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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
ENTRE DITOS E NÃO-DITOS. A IMAGEM DA MULHER BRASILEIRA NO DISCURSO DO TURISMO
Glória da Ressurreição Abreu França1
Resumo: Fundamentando-se na teoria de Análise de Discurso materialista, estudamos o processos discursivos de identificação/subjetivação da mulher e, nesse sentido, trazemos os resultados de nossa análise baseada em diferentes formas de nomear a mulher, encontradas em dois espaços de enunciação a partir dos quais constituímos o corpus: um guia de turismo (Petit Futé) e um fórum de discussão na internet. Esse cruzamento de dados foi de extrema importância, pois nos permitiu perceber, a partir da categorização da mulher nos fóruns enquanto, “belas mulheres”, “prostituta”, “mulher fácil”, o sutil jogo de presença/ausência desses nomes nos guias de turismo. Buscamos assim contribuir com as reflexões que se preocupam com a construção social da “realidade” (/da mulher) através da linguagem (discurso), pois nos colocamos na mesma corrente de pensamento que acredita que dar um “nome”, enquanto ato do discurso, não pode ser separado de suas consequências políticas e sociais. Palavras-chave: Análise do discurso, mulher brasileira, identificação/subjetivação, turismo.
Introdução
Buscamos compreender no funcionamento do discurso do turismo as diferentes formas
de circulação de um imaginário sobre a mulher brasileira, na perspectiva da Análise do discurso de
vertente materialista. Acreditamos haver muito o que dizer discursivamente sobre essas mulheres, o
que implica não pensar o corpo empírico ou uma categoria “gênero” fechada e já delimitada que
viríamos a incluir ou adaptar ao nosso quadro de pesquisa. Implica de fato tomar a “mulher”
enquanto corpo/categoria com espessura material e a existência de uma memória de sentidos já
circulando sobre essas mulheres. Os discursos analisados se situam no espaço de atualização do
turismo do espaço de enunciação francês (GUIMARÃES, 2002).
Trata-se de uma escolha teórico-metodológica de analisar imagens nos guias a partir do
que é dito no fórum, abordando discursivamente a aproximação entre o icônico e o verbal,
sustentado pela analise dos não-ditos existentes. Baseando-nos em trabalhos de diferentes autores
que incluíram os enunciados icônico-verbais, enquanto forma-material e, portanto, enquanto da
ordem do discurso, acontecimento da língua na história, propomos um exercício de analise de
imagens e enunciados, numa tentativa de descrever “os processos de significação em sua relação
com a falha” (PÊCHEUX, 1975, ORLANDI, 1992) do corpo-mulher-brasileira.
Buscamos traçar possíveis linhas de reflexão a partir do seguinte questionamento: quais
os sentidos produzidos para o corpo feminino em um espaço de atualização veiculado como
1 Doutoranda do PPGL do Instituto de Estudos da Linguagem - IEL/UNICAMP, Campinas, Brasil.
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discurso do turismo? Numa tentativa de chegarmos a analisar a circulação de efeitos de sentido que
sustentem discursos sobre as mulheres brasileiras enquanto fáceis, putas ou passíveis de
aliciamento.
Corpus
2
Trabalharemos com 6 imagens (algumas legendadas) de mulheres encontradas no guia
de turismo Petit Futé 2012 e com algumas sequências de enunciados retirados de um fórum de
discussão na internet, o routard.com. Propormos aqui um recorte em torno das “mulheres”, a partir
de nosso interesse nas imagens analisadas, que surgiu de um prévio trabalho comparativo entre
guias e fórum, em que percebemos uma certa “brecha” entre o que era dito no fórum e que não é
presente na materialidade verbal dos guias. Recorte possível ao se perceber a escassa presença de
designações direcionadas às mulheres no guia analisado e a massiva presença, no fórum de
discussão, de enunciados referentes às brasileiras enquanto “prostitutas” “putas” “pobres
cinderelas” “mulheres fáceis” “que vivem de seu charme”.
Interdiscurso/memória, imaginário, efeito metafórico.
