meio distante, meio

próximo, e a calçada, mais do que trânsito, é lugar (no sentido de DUARTE; FIRMINO,

2010) para cadeiras de praia, isopor cheio de cerveja e um animado bate-papo. Dessa

forma, quando “a moral fortificante do lar” passa a ser regida pela falsa beata Carmem

Lúcia, mais vale cultivar a primordialidade das relações de “boteco” – esses espaços

conforme descreve Martín-Barbero (2006d, s/p), feitos de um “calor no qual se

entrecruzam as ilusões e as raivas dos oprimidos, onde se coze um idioma feito de partes

iguais de grosseria e poesia, de palavra e grito (...)”81.

Nesse sentido, não me parece coincidência que a mansão da família Tufão seja

caracterizada de forma tão escura e pesada (em variações de preto e roxo), adornada por

“misturas de estampas exageradas, excesso de elementos carregados de apelos visuais,

misturas de matérias, exagero de detalhes, ornamentos e texturas”. (RAHDE et al., 2012,

p. 338). Essa densidade visual do interior da mansão torna-se, assim, sintomática e

indiciadora da dramaticidade das relações desenvolvidas em nível doméstico, tendo em

vista a desfuncionalidade das relações entre os membros da família Tufão e a sobrecarga

emocional típica do melodrama parental. Em contrapartida, do ponto de vista exterior, a

mansão do ex-jogador de futebol é representada apenas por uma fachada, revelando uma

ausência de profundidade na qual elementos de uma estética clássica (colunas colossais e

cúpulas) integram uma composição tão simétrica quanto eclética, sugestiva de uma

81 Livre tradução. Trecho original: “Bohemia cuyo lugar propio es la taberna, ese vaho en el que se

entremezclan las ilusiones y las rabias de los oprimidos, y donde se cocina un idioma hecho a partes iguales

de grosería e poesía, de palabra y grito, del lenguaje del mitin callejero y la declamación pública.”

120

arquitetura de inspiração sacra – no caso, um templo de valores hipócritas tão superficiais

quanto à cenografia externa da mansão.

O enquadramento frontal é antiespacial, nega a profundidade da construção,

apresentando a silhueta do casarão, uma construção imponente, circundada por

uma vegetação exuberante. A alta cerca metálica, estruturada por pilares

ornamentados, um jardim e uma piscina isolam o edifício do domínio da

cidade, sem, no entanto, conferir privacidade aos seus habitantes. (...) A

falsidade da mansão reflete o caráter dos seus moradores (...). (RAHDE et al.,

2012, p. 339, grifos meus).

Visão frontal e interna da mansão Tufão. Fonte: Gshow (site de entretenimento da Rede Globo).

Montagem autoral.

Ainda na mansão da família Tufão, além dos marcadores estéticos que apontam

para o kitsch e para o “luxo sem requinte”, sublinho a apropriação simbólica do espaço

da casa como marca de distinção social. Nessa medida, a exuberância da fachada possui

um valor informativo que ultrapassa o âmbito familiar, alcançando um sentido

compartilhado por toda a vizinhança, constantemente reafirmado pela imponência de uma

construção arquitetônica radicalmente diferente de todas as demais habitações do bairro.

Logo, ao contrário dos prédios uniformizantes da Zona Sul, ou de suas mansões

superprotegidas, quando não camufladas, a riqueza da família Tufão é ostentada sem

qualquer resquício de pudor, conforme indicado por uma ausência de muros que confere

uma ampla visão frontal da edificação, já que a casa-monumento conta apenas com

grades. Não o bastante, a piscina – ao invés de se localizar, como usual, na parte traseira

ou nas laterais da casa – foi projetada no jardim dianteiro da mansão, entre a magnânima

porta principal e a rua, permitindo a exposição da boa vida de seus moradores. Nesse

sentido, a obscuridade do interior da casa de Carminha – espaço sombrio e íntimo

governado pela vilania da personagem – confronta-se à majestade solar do palacete de

Tufão (taça dourada erguida pelo campeão diante de sua comunidade natal).

121

Pontuo ainda que a instabilidade do mundo doméstico em “Avenida Brasil” pode

ser diagnosticada a partir da montagem sonora desses espaços – a confusa “acústica do

subúrbio –, assim como pela complexificação da produção de algumas imagens,

particularmente, na filmagem de ações dramáticas desenroladas no lixão e na casa da

família Tufão. Essa complexificação, conforme exposto na sequência, relaciona-se à

utilização de técnicas de opacização sobre a imagem televisiva, responsáveis por romper,

ainda que de forma contingencial, com a tradicional limpeza audiovisual das telenovelas

brasileiras.

Ademais, ressalto que, em sua quase integralidade, as casas/famílias de “Avenida

Brasil” foram construídas de forma pouco convencional, sugerindo um tensionamento

sobre a moralidade que outrora associava o espaço do lar à cartilha melodramática do

“certo” e do “errado”, às performances devidas de cada gênero (masculino/feminino) e,

ainda, a supostos comportamentos ou gostos de classe. Afinal, na novela de João Emanuel

Carneiro havia um número significativo de famílias monoparentais (Monalisa e Iran,

Janaína e Lúcio, Diógenes e Rony, Alexia e Paloma); duas formações poligâmicas

(Suelen e seus dois maridos, Cadinho e suas três esposas); casais de diferentes gerações

(Leleco e Tessália, Muricy e Adauto); e um núcleo central nada convencional (no caso, a

família Tufão: a esposa vive com o amante, seu concunhado, e o marido cria os filhos

dessa relação adúltera como se fossem seus).

5.3 Um Novo Espaço para uma Nova Classe

Em “Avenida Brasil”, a seleção dos espaços da periferia como lugares de

narrativização revelou uma intencionalidade autoral e um investimento simbólico-

midiático explicitamente voltados para as atuais modulações socioeconômicas do Brasil,

notadamente, a ascensão da “nova classe C”. Nessa direção, tomando como partida a

colocação de Iser (1996) sobre a interrelação entre os sistemas de sentido da vida real (ou,

como prefiro, da vida cotidiana) e os sistemas de sentido do texto, coloco que, do ponto

de vista produtivo, as escolhas espaciais de “Avenida” revelaram-se estratégicas ao

apostar em um campo de representação sensível às mudanças socioeconômicas

testemunhadas pela história recente do país. Nesse âmbito, a escolha por matrizes

espaciais ligadas aos espaços da periferia implicou em um jogo de pré-mediações (no

sentido de OROZCO apud JACKS; ESCOSTEGUY, 2005), que, não fortuitamente,

122

potencializou o lugar multimediativo desempenhado pela telenovela, justificando, em

partes, o seu sucesso junto ao público telespectador.

Em outras palavras, “Avenida Brasil” foi pensada e produzida a partir de um olhar

atento e sensível aos câmbios sociais, tanto no que se refere às novas dinâmicas de

formação e fidelização das audiências, quanto ao universo de valores e significações

colocados em evidência pela atual conjuntura nacional. Assim, o folhetim – ao se

apropriar, narrativamente, do rearranjo das hodiernas relações de classe, transfigurando

tais mudanças em relações expressivas de sentido –, diversificou a forma de produzir e

consumir narrativas teledramatúrgicas, gerando atualizações significativas sobre o campo

simbólico-material das telenovelas.

Contudo, interponho que a inversão espacial empreendida por “Avenida Brasil”

aponta não apenas para um fenômeno, de certa forma, contemporâneo, como a melhoria

dos índices nacionais de desenvolvimento e a remodelação dos mercados consumidores;

mas relaciona-se, ainda, à própria imagem e/ou identidade que os brasileiros, em geral,

fazem de seu país. Nesse contexto, coloco que, do ponto de vista da encenação de

costumes, assim como do sistema de valores e sentidos referenciado por “Avenida

Brasil”, a “nova classe C” traduzida pelo “Divino” não apresentou uma diferença de base

em relação a outras representações nacionalistas que, desde o surgimento da TV, vêm

veiculando elementos e imaginários articulados em torno de um certo projeto de

“brasilidade”; um projeto, no caso, revelador de um identidade corporativista que, da

literatura à sociologia, ou da política à criminalidade, fundamenta simbologias em torno

de um “híbrido brasileiro” sincretizado, entre outros aspectos, por malandros e

trabalhadores. Nesse sentido, a possibilidade de dialogar com uma série de matrizes

culturais, filiadas tanto à memória psicossocial, quanto teledramatúrgica, denota a

potência social e amplamente significante erigida em torno das recentes reconfigurações

sociais do país, o que sugere o poder mediativo desse campo simbólico de ficcionalização.

Nesse contexto, parece-me que a configuração da “nova classe C”, condicionada

à fabricação particularmente midiática de uma estética do “emergente”, deixa de dizer de

uma composição de classe social, no sentido de uma especificidade diferenciadora, para,

em contrapartida, conformar um campo simbólico mais amplo no qual se entrelaçam

aspectos constituintes de uma espécie de “auto-imagem” nacional. Por esse argumento,

independente da filiação de classe, a audiência da telenovela projetar-se-ia nos

personagens veiculados, tendo em vista o diálogo narrativo dessas construções frente às

matrizes culturais que oferecem um sentido histórico-social de ser brasileiro.

123

De qualquer maneira, no caso midiático e teleficcional, um dos trunfos simbólicos

oriundos da mediação estética da “nova classe média” reside na “mitologia do

emergente”, representada em “Avenida Brasil” a partir do contraste em relação à

tradicional figura do “novo rico”. Nota-se que essa diferença é estabelecida,

nuclearmente, a partir do sentimento que essas figuras sociais alimentam por seus lugares

de origem, uma vez que, enquanto o novo rico busca apagar os rastros do passado e os

resquícios culturais da pobreza, submetendo-se à um processo de aburguesamento e

aculturação; os emergentes (da classe C, do “Divino”) não se envergonham de suas

origens humildes; ao contrário, valorizam as condições que lhes permitiram abandonar

certa situação de precariedade, quase sempre através do trabalho, para, assim, conquistar

“um lugar no mundo”.

“Divino” e os personagens centrais da novela representam claramente a nova

classe C. Não são os novos ricos, não é a classe operária chegando ao paraíso

(apesar da proximidade semântica dos dois substantivos); é a classe popular (o

suburbano) ostentando boas condições de vida e consumo. (FRANÇA; VAZ,

p.117, 2013),

Nessa direção, França e Vaz, em uma análise sobre o sentido das espacialidades

de “Avenida Brasil”, destacam que, do ponto de vista do “Divino” e da “nova classe” em

relevo, a Zona Sul sintetiza as condições recém-adquiridas de riqueza e qualidade de vida,

bem como o luxo e a arrogância sempre repudiados pelo subúrbio; por outro lado, o lixão

retrata a miséria que o “Divino” superou, assim como a solidariedade e a alegria que

foram, por ele, conservadas. Na novela, essa fabulação sobre a “nova classe C”

(consumidora, mas não esnobe; batalhadora, mas não “boba”), em distinção ao protótipo

do novo rico como ambicioso, ostentador e desmemoriado pode ser verificada a partir de

situações ficcionais como: (1) a mansão-palacete de Tufão foi construída em plena

periferia, ou seja, o jogador de futebol, ao enriquecer, optou por continuar vivendo em

meio à comunidade aonde fora criado; (2) Nina, chef de cozinha profissional, conquista

a família Tufão com seu requinte gastronômico, mas não sem enfrentar a relutância de

seus patrões, estes afirmativos quanto a seus gostos populares (“Somos ZN. A gente gosta

é de feijoada, buxada, picadinho carioca”, colocou, mais de uma vez, a vilã Carminha);

(3) Max vivia às custas de Tufão e não entendia o gerenciamento que o jogador fazia de

sua fortuna. No caso, o malandro encarnava o espírito do novo rico – um sujeito que

cobiça ascender socialmente e desfrutar de outros modos de vida, marcadamente, elitistas

(“Se fosse eu, estaria em Miami.”). À certa altura da novela, Max realizou parte dos seus

124

sonhos de alta burguesia e comprou, mediante dinheiro extorquido, um iate que nunca

zarpava; (4) por fim, quando a cabelereira Monalisa atende a um capricho do filho e

resolve se mudar para a Zona Sul carioca, o não pertencimento àquele espaço lhe trouxe

saudosismos daquilo que “o dinheiro não compra”, confirmando a previsão de Stycer

(2012, p. E6) à época do acontecimento teledramatúrgico: “(...) o abandono do “Divino”,

ainda em curso, tem tudo para se transformar em mais uma lição do autor aos suburbanos,

no sentido de valorizarem suas raízes”.

Em outra dimensão, na montagem do subúrbio de “Avenida Brasil”, a

representação dessa “nova classe C” não foi unissonante aos sentidos gerados sobre esse

mesmo fenômeno a partir de outros campos sociais82. Nesse sentido, uma diferença entre

a teletopia do “Divino” e, por exemplo, o imaginário político-social em torno da “nova

classe média”, encontra-se, no caso da novela, na constante alusão dos personagens à

prática da malandragem, em desfavor da centralidade do trabalho como marca de suas

identidades83. Nesse contexto, percebe-se em “Avenida” a representação de um modo de

navegação social bastante próximo ao que Roberto da Mata (2000, p. 102) definiu como

a arte de sobreviver em situações difíceis, isto é, a “profissionalização do jeitinho

brasileiro de ser” – mediação (ou drible) entre o universo das obrigatoriedades legais e os

interesses de ordem privada.

Nessa direção, no que tange à novela, vários foram os personagens que, a partir

de diferentes peripécias, desfilaram pelo “Divino” com a argúcia da malandragem.

Poderíamos, por exemplo, citar boa parte dos homens do subúrbio (Tufão, Leleco,

Adauto) – “marmanjos” que pouco trabalhavam, mas passavam o dia apreciando uma

cerveja gelada, disputando uma partida de sinuca ou, simplesmente, “jogando conversa

fora”. Silas, dono do bar que reunia a malandragem do “Divino”, no intento de se casar

82 A possível construção da identidade “nova classe média” – conforme exposto, a um só tempo, de classe

e nacionalizante – possui matrizes e motivações oriundas de diversos campos sociais (economia, política,

comunicação midiática), o que determina características e modulações semânticas que variam de acordo

com as intencionalidades colocadas em jogo por cada contexto evidenciado. Contudo, ao refletir sobre essa

nova classe, centro minha análise sobre a dimensão simbólica ou fabulativa empreendida pelo sistema

midiático: no caso, como uma ficção socialmente comunicante (a telenovela) organiza e dá a ver uma outra

ficção (o imaginário nacional) – esta última agenciada por uma série de atores sociais cujas disposições,

certamente, ultrapassam o âmbito dos media.

83 A baixa valorização do trabalho como marca de identidade dessa “nova classe C” afasta o “Divino” e

seus moradores da perspectiva batalhadora que, de acordo com Jessé Souza (apud PIRES, 2011),

fundamenta, intimamente, o perfil dos brasileiros em questão. Para Marcelo Neri (apud PIRES, 2011), a

carteira de trabalho assinada é apresentada como símbolo da classe média brasileira, conforme ilustrado

pelo comentário do operário Lusivaldo da Costa ao programa “Globo Repórter” de 31 de agosto de 2012:

“Eu brinco com meus meninos que meu nome é trabalho, meu sobrenome hora extra, codinome produção.”

125

com a amada Monalisa, fingiu sofrer de uma doença terminal e, como último desejo de

moribundo, pediu a cabelereira em casamento. Jorginho, suposto futebolista, só soube

faltar treinos em função de seus tormentos pessoais, o que fez de Batata, menino

trabalhador do lixão, um playboy custeado pela fortuna do pai. A propósito, a casa de

Tufão era um antro de malandros reunidos, todos beneficiados pelos ganhos expressivos

do ex-jogador: a esposa e seu amante, o filho, os pais e até o jovem padrasto (Adauto).

Max, por sua vez, mantinha um casamento de aparência com a irmã de Tufão para

aproveitar as regalias da vida de milionário do subúrbio e ficar mais próximo da amante;

fingia que trabalhava como publicitário, mas comparecia à agência apenas para “cantar”

as estagiárias atraentes. Em homenagem à malandragem de Maxwell – personagem

carismático, bem aceito pelo público –, Arnaldo Jabor (p. 23, 2012), em matéria publicada

no jornal “O Tempo” de 9 de outubro, classificou o tipo como o “malandro agulha,

finalmente retratado na TV”, isto é, “aquele que toma no buraco, mas não perde a linha”.

Por fim, Carminha, a vilã mais bandida que malandra, não deixou de apresentar certa

traquinagem ao cometer suas estripulias sexuais, ao adotar a máscara de mulher séria,

religiosa e de família, inteiramente devota à falsa caridade através da qual sacava dinheiro

do marido. Além disso, a perua, acomodada às regalias da mansão de Tufão, aplicou um

golpe do baú que durou cerca de quinze anos, período no qual a personagem enrolou não

só o marido, mas também o próprio amante.

Entretanto, contrariando as expectativas de gênero (difícil não imaginar o

malandro como um homem vestido de branco e chapéu), a arte da malandragem em

“Avenida” foi exercida, com extraordinária competência, por Suelen, a “vagabunda mais

querida do Brasil” (CARNEIRO, 2012, p.13). A morena, sempre sensual, tinha orgulho

em expor o próprio corpo e nutria um ar de superioridade que a transformava em uma

espécie de “fêmea-alfa” (como sugerido por sua canção tema, “eu quero ver você

correndo atrás de mim...”84). Ainda nas palavras de João Emanuel, a “messalina errática”

do “Divino” detestava trabalhar, maltratava os clientes da loja de Diógenes e, para não

ser demitida, seduziu e transou com patrão, filmando todo o ocorrido a fim de chantageá-

lo. Em matéria de sexo, Suelen – “maria-chuteira” confessa (“Só transo com você se fizer

gol”) – aproveitou-se de todo o time do “Divino Futebol Clube”, reeditando, no decorrer

da trama, a bigamia de Jorge Amado e sua Dona Flor. A força da personagem foi tanta

que sua intérprete, Ísis Valverde, ganhou uma série de prêmios de melhor atriz

84 Canção “Eu quero ver você correndo atrás de mim”, de autoria da banda “Aviões do Forró”.

126

coadjuvante pelo papel, assim como seus figurinos e adereços (calça de cintura baixa,

cinto de umbigo, brinco de tiras) tornaram-se os produtos mais comercializados em

shoppings populares.