Segundo Eni Orlandi (2o05), apoiando em Pêcheux (1990) e em Courtine (1982) a
análise do discurso trabalha com a “textualização do político”, é desse ponto de vista discursivo que
visamos compreender em nosso trabalho o funcionamento pelo simbólico de um determinado
imaginário e as relações de poder que o sustentam. Para se descrever/analisar tal funcionamento é
necessário se pensar no sentido enquanto regulado no tempo (PÊCHEUX, 1975), donde a
necessidade de se recorrer à noção de memória. Interessando-nos pelo discurso enquanto “efeito de
sentidos entre locutores” (PÊCHEUX, 1983), efeitos que são produzidos sócio-históricamente,
perguntamo-nos, dessa forma, qual a memória que sustenta o imaginário sobre as mulheres
brasileiras e que permite, assim, uma determinada produção de sentidos sobre as mesmas.
Considerando que o discurso é estrutura e acontecimento, forma material e exterioridade
(interdiscurso), tentaremos compreender de que forma o interdiscurso (memória discursiva)
intervém nos discursos analisados, de que forma os já-ditos tornam possível todo o dizer, dando-lhe
sentido. Partindo assim da análise do que é dado sob o efeito da evidência, ter-se-ia, por exemplo, o
discurso do turismo que visa promover o país, de forma positiva, de forma legal. Sustentado em
efeitos de evidência dessa natureza, seria possível que uma rede de sentidos sempre-já existentes
2 Guardamos a ortografia na forma como esta se apresenta no fórum de discussão.
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torne possível dizeres que vão no sentido contrário do discurso da promoção do país. Tentaremos
dar um nome pra essa memória e para esses já-ditos. Se algo significa antes, em outro lugar e
independentemente, visamos apreender, no discurso sobre as mulheres, o que é esse algo, tentando
assim descrever o funcionamento do discurso do turismo sobre as mulheres brasileiras.
Em seu trabalho de dissertação, Ilka Mota (2004), investigando o que seria o corpo no
imaginário nacional, interessa-se por esse “modo peculiar de o brasileiro (se) significar o seu país”
e que estaria relacionado com uma memória construída historicamente, uma identidade histórica, da
ordem do já-dito, que nos permitiria, assim, dizer que o Brasil é “país tropical, país em se
plantando tudo dá, país exuberante, terra das mulheres sensuais”. Baseando-se na noção de
discurso fundador, de Orlandi, Mota identifica, nos textos analisados, um gesto de interpretação
muito específico: “um quadro do Brasil pintado tipicamente aos moldes do olhar europeu: terra com
uma vasta e selvagem natureza, abundante em alimentos (frutas, remédios, ouro, etc), em animais e
gente selvagens, climas optimus, índias sensuais.” É desse imaginário que partimos e que, como
verificaremos em nossa análise, se limitará a dois aspectos: o Brasil-praia (natureza) e o Brasil-
corpo (dança), em tornos dos quais tentaremos compreender os sentidos que daí partem e chegam à
mulher brasileira.
Partindo da ideia de que o sentido é sempre uma palavra por outra, e considerando o
que se pode dizer em determinada conjuntura e o que é dito em outro lugar, tentaremos descrever os
efeitos de sentido evocados nas imagens das mulheres em comparação com os processos de
identificação dessas mulheres no fórum de discussão. Situando-nos nesta disciplina de
interpretação, que é a AD, poremos em jogo na descrição/análise “o discurso-outro como espaço
virtual de interpretação” (ORLANDI, 2005). No caso analisado aqui, veremos que esse discurso-
outro é aquele que aparece nas falhas, nas brechas, é igualmente aquele que aparece em outro lugar.
Compreendendo, dessa forma, o que se diz em relação a outros dizeres, e, sobretudo, em relação ao
que não se diz. De forma esquemática, nos interessamos pelos efeitos de sentidos, que se sustentam
numa região do interdiscurso/memória, nos quais um determinado imaginário se institui (e se move)
pelo trabalho do efeito metafórico.
Na introdução de O papel da memória, José Horta Nunes pergunta-se de que modo a
memória é regulada, conservada ou deslocada e de que modo os acontecimentos se inscrevem ou
não nessa memória. No caso que analisamos diríamos que, mais do que romper, o acontecimento
discursivo é absorvido pela memória. Trazendo para nosso trabalho o que este autor diz, tentamos
pensar na eficácia simbólica do uso de imagens de mulheres, imagens em sua maioria da mulher-
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corpo, ou do corpo-mulher. Haveriam nessas imagens sentidos considerados como evidentes, que se
apresentam como não necessariamente ditos, a partir disso tentaremos apreender em que momento a
memória intervém, dando sentido, justamente pela falta.