Em vista dessa caracterização, argumento que, ao contrário do discurso político-

eleitoral sobre a classe média emergente, a telenovela não se centrou, em termos

dramatúrgicos, sobre valores laborais. Conforme explorado por Teresinha Pires (2011),

no campo da mitologia política, a “nova classe C” encontra-se vinculada a uma

cartografia social que ressalta não apenas a melhoria dos índices nacionais de renda

(perspectiva macroeconômica), mas, também, por uma noção trajetiva e meritocrática, a

partir da qual valoriza-se as condições de ascensão pessoal, a cultura do trabalho e a ética

do sacrifício (perspectiva individualizante). Nessa segunda direção, a “nova classe

média” é entrevista a partir de traços como o esforço e a memória (característica dos

emergentes), endossando, assim, os processos de “luta” responsáveis por transformar a

pobreza em horizontes razoáveis de vida (lógica congênita à ideologia da superação, forte

matriz melodramática).

Nessa medida, quando as possibilidades de consumo são colocadas como marca

identitária da “nova classe C”, não se deve considerar apenas o acesso material aos bens

e produtos que, no passado, eram inacessíveis a seus membros; mas também, senão

principalmente, o valor pessoal da possibilidade de adquirir essas posses. Conforme

colocado por Martín-Barbero e Muñoz (1992, p.5), uma forma de consumo que

transcende a “posse dos objetos pois passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes

dão forma social e nos quais se inscrevem demandas e dispositivos de ação que provêm

das diferentes competências culturais”. Assim, a aquisição (menos do que a propriedade)

fornece, à classe em questão, um sentido de direção – um telos de vida – que,

subjetivamente, contribui para a adequação de um padrão originário de existência a uma

outra ordem socioeconômica. Por esse raciocínio, a legitimidade desses novos emergentes

não se daria apenas pelo acesso torpe ao consumo (como feito por Carminha através de

falcatruas e crimes, ou mesmo pelos demais parentes de Tufão que vivem às custas do

ex-jogador de futebol); mas, principalmente, por aquele respeito que a “nova classe

média” ou “batalhadora” depreende da sentido social e subjetivo do trabalho, o que define

um quadro de valores no qual o esforço dá sentido às práticas de consumo, assim como o

desempenho pessoal-familiar torna-se sintomático de uma meritocracia social.

Nesse âmbito, a cabelereira Monalisa talvez seja a única personagem de “Avenida

Brasil” que represente os valores laborais da “nova classe C”. A personagem é uma

127

migrante paraibana que, como muitos, vem tentar a sorte no Rio, a cidade-espaço das

telenovelas Globais (por sinal, o programa de televisão favorito da nordestina). Ao chegar

ao “Divino”, a retirante ocupou-se como cabelereira e, com a ajuda do ex-namorado e

sócio Tufão, lançou uma técnica de “chapinha” que a enriqueceu. Empreendedora e

batalhadora, Monalisa mesmo “rica”, não deixou de trabalhar em seu salão, fazendo

cortes e penteados como qualquer uma de suas funcionárias, orgulhando-se sempre de

seu jeito popularesco de ser (falava alto, gesticulava muito e “não levava desaforo pra

casa”). Sua personalidade envolvia a conservação dos hábitos adquiridos ao longo da vida

(como, por exemplo, “meter a colher no feijão gelado”). Sua casa é espaçosa, bem

mobiliada e toda equipada com eletrodomésticos que saltam aos olhos pela textura

metálica e fosca do indefectível aço inox. Ademais, Monalisa é uma mulher forte (adotou

e criou o filho sozinha), daquelas que não se deixam subjugar por nenhum homem que

queira invadir seu território: “Não te dou meu controle remoto”, disse, em certa ocasião,

ao então namorado Silas. “Quem escolhe meus canais sou eu!”.

Monalisa em três momentos: (1) como mulher trabalhadora, lavando os cabelos de Suelen em seu salão de

beleza; (2) como mãe emotiva e descontrolada, tentando impedir que o filho Iran saia de casa; (3) como

mulher revoltada, ao descobrir a falsa doença de Silas. Fonte: Gshow. Montagem autoral.

Pelo exposto, levanto que “Avenida Brasil”, ao inovar quanto à construção

espacial de seu mundo fictício (da zona sul à periferia), elevou outras espacialidades à

condição de centro narrativo da trama. Com relação aos fluxos correlatos a essa migração,

destaco que o folhetim operou dois movimentos, que, por sua vez, dialogaram com

diferentes perspectivas identitárias: (1) em primeiro lugar, o folhetim valeu-se de

arquétipos nacionalizantes como recurso pré-mediativo de narrativização, tendo em vista

a projeção de sentidos fundados sobre dinâmicas de caráter popular; (2) por outro lado,

nesse processo, a novela evidenciou uma matriz estética que se apropriou de uma possível

identidade de classe com o intuito de produzir representações telecômicas, o que, em

minha avaliação, resultou em um perigoso e delicado metadiscurso sobre a “nova classe

média”. Esse discurso, de caráter parodístico, centrou-se sobre a diferença cultural (o

128

brega) como mecanismo de produção de humor, revelando que, na batalha cultural

encenada por “Avenida Brasil”, os sujeitos, grupos e espaços que adquiriram visibilidade

na ficção não correspondem àqueles que serviram de referência à montagem de seus

mundos.

5.3.1 A Periferia como Recurso Mediativo

Em “Avenida Brasil”, a periferia possibilitou uma performance ficcional que

explorou elementos ligados à tradição nacionalista da teleficção, “aclimatando”, assim,

os princípios do melodrama social (luta pelo reconhecimento e combate às injustiças) às

mitologias contemporâneas de um país em franco desenvolvimento. Sobre essa

apropriação, Lopes e Mungioli escreveram que

(...) o tema da “nova classe média” (...) soou como uma forte metáfora sobre o

que há de mais distintivo no contexto atual da sociedade brasileira. Ele atualiza

o que Martín-Barbero apontava no melodrama como forma de recuperação da

memória popular e forma de indicação dos “modos de presença do povo na

massa”. O que estaria em jogo no melodrama, segundo o autor, é o “drama do

reconhecimento”, metáfora que podemos utilizar para alguns sinais de

identidade dessa nova parcela da população que demanda tanto por

reconhecimento simbólico, isto é, midiático, quanto real, materializado na

entrada de 40 milhões de brasileiros no mercado de trabalho e consumo.

(LOPES; MUNGIOLI, 2012, p.129)

Nesse sentido, o espaço do subúrbio e a espacialidade típica da periferia, atrelados

ao complexo sígnico (visual e sonoro) fabulado em torno da “nova classe média”, foram

aproveitados como recurso a partir do qual os agenciadores de “Avenida Brasil” pré-

mediaram as interações entre a obra ficcional e seus possíveis públicos consumidores. No

caso, a novela conjugou, aos moldes de um suposto “imaginário classe C”, as estruturas

hegemônicas e arcaicas do melodrama a um fenômeno socioeconômico recente, como as

reconfigurações de classe a partir da melhoria da qualidade de vida no país.

Além disso, no contexto do espaço dramatúrgico como recurso discursivo, coloco

que, a partir da periferia, outros hibridismos foram produzidos em “Avenida Brasil”,

como, por exemplo, a relação entre a sofisticação dos processos de filmagem e a

popularização dos espaços e temáticas evidenciados. Nessa direção, a novela apostou na

expressividade dos ritmos populares, na música dançante e sexualizada, nos figurinos

escrachados e na cenografia deliberadamente “cafona”. Por outro lado, do ponto de vista

129

tecnoprodutivo, “Avenida” foi o primeiro folhetim a trabalhar, durante todo a sua

exibição, com uma câmera de alta tecnologia (HD S-35 cinealta da Sony), o que permitiu

aos diretores manipular as imagens de forma inovadora e inusitada, particularmente a

partir de desfoques em primeiro ou segundo plano, gerando variações nos contrastes e na

resolução dos objetos de um mesmo quadro. A propósito, enquanto exercício fílmico

(construção de televisualidades a partir câmera), a novela apresentou um trabalho bastante

refinado, quando não sutil, inspirado em uma concepção artística do audiovisual,

multiplicando o jogo de composição da imagem televisiva e diversificando as texturas

possíveis às teletopias ficcionais.

Trata-se, assim, de uma inversão entre lógicas populares (pejorativamente

tomadas como “simples”) e elitistas (de forma igualmente grosseira, vistas como

“complexas”): enquanto, tradicionalmente, a telenovela registrava os conflitos

existenciais das classes elitizadas, utilizando-se de técnicas convencionais, “Avenida

Brasil” utilizou-se de processos criativos complexos para dar a ver processos e dinâmicas

populares. Nesse sentido, conforme pontua Pucci Jr. et al. (2013, p.110), “Avenida”

utilizou não apenas “esquemas triviais de composição imagética” (iluminação difusa,

câmera fixa, ângulos de filmagem à altura dos olhos dos atores, arranjo visual claro e

limpo), mas também recursos estilísticos considerados sofisticados (como iluminação

trabalhada através de contrastes, intensa movimentação de câmera, multiangulação das

filmagens, composições menos ordenadas).

Desse apontamento, traço dois comentários: o primeiro – conforme frisado pelos

autores supracitados – diz respeito à utilização, em “Avenida Brasil”, de ambos os

esquemas composicionais (triviais e sofisticados), tendo em vista a intercalação entre

sequências mais elaboradas (demarcadoras de momentos de tensão narrativa) e filmagens

padronizadas (o entrecho cômico da trama). Em segundo lugar, pontuo que a sofisticação

na composição das imagens – indiciadora de momentos emblemáticos, tensões narrativas

e poéticas cênicas – assumiu uma profundidade estética que atuou, de forma consistente,

sobre a produção dos sentidos teleficcionais, tendo em vista a construção de um sistema

retórico diferenciado, inusitado e envolvente. No caso, o jogo de câmeras – autoria

assumida com vigor pela competente equipe de diretores da trama – evidenciou um

“olhar” (em geral, do tipo escópico, tal qual os olhares da audiência) que percorria, com

130

personalidade, os espaços encenados, resultando em uma propositura cênico-imagética

na qual o espetador não se apropriava da completude da ação desenrolada85.

Essa perda de onipotência por parte da câmera, outrora fixada em posições

estratégicas, de forma a captar, irredutivelmente, toda a narratividade cênica, descortina

outras formas de espacialização narrativa, na medida em que a filmagem torna-se um

fluxo vívido e comunicante de imagens, dinamizada por um olhar que se confunde à mise-

en-scène (abandonado, portanto, o distanciamento de uma direção que se externaliza

frente à ação dramatúrgica, como aquela verificada no higienismo das cenas cômicas,

desprovidas de marcas evidentes de intervenção autoral por parte dos diretores). Nessa

medida, a “câmera testemunhal” implica em uma sequência tão instável como a

experiência social (particularmente, o mundo da rua), como mostram as cenas em que

Jorginho persegue o falso sequestrador de sua mãe pelos meandros de uma favela,

revelando a exterioridade e a hostilidade daquele lugar ou a sobreposição entre o estado

anímico do personagem (excitação, insegurança) e a sofreguidão do olhar fílmico que o

espiava.

Defendo, assim, que, como resultado desta alquimia produtiva (aspecto pré-

mediativo agenciado pelos autores/produtores do folhetim), “Avenida Brasil” organizou,

a partir de uma só espacialidade (o subúrbio), uma série de temporalidades sociais. É

nesse sentido que entendo o subúrbio como espaço matricial e recursivo, estratégia que

dá a ver toda uma rede de textos (das telenovelas, dos seriados, do cinema, da literatura e

do teatro), discursos (das relações de poder, classe e gênero, do imaginário nacional

folclorizante, da matriz sentimental melodramática, etc.) e de estruturas tecnoculturais

(hegemônicas, residuais ou emergentes).

Por fim, marco uma distinção do sentido que emprego à função recursiva da

periferia no contexto de “Avenida Brasil”, frente àquela dimensão empregada por Lopes

(2009) sobre a telenovela brasileira. No artigo referenciado, a autora aborda a noção de

recurso como estratégia recepcional em vista de uma construção identitária, tanto em

nível subjetivo como social. Dessa forma, as narrativas teledramatúrgicas são colocadas

como recursos comunicativos que permitem ou suscitam um série de práticas interativas,

85 Refiro-me aqui a uma espécie de “câmera subjetiva” de um narrador não participante, isto é, de um

observador capaz de registrar fragmentos da experiência testemunhada. Esse recurso foi utilizado, por

exemplo, na sequência do assassinato de Max, gerando confusão no telespectador acerca do que se

desenrolava diante da câmera. No sentido de reforçar a opacidade do registro áudio-imagético, os diretores

utilizaram, na cena em questão, um recurso de foco e desfoco que trazia para o primeiro plano objetos

irrelevantes para ação dramatúrgica; nebulizando, por consequência, os acontecimentos que, de fato,

importavam para narrativa (conforme destacado por Pucci et al., 2013).

131

possibilitando, por conseguinte, maior consciência sobre os conflitos e desigualdades que

atravessam a sociedade brasileira. Essa dimensão recursiva – afinada à prerrogativa das

batalhas culturais e das figuras de cidadania proposta por Barbero –, apesar de sua

pertinência, não foi um traço visível da narrativa de “Avenida Brasil”, tendo em vista

fatores como ausência de merchandisings sociais86, a centralidade narrativa sobre

aspectos fabulativos e, particularmente, o tratamento pejorativo conferido à “nova classe

C”. Esse último apontamento, a meu ver, sinaliza que o “drama do reconhecimento” das

periferias brasileiras ainda não foi midiaticamente superado: em “Avenida”, pelo menos,

a visibilidade estendida ao subúrbio não deixou de evidenciar quais são os “olhos” que

movem nossas câmeras (televisivas ou não), resultando em uma noção de “povo” cada

vez mais atrelada ao projeto fetichista de uma elite entediada.

5.3.2 A Paródia da Periferia

Na casa de Carminha, a estampa do sofá é a mesma da cortina – listras de zebra.

O vaso de flores possui a cara de um boneco deformado e os abajures da sala são lacaios

negros em tamanho quase real. Os falsos abacaxis estão por todo lado. Na área externa, a

piscina (além de se encontrar na parte frontal da propriedade) transforma-se em um

chafariz luminoso em dias festivos.

Apesar da repercussão positiva dessas caracterizações, “Avenida Brasil” trouxe à

tona uma relação conflitiva de classes na qual a aparente democratização do “gosto” e da

“estética” suburbana escondeu, a meu ver, uma política questionável de reprodução

simbólica. Minha questão centra-se, particularmente, no exagero dessas representações

telecômicas, tendo em vista a intencionalidade parodística com a qual a classe popular

socialmente ascendente foi representada. Nesse sentido, reafirmo que o “Divino”,

especificamente, a família Tufão, ilustrava certo deboche frente às recentes

reconfigurações sociais atravessadas pelo Brasil, revelando, mais do que matrizes de uma

cultura popular, um olhar de centro falsamente afinado a dinâmicas periféricas.

86 Lopes e Mungioli (2013), consideram que “Avenida Brasil” abordou os temas “trabalho infantil” e

“abandono de menores” como merchandising social. Do meu ponto de vista, essas questões foram

retratadas pela trama como pano de fundo à construção do enredo (tanto em sentido espacial, o lixão, quanto

dramatúrgico, a relação entre Carminha, Rita e Jorginho). Entretanto, considerando que a novela não se

aprofundou, nem problematizou tais questões, não as considero um exercício de educação social por

intermédio da ficção.

132

Detalhes da decoração da sala de Carminha: mistura de estampas; abajur com formas humanas; uma bússola

luminosa; peixinhos de cristal; fruteira em forma de macaco; abacaxis-luminárias; gato de porcelana. Fonte:

Material coletado na Internet. Montagem autoral.

Dedicar-me-ei, com mais acuidade, aos tensionamentos que derivam dessa

questão; antes, contudo, gostaria de evidenciar duas observações acerca dessa análise.

Reafirmo, em primeiro lugar, que o protagonismo da periferia no contexto espacial de

“Avenida Brasil” não deve ser diminuído em virtude de apontamentos que avaliam, em

profundidade qualitativa, as formas de dramatização sobre as dinâmicas populares. Nesse

sentido, a trama de João Emanuel Carneiro prestou um importante serviço de pluralização

das matrizes espaciais que orientam à montagem dos mundos teleficcionais,

demonstrando que inversões dessa natureza podem gerar novos contornos criativos aos

folhetins. Afinal, como agentes vivos de modalização de sentidos, os espaços tendem a

agenciar as matrizes ficcionais responsáveis em construir – visual, sonoro e retoricamente

– as encenações nele performatizadas.

Além disso, como segunda observação, interponho que minha análise não

pretende sugerir qualquer tipo de patrulha ideológica e/ou castração dos gestos de

comicidade, sobretudo mediante uma época na qual a ética no humor vem sendo discutida

a partir de argumentos tão controversos. Entretanto, aponto que minha reflexão não se

deriva apenas de um lugar enquanto audiência, no qual me refestelava com as peripécias

de Carminha, mas também de questionamentos de natureza acadêmica e social. Nesses

termos, parece-me sensato reconhecer que a periferia de João Emanuel Carneiro imprimiu

133

sua identidade conceitual através da idealização do subúrbio, tanto em sua dimensão

socializante (laços fraternos entre vizinhos e outras brasilidades típicas), quanto da

mitomania privada encenada pela mansão da família Tufão. Nesse segundo aspecto,

sugiro que a comicidade gerada pelo folhetim possui origens em uma concepção que

polariza uma suposta estética do “bom gosto” às formas culturais reproduzidas como

emergentes.

Nessa medida, avalio a discursividade de “Avenida Brasil” como um olhar

“elitizado” (classe A/B) dirigido às camadas populares (“nova classe C”), ainda que o

envolvente jogo ficcional da novela nos faça crer que estamos diante de uma

representação genuinamente popular. Parece, assim, que a mansão Tufão foi concebida,

enquanto cenografia e direção de arte, por algum profissional com um senso de humor

próximo ao da personagem Verônica (do tipo debochado). É nesse compêndio que

identifico na telenovela um metadiscurso sobre a classe C, isto é, a produção de um

discurso parodístico frente a outras discursividades erigidas em torno do fenômeno,

revelando, por conseguinte, certa impropriedade acerca mas matrizes culturais

representadas (o outro da periferia e do subúrbio).

Logo, a ideia de que a classe que mais consome novela se vê, finalmente,

representada na pequena tela, soa-me, no mínimo, folclórica: queríamos nós, brasileiros,

que nossas periferias fossem tão aprazíveis quanto o subúrbio de “Avenida Brasil”, ou

ainda, que a “Divina” comédia da cafonice emergente cobrisse as favelas deste país com

exageros de cores, estampa e comida. A pergunta deixa, então, de ser “por que ‘Avenida

Brasil?’”, para se transformar em: “afinal, que classe C é essa?”, conforme indaga

Leandro Machado, de 23 anos, estudante de Letras e morador de Ferraz de Vasconcelos

(periferia de São Paulo, capital):

(...) percebi aos pouco que eu e minha nova classe somos as celebridades do

momento. Todo mundo fala de nós e, claro, quer nos atingir de alguma forma.

(...) A televisão também estudou minha nova classe e, por isso, mudou seus

planos: além do aumento dos programas que relatam crimes bizarros

(supostamente gosto disso), as telenovelas agora têm empregadas domésticas

como protagonistas, cabelereiras como musas e até mesmo personagens ricos

que moram em bairros mais ou menos como o meu. (...) Não que eu não esteja

feliz com meu novo status de consumidor, não deve ser isso. (Agora mesmo

escrevo em um notebook, minha TV tem cem canais de esporte e minha mãe

prepara comida num fogão novo; se isso não for felicidade, do que se trata,

então?) O problema é que me esforço, juro, mas o ceticismo é ainda minha

perdição: levo 2h30 para chegar ao trabalho porque o trem quebra todos os

dias, meu plano de saúde não cobre minha doença no intestino e morro de medo

das enchentes do bairro. Ou seja, ao mesmo tempo em que todos querem me

atingir por meu razoável poder de consumo, passo por perrengues do século

134

passado. Eu e mais 30 milhões de pessoas – não somos pobres, mas classe C.

(MACHADO, 2012, s/p).87

Consonante ao depoimento de Leandro, acrescento que, no “Divino” de “Avenida

Brasil”, não havia espaço para violência, preconceito de raça – na periferia “sueca” da

novela quase havia espaço para negros88 –, para problemáticas sociais relacionadas ao

tráfico de drogas e de armamento, à prostituição. Pontuo, assim, que o “Divino”, por mais

adorável que fosse, revelou-se um espaço francamente monofônico, no sentido mesmo da

ausência daquela multiplicidade de vozes equipotentes de que nos falava de Bakhtin

(2003). Apesar de inúmeros dialogismos (entre diferentes matrizes culturais, Zona Norte

e Zona Sul, formatos mundializados e tradicionalismos novelescos, cultura digital e

princípios televisivos), não se percebe, na teleconstrução dessa periferia, um espaço de

multiplicidade e divergência (confronto de vozes sociais), mas sim, um campo de uma

pseudo diversidade que dissimula as relações de força colocadas em cena pela novela.

Acredito que esse processo relacione-se, em parte, às verticalidades da atividade autoral

– as pré-mediações organizadas pelas relações de tecnicidade e institucionalidade

empresarial –, responsáveis pelo alinhamento de personagens, ações, discursos e

espacialidades em torno de uma matriz estética parodística e de um discurso francamente

classista. Nesse sentido, conforme coloca Sérgio Miceli, a mídia hegemônica acaba por

revelar uma estrutura simbólica na qual as classes sociais são consideradas como

“fundamentos últimos das significações que elas mesmas produzem e consomem,

segundo uma hierarquia de legitimidades dominada pela cultura da classe dominante”.

(MICELI, 2005, p.160, grifos meus.)

Por um lado, é sabido que o “popular” na Rede Globo afere-se particularmente em

termos de audiência e penetração social, já que, enquanto empresa de comunicação, sua

origem é francamente elitista (afinal, estamos falando sobre uma das hegemonias mais

87 Fragmento Retirado da crônica “De repente, classe C”, de Leandro Machado, publicado no Blog Mural

da jornal “Folha de São Paulo”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/54594-de-

repente-classe-c.shtml.

88 Destaco a presença mais contundente de apenas dois personagens negros no elenco de “Avenida Brasil”:

Silas e Zezé. Nesse sentido, reporto a análise do jornalista e editor do portal “Correio Nagô”, André Santana,

sobre a representação do negro na novela: “Fica bem evidente que a Globo tem construído um percurso de

falar da população negra, temas caros à população negra, sem a sua verdadeira representação ali. O que nós

temos em ‘Avenida Brasil’ é um número grande de personagens e dá pra contar nos dedos quantos são

atores negros. Apesar de que são claramente histórias de vida de pessoas negras” (grifos meus). O

jornalista cita ainda a incoerência do Divino Futebol Clube, time de periferia, não contar com jogadores

negros (ao contrário, a seleção de Tufão conta com um elenco recheado de galãs da emissora carioca, todos

brancos ou, no máximo, pardos). O depoimento completo do jornalista encontra-se disponível em:

http://correionago.ning.com/video/a-representa-o-negra-na-novela-avenida-brasil-da-globo.

135

sólidas e atuantes deste país). Assim, quando João Emanuel Carneiro afirma que extrai

elementos narrativos de conversas com suas cozinheiras, das notícias televisivas e das

incursões da mãe antropóloga à periferia, em meu entendimento, o que fica evidenciado

não é um conhecimento de campo sobre a realidade dos subúrbios brasileiros, mas sim

uma perspectiva terceirizada sobre um fenômeno que, ao ser fabulado em muitos campos

sociais (gerando fabulações sobre fabulações), deixa de dizer de uma experiência concreta

de vida (“meu subúrbio”). Esse exercício criativo socialmente despretensioso (a

propósito, advogado por Carneiro) não representa, em princípio, um “desvio de

representação” (não gostaria de advogar contra a liberdade da montagem de mundos

ficcionais); entretanto, tomando como contexto a circulação – e o sucesso – de “Avenida

Brasil”, bem como a forma como tal narrativa foi prontamente vinculada a um projeto de

classes, parece-me significativo e reflexivamente fértil problematizar o jogo de

intencionalidades colocadas em cena, de forma deliberada ou não, pela telenovela.

Nesse contexto, parece-me imperioso operar uma distinção entre as modulações

semânticas originadas desse “subúrbio de Projac” e os sentidos sociais que vociferam nas

periferias brasileiras. Essa perspectiva me leva a colocar em suspeição esse protagonismo

espacial conferido ao “Divino”, particularmente, no que tange a expressividade de seu

sistema retórico, isto é, seu “estilo de uso, maneira de ser e de fazer” (CERTEAU apud

LOPES; MUNGIOLI, 2013, p.157). Nesses termos, o “sistema retórico” de “Avenida

Brasil” assentou-se sobre o estilo do suburbano (o barango), em uma personalidade

psicossocial (espontânea e escrachada) e em uma forma de fazer (com personalidade) que

revelaram uma narrativa mais próxima ao popularesco do que ao popular, no sentido

mesmo da paródia.

Parece-me que, para não incorrer no risco do Cinema Novo89 – no qual as imagens

levavam o popular à cena, mas o excluíam das salas de exibição –, a trama recorre ao

popularesco como pré-mediação entre as matrizes elitistas (que enxergam nessa forma de

representar uma comicidade frente a supostos “hábitos de classe”) e as matrizes, de fato,

populares (como as músicas, a composição dos espaços, a própria comicidade). Nesse

âmbito, tomando como referência o teatro popularesco e a encenação da “cafonice” em

“Avenida”, discordo de Jabor (2012, p.23) quando o colunista afirma que, através da

89 Nessa direção, Ricardo Waddington, diretor de núcleo de “Avenida Brasil”, comenta que “Essa classe

ascendente pode estar bem representada nos personagens da novela, mas não é por isso que o público está

acompanhando, senão o Cinema Novo teria sido extremamente popular porque retratava o povo. A

linguagem da trama é que se comunica com todos os cômodos da casa”. (WADDINGTON, 2012, p.76,

grifo meu).

136

novela, o “o subúrbio, finalmente, apareceu na TV, sem folclore e sem ideologia”. Na

mesma medida, avalio como arriscado o juízo publicado pela Revista Época (de 28 de

maio de 2012, ed. 731, p.78) quando o periódico afirma que “‘Avenida Brasil’ será

lembrada como a crônica aguda do Brasil emergente do início do século XXI”. Em ambos

os casos, parece que estamos esquecendo que, a centralidade espaço-ficcional da

periferia, bem como a correlata “visibilidade” da “nova classe C”, não expressa somente

uma metáfora nacional para um país em processo de desenvolvimento, mas também

evidencia outros processos que não podem ser obliterados no atual contexto do país. Na

minha avaliação, enquanto narrativa, a crônica do “Divino” é morna, justamente porque

não assume questões conjunturais impreteríveis; ao contrário, a trama de João Emanuel

Carneiro optou por uma forma de entretenimento que desconsiderou (quando não

mascarou) conflitos de classe que fazem parte da cotidianidade do brasileiro.

Nesse sentido, reafirmo: a ficção é o maior exercício de liberdade ao qual

possuímos acesso. Porém, não se trata de uma liberdade sem condicionantes, sobretudo

no caso teletópico, onde as narrativas dessa natureza projetam-se massivamente diante de

todo um país (e que não nos esqueçamos que, em si, o gênero já é uma forma de autoria).

Além disso, quando a ficção se atrela a um discurso como o da “nova classe média” –

anteparo quase mítico para os que ainda acreditam na ideia do desenvolvimento galopante

–, essa tal liberdade acaba por atender a propósitos que ela mesma trata de ocultar. Nessa

medida, proponho, em termos foucaultianos, o seguinte questionamento: enquanto fonte

expressiva de imaginários amplamente socializantes, qual o “real” que estamos

impugnando através de representações ordeiras como a aprazível subúrbio de “Avenida

Brasil”?

5.4 O Lixão de Mãe Lucinda: à Margem da Margem

Transcorrido esse percurso, encerro a análise narrativa de “Avenida Brasil” com

uma possível leitura sobre o lixão – o lúdico espaço habitado por Mãe Lucinda, Nilo e

suas respectivas crianças. Evitei, ao longo deste percurso, fazer menções ao aterro

cenográfico da novela – objetivava reservá-lo para o final, para, assim, reforçar sua

condição de marginalidade espacial e de suspensão temporal frente à trama em questão.

Esse silenciamento analítico, por sua vez, revelou-se bastante exequível (minhas

137

argumentações anteriores não foram censuradas), o que, em meu entendimento, corrobora

a exterioridade do lixão em relação às demais discursividades espaciais do folhetim.

Conforme exposto, França e Vaz (2012) definiram o lixão e a Zona Sul como

formas extremadas de certas condições sociais, culturais e econômicas, relacionadas,

respectivamente, à miséria e ao luxo; à comunhão e ao individualismo. Por sua vez, essas

desmedidas seriam equilibradas pelo “Divino”, o que, na visão dos autores, coloca o

subúrbio numa posição homeostática de entre lugar dessas espacialidades. Sobre o aterro,

especificamente, França e Vaz afirmam que

como apêndice do “Divino” aparece o lixão, possivelmente uma evocação do

Aterro Jardim Gramacho, lixão hoje desativado e conhecido do mundo todo

através de importantes produções culturais. “Divino” está ali, no entremeio. A

ZS (banhada pelo mar, cartão postal do Rio de Janeiro) de um lado, o lixão do

outro; junção entre esses dois mundos e transcendência deles. (FRANÇA;

VAZ, 2012, p.117).

Apesar de compartilhar a leitura sugerida pelos autores, opto por deslocar, em

termos analíticos, o lixão das outras espacialidades de “Avenida Brasil”. Essa suspensão

é relativa, uma vez que, em termos narrativos, os eventos transcorridos no aterro

cenográfico foram fundamentais para a proposição da trama central da novela – das

origens do embate entre Rita/Nina e Carminha até o desfecho pacifista desse duelo. Não

sugiro, assim, uma indiferença do lixão frente ao “Divino” ou à Zona Sul, mas aponto

que, a meu ver, a relação de transcendência destacada pelos autores ocorre, com mais

singularidade, a partir da miséria idealizada do aterro, e não sobre a fabulação do

subúrbio.

Nessa direção, retomo uma das características mais marcantes do lixão de

“Avenida Brasil”: sua ausência de cheiro. Ora, é sabido que, ainda que a tecnicidade

televisiva não englobe reproduções olfativas, o audiovisual pode sugestionar olores a

partir de sua base sensível (o ver e o ouvir). Nessa medida, em perspectiva mais ampla,

indago: qual era o cheiro das imagens de “Avenida Brasil”?

Quiçá, Cazuza diria que a zona sul fede à burguesia; para Verônica, o “Divino”

cheirava à suor e à “desodorante barato”. E o lixão? Que cheiro teria Mãe Lucinda? E

Nilo? Ao que me parece, mesmo vivendo, dia após dia, em meio ao resto e à sujeira, o

colo dessa mulher – tão confortante para Nina, Jorginho, Picolé – não parecia transmitir

aquela “golfada de vento” de que nos fala Bauman (2005) – um sopro de podridão que,

138

por ventura, invade o conforto das casas para lembrar as consequências da vida que

levamos e do lixo que produzimos.

Não creio, portanto, que um lixão inodoro possa ser considerado um lixão. E não

digo isso, no caso do aterro, no sentido de reforçar os desvios de representação da novela,

tampouco sugerir alguma controvérsia sobre sua política de construção simbólica. Ao

contrário, coloco essa “irrealidade” como argumento para situar o lixão de “Avenida

Brasil” em um lugar outro dentre os espaços narrativos da trama – no caso, um lugar

fortemente assentado sobre algo próximo a uma utopia ficcional. Assim, ainda que a

cenografia da telenovela seja parcialmente referenciada pelo Aterro Jardim Gramacho,

onde a equipe técnica realizou trabalho de campo, a ausência das características mais

sobressalentes dessas espacialidades reais90 evoca-me um lugar ficcional e imaginativo

que se encontra muito distante dos aterros reais; uma distância que, sem dúvidas, não

pode ser medida a partir das características que diferem o real e o fabulado, mas cujo jogo

transicional revela uma inclinação mais afeita ao campo imaginativo do que a qualquer

referência concreta.

No aterro de lixos lavados, peneirados e pintados de “Avenida Brasil”, o aspecto

geral da composição fazia pouca alusão à miserabilidade que nos salta aos olhos nos

lixões destituídos de ficção. Não me lembro de já ter estado em um lugar como esses, mas

arrisco dizer – a partir de uma experiência antropológica tão superficial quanto a de João

Emanuel Carneiro sobre o subúrbio – que os aterros e lixões do Brasil, assim como as

famílias que daí retiram suas rendas, traduzem algo próximo àquilo que falsamente

buscamos com o nome de “realidade”. Acredito que nesses lixões, a opacidade social –

nossos discursos truncados, multimediados, hiper-simbolizados – dê lugar a um

incômodo lapso de transparência; afinal, é no aterro, que as matrizes da cultura (do

“Divino” ou da “Vieira Souto”) misturam-se aos formatos da indústria (enlatados de todos

os tipos), e a classe C (nova ou velha) torna-se mais próxima às classes A, B ou D do que

seus respectivos membros gostariam de imaginar.

Enquanto espaço outro, o lixão de Mãe Lucinda – ponto de chegada e partida para

os personagens da trama (LOPES; MUNGIOLI, 2013) – representa um lugar de origem

difícil de esquecer, mesmo para aspirantes à novo rico como o malandro Max. A vida

dura de catador de lixo (experimentada por Carminha, Max, Mãe Lucinda, Nilo,

90 Duas características: o cheiro e a extensão de terra. No lixão de Mãe Lucinda, as filmagens davam-se

sempre no nível do chão, o que impedia uma noção de grandeza do espaço; e, conforme exposto, não existia

nenhuma forma de sensorialidade quanto ao cheiro nauseante dos mais diversos tipos de resíduos.

139

Batata/Jorginho e Rita/Nina) acompanha e funda os percursos desses personagens,

oferecendo um quadro de valores a partir do qual se conforma suas subjetividades,

discursos e objetivos de vida. Até mesmo Carmem Lúcia – a vilã que fez do lixão a

energia necessária para transformação, ainda que aplicando golpes e desferindo maldades

–, ao se ver frustrada e bêbada, toma um caminhão de lixo em direção ao antigo lar: “Ah,

o cheirinho de casa! Nada como o cheirinho de casa!”, repete. Esse “cheirinho” – ao meu

olfato, indiferente – remetia Carminha ao espaço do lar, evidenciando, portanto, a

referencialidade do lixão enquanto matriz afetiva para a vilã. Nesse sentido, o cheiro de

casa, provavelmente, o cheiro nauseante do chorume, não se torna exclusividade de uma

espacialidade específica, mas sim de todo um amplo espaço dividido por outros refugos,

muitas vezes, anônimos entre si.

Em outra medida, é justamente a ausência de cheiro que permite a montagem de

um mundo lúdico sobre o lixão, mundo no qual a narrativa de “Avenida” encontra sua

utopia para, daí, retirar a parte mais expressiva de sua poética: nesse aterro que não se

encontra em lugar algum, descortina-se um espaço de teatralidade onde a beleza

cenográfica substitui o asco e o descaso, gerando um palco privilegiado para os

acontecimentos mais marcantes da novela, como o casamento de Rita e Batata, o

assassinato de Max, a reconciliação de Nina e Carminha.

Em relação à beleza, destaco, particularmente, a casa mágica de Mãe Lucinda,

uma verdadeira fábrica de sonhos em meio à aridez da paisagem dominada pelo lixo: nela,

a pequena calçada frontal é adornada por mosaicos em forma de flor; latinhas amassadas

revestem as paredes e funcionam como cortinas; jornais velhos e garrafas de plástico

transformam-se em bancos; materiais recolhidos são revivificados na condição de objetos

decorativos (alguns bastante sofisticados, como uma luminária montada sobre uma calota

de bicicleta e uma belíssima santa cravejada por falsos brilhantes). Nesse sentido, destaco

a comparação de Rahde et al. (2012) entre a casa de Mãe Lucinda e os exageros da

Mansão Tufão.

A casa de mãe Lucinda no lixão é cheia de amor e valorizada por uma

iluminação suave, discreta e sofisticada, que denota vida e esperança, valores

muitos mais sólidos do que os falsos brilhos da casa dos milionários sem

caráter. Vidros coloridos de garrafas filtram e desenham esta luz que se reflete

em adornos dourados, feitos de papel alumínio reciclado de embalagens

descartadas. Aqui, o dourado é autêntico, porque ostenta a sua fragilidade de

papel, não quer imitar o ouro ou a riqueza, quer apenas refletir o brilho do sol.

(RAHDE et al., 2012, p.338).

140

Casa de Mãe Lucinda decorada para o casamento de Rita e Batata; garrafas de vidro filtram e colorem a luz

do sol; imagem de Nossa Senhora de Aparecida feita de restos metálicos. Fonte: Material coletado na

Internet. Montagem autoral.

Pelo exposto, me parece lícito afirmar que o lixão, na lógica própria das coisas

que sobram e que restam, produz um espaço residual frente às engrenagens produtivas da

cidade e da ficção. Se o trânsito intenso das avenidas concentra-se no eixo orla-subúrbio,

o aterro não é muito mais do que um espaço de fora, um pedaço de mundo que,

aparentemente, ninguém quer, e que, talvez por isso, mereça receber todos as demais

sobras. Contudo, para grandeza de “Avenida Brasil”, na narrativa de João Emanuel

Carneiro, o lixão não é só espaço para dejetos: em sua ambivalência, ele também é lugar

no sentido mais afetivo do termo. Por isso, Lucinda não poderia ter saído dali, como

desejaram alguns internautas ao final da novela. Ora, é preciso lembrar que a Mãe do

lixão não é uma “nova rica”, e que sua fortuna de vidros coloridos e latinhas amassadas

encontra-se, preciosamente, em suas origens. Valores subterrâneos de uma não

emergente.