Para perceber em que momento há falta utilizamos o que Achard (2007, p. 16) chama
de dialética da repetição e da regularização, esta se apoiaria “necessariamente sobre o
reconhecimento do que é repetido”, instituindo os sentidos dentro de séries. Segundo este autor “é
preciso admitir esse jogo de força simbólico que se exerce no reconhecimento do mesmo e de sua
repetição”, esse efeito de repetição e de reconhecimento, é o que Pêcheux (2007, p. 49), falando da
imagem, chama de “passagem do visível ao nomeado”. Como veremos essa reconstituição do
semelhante, do mesmo, se dá pelas operações de paráfrases, retomadas e deslocamentos, nesse caso
se dando a reconstrução da memória, que vem restabelecer aquilo que não está explicitado, os
preconstruídos.
A questão é saber onde residem esses pré-construídos, presentes por sua ausência,
estariam estes disponíveis na memória discursiva? Ainda segundo Pêcheux (idem, p. 53), “sob o
‘mesmo’ da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de
articulação discursiva”, uma espécie de “repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se,
perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase.” Seriam esses pontos de opacidade, de divisão do
mesmo e da metáfora, que gostaríamos de compreender, nesta análise do imaginário sobre a mulher
brasileira, dirigindo nosso olhar sobre os gestos de designação (verbal e não-verbal), sobre as
imagens opacas e mudas do corpo da mulher inscrito na discursividade do turismo.
Efeitos metafóricos: praias, carnaval, mulher, prostitutas.
Considerando que os sentidos se constituem nas relações de metáfora (transferência) e
no vínculo constitutivo do dizer com a sua exterioridade, e que, apesar de não se poder parafrasear
uma imagem, há a possibilidade de buscar o que é dito em outro lugar, sabendo-se que tanto o
mostrado (não formulado) quanto o dito, são efeitos de sentidos, e que uma sequência de
enunciados é uma série de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. No que diz
respeito à imagem, segundo Souza (2012), a possibilidade de sua leitura sustenta-se a partir de
propriedades como a representatividade (garantida pela referencialidade) que constituem o não-
verbal em texto, em discurso. Pode-se assim falar de seus modos de significação e interpretação, e
dessa forma entender como ela, enquanto discurso, “vem sendo utilizada para sustentar discursos
produzidos como textos verbais”, devendo assim ser posta em relação com a cultura, com o social,
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com o histórico. Buscamos interpretar imagem e enunciados em sua historicidade, a partir da
memória discursiva, que segundo Pêcheux (2007, p. 52) “seria aquilo que, face a um texto que
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (préconstruídos, discursos-
transversos). Trataremos inicialmente das imagens, e em seguida desenvolveremos algumas
possíveis interpretações, baseando-nos nos enunciados do fórum.
As imagens no Petit Futé.
Em A imagem, uma arte de memória? (2010), Davallon afirma que as imagens funcionariam antes
de tudo sob o modo semântico (opondo este ao semiótico, segundo a distinção feita por
Benveniste), impressionando a memória que, por sua vez, só retém o que é ainda capaz de viver na
consciência do grupo que a mantém. Interessamo-nos, dessa forma, por essa eficácia simbólica que
a imagem contém, e no que em nossa análise aparece com a forca de evocação de discursos outros,
discursos que ali não se encontram formulados. Em seu texto, Davallon utiliza a imagem em
complementaridade com o enunciado, em nosso caso a nossa atenção estaria deslocada para outro
lugar, estaria mais na relação com o não-enunciado sobre essas imagens. O que se ressalta é a
“eficácia da imagem em poder se inscrever em uma problemática da memória societal” (idem, p.
28), que em nosso trabalho é analisado sob a forma de efeitos do interdiscurso, nos ajudando a
compreender as possibilidades de leituras dos discursos constituídos nas/pelas imagens. Numa
tentativa de descrever seu funcionamento discursivo, veremos como se relacionam os não-ditos das
imagens com os ditos em outro lugar, em outras materialidades.