141

5.5 Uma Novela entre Espaços

No contexto dos mundos montados pela ficção, a ideia que construímos sobre as

periferias contemporâneas e sobre os modelos de ascensão social no Brasil imbricam-se,

estreitamente, aos projetos colocados em marcha pelo sistema midiático. Não me parece

furtivo que, a partir da “estética do emergente”, uma série de produtos comece a ser

produzida para TV, ainda que, não necessariamente, para as classes em evidência. Nesse

cenário, a telenovela desempenha um papel importante no sentido de ensejar novelas

capazes de envolver um número expressivo de telespectadores, filiados a diversas classes

sociais, residentes em todo território nacional. Diante dessas condições, reforço a

inconsistência do depoimento de João Emanuel Carneiro sobre a livre representação de

sua periferia:

Eu criei um subúrbio na minha cabeça, o bairro “Divino”. É uma fabulação

(...). Esse subúrbio que estou criando não tem ambição sociológica, não tenho

vontade de fazer novela sociológica sobre o Brasil atual, é um exercício de

ficção. Tanto que que inventei um bairro que não existe, é o meu subúrbio, não

tenho de prestar satisfação a nada. (CARNEIRO, 2012, s/p).

Por certo, na construção do “Divino”, o novelista não se ocupou em “prestar

muitas “satisfações”, afinal, sua trama apresentou baixíssimo compromisso de

referencialidade frente à qualquer domínio de realidade, conforme verificado a partir da

idealização de suas principais espacialidades (o subúrbio e o lixão). Por outro lado, ainda

que desprovido de “ambição sociológica”, o mesmo João Emanuel Carneiro, sete meses

após a declaração supracitada – ou seja, transcorrido o curso da novela –, tratou de

assentar o sucesso de seu folhetim sobre aspectos extra-trama, conforme verificado em

depoimentos como: “tive uma antena boa de sacar o momento do Brasil”, “a ascensão da

nova classe média está dando uma cara diferente ao país”, “a novela é sobre a classe C,

mas não só para classe C”.

Nesse sentido, ainda que a pretensão do autor fosse produzir uma livre fabulação,

a significância social da ficção televisiva não permitiu que “Avenida” galgasse espaços

de tamanha despretensão. Logo, a trama de Nina e Carminha acabou sendo veiculada

como uma narrativa conjuntural, no caso, pautada sobre o contexto de ascensão da “nova

classe média” e pelo fenômeno de midiatização da periferia. E muitos foram os discursos

que apontaram o modo singular através do qual “Avenida Brasil” perfilou o atual

142

momento do país: “crônica social”, “radiografia de um país em transformação”, “espírito

de tempo corrente” ...

Exageros à parte (alguns, dignos de Carminha), “Avenida Brasil”, com inequívoca

originalidade, libertou a teledramaturgia da “charmosa caixa de ressonância da zona sul

carioca”, conduzindo sua audiência em direção à inigualável “farofa” da Zona Norte. Em

decorrência dessa inversão, o protagonismo do “Divino” demonstrou a potência criativa

de um espaço até então pouco aproveitado pelas telenovelas brasileiras, o que nos sugere

que outras especialidades poderiam desencadear inusitadas engenharias dramatúrgicas e

novos lugares de ficcionalização. À essa travessia, mais uma vez, não faltaram elogios:

“finalmente, o povo na TV”, “a periferia ganha o Brasil”, “o subúrbio entra na moda”.

Da forma como for, o “Divino” criado por João Emanuel Carneiro transformou-

se em um dos teletópos mais persuasivos da história da televisão, confundindo-se, de

forma inexorável, ao imaginário social acerca dos subúrbios. Nesse contexto, não

considero alarmante o olhar idealista que repagina uma série de clichês sobre a vida na

periferia, todos prontamente associados a uma identidade social e subjetiva; por outra

dimensão, avalio como problemática a intencionalidade parodística que camufla, sob os

auspícios do humor, uma narrativa classicista (e não de classes) em torno da qual é

encenada uma falsa batalha cultural entre elite e classes sociais emergentes.

Nesses termos, coloco que “Avenida Brasil” nos faz crer que estamos

testemunhando uma reparação histórica – as “massas” amplamente consumidoras de

teleficção veem-se finalmente retratadas na televisão –, como se tal visibilidade midiática

fosse resultado do esforço de uma classe batalhadora. Todavia, nesse “novo” espaço para

uma “nova” classe, o que se aclara é uma abordagem que retira densidade de uma questão

social pungente, ao mesmo tempo em que se pretende vinculada a um movimento de

caráter extramidiático.

Proponho, na esteira dessas reflexões, uma comparação entre os modos de

fabulação do lixão e do “Divino”, tomando como referência o modelo triádico do gênero91

(JOST, 2007). Coloco, assim, que, enquanto o aterro assumia-se como fábula, o subúrbio,

não, logo, o “Divino” localizava-se em um entrelugar distinto daquele que abrigava o

91 François Jost (2007) trabalha o conceito de gênero a partir de um modelo tripartido entre mundos

interagentes e mútuo-remissivos, sobre os quais se fundam as relações entre sujeitos, sociedade e ficção.

Os mundos que o gênero faz referência são: (1) Mundo real (envio à dimensão concreta do cotidiano, como

ocorre, por exemplo, em notícias jornalísticas); (2) Mundo Fictício (forma ficcional, que pode se opor ao

real ou não, cujo fundamento consiste na coerência e não necessariamente na verossimilhança); (3) Mundo

Lúdico (mundo do jogo, forma transicional entre os mundos anteriores).

143

lixão de Mãe Lucinda, tendo em vista uma diferença de “remissão” que caracterizava

cada uma dessas formas fictícias.

Esquema de relação entre os mundos constituintes do gênero (JOST, 2007), adaptado.

Pelo esquema, percebe-se que o lixão, em sua dimensão ficcional utópica,

caracterizou-se por um exercício fabulativo que aproximou o fictício do lúdico, tendo em

vista uma forma de narrativização (dramatúrgica e imagética) calcada em um jogo

claramente simbólico, no sentido de uma não referencialidade no mundo concreto

(verificada, por exemplo, na retórica poética da casa de Mãe Lucinda). Por outro lado,

situo o “Divino” em uma relação que remete o fictício sobretudo à realidade, uma vez

que, a partir da suposta estética narrativa da “nova classe C”, “Avenida Brasil” acabou

vinculada a um projeto identitário relacionado à modulações extra-trama. Essa diferença

explica, em parte, o porquê de minha criticidade ter acionado enquadramentos distintos

para analisar cada uma das espacialidades em evidência, ou seja, a razão do lixão ter sido

entrevisto como uma manifestação autêntica daquelas jardinagens sobre as quais nos

falava Foucault (um exercício bem-vindo e necessário de “ir além”), enquanto o subúrbio

do “Divino”, no meu entendimento, trouxe incômodos ficcionais.

Concluo, assim, que a migração espacial efetuada por “Avenida Brasil” merece

ser reconhecida, mais especificamente, pelos câmbios sobre o plano das fisicalidades

espaciais, já que, do ponto de vista dramatúrgico, as transformações não foram igualmente

expressivas (os fluxos não necessariamente acompanharam os fixos): afinal, as matrizes

melodramáticas continuaram a oscilar entre a comédia da vida pública e o drama da

existência privada, sendo que, em ambas as dimensões, o que se projeta como referência

não é a moralidade ou a convivialidade dos sujeitos representados, mas sim uma figuração

de classe cujo imaginário ainda reside na velha e bela orla carioca. Enquanto texto

(temáticas, conflitos e soluções) e paratexto (enquadramentos sociais, representação de

144

minorias, agendamento de debates públicos), “Avenida” pouco contribuiu para o

desempenho da vocação recursiva da teledramaturgia – agora entendido nos termos de

Lopes (2009), como estratégia de recepção voltada para a construção de diferentes

identidades, no caso, fundadas sobre figuras de cidadania que pluralizem e tensionem o

campo de representação televisual. Meu incômodo deriva-se, portanto, da conclusão de

que, enquanto zona complexa de enunciação social, as teletopias orbitam em torno de

folhetins cada vez mais dialógicos (outras referências simbólicas, outras ficções –

nacionais ou não –, outros contextos espaciais...), embora, enquanto espaço de imbricação

de vozes e discursos, a baixa heterogeneidade discursiva redunde na monofonia de uma

“Avenida” ainda de mão única.

145

#OIOIOI6 ESPAÇOS DE CIRCULAÇÃO FICCIONAL

Flyer de festa noturna tematizada em torno de “Avenida Brasil”: “Me serve, vadia! Nina feat Carminha”.

Fonte: material retirado da internet.

146

6.1 Teletopias da ficção e do cotidiano

A vendedora dá um sorriso irônico antes de indicar o artigo mais vendido da

Zecabiju, uma das dezenas de lojas do Saara, o movimentado mercado popular do centro

do Rio. “O brinco da Suelen, claro. Eu nem precisava falar, né?”

Foi com o lead acima que Fábio Brisolla introduziu a matéria “A vez do subúrbio”,

publicada em 12 de agosto de 2012 na seção “Ilustrada” do jornal “Folha de São Paulo”.

Ainda que, fora do Saara, o “brinco da Suelen” (um tira comprida revestida de strass)

seja menos popular do que a entrevistada faz crer, de fato, à época da novela, podia-se

creditar o pódio dos “mais vendidos” a alguma das bijuterias ostentadas pela “periguete”

do horário nobre. Na trama de João Emanuel Carneiro, esse vitrinismo também foi

desempenhado por outras personagens-manequins, como, por exemplo, Olenka – o seu

batom foi o produto mais pedido dentre os cinquenta itens comercializados pela “Globo

Marcas” com o selo da novela. Já uma fabricante de sapatos, aproveitando-se do sucesso

das protagonistas de “Avenida”, batizou os modelos de uma coleção como “Carminha”

(um scarpin em couro, com sola de courolaque, salto de 13 cm de altura, também

encapado em couro) e “Rita” (sapatênis em diversos tons metalizados). Uma rede de

eletrodomésticos, por sua vez, lançou o “Kit Nina”, que incluía uma máquina fotográfica

digital, um freezer, um capacete rosa e um jogo de detetives (só faltou o pen-drive). Em

outra vertente de mercado, uma academia de São Paulo passou a oferecer aulas de

“Charme” – a dança de Darkson e Suelen, que, de acordo com a propaganda da empresa,

“detona até 350 calorias em 1 hora”.

Tais exemplos, e outros que poderiam ser alistados nessa direção, evidenciam

como a telenovela movimenta um consistente e rentável mercado simbólico-material,

tendo em vista sua inserção, enquanto produto cultural, no campo doméstico da recepção

e no bojo das práticas sociais. Ainda que tais relações não sejam o foco desta

argumentação, utilizo-me delas para evidenciar os mecanismos que transformam as

narrativas da ficção em teletopias do cotidiano, considerando que os folhetins abarcam

mundos não apenas fabulativos, mas também práticas simbólicas que se realizam, de

forma extensiva, no mundo concreto, seja ele social ou subjetivo. Coloco, assim, que as

práticas de consumo agenciadas pela teledramaturgia, ainda que não possam ser

desvinculadas de suas finalidades lucrativas, apontam para a potência das mediações

147

sócio-ficcionais e a consequente posição de “alteridade” narrativa desempenhada pelas

novelas brasileiras92.

Nesse intento, destaco que os fluxos simbólicos, ao partirem da televisão e

circularem por diversos espaços – desde os mais contemporâneos, como o digital, aos

mais imprescindíveis, como a rua e o corpo – acabam se cristalizando em artefatos que

traduzem uma densa imbricação entre universos ficcionais, matrizes socioculturais e

mecanismos íntimos de reconhecimento. Mesmo que o acessório da personagem e a

incorporação do ritmo musical digam de influências e verticalismos simbólicos

(modulação de gosto, padronização de comportamentos, formulação de tipos ideais...),

eles também evidenciam processos autênticos de refuncionalização e apropriação

psicossocial, sendo, assim, um recurso de performatização do self. Afinal, como um

divinense certamente diria: “o brinco até pode ser da Suelen, mas a orelha é minha”.

No caso da novela, essa circulação de bens materiais encontra-se ancorada por

outro fluxo circulatório – este entendido, nos termos de Braga (2006, p.28), como

“movimentação social dos sentidos e estímulos produzidos pela mídia”. Através desses

fluxos de significação, que partem da mídia e ganham corpo em meio aos processos e

dispositivos de interação, as teletopias ficcionais convertem-se em práticas cotidianas,

como ocorre quando um corte de cabelo passa a ser inspirado em um determinado

personagem ou quando um bordão se integra ao léxico popular. O brinco mais vendido

do Saara, por exemplo, uma vez remetido ao contexto da personagem Suelen, traz uma

textura midiática para a experiência cotidiana, revelando, assim, a conjunção entre um

universo amplamente midiatizado e a constituição subjetiva de um ideal de feminilidade.

Outro exemplo nessa direção, bastante próprio à “Avenida Brasil”, são as

teletopias da “nova classe C”: no caso, a geladeira inox e o televisor de plasma

materializam tempo de trabalho e esforço na forma de bens duráveis, sendo tais produtos

reveladores de um lugar de “chegada” no qual o direito ao consumo implica em outras

formas de experimentação espacial, tanto no âmbito doméstico quanto social. Logo, o que

esses produtos promovem em termos de espacialização – os fluxos de sentidos que

emanam de suas fisicalidades – não se restringe apenas às prerrogativas do conforto e da

92 Destaco, porém, que as telenovelas brasileiras (sobretudo uma trama de sucesso, como “Avenida Brasil”),

ao atingirem certa alçada imaginária, passam a ser exploradas enquanto trunfo mercadológico – no caso, as

composições ficcionais (os contornos que dão forma e relevo às teletopias) agregam valor a uma série de

produtos prontamente colocados em circulação comercial, tendo em vista a apropriação de elementos

estéticos (forma, cor) e semânticos (referências narrativas) que partem da teledramaturgia. Sobre a

dimensão mercadológica da novela, ver: ALMEIDA, Heloísa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero.

São Paulo: EDUSC, 2003.

148

eficiência, relacionando-se, ainda, ao universo compartilhado dos imaginários

midiatizados capazes de gerar reconhecimento mútuo e pertencimento social93.

Contudo, a presença simbólico-material desses índices de ficcionalidade

representa um argumento por certo menor acerca da dimensão socializante das teletopias.

Recorro a essa instância em função de sua empiricidade frente a outras dinâmicas

teledramatúrgicas de circulação e interação social. Friso, assim, que os mecanismos de

enredamento entre as dimensões narrativa e social das teletopias, desde as citadas até

aquela analisada na sequência – as interações online –, apontam para a centralidade da

telenovela enquanto paradigma estético-fabulativo no Brasil, o que evidencia formas nem

sempre visíveis e decupáveis de interação entre sujeitos, sociedade e teleficção. Nesse

sentido, as dinâmicas de consumo teleficcional acompanham a multitemporalidade

característica às experiências midiáticas do país, implicando, portanto, em apropriações

que oscilam entre diferentes modos de subjetivação e, particularmente, na forma como

cada ator social vem tecendo suas redes feitas de “passado” e “futuro”.

6.2 TV + web = novos circuitos de interação

A página de “Avenida Brasil” na internet disponibiliza todas as cenas da novela,

em geral, em formatos de curta duração. O folhetim encontra-se também disponível para

ser baixado através de download ou em sites que oferecem conteúdos televisivos online.

Além disso, “Avenida” tornou-se um fenômeno de mídia mais comentado na internet do

que na própria TV, apesar do sucesso do folhetim ter movimentado não apenas o horário

nobre da Rede Globo, mas diversos programas da emissora carioca e, até mesmo, dos

canais concorrentes. E ainda: a trama de João Emanuel Carneiro, conforme exposto no

capítulo de apresentação da novela (#Oioioi3), mobilizou inúmeros internautas em torno

de diversos tipos de informações ou conteúdos ligados ao folhetim, tais como: notícias

93 Nesse sentido, parece-me sintomático que a nova classe média prefira investir em bens de consumo

duráveis, isto é, em “fixos” capazes de assegurar, de forma mais duradoura, as referências materiais que

lhe servem como identidade. Conforme colocado pela antropóloga Hilaine Yaccoub (2011, p.204), devido

ao aumento da renda, à política de juros baixos e aos créditos facilitados, “esses ‘novos consumidores’

obtiveram mais acesso a bens duráveis, especialmente eletroeletrônicos, elevando assim seu status perante

seus iguais (...). Por meio do consumo, principalmente de carros e eletroeletrônicos, eles almejam inclusão

em outro estrato social, as camadas médias urbanas”. A meu ver, esse apontamento parece traduzir, ainda

que de forma generalista, um modo de produção espacial matriciado por intencionalidades ligadas a uma

suposta composição de classe.

149

em torno dos eventos ficcionais, material jornalístico sobre os bastidores da produção,

conteúdos gerados por usuários, conversações intensas a partir da novela, entre outros.

Diante desse contexto, “Avenida Brasil” ilustra um processo instigante de

convergência entre a televisão e a web. Afinal, o fenômeno social erijido em torno da

trama articulou-se, notadamente, a partir das redes sociais, espaço de circulação para os

conteúdos gerados por usuários. Em geral, esses conteúdos corresponderam a

investimentos dinâmicos e criativos por parte dos internautas, tendo sido motivados por

intencionalidades cômicas ou por sentimentos de fã. Diante do que pude observar, o

material produzido em torno da novela variava entre fotomontagens, charges, gifs e

vídeos envolvendo os personagens e as situações mais emblemáticas de “Avenida”.

Transformados em virais, os conteúdos eram replicados para diversas plataformas (Orkut,

Facebook, Twitter, Instagram), o que desencadeava uma série de interações entre os

internautas. Além disso, essa produção também podia ser acessada a partir de tumblrs,

espaços que reuniam um conjunto de conteúdos gerados a partir da novela.

Uma das apropriações mais criativas e bem-humoradas dos internautas: o Facebook de Carminha: Fonte:

montagem autoral a partir de imagens do site kibeloco.com.br.

150

Esse contexto nos sugere que, mesmo diante do lugar nuclear da TV no que se refere à

telenovela, a internet assume, paulatinamente, um papel importante em relação à difusão

dos conteúdos televisivos e à promoção de novas práticas interativas. Esse acoplamento

entre mídias, sintomáticos de uma midiamorfose94, é sugestivo da característica

adaptativa que, praxiologicamente, funcionaliza a ecologia midiática brasileira, tendo em

vista a justaposição e não o aniquilamento entre meios e processos de diferentes

temporalidades sociais; nessa medida, o que temos percebido – a partir de “Avenida

Brasil” e inúmeros outros processos comunicativos – é que as emergências sociotécnicas

tendem a reorganizar as formas de interação já habitualizadas pela cultura midiática, mais

do que conduzi-las, de imediato, a uma condição de extinção ou de substituição de mídias.

No caso da relação TV e web, o juízo apocalíptico – “a internet acabará com a televisão”

– perdeu força diante de outro, este mais judicioso: as novas mídias, ao contrário de

simplesmente fagocitarem as velhas, tendem a rearticular a cadeia comunicativa de forma

a promover novas mediações entre produtores e receptores, entre formatos

industrializados e matrizes culturais. Esse processo possibilita não apenas a inserção

social de meios/processos emergentes, mas também a adaptação de formas midiáticas

diacrônicas de produção e consumo aos novos contextos em questão.

Diante dessa problematização, recorro ao fato de que a telenovela, com peculiar

expressividade, ancora-se na memória como fator de transmissão cultural, o que, por sua

vez, encontra-se associado à vocação oral de nossas práticas interacionais e às mediações

desse gênero enquanto repertório cultural-socializante. Logo, a presença da televisão no

imaginário ficcional de nós, brasileiros, não pode ser reduzida à perecibilidade dos

formatos tecnológicos (como o são, por exemplo, um VHS ou um CD), uma vez que a

natureza sociológica da telenovela no Brasil ultrapassa, sem prescindir, às mediações da

tecnicidade, sendo também matéria de outros processos mediativos, não apenas

sincrônicos e contemporâneos, mas também histórico-diacrônicos.

94 O termo “midiamorfose” foi cunhado por Roger Fidler (apud FINDER; SOUZA, 2012, p.374) em

referência ao “processo de transformação e adaptação das mídias a partir de pressões e necessidades sociais

e da concorrência tecnológica imposta pelo novo meio”. Na interpretação do teórico, “as mudanças não são

instantâneas e resultam em mídias com novas características, num processo de coevolução e coexistências”.

A nomenclatura foi apropriada no contexto do fórum “TVMorfose” (livre tradução de “TVmorfosis”),

iniciativa coordenada por Guillermo Orozco no intuito de refletir sobre o cenário de transformações que

vêm marcando os modos de interação entre a televisão e sua audiência. O fórum encontra-se em sua segunda

edição, sendo que cada encontro deu origem a um livro de publicações: “A televisão aberta em direção à

sociedade de redes” (“La televisión aberta hacia la sociedad de redes”), de 2012, e “Convergências e

cenários para uma televisão interativa” (Convergencia y escenarios para uma televisón interactiva), de

2013.

151

Por outro lado, essa ancoragem só se faz possível a partir da apropriação de

tecnologias, suportes e elementos afinados aos atuais contextos sociomidiáticos. Nessa

direção, parece-me fundamental reconhecer que a midiatização e os hodiernos

dispositivos interacionais evidenciam formas inéditas de produção de sentidos, o que, em

partes, confere atualidade às teletopias. Afinal, conforme coloca Martín-Barbero (2006b,

p. 70), “a convergência da globalização e da revolução tecnológica configura um novo

ecossistema de linguagens e escritas”, o que implica no surgimento de matrizes capazes

de rearticular percepções espaço-temporais e promover novas interações entre diferentes

consciências. Nessa medida, ainda que a internet não tenha substituído à TV, ela

reordenou, de forma tão intensiva quanto extensiva, as dinâmicas midiáticas da

contemporaneidade, tanto no que tange às relações intermídias, quanto aos protocolos

funcionais (mais ou menos prescritíveis) inerentes a cada meio e formato. E, mais do que

isso, a rede digital vem desenhando um novo modelo de audiência, no qual os atores

sociais se veem diante de uma outra relação com as “telas”: em primeiro lugar porque

elas pluralizaram-se, o que tensiona o monopólio da televisão no interior do espaço

doméstico; e ainda porque, na configuração em rede, as novas interfaces abrem espaço à

participação e interação entre sujeitos midiáticos, o que, por conseguinte, implica em um

outro modo de relacionamento diante dos media.

Friso, assim, que os câmbios em relevo trouxeram o dinamismo do mundo

contemporâneo para os trânsitos de “Avenida”, tanto no que se refere ao âmbito narrativo,

quanto circulatório dessa teletopia. Nesse sentido, o acoplamento “TV + web” ensejado

pela trama reforça como as tecnologias digitais vem sendo apropriadas por matrizes

culturais filiadas a múltiplas temporalidades sociomidiáticas. Afinal, o que vimos na

trama de Nina e Carminha foi que a web (esse espaço tão aclamado como o início da era

pós-massiva) permitiu a uma novela reafirmar sua função social do tipo agregativa,

(re)unindo uma massa de telespectadores em torno de um mesmo écran, de um mesmo

universo ficcional, de uma mesma teletopia.

Em termos bakhtinianos, o folhetim de João Emanuel Carneiro evidenciou como

as atuais condições de produção/circulação de discursos recepcionais permitem novas

pontes de linguagem – pontes possivelmente capazes de espacializar diferentes agentes

midiáticos em torno de um sistema de interação social cada vez mais complexo. Entre

outros fatores, tal complexidade advém da diversificação dos “outros alocutários” que

constituem os processos conversacionais entre a audiência, o que descortina modos

inéditos de espacialização a partir das possibilidades interativas oferecidas aos sujeitos

152

localizados em distintos pontos geográficos. Diante dessa textura midiática, a

conformação dos lugares de interação deixa de se vincular, necessariamente, às

contingências físicas do espaço da casa e da família ou à agência simbólica da narrativa

oficial das novelas – alcançando, a partir de interlocuções inéditas, a antessala virtual da

web e a produção transmidiática de outros conteúdos. Desse contexto deriva-se uma

intensificação dos dialogismos que atravessam as enunciações da telenovela, verificado

não somente a partir das dinâmicas de interação entre sociedade/emissora95, mas,

sobretudo, pelas trocas entre os milhares de internautas que integram os públicos

televisivos.

Nessa direção, a interrelação TV e internet, ou, entre “Avenida Brasil” e seus

“tele-web-espectadores”, evidencia o que Jansson (2013) aponta como uma estreita

relação entre a midiatização e as transformações socioespaciais. No caso das teletopias,

essa tendência aclara-se a partir de diversos meios/processos comunicativos, como a

intensificação dos espaços voltados para a produção recepcional e a possibilidade de

interação entre distintas e desconhecidas mundividências. Importante destacar que esses

dispositivos interacionais vêm gerando novos arranjos recepcionais, mais

especificamente, espaços coletivos de recepção e produção teledramatúrgica. Conforme

exposto na sequência, essa dinâmica ocorre, particularmente, no Twitter, tendo em vista

as práticas de assistência coletiva da novela no microblog, onde espaços coletivos de

recepção/produção teledramatúrgica são gerados a partir da vinculação de tweets a uma

mesma hashtag.

Ademais, pontuo que esse processo espacial rearticulado pela midiatização

vincula-se, no caso das teletopias, a mudanças no campo do consumo da ficção televisiva.

Além dos fatores já colocados, como o crescente dialogismo frente aos espaços digitais,

destaco ainda outro condicionante dessa midiamorfose: o processo de digitalização dos

capítulos, no caso, responsável por tornar a novela um arquivo digital e/ou portátil.

Em certa medida, esse transbordamento da TV em direção aos monitores e às

microtelas acarreta novos modos de produção, como a gravação de cenas cada vez mais

curtas e editadas, tendo em vista, entre outros fatores, a fácil circulação desse material em

95 Nessa direção, aponto a intensificação dos canais de retorno à produção de telenovelas: no caso da Rede

Globo, o blog da emissora – “RTV” –, o site oficial de cada trama, o “fale conosco”. Pondero, entretanto,

que esse tipo de espaço oferece mecanismos pontuais de comunicação (de caráter privativo), tendo em vista

a ausência de campos abertos para a inserção de comentários que partam dos internautas. Além disso, vale

lembrar que, com o advento da cultura digital, muitos discursos recepcionais passaram a ganhar visibilidade

no âmbito da web, o que fornece parâmetros à emissora sobre certa opinião pública.

153

meio às plataformas digitais. Já do ponto de vista da recepção, essa disponibilidade gera

um fluxo de assistência que se desenrola de forma menos vinculada à programação das

emissoras (“on streaming”) e mais variável de acordo com o tempo e o interesse do

espectador/internauta (“on demand”)96. A conversão dos capítulos em arquivos digitais

amplia, assim, o acesso aos conteúdos produzidos pela televisão, o que, por um lado,

flexibiliza e facilita o acesso da audiência aos conteúdos produzidos; em outra medida,

essa desvinculação do produto frente ao veículo enfraquece a mediação espaço-temporal

exercida pela televisão enquanto reguladora via palimpsesto (no sentido de que a

digitalização dos capítulos permite ao telespectador assistir à novela quando quiser e onde

quiser).

Outro fator a ser destacado, em vista da digitalização teledramatúrgica, refere-se

ao surgimento de espacialidades recepcionais distintas do âmbito doméstico. Se, há

décadas, a televisão já vem migrando da sala de estar para a individualidade dos

dormitórios, atualmente, o desenvolvimento e a proliferação de dispositivos móveis têm

suscitado “novas interfaces através das quais a interação do usuário com a mídia pode

aproximar-se do corpo” (JANSSON, 2013, p.180, grifos do autor)97. Nesse sentido, a

recepção televisiva encontrou possibilidades de consumo, interação e fruição ficcional

que extrapolam espacialidades físicas e estáticas (paredes, fiação e grandes aparelhos

transmissores), viabilizando formas de recepção em trânsito a partir de dispositivos

móveis.

Diante desse instigante cenário, proponho, nas próximas seções, uma reflexão

sobre os rearranjos oriundos dos processos de midiatização, tendo como foco o

soerguimento de novos dispositivos interacionais, como Twitter. Para tanto, busco

apontar como a apropriação social desses dispositivos dá a ver modos de interação que se

aproximam das matrizes orais da cultura brasileira, assim como traduzem formas de

relacionamento midiático que oscilam entre práticas tradicionais e configurações mais

próprias à sociedade de rede. Nesse percurso, destaco que esses dispositivos visibilizam

discursos que estão multiplicando as formas de retorno midiático, logo, atuando no

96 Duas formas de programação: on streaming (por transmissão, vinculada à programação das emissoras) e

on demand (por demanda, relacionada ao interesse do usuário de buscar certo programa ou montar sua

grade personalizada de programação).

97 Livre tradução. Trecho original: “New interfaces, through which the user’s interaction with the media

may come closer to the body, whereas the mutual adaptation of software and user leads to various

representational extensions of the Self.”

154

sentido de complexificar um desenho possível ao sistema de resposta social, sem,

necessariamente, pluralizá-lo.

5.3 O Twitter como dispositivo interacional: “papo” de audiência

Conforme exposto, para trabalhar o campo dos processos de socialização das

telenovelas, optei por um recorte que acredito ser sintomático de uma nova maneira de

“ver televisão” e “acompanhar telenovela”: a circulação de discursos na web. Entretanto,

antes de dar continuidade a possíveis cartografias desse espaço de tantas leituras, reitero

que a adoção desse recorte não oblitera a dimensão mais ampla das práticas recepcionais

e circulatórias, sendo que, ao falar das emergências interacionais deflagradas pelos

dispositivos digitais, espero não negligenciar a persistência de outros modos de interação

a partir da teledramaturgia.

Nesse sentido, ressalvo, particularmente, a ação menos sondável do ponto de vista

científico e metodológico das formas orais de reverberação teledramatúrgica, mais

especificamente, das interações face a face desencadeadas pelos folhetins. Afinal, é

justamente essa filiação à retórica oral – mediação que introduz tais produtos no campo

da cotidianidade – que vem permitindo ao melodrama se construir enquanto uma matriz

cultural que trafega sobre a secularidade dos tempos e que atravessa os mais diferentes

espaços, valendo-se, nessas travessias, das mais variadas mídias, formatos e tecnicidades

de mediação discursiva.

Ademais, a persistência dessa oralidade pode ser verificada em grande parte dos

regimes interacionais desenrolados no próprio campo da web, o que reforça a

expressividade desse modo de interagir em meio às práticas sociais contemporâneas,

inclusive aquelas que se desdobram a partir de sofisticados recursos tecnológicos e de

uma linguagem amplamente midiatizada. Esse apontamento, até certo ponto, parece

ratificar a moldagem híbrida que, em países como o Brasil, constitui dinâmicas

socioculturais, comunicativas e estéticas; torna-se, até mesmo, sugestivo de uma

hibridação entre uma cultura mundializada, centrada sobre um individualismo

competitivo articulado em torno do capital, e uma cultura do tipo bairrista, voltada para

manutenção de afetividades a partir de bases comunitárias. Apesar de creditar alguma

pertinência a essa abordagem (algumas interações online assemelham-se às formas de

sociabilidade “entre vizinhos”), acredito que o hibridismo que conjuga o oral ao

155

tecnológico não deve ser colocado como uma dicotomia entre “velho” e “novo”, sob o

risco de considerarmos as interações orais como um gesto de anacronismo oriundo de

uma matriz cultural residual; ao contrário, creio que a oralidade, por se constituir uma

mediação fundamental da linguagem e das formas de sociabilidade, representa uma

estrutura hegemônica que, ao dialogar com matrizes culturais emergentes (no caso,

tecnomediadas) revela sua centralidade a partir do movimento que a insere em diversos

contextos interativos.

No caso brasileiro, a recorrência de regimes conversacionais em meio ao difuso

universo da sociabilidade online revela características de um modelo interacional que

remete à praxiologia oral e, ainda, aos modos de relação que, diacronicamente, vêm

inscrevendo as diversas mídias eletrônicas no campo de experiências socioculturais

(conforme verificado através da oralidade constitutiva do rádio e naquela de tipo

secundário característica à televisão).

No que tange à circulação de discursos em torno de “Avenida Brasil”, esses

regimes conversacionais podem ser percebidos através de fatores como: (1) a simbiose

entre a assistência televisiva e a navegação no Twitter, tendo em vista a apropriação dessa

rede social como mecanismo interlocutório entre uma “audiência em rede”; (2) a

utilização dos espaços destinados a comentários como fórum de discussão (em

multiplataformas – sites de notícia, blogs, redes sociais); (3) a complexificação de um

sistema de resposta de social à telenovela no sentido de uma interação “entre audiência”,

o que sinaliza não apenas o tensionamento de uma gestão midiática bidirecional

(produção-recepção), mas também o surgimento de um espaço intenso de trocas sociais

(onde a sociedade “conversa” entre si).

No primeiro caso (centralidade do Twitter), me parece importante ressalvar que o

Facebook (rede social com maior número de usuários do Brasil98) desempenha um papel

igualmente relevante no que se refere à publicização de conteúdos teleficcionais, sendo

ambas plataformas importantes instrumentos de reverberação socioficcional. No ano de

98 De acordo com dados do próprio Facebook, em junho de 2013, a plataforma contava com 76 milhões de

brasileiros, o que faz do Brasil o segundo país do mundo com maior número de contas. Já o Twitter, de acordo

com pesquisa do portal “Statista”, possui 41,2 milhões de usuários, o que confere ao país, mais uma vez, o

segundo lugar na lista das “nações mais conectadas”. Por outro lado, no que se refere ao número de contas

ativas (aquelas que acessam à plataforma através de senha), o Brasil é o quinto país com o maior número

de internautas que, de fato, estão no Twitter.

Fontes: (1) <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/09/brasil-e-o-2-pais-com-mais-usuarios-que-entram-

diariamente-no-facebook.html>. (2) <http://pt.kioskea.net/faq/12500-twitter-atinge-o-meio-milhao-de-

usuarios-o-brasil-chega-na-segunda-posicao.>. (3) <http://www.otempo.com.br/interessa/brasil-

%C3%A9-o-quinto-pa%C3%ADs-com-maior-n%C3%BAmero-de-usu%C3%A1rios-ativos-no-twitter-

1.749425>.

156

2012, por exemplo, “Avenida Brasil” foi o assunto de maior trânsito no Facebook99,

sendo que, nesta rede, circularam os mais criativos memes e gifs elaborados a partir da

novela (formas ancoradas em dispositivos imagéticos e textuais geradores das

conversações orais). Além disso, tendo em vista seu elevado número de usuários (e,

consequentemente, sua composição etária e social mais ampla), o Facebook revelou-se

um chamariz para “Avenida”, no sentido de convocar internautas (a princípio,

desvinculados da trama) em direção aos seus principais acontecimentos.

Por outro lado, em função de um bem arranjado acoplamento entre o Twitter e a

televisão, destaco a funcionalidade da plataforma em promover dinâmicas

conversacionais entre a audiência durante a exibição do programa televisivo. No

microblog, essa conversação pode ser percebida a partir de fatores como: a indexação de

usuários em um mesmo tweet (“@internauta”) – estratégia que implica na convocação de

interagentes em direção a um discurso; a ferramenta “reply” (“responder”), que, como o

nome mais uma vez sugere, permite a cada tweet suscitar um espaço de conversação ao

redor de si; e, principalmente, as hashtags funcionam como links remissivos a espaços de

conversação sobre determinado tema, sendo que, nesse caso, os retornos dos internautas

evidenciam um intenso dialogismo entre tais interagentes (não necessariamente

alternados e recíprocos, mas tampouco completamente difusos).

Em vista dessa última observação, considero importante fazer uma distinção entre

modos diretos e indiretos de conversação no Twitter. No primeiro caso, os usuários são

instados a participar de um processo dialógico que se exprime a partir de chamadas

nominais (realizadas através da indexação de usuários), ou, ainda, pelo encadeamento de

discursos (respostas a um tweet inicial). Por outro lado, as conversações indiretas

relacionam-se ao intenso dialogismo das experiências digitais, isto é, às práticas de

mútua-afetação que, em vista do compartilhamento de um mesmo espaço (narrativo e

digital), acabam por relacionar as formas circulantes de discursividade. Nesse segundo

caso, ainda que as trocas de tweets não sejam, necessariamente, alternadas e recíprocas,

as raízes da comunicação conversacional aparecem nas pontes de linguagem que, a todo

tempo, fornecem outros atores e discursos às interlocuções. Além disso, a própria

presença do internauta em espaços interativos indica que o acesso ao Twitter origina-se

99 De acordo com dados da própria rede social. Disponível em:

http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/12/avenida-brasil-e-o-assunto-mais-comentado-no-facebook-

em-2012.html

157

de um desejo de interlocução, uma busca por alocutários que intensifiquem e renovem o

consumo teledramatúrgico. Afinal, conforme reza a máxima televisiva, “no Brasil, novela

é tão falada, quanto vista”.