Souza (2013, p.59) nos indica um modo de analisar as imagens ao afirmar que “quando
se recorta pelo olhar um dos elementos constitutivos de uma imagem produz-se outra imagem,
outro texto, sucessivamente e de forma plenamente infinita”, a isto associamos o modo como, no
enquadramento das imagens, é dispost(o)a (o corpo d)a mulher. Para ajudar a pensar esses
diferentes modos de significação, tomamos a noção de policromia de Souza (2001, b2013) que nos
ajuda a pensar os elementos constitutivos de uma análise do discurso não-verbal. Tais elementos
remeteriam a diferentes perspectivas favorecendo “a apreensão de diferentes sentidos no plano
discursivo-ideológico”, por exemplo, quando se tem a possibilidade de se interpretar uma imagem
pela outra, e, como tentamos fazer aqui, uma imagem pelo que não se diz sobre ela. Conforme
mostraremos a seguir, vemos uma relação de dissenso (SOUZA, 2001) decorrente do jogo entre
legenda e imagem o que faz com que um segundo texto (enunciados outros, de outros lugares) se
institua num plano discursivo implícito.
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Imagem 1
Imagem 2
As mulheres retratadas encontram-se associadas a um cenário que se apoia no que
poderia ser chamado uma memória da identidade nacional. Vale ressaltar que se trata de um recorte,
uma escolha de análise, um gesto de interpretação nosso, nos propondo, assim, a pensar no(s)
modo(s) de constituição de uma “identidade” da mulher brasileira apoiado(s) em uma
discursividade que buscamos aqui interpretar e explicitar. Pretendemos de fato chegar aos efeitos de
sentidos que só se tornam possíveis na medida em que uma certa região do interdiscurso ali os
sustenta. Esse nosso gesto de interpretação reside no fato de percebermos (ou suspeitarmos) que há
algo que atravessa essas imagens justificando suas presenças naquele guia, algo que não é dito nas
legendas que lhes acompanham. Seria o que lhes daria sentido, um sentido orientando para uma
interpretação, que seria o mesmo que se encontra explicitado em enunciados no fórum de discussão.
Eis a forma que decidimos tomar esse material de análise.
Nas imagens que analisamos temos duas “paisagens”. Primeiramente: a praia. Como
podemos ver na imagem abaixo (1), o que se descreve é a praia: Ipanema, praia emblemática do
Rio e do Brasil inteiro!, numa página intitulada O Brasil em 30 palavras-chave. A legenda fala da
praia, tem-se, no entanto, ao meio da imagem, que de certa forma
impede uma visão inteira dessa praia, um casal (um homem e uma
mulher), centremos nossa atenção ao corpo feminino. Este
retratado de costas, com o famoso biquíni. Como se pergunta
Davallon: o que retém o olhar nessa imagem? Seria somente
“praia” a palavra-chave a reter? Suspeitamos que não. Há ai não-
ditos, a única forma de tentar encontrar nomes para esses sentidos
que aí se apresentam seria ouvir o que é dito em outro lugar.
A segunda “paisagem” presente nas imagens analisadas
é a do carnaval, da dança. Uma delas permite essa passagem entre
o calor da praia e o calor da dança. Na mesma seção da imagem
anterior, tem-se a respeito da palavra-chave “dança”, a imagem (2)
com a respectiva legenda A dança. Uma arte de viver brasileira.
Nesta imagem, não se tem um homem, crianças, um grupo de
pessoas, um casal: tem-se novamente uma mulher. Praia, sorriso,
dança: “é natural” a pouca vestimenta. Os sentidos dados como
evidentes seriam então que, num guia de turismo francês, “é
natural” que se retrate uma pessoa dançando, na praia, pouco
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Imagem 4
Imagem 3
Imagem 5
vestida, e que esta pessoa seja uma mulher? Ainda aqui, questionamos: quais sentidos ainda neste
caso sustentam a presença dessa imagem? O que a legenda não diz? Assim como na imagem
anterior, porque não cita a pessoa retratada? Porque em nenhum dos casos que analisamos as
mulheres, postas no centro das imagens, não são nomeadas, referenciadas?
Como se pode ver nas imagens (3) e (4) tem-se mais “dança”, “alegria de viver”,
“beleza”. Tem-se mulheres encarnando esse imaginário, com fantasias de carnaval, na seção
Festividades do guia. Na imagem (4) a legenda diz É no bairro da Lapa que vocês assistirão aos
mais lindos shows. Essa legenda
acompanha uma imagem de
uma mulher ao centro, também
com fantasia de Carnaval.