Com relação ao segundo apontamento acerca da presença da oralidade na cultura

digital (a utilização dos espaços destinados à comentários como fóruns de discussão),

coloco que tal traço revelou-se bastante frequente em meio aos blogs e/ou sites

informativos que publicaram textos sobre a novela. Em certa medida, essa apropriação

dos internautas sinaliza alguns movimentos que, conforme já destacado, permitiram uma

reconfiguração dos espaços da mídia, no sentido do tensionamento das fronteiras que,

décadas atrás, verticalizavam os territórios informacionais a partir da legitimidade de seus

atores/agentes sociais. Em certa medida, a inserção de um campo destinado a

comentários, ainda que nem sempre disponibilizado pelas interfaces digitais, indica que

a abertura aos discursos recepcionais pode partir da própria engenharia do meios

(lembrando que algumas interfaces permitem ainda que os internautas comentem não só

o texto principal, mas também outros comentários, gerando janelas de conversação entre

os próprios usuários); por outro lado, no contexto das matérias jornalísticas e até mesmo

das publicações de blogueiros, é pouco comum que o autor do texto principal participe

dessa conversação, ou seja, respondendo diretamente à colocação de algum internauta.

Como terceiro apontamento, destaco que a presença de matrizes culturais

advindas da oralidade permite a estruturação de um sistema de resposta social baseado

em regimes de conversação. Não gostaria de sugerir que o caso brasileiro difere-se, em

termos qualitativos, da forma como outros países estruturam seus retornos midiáticos,

viabilizando, de forma mais ou menos consistente, a projeção de respostas sociais (não

disponho de dados que me permitam essa comparação). Por outro lado, tendo em vista o

contexto nacional, percebo-me lastreado por uma praxiologia interativa que, nos espaços

digitais, vem se estruturando não apenas a partir da relação internauta/mídia tradicional,

mas, particularmente, entre os web-usuários. Conforme colocado por Braga (2006), nosso

sistema de interação sobre a mídia gera um trabalho social dinâmico, através do qual os

discursos colocados em circulação (no Twitter e fora dele) interagem não apenas com os

estímulos produzidos pelas agências midiáticas tradicionais, mas ainda, à própria

“resposta” colocada em circulação por tal sistema. No microblog, esse processo é uma

marca fundante de suas práticas interacionais, uma vez que, no caso da novela, é

justamente a possibilidade de uma conversação entre a audiência que dinamiza as

postagens dos internautas.

158

Além disso, pontuo que a cadeia discursiva ensejada pelo sistema de resposta

social contempla a própria mídia, uma vez que as empresas dessa natureza colocam-se,

com inequívoca frequência, em uma posição de exterioridade frente a outras modalidades

de produção midiática (como acontece, por exemplo, com a crítica de jornal). Nesse

sentido, ressalto que muitos dos blogueiros mais ativos do Twitter (no que tange à

telenovela), como Nilson Xavier, Maurício Stycer e Fernando Oliveira são jornalistas de

grandes veículos de comunicação (no caso, do “UOL”, da “Folha de São Paulo” e do

“Terra”, respectivamente). Além disso, o número significativo de postagens originadas

de veículos de comunicação (cerca de 39% dos tweets codificados durante à exibição do

último capítulo) indica a presença atuante das organizações midiáticas nas redes sociais.

Trata-se, assim, de um conjunto de “falas sobre falas” (dos usuários sobre a mídia,

dos usuários sobre os usuários e da mídia sobre a mídia) que reforça a vocação do sistema

de resposta social como espaço público de conversação, no qual a recepção se articula

não somente em relação à oferta sistematizada pela televisão, mas a partir da própria

circulação de discursos na web. A conversão de fluxos circulatórios em discursos visíveis

e compartilhados em diferentes dispositivos interacionais representa um diferencial dos

atuais circuitos midiatizados, sendo essa prerrogativa sociotécnica um dos fundamentos

que caracteriza as respostas sociais enquanto sistema justamente por operacionalizar sua

natureza conversacional. Nos termos de Braga:

A sociedade se organiza para tratar a própria mídia, desenvolvendo

dispositivos sociais, com diferentes graus de institucionalização, que dão

consistência, perfil e continuidade a determinados modos de tratamento,

disponibilizando e fazendo circular esses modos no contexto social. A própria

interação com o produto circula, faz rever, gera processos interpretativos. (...)

As interações sociais sobre a mídia retroagem, portanto, sobre as interações

“diretas” com a mídia. (BRAGA, 2006, p.36, grifos do autor).

Acrescento ainda que a circulação de discursos em plataformas digitais evidencia

formas nem tão difusas e nem tão diferidas de interação social. Em uma rede como o

Twitter, por exemplo, é justamente a circulação concentrada que permite a geração de

uma espacialidade virtual na qual inúmeros usuários articulam-se em torno da telenovela,

o que determina o diferencial do microblog enquanto matriz de sociabilidade online.

Além disso, na medida em que essas plataformas sistematizam certas formas de

relacionamento entre internautas (conforme destacado, por intermédio de um protocolo

tecnointerativo), elas tendem a modalizar suas práticas interlocutórias, gerando não

somente um espaço de circulação de discursos, mas também uma forma de circular

159

discursos100; essa colocação me leva a suspeitar que, se do ponto de vista do espaço, o

Twitter aproxima diferentes localidades físicas (em nível até mesmo mundial), sob a ótica

dos atores sociais e seus lugares de fala, existe uma convergência que familiariza as

perspectivas mobilizadas discursivamente.

Essa produção “nem tão diferida”, sintomática de certa sincronia discursiva,

deriva-se de uma rearticulação da própria audiência, que passa a ser mediada não apenas

por competências de leitura, mas também por lógicas produtivas que demandam outras

energias e motricidades. Assim, a capacidade de participar, de forma mais ou menos

exitosa, do sistema de falas sobre a mídia acarreta o desenvolvimento de outras formas

de “ser audiência”. Nesse caso, os internautas desenvolvem habilidades interativas

condizentes às lógicas das redes digitais, tendo em vista o exercício de uma “performance

midiática” frente a outros internautas. Nas palavras de Braga (2006, p.40), “as interações

sociais sobre a mídia, para que tenham efeitos sociais e culturais abrangentes e

permeadores, devem desenvolver uma operacionalidade igualmente midiática”. Diante

desse processo, aclara-se uma situação de interação que, sem desconsiderar as mediações

do próximo (como aquelas relativas ao âmbito da casa), dialoga ainda com outros espaços,

no caso, marcados por diferentes fluxos e, portanto, demandadores de diferentes

competências interativas.

No caso do Twitter, a capacidade de agenciamento discursivo em meio à

plataforma digital, visando certa visibilidade, relaciona-se à capacidade do usuário de

dialogar com o dinamismo da atual cultura midiática. Em termos teledramatúrgicos, os

discursos mais reverberantes no microblog convergem para certa gramática produtiva,

uma vez que, em geral, os tweets mais populares são aqueles inspirados em determinados

valores, como a sagacidade, o originalidade e o humor; logo, dependendo do êxito do

internauta em se apropriar dessas lógicas produtivas, territórios discursivos vão sendo

tecidos ao redor de seus avatares. Esses territórios, por sua vez, implicam em lugares de

fala capazes de gerar distintos níveis de mobilização na audiência online, relacionando-

se, assim, à capacidade do interagente de, performaticamente, ganhar visibilidade na rede.

100 Sobre tal colocação, faço duas reservas: (1) não estou sugerindo um determinismo técnico absoluto ou

inescapável, mas, antes, refletindo acerca de um agenciamento simbólico; nesse sentido, não trago uma

questão de meios (no sentido instrumental dos dispositivos), mas uma problemática de midiatização (no

sentido de uma dispositivação/motivação social e cognitiva). (2) ao situar essas práticas interacionais como

nem tão difusas (porque concentradas em uma plataforma) e nem tão diferidas (porque contextualizadas

por um certo modo de produzir sentidos) não estou subtraindo tais qualidades ao sistema de resposta social

tomado em sua acepção ampla – conforme proposto por Braga (2006) –, mas sim apontando características

de certos dispositivos interacionais, como o Twitter.

160

No Twitter, essas territorialidades discursivas relacionam-se à forma, mais ou

menos competente, com que cada usuário articula, em torno de seus avatares, modos de

empoderamento midiático. Expressa-se, assim, um poder de agência sobre a rede, que

pode vir tanto da performance de certo internauta em meio à plataforma (famoso pelo

Twitter), quanto por “qualificadores” adquiridos a partir de outras experiências de

visibilidade (famoso no Twitter).

Mapa dos Usuários mais “retweetados” no último capítulo de “Avenida Brasil”. Destaque para a incidência

de perfis declaradamente humorísticos (“PiadaMaligna”, “kibeloco”, “zeze_empregada”, “dilmabr”).

Fonte: BORTOLON et al. (2013, s/p).101

Dentro desse contexto, percebi que as principais hashtags que fazem referência à

novela descortinavam espaços de circulação ficcional arranjados por relações de poder.

Em tal processo, alguns perfis assumiram uma posição central no que se refere à

construção das “narrativas da rede”, tendo em vista que alguns usuários comportavam-se

como “canalizadores do ‘burburinho’ da novela”, tornando-se, eles próprios, produtores

101 O gráfico foi retirado de pesquisa sobre os “retweets” de postagens vinculadas à “Avenida Brasil”.

Nesse trabalho, os autores apontam que a intensa reverberação da trama no microblog deu a ver “uma rede

coesa de opiniões similares”. Nessa direção, os pesquisadores colocam que: “seguindo a teia da formação

da rede ‘Avenida Brasil’, precisamente o #OiOiOiFinal, percebemos a presença de alguns perfis que

despertavam curiosidade. Esses atores sociais recebiam tamanha atenção, que acabaram assumindo um

papel central na narrativa da rede. Eles agiam como espécies de canalizadores do “burburinho” da trama da

novela e em suas intervenções produziam um remix das cenas e modos de ser, cativando assim uma grande

audiência do Twitter em torno de um discurso. (...) As hipóteses iniciais de que uma pequena comunidade

de perfis era responsável pela propagação de ideias, piadas, sentimentos e meme, posicionando-se de

maneiras centrais como formadores de uma “opinião pública” da rede sobre a trama, confirmou-se com os

grafos. Tem-se um grupo com uma reconhecida autoridade e influência sob a rede. As razões são diversas,

desde a reputação ao número de seguidores” (BORTOLON et al. 2013, s/p). Disponível em:

http://www.labic.net/cartografia-das-controversias/avenida-brasil-eu-assisti-voce-assistiu-e-a-rede-

estava-la/.

161

midiáticos comprometidos com suas respectivas audiências. (BORTOLON et al., 2013,

s/p). Nesse contexto, os líderes de opinião, em função do gerenciamento de certa

territorialidade discursiva, passam a produzir postagens ou conteúdos passíveis de

reverberação, e, para tanto, recorrem a estratégias comunicativas que, em certa medida,

assemelham-se à retórica midiática, pautadas sobre a promoção de humor e a utilização

de recursos fáticos e diretos. A atuação desses usuários no microblog é um dos fatores

que, a meu ver, justifica a sincronia da discursividade geral dos tweets, uma vez que, no

caso teledramatúrgico, a rede social articulou-se, nos termos de Paul Baran (apud

RECUERO, 2009) de forma mais descentralizada que distribuída.

Fonte: Diagrama das Redes de Paul Baran (Adaptado). Disponível em Recuero (2009, p.56).

A meu ver, o primeiro modelo remete a uma sociedade midiática forte,

caraterizada pela hegemonia e o controle dos meios de produção simbólica, enquanto o

último revela a utopia comunicativa de um diálogo entre iguais. No contexto da novela,

o Twitter pareceu oscilar entre tais representações (no sentido de, a todo tempo,

embaralhar e reconstituir relações de poder), tendendo, de forma sintética e

representativa, para o formato “descentralizado”. Tal dinâmica, por sua vez, resulta da

convergência interativa dos internautas em torno de certos territórios discursivos, o que

ratifica o infográfico sobre os retweets anteriormente compilado. Ainda que destituída da

162

ubiquidade da formatação centralizada, a lógica em evidência promove formas de

agenciamento que acabam por referenciar a conduta geral verificada na rede, pautando,

assim, formas de ver novela e alguns modos específicos de interacionalidade. Além disso,

conforme ressaltado pelo esquema a partir das linhas negritadas (na rede 2), a

descentralização da rede sugere ainda um mecanismo de convergência entre os próprios

núcleos de dispersão (no caso da minha análise, os usuários mais influentes da rede), o

que conforma níveis interativos que, em última instância, remetem a um modo mais ou

menos geral de se apropriar da plataforma.

Em consequência dessa convergência, não somente produção e recepção passam

a adotar processos e trocas comunicativas cada vez mais sincrônicas, mas também as

próprias mediações se rearticulam, uma vez que, conforme colocado, a tecnicidade

operante introduz novas rotinas de ritualização e de consumo teleficcional, assim como

as formas de sociabilidade ganham novas matrizes institucionais e outros contornos

espaciais. Por sua vez, esse processo sugere uma dobradura sobre a cartografia barberiana,

conforme exposto pelo esquema abaixo.

Dobradura sobre a cartografia barberiana (Adaptação). Original: MARTÌN-BARBERO, 2006a, p.16.

Do ponto de vista dos formatos industriais, nota-se que a aproximação do eixo

recepcional ao campo produtivo tensiona a relação entre as mediações da tecnicidade e

da ritualidade. Essa colocação deve-se ao fato de que, enquanto outrora a recepção

teledramatúrgica desenhava-se de forma mais livre, associada à assistência

descompromissada e às mediações do espaço doméstico, no contexto do Twitter, o

telespectador foi convocado a atuar como produtor de discursos, o que mobilizou o ato

de assistência em direção a outros contextos mediativos. Diante dessa passagem, as

ritualidades antes ligadas ao campo doméstico passaram a ser agenciadas por outros

163

meios de produção e não somente a televisão: no caso, a tecnicidade do Twitter que

permite o acompanhamento coletivo da novela – acessar a hashtags específicas para ler

comentários sobre a trama e, quiçá, publicar outros – imprime novas ritualidades aos

hábitos de consumo teledramatúrgico, tanto no sentido das espacialidades reais quanto

digitais. No primeiro caso, o gesto de ver novela em diferentes telas traduz diferentes

formas de presença/ausência do telespectador, podendo, assim, implicar em um

extensionamento dos espaços reais, que passam a dialogar com outros fluxos de

significação. Ademais, o espaço digital, territorializado a partir de hashtags e

competências dos usuários, introduz novas possibilidades sociotécnicas de interação, o

que gera, no microblog, um hábito de discursivização que, em si, propõe uma ritualidade.

No que tange às matrizes culturais, o movimento de sincronização do campo

produtivo-receptivo aproxima as dinâmicas de sociabilidade e de institucionalidade.

Nesse caso, a dobradura tensiona o juízo de que as redes sociais, ao permitir a produção

de discursos “pela” e “entre” a audiência, estaria gerando conteúdos desvinculados de

uma agência midiática. Ao contrário desse pressuposto, o espaço digital revela-se

marcado por dinâmicas de poder que tornam suas relações de sociabilidade tão complexas

quanto aquelas verificadas nos espaço cotidianos. Nessa direção, a reverberação da

telenovela no Twitter implica em formas específicas de sociabilidade – a “gramática

tácita” que diferencia aqueles que exploram as potencialidades da plataforma (e, assim,

são incorporados nas conversações), em relação àqueles que ficam nas margens dessa

espacialidade, possuindo poucos poderes de agenciá-la a partir de seus fluxos mais

próprios. Por fim, essa reflexão corrobora o argumento acerca da realidade constitutiva

dos espaços virtuais, pois, assim como o espaço concreto modaliza nossa conduta

mediante uma ação cotidiana (a casa, a rua, o trabalho, a igreja...), nos ambientes digitais,

cada plataforma, rede social, site evoca suas possibilidades de produção, seus modos de

recepção e apropriação, suas performances, suas territorialidades, enfim, suas formas

próprias de interação.

5.5 Discursividades online: interações em 140 caracteres

Conforme exposto nas notas metodológicas, minhas incursões netnográficas

contavam com duas técnicas de monitoramento online: a observação e a codificação das

postagens dos internautas no Twitter e o rastreamento de informações que circulavam

164

sobre “Avenida Brasil” na web (com destaque para matérias de jornal, textos produzidos

por blogueiros, conteúdos gerados por usuários e comentários dispersos sobre a trama).

A partir da primeira iniciativa, pude constatar algumas características que conformaram

os processos interacionais sobre a novela no microblog, entre os quais, retomo: (1) a

utilização da plataforma como espaço de conversação entre membros da audiência, na

maior parte das vezes, desconhecidos entre si; (2) o estabelecimento de assimetrias

comunicativas entre os agentes participantes do processo, tendo em vista a diferença de

visibilidade lograda por cada território discursivo; (3) a circulação extensiva de postagens

de caráter humorístico; (4) a baixa incidência de discursos críticos vinculados à trama de

“Avenida”, isto é, uma minoridade absoluta de tweets que avaliasse a novela para além

de juízos diegéticos.

Sobre o processo de levantamento dos dados, efetuei um mapeamento dos tweets

que, durante a exibição do folhetim, indexavam-se a partir das hashtags #AvenidaBrasil

e #Oioioi. Em um primeiro momento, criei minha conta no microblog e passei a

acompanhar a telenovela também pela rede, avaliando, desde a primeira incursão, as

intencionalidades movidas pelos tweets. Essa etapa (codificação aberta) me forneceu um

panorama das motivações que levavam os internautas a visibilizarem suas postagens,

além de indicar, a partir de uma análise comparativa, as variações entre essas

discursividades ao longo da exibição da novela. Reitero que o enquadramento de um tweet

não é exclusivo a uma categoria, tendo em vista que múltiplas estratégias comunicativas

foram (e são) acionadas para conferir persuasividade às micromensagens da rede. As

categorias codificadas foram:

@ Convocatório: espécie de tweet bastante expressivo em “Avenida Brasil”. Trata-

se de discursos que visam convocar os internautas a acompanharem a telenovela, através

de chamadas fáticas (“não perca”, “vem gente!”), de anúncios sobre o que será

televisionado (“hoje em ‘Avenida Brasil’”) ou comentários expressivos sobre a

repercussão do folhetim.

@ Crítica/Elogio: grupo de tweets de teor opinativo, através dos quais os internautas

expressavam sentimentos positivos ou negativos em relação à trama. Não faço

diferenciações entre essas categorias (crítica e elogio), tendo em vista que, no Twitter,

essas postagens confundiam-se enquanto exercícios de uma recepção entusiasmada (a

crítica a um núcleo de personagens revelava a preferência por outros; o elogio à novela

de João Emanuel Carneiro destacava a falta de criatividade de outras tramas...). Além

165

disso, o Twitter não se apresentou como espaço preferencial para circulação de formas

mais apuradas de crítica teledramatúrgica, tendo em vista que as postagens verificadas

nesse espaço foram raramente tecidas a partir de perspectivas conjunturais, isto é, aquelas

que inserem o discurso da novela em diferentes contextos para, daí, imprimirem uma

carga reflexiva à trama.

@ Curiosidade: tweets do tipo “Você sabia?”, “‘Avenida Brasil’ ganha prêmios”,

“Atores se reúnem para assistir capítulo”, além de casos de bastidores e informações sobre

o elenco.

@ Institucional: tweets oficiais postados pela Rede Globo (usuários @rede_globo e

@OficialAvBrasil).

@ Humor: postagens cômicas sobre a telenovela expressas através de comentários

ou por conteúdos gerados por usuários.

@ Narrativos: tweets sobre o enredo de “Avenida Brasil”, ocupadas em antecipar

os eventos da trama (spoilers) ou comentar capítulos antecedentes.

@ Veículos: postagens de veículos de comunicação (sites de informação e/ou

entretenimento, blogs filiados a empresas de mídia).

Quantitativamente, as amostras de tweets coletadas em cada da fase da pesquisa

(estreia, capítulo 100 e desfecho) apontaram a seguinte variação entre cada tipo de

discursividade:

Resultado das variações dos tweets. Cada amostra foi composta por 300 postagens, sendo que as categorias

não foram exclusivas. Fonte: Pesquisa do autor.

166

Desses resultados, traços os seguintes apontamentos:

(1) O crescimento dos tweets convocatórios indica uma dimensão importante do

fenômeno “Avenida Brasil” – seu sucesso junto aos telespectadores e o papel

desempenhado pela trama no que se refere à proposição de vínculos interativos

entre a audiência. Mais do que uma boa estória acompanhada pela TV, “Avenida”

tornou-se, assim, um modo de agregar internautas em torno de um mesmo

universo ficcional. Nesse sentido, os tweets convocatórios, bem como a presença

constante das hashtags da novela nos TT’s (fato mencionado com orgulho pelos

interagentes), sinalizam o efeito de comunidade suscitado por essas interações.

Afinal, a apropriação do Twitter em vista da circulação teledramatúrgica promove

um sentimento de estar junto que remete às comunidades de pertencimento

ensejadas pelas primeiras mídias eletrônicas. Diante de um mundo “cada vez mais

entregue a si”102, o convite à interação expresso através de um tweet convocatório

(“Vai começar #AvenidaBrasil”) sintetiza um conjunto complexo de

intencionalidades e uma forma de espacializar diferentes sujeitos em torno de um

mesmo imaginário ficcional. Tendo em vista o difuso contexto midiático da

contemporaneidade, no qual o consumo gera, a todo tempo, territórios de

diferença e proximidade, o gesto de convocar os internautas a dividir uma

teletopia soa como uma aposta sobre o segundo desses movimentos.

(2) A Rede Globo investiu na produção de tweets no início da trama, mais do que em

sua fase final, quando o folhetim já havia se tornado um grande sucesso. Conforme

colocado por Pucci et al. (2013) talvez esse êxito também explique o motivo da

emissora não ter proposto extensionamentos transmídias à trama de Nina e

Carminha, uma vez que, em ambos os casos, sugere-se certa autossuficiência da

narrativa televisiva em arregimentar e envolver a audiência. Do ponto de vista da

performance da emissora no microblog, é visível certa exterioridade da empresa

enquanto partícipe dessa conversação social. Na época de “Avenida”, as postagens

oficiais da Rede Globo eram produzidas de forma aparentemente mecânica, a

partir de modelos de textos, e, mais raramente, instigadas por uma comicidade

politicamente correta. Apesar de um índice considerável de retweets (a emissora

é seguida por um grande número de usuários), as interações desencadeadas por

102 Tomo a expressão de empréstimo do teórico francês Michel Maffesoli, presente no texto “A Ética da

Estética”, parte integrante do livro “O Mistério da Conjunção: Ensaios sobre comunicação, corpo e

sociabilidade” (Porto Alegre: Sulina, 2005).

167

tais postagens mantêm certa marginalidade frente às dinâmicas que, de fato,

mobilizam os internautas no microblog.

(3) O Twitter foi amplamente utilizado como plataforma para divulgação de

informações e/ou conteúdos situados em outros espaços digitais. Essa inferência

decorre do crescimento substancial das postagens com links103 (isto é, aquelas que

remetem a outros sites ou anexam conteúdos extras), e também da alta incidência

de tweets originados de veículos de comunicação ou corporativos. Com relação a

esse grupo de postagens, é importante reconhecer que sua presença no microblog

sugere que as territorialidades discursivas da rede muitas vezes derivam de

dinâmicas que lhe antecedem: as informações divulgadas por um jornal, por

exemplo, repercutem de forma diferente de acordo com o veículo, assim como o

perfil oficial de uma celebridade torna-se prontamente centro das atenções de

outros internautas. Esses fatores sugerem que o espaço da rede social, apesar de

conferir novas perspectivas interacionais à audiência, não deixa de traduzir os

lugares de fala legitimados por experiências extraweb.

(4) Na fase final do folhetim, os discursos opinativos atravessaram quase 80% das

postagens mapeadas, sendo que, desse montante, 70% (um total de 163 tweets)

traziam elogios, quase sempre calorosos, à novela de João Emanuel Carneiro.

Com relação a esse apontamento, alguns fatores devem, de antemão, ser

colocados: ainda que os discursos reflexivos não tenham caracterizado esses

fluxos de circulação, em outra medida, é importante considerar que os links

anexados às mensagens de poucos caracteres descentralizavam a plataforma,

remetendo os internautas a outras espacialidades digitais, quiçá, provedoras de

discussões dotadas de engajamento mais consistente. Outro fator a ser considerado

sobre esse quadro de “animosidade recepcional” é a trama em questão: o sucesso

de “Avenida”, oriundo de competências produtivas bem executadas, vinculou a

audiência a ponto de transformar o telespectador em fã, sobretudo aquele que se

propõe a acompanhar a novela no Twitter, o que, de fato, implica em formas de

recepção mais voltadas ao âmbito do sensível do que para formulações de ordem

racional. Além disso, é importante considerar que “Avenida Brasil” não abordou

103 De acordo com resultados obtidos através da codificação dos tweets, a terceira amostra (coletada no

último capítulo) apresentou um aumento de 43% dos tweets com link em relação aos primeiros resultados

(estreia).

168

nenhuma forma de merchandising social e não tematizou questões polêmicas,

optando, ao contrário, por uma narrativa francamente fabulativa, compromissada

com sua lógica interna e voltada para a promoção do entretenimento104. Por fim,

conforme explorado adiante, o humor movimentado ao redor da trama, ainda que

não seja movido por objetivos reflexivos, não deixa de transparecer certa

criticidade em relação aos modos de teleficcionalização.

(5) Por fim, destaco a “inflação de conteúdo” verificada sobre as postagens dos

internautas no decorrer das três etapas de codificação, que, de forma geral,

passaram a acionar mais de uma motivação em um mesmo tweet. Esse processo

de justapor intencionalidades em um mesmo discurso sinaliza engajamento com a

trama (uso de elementos ficcionais como repertório comunicante), assim como

evidencia uma intimidade com o espaço do Twitter e com as formas de interação

que lhe são habituais (no sentido das competências interativas acionadas por sua

gramática).

Esses apontamentos demonstram, portanto, como os elementos ficcionais

colocados em circulação a partir da TV são apropriados como capital de socialização

entre internautas. O jogo das discursividades no Twitter sinaliza que a cultura de mídias

e do entretenimento movimenta-se a partir de gramáticas cada vez mais complexas (ainda

que pouco plurais), sendo o êxito da circulação online de discursos fortemente moldado

por competências interativas específicas. Essa complexificação, por sua vez, relaciona-se

ao fato de que, no contexto da midiatização, o espaço da audiência vem sofrendo uma

série de mudanças, tanto pela revisão do estatuto do receptor (realterado pela

expressividade crescente da produção recepcional), quanto pela amplificação do universo

simbólico-midiático e das formas sociais de “estar junto”.

Nesse sentido, minha experiência de incursão netnográfica no Twitter me

provocou tensionamentos no que se refere à análise dos fenômenos interacionais

104 Diante de uma trama ensimesmada, na qual os mundos montados se pretendem suspensos, os internautas

parecem acompanhar tal deslocamento, ocupando, também eles, os “tapetes volantes” dessa teletopia. Por

outro lado, as novelas que se afirmam enquanto produto da realidade desencadeiam outras formas de

criticidade, conforme constatado a partir das tramas que sucederam “Avenida Brasil” e que movimentaram

respostas sociais bastante diferentes no Twitter. Nas novelas em questão – “Salve Jorge” de Glória Perez e

“Amor à vida” de Walcyr Carrasco – os internautas passaram a apontar, de forma bem humorada, os desvios

do “real” colocados em jogo por cada fabulação: no primeiro caso, a perseguição de “falhas” na trama teve

tamanha repercussão que a autora – a novelista mais atuante no microblog – utilizou a rede social para se

lamentar por aqueles que “não sabem voar”. Já Walcyr Carrasco, na direção contrária de João Emanuel

Carneiro, adotou tantos merchandising sociais (algo em torno de 30 temas!) que as conversações surgiram

em torno dessas representações, não raro, abordadas com superficialidade pelo novelista.

169

desenrolados na plataforma: por um lado, o Twitter permite e testemunha um processo

incrivelmente novo, marcado por uma energia criativa que envolve e impressiona. Esse

processo relaciona-se ao desenvolvimento, no âmbito da audiência, de competências

interativas cada vez mais sofisticadas, tanto no que se refere à produção de conteúdos

criativos quanto à postagem de comentários sagazes. Em “Avenida”, esse espaço de

recepção/produção coletivizada trouxe outras texturas para a trama televisionada, no

sentido de oferecer diferentes conotações aos acontecimentos que estavam sendo

exibidos. “Me serve vadia”, por exemplo, apesar de sua boa colocação cênico-autoral,

adquiriu graça pública a partir das apropriações que os internautas fizeram reverberar pela

web, o que transformou o bordão em um instrumento de humor amplamente dividido

entre os interagentes. Os tweets a seguir corroboram a apropriação bem humorada da

trama de João Emanuel Carneiro:

105

105 Os tweets de “Irmã Chirley” e “Cida Faxineira” produzem uma desconfiança com relação à origem do

usuário. Nesses casos, não se trata de uma religiosa e de uma empregada doméstica, perfis incomuns no

170

Diante desse cenário, coloco que, através do Twitter e de outras plataformas

digitais, os telespectadores/internautas vêm desenvolvendo uma forma de interação que

os aproxima da matriz televisiva, tendo em vista a “reinvenção” conferida ao veículo a

partir da midiamorfose perante à rede social (novos modos de recepção e de interação

entre os espectadores). Por outro lado, a espacialização da audiência em lugares outros –

no caso, as plataformas digitais – instila novas formas de distanciamento frente às

narrativas televisionadas, perceptíveis, particularmente, a partir das modulações

humorísticas. Assim, ainda que não tenha avaliado os tweets cômicos como

discursividades críticas, acredito que o uso do Twitter para esse fim diagnostica um perfil

de audiência cuja criatividade não pode ser desconsidera enquanto gesto social; afinal, o

pensamento contestativo e atuante não é somente aquele que se projeta enquanto olhar

clínico sobre uma conjuntura social, segundo um excedente de visão teoricamente

esclarecedor, mas também uma prática “relacionada com seu ponto de operacionalidade

na sociedade”. (BRAGA, 2008, p.51, grifos do autor).

Em outra medida, o contra-argumento que tensiona minha avaliação sobre as

interações em destaque refere-se à dimensão crítico-interpretativa do sistema de resposta

social, cuja análise ultrapassa as marcas de criatividade que dinamizam as indústrias

culturais da contemporaneidade. Em alguma medida, as intensidades que caracterizam

nossas práticas interacionais, tanto aquelas aqui descritas e analisadas, quanto outras

desenroladas cotidianamente, encontram-se atravessadas por uma cultura do

entretenimento que, ao contrário do previsto por Lopes (2009), pouco se vale da novela

como recurso de cidadania. Sem querer cair no risco de efetuar neste espaço uma reflexão

que seja crítica por conveniência – como se a academia fosse movida apenas à

negatividades –, reitero a importância desempenhada pelo “estranhamento” no contexto

midiático contemporâneo, sobretudo diante modos aparentemente tão harmônicos e

“Divinos” de relacionamento entre os produtos de mídia e as complexidades da vida

social.

Nessa direção, avalio que os gestos de criticidade podem ocupar um lugar legítimo

sobre os modos de ver telenovela, operando, assim, densas e necessárias mediações às

teletopias. Tal possibilidade torna-se ainda mais imprescindível diante de um cenário no

qual, não raramente, o espaço representacional dos folhetins enseja narrativas constituídas

por uma moralidade monofônica e maniqueísta, pouco sensível às minorias e as suas

Twitter, ao menos no tocante às conversações sobre a telenovela. Essa inferência pode ser feita a partir de

outras postagens que explicitam o avatar como um perfil humorístico.

171

questões mais legítimas. Nessa direção, uma pergunta que venho me fazendo (ainda sem

bons direcionamentos) relaciona-se às formas de criticidade que poderiam ser avaliadas

como “socialmente saudáveis e construtivas”. Afinal, qual é a linha que separa a

“interpretação” da “crítica”, e que, assim, transforma os juízos de valor em

posicionamentos socialmente reflexivos?

Nesse sentido, coloco que, enquanto no Twitter aclarava-se uma convergência de

discursos que pouco contestava “Avenida Brasil”, em outros espaços, as divergências

eram alimentadas, sobretudo, em função da relação dos internautas frente à TV. Essa

diferença deu a ver um grupos expressivo de discursos anti-televisivos, no caso,

caracterizados por posturas combativas e nervosas que denunciavam o suposto lixo

cultural expresso através de imagens televisivas. Tais discursividades encontravam-se,

com mais frequência, em portais de notícias, isto é, em espaços onde o oferta de

informações possui uma conformação diferente daquela percebida no Twitter ou em blogs

de TV106: afinal, no primeiro caso, o internauta, ao navegar em seu jornal online, pode se

sentir convocado a expressar um juízo acerca de uma matéria televisiva, mesmo sem

possuir conhecimento sobre o que está sendo pautado. Já nos outros espaços, a baixa

incidência de perspectivas “telefóbicas” pode ser explicada a partir da personalização das

redes sociais (a circulação de discursos varia de acordo com o perfil dos contatos

vinculados ao usuário) e, ainda, pela demanda por interação verificada nesses espaços (o

internauta possui interesse em telenovelas e, por isso, aciona determinadas hashtags ou

acessa sites específicos sobre o tema).

Assim, de forma bastante recorrente, os discursos críticos que circulavam fora do

Twitter moviam-se por perspectivas que revelavam uma completa exterioridade

teledramatúrgica por parte do internauta. Nesse sentido, tomando como pressuposto a

colocação de Braga sobre o exercício crítico como gesto social – um “tensionar de dentro”

–, não posso deixar de me indispor contra alguns posicionamentos de natureza utilitarista

(“Por que as pessoas ainda assistem novela?”, “É por isso que o Brasil não vai pra frente”),

tendo em vista que tais posições refletem um criticismo que oblitera a dimensão

106 Os blogs de TV tendem a apresentar discursividades mais ponderadas, tanto do ponto de vista dos

blogueiros, quanto dos usuários. Nesses sites, o espaço de maior fôlego permite aos jornalistas e críticos

construírem textos elaborados, quase sempre calcados em um repertório televisivo e no conhecimento do

veículos e suas especificidades. Por outro lado, sem desconsiderar o bom trabalho de alguns profissionais

que atuam no setor, avalio que, de forma geral, o campo da crítica televisiva ainda carece de vozes

consistentes e, sobretudo, problematizadoras. A meu ver, esse déficit de interlocutores especializados é

reflexo de aspectos conjunturais mais amplos, inclusive acadêmicos, uma vez a TV, apesar de toda sua

expressividade sociocultural e comunicativa, segue ocupando um papel marginal no que se refere às

abordagens científicas. No Brasil, a televisão é muito vista, mas ainda pouco pensada.

172

apropriativa dos meios, inspirando-se, com inequívoca frequência, em uma epistemologia

popular do tipo informacionalista (“A Globo manipula país”). Não creio, portanto, que a

aversão à TV seja a crítica que carecemos, afinal, tal intencionalidade promove uma

reflexão que tende, com impressionante facilidade, a formas inaceitáveis de preconceito

cultural (“um país sem TV é primeiro mundo”; “agora que o econômico cresce, o cultural

devia acompanhar”; “a classe C está culturalmente estagnada e por isso precisa de

educação e não de novela”).

Além disso, os espaços digitais de circulação, ao agregar determinadas formas de

discursividade e, sobretudo, de criticidade107, obstaculizam uma possível interlocução

entre diferentes perspectivas sociais e subjetivas, o que, mais uma vez, reitera como

nossas interações crescem em termos dialógicos, mas sem qualquer avanço no que se

refira à polifonia desses debates. O mesmo apontamento também se aplica ao Twitter,

cuja baixa criticidade das postagens (expressa quase exclusivamente em termos

diegéticos) contribui para um quadro de monofonia interativa no qual a complexidade

dialógica da rede não garante um processo comunicativo atravessado por uma

heterogeneidade de vozes/perspectivas.

Nesse sentido, pontuo que a atual circularidade midiática amplia a agência dos

receptores em meio a processos simbólicos ainda verticais, embora cada vez mais

dinâmicos. As condições produtivas desse contexto não equiparam produtores e

receptores a ponto de torná-los indistintos, afinal, a crescente midiatização social não

desestruturou o oligopólio das tradicionais empresas de comunicação do país, sendo o

campo televisivo particularmente dominado pelos mesmos (e poucos) grupos que

possuem condições tecno-legais de radiodifusão. Logo, ainda que atualidade permita uma

mídia menos onipotente (no sentido da ampla prescrição de imaginários ficcionais), por

outro, a monofonia do entretenimento televisivo, da TV à web, ratifica a ambivalência

gerada pelos processos de midiatização social: afinal, a contemporaneidade não minou a

lógica dos “grandes meios”, ao contrário, talvez sejam os processos amplamente

midiatizados que permitam a persistência, cada vez mais sutil e incisiva, de certas

107 Destaco que, no que pude observar, uma vez instaurada uma dinâmica coletiva de uso sobre determinado

espaço virtual, torna-se um tanto inviável “navegar” na direção contrária (no sentido de que tal esforço

acaba alcançando pouca visibilidade). Assim, da mesma forma que o humor e o elogio dominam os

discursos recepcionais verificados no Twitter, nos portais de notícia e nos sites de entretenimento, havia

certa oscilação entre reportagens que instigavam comentários positivos e outras que desencadeavam uma

torrente de críticas. Ainda que desprovido de qualquer rigor metodológico para efetuar tal afirmação,

registro, como “impressão de campo”, que o ânimo de um comentário parecia atrair outro semelhante, o

que transformava esses espaços de interação em espaços de convergência de opinião pública.