Como dissemos é apenas nesses
dois cenários que as mulheres
são retratadas. Contudo,
pensamos que não é apenas o imaginário do “Brasil, país do carnaval”
que é retratado. Devemos, portanto, problematizar a presença quase
exclusivamente de mulheres associadas a esses dois imaginários (carnaval, praia), que retratadas
nesses contextos levam “obrigatoriamente” a imagens de mulheres com pouca roupa. Mostra-se,
exibe-se o corpo dessas mulheres, em nome de uma fala que nomeia a festa, a praia, a dança. As
mulheres aí tampouco são designadas.
Vejamos as duas ultimas imagens que tomamos para análise. Na imagem (5) a legenda
diz O carnaval, uma instituição nacional, a imagem mostra 4 mulheres, de costas, em fantasias de
carnaval. Elas estão ao centro da imagem, resumida pela legenda ao “Carnaval”. Não haveria aí
talvez uma comprovação da presença daquele
imaginário em que estaria resumido o “Brasil” ao
“carnaval”, e, por efeito de transferência, as
mulheres ao cenário desse carnaval? Por fim,
vejamos a imagem (6) que retrata igualmente um
desfile de carnaval, nela tem-se o público, uma ala
com os dançarinos ao chão, e ao centro da imagem,
em um carro alegórico, 3 mulheres, duas com os
seios à mostra. A legenda nos diz O desfile das escolas é um dos momentos fortes do carnaval.
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Imagem 6
Visando perceber qual o sentido dessas imagens, questionamos: o que justifica sua presença? O que
as legendas não dizem? Qual o efeito de evidência que aí
aparece? Afinal o que não é necessário, ou não pode, ser
dito? O que é que “todo mundo sabe” sobre a mulher
brasileira?.
Toda descrição “está exposta ao equívoco da
língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de
tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar
discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”
(PÊCHEUX, 1983, p. 53), buscando saber o que seria esse
outro, ou ainda, buscando verificar o discurso-outro aí
ausente (relembrado, evocado), recorremos a alguns
enunciados no fórum de discussão em que se discute sobre
as mulheres brasileiras.
Os enunciados do fórum Routard.com,
Segundo, Davallon (2010, p. 31) a imagem, assim como o sentido e o sujeito, tem em si a
representação de ser a origem de si mesma, com esse apagamento da gênese começa um trabalho de
(re) construção dessa origem, e dos sentidos atribuídos. Ele diz: “Então, começa a deriva indefinida
(e não infinita) que caracteriza toda interpretação de imagem; não obstante, se nos volvemos para
essa deriva, percebemos que essa busca, essa “reprodução” da significação do dispositivo, se faz
segundo o próprio programa trazido pelo dispositivo”. Talvez aí se tenha uma possível explicação
do fato de não necessariamente se nomear o que está nas imagens, pois os efeitos de sentidos já
seriam então partilhados. Retraçando o que se pôde perceber nas imagens, entre legendas e objetos
retratados, cenários e efeitos de evidências, temos que os sentidos (já dados) são retomados, e ao
serem retomados, deslocam-se. Dessa forma, do que o cenário/paisagem (praia, sol, carnaval) traz
de informação, tem-se o sentido “naturalizado” de referência ao corpo pela dança, de pouca (ou
nenhuma) vestimenta pela dança e pela praia, e a isso associado, tem-se igualmente, a presença de
mulheres que encarnam esses sentidos “naturalizados”, como se pôde ver anteriormente, sobre o
imaginário nacional.
Vemos aí, nesse deslocamento pela repetição e pela falha, o efeito de retomadas
metafóricas, que só são possíveis pelo que se opera para alem dessas imagens, o que corresponde
aquilo que Davallon chama de “acordo entre os olhares”. Como dissemos anteriormente, o efeito de
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repetição, é de que o diferente, o ausente faça-se presente pelo mesmo, pelo formulado. Todas as
sequências foram tomadas de dentro de uma discussão que começa com a seguinte pergunta:
[Enunciado 1]: Bonjour je pense partir a fortaleza et j aimerais savoir si c’est du genre thailande ou a des
prostitutes en tous les coins? Et on peut malgrer ca passer un bon sejour?
Percebe-se nesse enunciado que algo já vem dado, no que nos interessa o que é dado
como inquestionável é a existência de prostitutas, a primeira parte da pergunta reside sobre a
presença em todo canto dessas prostitutas. A segunda parte da pergunta, é que nos informa ainda
mais diretamente do efeito desse elemento que se apoiaria sob um ‘processo de sustentação’:
articula-se a essa segunda pergunta através do seu “e” inicial, o discurso da resposta afirmativa
dizendo “sim, é igual à Thailandia onde há prostitutas em todos os cantos”. Essa asserção retorna
na segunda pergunta, como um saber já-lá, o que se pode perceber no: apesar disso pode-se ter uma
boa estadia? Apesar disso. Isso, a prostituição, tida como pré-existente, evocada lateralmente, se
assim podemos dizer, seria aquilo que se sabe a partir de outro lugar. Diversas páginas discorrem
respostas a essa pergunta, dentre as quais retivemos as seguintes sequências:
[Enunciado 2]: ces filles (parfois etudiantes ?) , parfois vivotant de job par ailleurs (R 10, Q2)
[Enunciado 3]: "passer à la caisse" pour des moças ; [..] mais aussi pour mon plus grand bonheur, des filles
correctes, non vénales
[Enunciado 4]: a ete colonise pas des prostitués mais y trouve egalement des gens « normaux » (R 38, Q2)
Nas três sequências acima, o que nos interessa em particular é a presença disso que é,
segundo Pêcheux (1975), o retorno do saber no pensamento, percebemos assim essa articulação de
asserções, nesse discurso que, como podemos ver, insiste na existência de pessoas normais, de
moças corretas, não venais, e até mesmo às vezes, estudantes. É nesse discurso que insiste em
afirmar que nem todas as moças são putas, que podemos entrever a existência daquele discurso que
estaria afirmando o que este tenta negar. Nas três sequências anteriores, opõe-se, por exemplo, essas
moças a estudantes [2], moças (utilizado em português) a moças corretas, não venais [3]; e
prostitutas a pessoas ‘normais’ [4]. Não se trata necessariamente de observar aqui os modos de
designação das mulheres, tampouco trata-se de analisar os efeitos de sentido para mulheres nesse
discurso, o que nos interessa neste caso é simplesmente observar sob quais filiações de sentido
esses discursos se sustentam. O que se pode perceber é a existência de um imaginário sobre a
“prostituição fácil”, como na Thailândia. Podemos avançar um pensamento: haveria um certo
interesse não somente pela prostituição, que se encontraria em todos os cantos, mas também poder-
se-ia perceber um interesse em se encontrar (como vemos no enunciado 3) também mulheres
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corretas. Por fim, vejamos o que as duas últimas sequências podem nos ajudar a elucidar sobre este
aspecto:
[Enunciado 5]: Le bresil est rempli de pirhanas, ces filles qui vivent de leur corps sans l'annoncer directment (R7,
Q2)
[Enunciado 6]: (R8, Q2) une offre des bresiliennes qui ne voulaient pas s’avouer putes, mais vivaient quand meme
de leur charmes... (R9, Q2)
Tem-se duas designações piranhas e brasileiras seguidas de reformulações que trazem
o que vemos como um efeito de sustentação que é o que estamos buscando analisar: qual seria o
pensamento contido ou evocado nelas? Na sequência 5, piranhas é reformulado por essas mulheres
que vivem dos seus corpos sem o anunciar diretamente. Na sequência 6, tem-se brasileiras seguido
da reformulação que para nós sintetiza habilmente aquilo que gostaríamos de mostrar como
discurso evocado pelas imagens nos guias: que não queriam se assumir putas, mas que viviam
mesmo assim de seus charmes. “Charmes” corresponderia àqueles atributos que analisamos como
fazendo parte da “memória nacional”, identificando os brasileiros e as brasileiras, com a beleza,
com a sensualidade, com o calor, com a praia, com a dança, e funcionando sob a modalidade do
pré-existente. Seguindo o que nos diz Achard (2007, p. 14) poderíamos, a partir do aparecimento de
diferentes posições “fazer um inventário delas e estabelecer suas regularidades, e (...) em seguida
designar, lá onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de implícito por que elas
chamam”.