173

hegemonias. Afinal, a mesma engenharia sociotécnica que permite o tensionamento do

monopólio teleficcional das emissoras parece sinalizar como as estruturas de poder (não

somente midiáticas) encontram-se naturalizadas no interior de cada agente de mídia.

Diante dessa conjuntura, a expressividade da produção recepcional representa

menos uma democratização dos media e mais uma forma de rearticular as relações entre

produtores e receptores midiáticos, no caso, redefinindo a oferta midiática tradicional a

partir de processos intensos e diferenciados de “criação de audiências”. Por essa ótica, as

interações midiatizadas imbricam-se a uma “proposta” de globalização que tende a parear

os sujeitos em lugares de “falsa diferença” (estabelecido em torno de territórios

simbólicos representados por produtos culturais, marcas, celebridades, avatares,

hashtags), mas que acaba por culturalizar o mundo em uma mesma direção. Mediante

tais condições, a midiatização do entretenimento acaba por reforçar uma cultura de

recepção pouco afeita a processos crítico-reflexivos, o que, infelizmente, ainda faz da

imagem e da ficção um recurso menor diante das contingências que seguem atrelando o

uso social das mídias às habituais cartografias do poder.

174

#OIOIOIFINAL QUANDO A NOVELA NÂO ACABA

Tensão no campo: pênalti cometido sobre Adaulto-chupetinha. Desafiando a má

fama, o próprio se habilita a bater. E Marca. É Gol! Gol e vitória do “Divino Futebol

Clube”. Conquista suada e comemorada pela torcida em fervo, uma arquibancada repleta

de divinenses, desde os nascidos e criados até os compulsoriamente naturalizados.

Também não é para menos: o acontecimento marcou a ascensão do time da periferia à

chamada “elite” do futebol brasileiro, encerrando, nesse trânsito final, a trajetória de

sucesso da telenovela “Avenida Brasil”.

Findo o jogo, a sensação de vitória não pertencia somente aos emergentes do

subúrbio, sejam eles da nova ou velha classe de futebolistas, mas também à equipe de

produção da novela, responsável por levar ao ar uma das tramas mais interessantes dos

últimos anos. Mais do que isso, o espetáculo da partida contava com uma audiência de

milhões de espectadores, brasileiros de todos os lugares do país intensamente

sintonizados em um mesmo grito de “gol”.

Diante desse contexto de mobilização, e ainda, em vista dessa pesquisa, fui

assaltado por uma questão: quantos espacialidades – domésticas, públicas, digitais –

articularam-se em torno da exibição derradeira dessa novela de sucesso? Quantos sujeitos,

de fato, estavam por trás dos “milhões de telespectadores” que acompanharam os últimos

atos do conflito entre Nina e Carminha?

A meu ver, os institutos de pesquisa não dão conta dessa quantificação, tanto que

os mais renomados não costumam mensuram a audiência através de números absolutos.

De qualquer forma, estima-se que o último capítulo tenha alcançado um público de 46

milhões de pessoas108. Se for verdade, no dia 19 de outubro de dois anos atrás, uma quarto

do país colocou-se diante da televisão para ver novela. Trabalhando com essa hipótese de

audiência, volto a indagar sobre quantos sujeitos e espacialidades mobilizaram-se em

função de “Avenida”, essa ficção não fortuitamente chamada “Brasil”. Afinal, ainda que

poucos espaços cotidianos atinjam representavidade e visibilidade na televisão, no outro

108 Disponível em: <http://www.portugues.rfi.fr/geral/20140117-sucesso-da-tv-brasileira-avenida-brasil-

estreia-em-canal-frances>.

175

lado das telas, nossa mídia televisiva faz convergir uma rede invisível de lugares

antenados à teleficção, tendo em vista um país onde a TV alcançou 99% do seu território,

sendo que 97,2% dos domicílios dispõem de aparelhos dessa natureza109.

Além disso, as análises sobre “Avenida Brasil” apontaram a emergência de outros

espaços, nos quais novas dinâmicas são articuladas em torno da TV. Da “periferia-pop”

às novas interacionalidades digitais, a novela e seus modos de reverberação imprimiram

diferentes texturas às experiências teletópicas, mostrando que essa “Avenida” de entre

lugares, ao percorrer múltiplos espaços, leva consigo e deixa por onde vai porções

sincréticas de tempo. Que seja da zona sul à zona norte; da literacia digital às mídias de

maior passado; ou ainda, do ritmo e das intertextualidades globais aos modos costumeiros

de fazer novela: “Avenida Brasil” foi uma novela que se fez entre espaços – ou melhor,

que entre espaços, fez-se novela.

Mediante processos de expansão dos individualismos de toda ordem, responsáveis

por relações de volatilidade e de engajamentos passageiros, eis que “o que se imagina

ultrapassado e que continua a irrigar em profundidade o corpo social, renasce, como fênix,

das cinzas, e serve como terreno fértil para novas formas explícitas de estar-junto”

(MAFFESOLI, 2005, p.78). Nesses termos, “Avenida Brasil”, enquanto narrativa de

ampla circulação, talvez tenha apontado um renascimento, o que só saberemos no curso

de um futuro ainda distante. Por outro lado, o que a atualidade já nos informa é que a

potência da telenovela, hoje e em todos os tempos, reside na vinculação, na promoção de

formas de estar junto, na valia interativa, enfim, na espacialização de sujeitos e sociedade

em torno de uma mesma teletopia. Diante do superavitário mercado ficcional da

contemporaneidade – no qual os suportes se multiplicam e a intensidade da oferta sufoca

as possibilidades do consumo –, uma telenovela desponta com a força midiática típica aos

regimes massivos de décadas atrás, trazendo à superfície as irrigações subterrâneas do

corpo social, isto é, a potência comunitarizante que constitui a especificidade desse

gênero enquanto produção cultural.

Sobre o processo agregativo articulado em torno de “Avenida Brasil”, minhas

reflexões finais apontam duas direções, que, mesmo possuindo energias contrárias, não

constituem um paradoxo, mas diferentes lugares reflexivos entre os quais almejo fluir a

partir das vias sugeridas.

109 FONTE: IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Disponível em:

<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/pesquisas/pesquisa_resultados.php?id_pesquisa=40>.

176

A primeira leitura refere-se à espacialização da novela em torno do contexto da

periferia, assim como à promoção de um novo hábito de classe a partir de velhas fórmulas

de projeção popular. Ainda que pesem todas as questões já levantadas quanto ao falso

classicismo da narrativa de “Avenida”, não poderia encerrar este percurso sem aludir,

ainda que de passagem, à comunidade do “Divino”, esse lugar ficcional no qual todas as

periferias são “convocadas a cumprir sua perfeição simbólica”. Os passos do “Divino”

eram mesmo “ensaiadíssimos”, como escreveu o colunista Pedro Sanchez, mas havia por

trás dessa representação uma forma de vinculação social e intersubjetiva que pareceu

traduzir, no plano da narrativa, uma comunidade de afeto. Essa forma de estar junto –

modo de percorrer espaços e de gerar fronteiras fluidas entre “público” e “privado” –

evidencia e interliga os mundos da rua e da casa, ou, ainda, o falso espaço das fachadas

cenográficas e o território íntimo das subjetividades em percurso. Como coloca Luiz

Eduardo Soares (2009), em prefácio ao excelente relato biográfico “Guia Afetivo da

Periferia”, trata-se de um movimento que humaniza a exterioridade do mundo e que

oferece o conforto do “lugar” a cotidianos cada vez mais desengajados.

A linha do destino-narrativa avança e recua, nos afasta e logo nos devolve à

cena doméstica, tão ligada à rua, tão desprovida de privacidade

individualizante, mas, ainda sim, tão acolhedora e essencial ao indivíduo que

cresce em solidão e babélica sociabilidade. (SOARES, 2009, p.17).

Sinto que encontro nesse ponto um daqueles vértices imateriais que fazem a

novela circular entre espaços. No caso, a periferia acolhedora ante o caos do cotidiano

manifestou-se não somente nos laços solidários que perfizeram o “Divino”, mas também,

estou certo disso, nas múltiplas formas de sociabilidade ensejadas pela novela, inclusive

aquelas desenvolvidas nas redes digitais. Releia a citação acima e reflita se os processos

interacionais que busquei dar visibilidade não atendem à descrição de Luiz Eduardo

Soares. A meu ver, assistir novela em meio ao Twitter é justamente uma forma de

intercambiar, de maneira segura e prazerosa, o lugar privado da casa ao espaço do público

da rede, o que gera processos “desprovidos de privacidade individualizante”, mas, ainda

sim, “acolhedores e essenciais”.

Para Maffesoli (2005, p.81), interações dessa natureza são sintomáticas de um

situacionismo geral, “um tempo em que, segundo as circunstâncias e as oportunidades,

organizam-se grupos efêmeros, sem a obsessão da continuidade (...), mas interessados na

qualidade da participação”. Essa forma afetiva de interagir, de socializar e de

comunitarizar passa, assim, a desempenhar um papel estruturante no que se refere aos

177

modos contemporâneos de vinculação, dinâmica que traz novas agências sociais e que,

no caso da novela, reconfigura os modos de engajamento narrativo e de composição das

audiências.

Essas convergências, a meu ver, relacionam-se ainda à apropriação dos espaços

digitais de interação para fins dialógicos. Afinal, o que é o diálogo senão uma ponte que

me conecta a um “outro”, uma forma de criar espaços entre dois ou mais sujeitos, e que,

portanto, redimensiona as fronteiras privativas do “eu” em face de diferentes exotopias?

Nessa direção, acredito que a busca por diálogo nas redes sociais é um recurso contra a

solidão e uma tentativa de reconstituição dos vínculos atávicos da co-presença. Apesar

das lógicas próprias que distinguem cada tipo de interação, nossa cultura de convergência

e de interações midiatizadas vem buscando promover experiências interativas que

sincronizem tempos e espaços cada vez mais fragmentados, reconstituindo, via meios, o

elo desgastado da vivência corpórea e local. Enfim, uma tentativa de “ser ‘Divino’”.

Ainda com relação ao processo de vinculação gerado por “Avenida”, exponho

outra camada semiológica aplicada ao fenômeno. Nesse caso, busco reconhecer não

apenas os modos como a teleficção enreda-se, de forma horizontalizante, a um sem

número de “mundos da vida”, mas, ainda, sua dimensão vertical, marcada por diferentes

formas e níveis de agência. No sentido dessa reflexão, coloco que a intensificação dos

fluxos imputados pela crescente midiatização social torna tal criticismo fundamental ao

exercício de cartografias atentas às novas disposições de poder. Afinal, as tendências da

midiatização apontadas por Jansson (2013, p.280) – a mobilidade midiatizada, a

convergência tecnológica, a interatividade, as novas interfaces e a automação da

vigilância – estão dinamizando as matrizes do espaço-mundo, isto é, tornando nossas

relações com o espaço um “entre permanente”, como se estivéssemos em uma grande

178

avenida cujas conexões levam sempre a outras conexões e nunca a lugar algum. Nesse

processo, os atores sociais não só

(...) se encontram à deriva, como também suas ancoragens no real se tornam

difusas, movediças, bastante imprevisíveis, o que provoca um processo

inflacionário de dispersão-reencontro com ligações momentâneas a “não

lugares” que deslocalizam e tornam móvel sua inserção no cotidiano.

(OROZCO, 2006, p.92).

Em vista dessa mutabilidade constante, os fluxos que atravessam e constituem o

contemporâneo geram a falsa sensação de que o “situacionismo” é, de fato, geral, como

se as avenidas não mais fossem feitas de chão. Contrariando tal perspectiva, minhas

análises sobre diferentes espaços demonstraram como os modos de produção/enunciação

ficcional, tanto no nível da narrativa quanto da audiência, dão a ver processos e práticas

de comunicação assentados sobre modos de fazer que não advém apenas dos câmbios

recentes. Nessa medida, por mais intensa e complexa que a contemporaneidade seja, ela

se torna tanto mais quando interpelada a partir do eixo das diacronias, eventualmente

reveladoras de certas persistências ou continuidades que se transfiguram pelo espaço-

tempo da história de modo mais sagaz do que pressupomos a partir de primeiras leituras.

No caso das telenovelas, vale ressalvar que, mesmo diante dos novos dispositivos de

interação, os quadros de apatia, indiferença ou docilidade da audiência não foram

subsumidos, sendo que, seja na condição de espectadores ou internautas, não raro, nossas

“respostas sociais” revelam-se bastante afinadas a uma conveniente “pergunta midiática”.

Essa reflexão torna-se ainda mais pungente diante da persistência de certos

maneirismos que ainda condicionam nossos projetos de teficcionalização. Nesse caso,

torna-se necessário reconhecer, na esteira de apontamentos já articulados, que o jogo

representacional da “Avenida” traduz como a contemporaneidade rearticula os fluxos de

circulação, gerando, de fato, novos espaços, porém o faz sem necessariamente inverter as

coordenadas entre territórios historicamente assentados. Em face dessa discussão, retomo

o sensato comentário do internauta Maurício Silva, no qual, entre outros apontamentos,

ele afirma que “(...) cultura e consumo lidam com desejo e desejo ultrapassa fronteiras de

classe”. Na esteira dessa reflexão, questiono: qual era o desejo que perfazia a periferia do

“Divino” e quais são as classes que se interessam em fazer proliferar as narrativas de um

Brasil em franco desenvolvimento? A meu ver, Leandro Nascimento, sua mãe e tantos

outros “de repente, classe C” provavelmente não integram o grupo. De qualquer forma,

não acredito que a periferia “coreografada” seja um modelo de visibilidade para espaços

179

marginalizados, sobretudo mediante representações que ocultam a persistência de

assimetrias simbólicas.

Em vista dessas perspectivas, acredito na importância de se aproximar e tensionar

as pré-mediações que conformam os espaços das narrativas teleficcionais ao campo das

mediações comunicativas da cultura (no caso do meu estudo, os espaços digitais). Mas

não sem antes reafirmar a reatividade e as fronteiras de cada uma dessas instâncias, bem

como de suas correlativas espacialidades. Nesse sentido, retomo a prerrogativa “entre

espaços” que projeta as teletopias como constructo social, cultural, midiático e afetivo;

além de expor que, no contexto das interações entre emissora e audiência, o caráter

polivalente das teletopias aponta para os diferentes níveis e possibilidades de

agenciamento simbólico exercido por cada agente sociomidiático. O enredamento entre

sociedade e ficção não sugere, portanto, um regime no qual os envolvidos no processo

compartem poderes quanto às formas de produção e circulação discursiva: no caso, tanto

em função dos monopólios de uma emissão ainda verticalizada, quanto em virtude de

uma audiência também constituída por seus imperativos e segmentações.

Tendo feito esta exposição, sublinho uma última característica dos espaços

teleficcionais. Em vista da natureza das interações sociais deflagradas pela telenovela,

verifica-se que os deslocamentos espaciais da ficção filiam-se não apenas aos

movimentos já deflagrados pela vida social, mas também sobre a “gestação de possíveis”,

sendo, portanto, um lugar privilegiado de “vir a ser”. Afinal, as afetividades mobilizadas

pelo lugar teledramatúrgico, outrora associadas à noção de lar e familiar, deságuam agora

sobre outros lugares interativos, espaços muitas vezes virtualizados nos quais a conexão

com o longínquo e a segregação em relação ao próximo expande o raio das sociabilidades

para além das experiências locais. Nessa engenharia, a teleficção brasileira ocupa uma

posição sociomidiática que não apenas absorve e projeta as dinâmicas da

contemporaneidade, mas atuam ainda em prol da montagem de outros mundos cotidianos.

Em vista de toda esta argumentação, proponho que as teletopias introduzem fluxos

capazes de rearticular as formas de experimentação sobre espaços que já nos são

habituais. E, nessa direção, questiono: diante de “Avenida Brasil”, quais fluxos

significantes passaram a ser lançados sobre a zona sul carioca, sobre periferias reais como

Madureira, ou ainda, sobre espaços midiaticamente marginalizados, como as orlas das

elites de menor poder e aquelas periferias que ninguém sabe o nome?

180

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#CRÉDITOS “AVENIDA BRASIL”

Uma novela de João Emanuel Carneiro

Escrita por João Emanuel Carneiro

Colaboração Marcia Prates

Alessandro Marson

Antonio Prata

Luciana Pessanha

Thereza Falcão

Direção de núcleo Ricardo Waddington

Direção geral Amora Mautner e José Luiz Villamarim

Direção Gustavo Fernandez

Joana Jabace

Paulo Silvestrini

Thiago Teitelroit

Andre Camara

Elenco Principal

Débora Falabela – Nina/Rita

Adriana Esteves – Carminha

Murilo Benício – Tufão

Cauã Raymond – Jorginho/Batata

Alexandre Borges – Cadinho

Débora Bloch – Verônica

Camila Morgado – Noêmia

Carolina Ferraz – Alexia

Betty Faria – Pilar

Heloísa Périssé – Monalisa

Ailton Graças – Silas

Marcelo Novaes – Max

Eliane Giardini – Muricy

Marcus Caruso – Leleco

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Vera Holtz – Lucinda

José de Abreu – Nilo

Juca de Oliveira – Santiago

Nathália Dill – Débora

Fabíola Nascimento – Olenka

Juliano Cazarré – Adauto

Ísis Valverde – Suelen

Otávio Augusto – Diógenes

Paula Bulamarque – Dolores

Thiago Martins – Leandro

Débora Nascimento – Tessália

Bruno Gissoni – Irã

Letícia Isnard – Ivana

Bianca Comparato – Betânia

José Loreto – Darkson

Emiliano D´Ávila – Lúcio

Daniel Rocha – Roni

Ana Karolina – Ágata

Bruna Griphao – Paloma

Cláudia Missura – Janaína

Cacau Potássio – Zezé

Tony Ramos – Genésio

Mel Maia – Rita

Bernardo Simões - Batata

Equipe de Produção

Disponível em: <http://gshow.globo.com/novelas/avenida-brasil/creditos.html>.