Segundo Courtine (1999, p. 20), uma formulação anterior, já-dita, vem se encaixar
como préconstruído numa formulação posterior, produzindo um efeito de cadeia na série. Tratam-se
de fato de efeitos de preconstruídos e de sustentação percebidos pela repetição do imaginário do que
seria a “identidade nacional”, que permitem, pela repetição, um deslocamento: vivendo de seus
charmes, são putas, mas não assumem. Parafraseando, poderíamos questionar: não se dizem putas,
mas são putas. Não se dizem putas, mas vivem de seus charmes. São charmosas, são putas. Eis um
processo de identificação das mulheres brasileiras que a nosso ver se dá tanto pelas imagens (estas
evocando o corpo, o nu, o charme) quanto pelos ditos no fórum.
O que problematizamos aqui são os sentidos possíveis que circulam entre as imagens
que não nomeiam as mulheres e os dizeres de outro lugar que as nomeiam, de putas ou que vivem
de seu corpo sem o anunciar. Tais efeitos de sentidos fazem parte de um mundo de sentidos
possíveis, não se pode, dessa forma, deixar de perguntar quais são as consequências da circulação
de tais sentidos. Quais são as consequências da circulação de imagens de mulheres tal como
descrevemos? Quais sentidos são evocados ao se associar imagens de mulheres com pouca
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vestimenta, na praia, de costas, de seios nus? Segundo Pêcheux (2011, p. 160) a “metáfora aparece
fundamentalmente como uma perturbação que pode tomar forma do lapso, do ato falho”.
Poderíamos ver aí aquele trabalho da abertura do simbólico, da falha, da deriva, vendo aí um
deslizamento entre o imaginário que associa brasilidade com beleza, sensualidade e dança, passando
de alguma forma pelo imaginário do corpo; a mostração dessas mulheres encarnando esse
imaginário e o discurso que associa Brasil enquanto rota sexual ou as mulheres brasileiras enquanto
vivendo de seu corpo e de seus charmes. Caso tal interpretação seja possível, poderíamos ver neste
caso, o trabalho do efeito metafórico: o não dito pelas imagens, exatamente por ser não-dito, não-
formulável que se mostra, como falha.
Courtine (1999) nos diz que a noção do enunciado está ligada à noção de repetição,
havendo assim inúmeras reformulações, repetições nos fios das quais apagam-se determinadas
marcas de um (não tão) distante que estaria aí relatado, esse não citado diretamente vemos nas
imagens dos guias. Haveria assim remissões de discurso a discurso constituindo um espaço do
repetível, entre o imaginário praia-carnaval, imagens de mulheres e brasileiras-putas. Vemos que
de alguma forma, em relação ao guia, o nao tão distante de que fala Courtine pode estar ali, nos
dizeres do fórum.
Reflexões conclusivas: Brasileiras e putas?
Percebemos que, ao ser reivindicado o sítio de significância da “beleza” e da “simpatia”
para a mulher brasileira, por um movimento no interdiscurso/filiação na memória de sentidos já-
dados, há um certo apelo sexual, por ser a beleza brasileira, a simpatia brasileira. Ocorrendo um
deslize nesses sentidos, por efeito metafórico, chegando-se a sentidos tais o que aqui vimos,
“mulheres que vivem de seu charme”, que só fazem gênero. Isso deixa, a nosso ver, a porta aberta
para a complexa questão do aliciamento sexual e da prostituição no Brasil. Nos dizeres descritivos
das imagens e nos enunciados referentes especificamente às mulheres brasileiras, ou mesmo
naqueles designando os brasileiros, percebemos algo que falha. E através dessa falha, desse não
dizer tudo, desse mostrar sem dizer, que tais sentidos circulam. Como afirma Pêcheux (1975) esse
mesmo discurso deixa brechas, tem fissuras, assim vemos que há por um lado os não-ditos, que são
ditos em outro lugar, e por outro se há esse discurso dominante, há igualmente o(s) discurso(s)
dominado(s). Como seriam, onde e como estariam funcionando os discursos da resistência a esse
discurso que identifica a mulher brasileira a mulher fácil? Tencionamos com este exercício de
análise problematizar esse imaginário e a não sem consequência utilização de imagens de mulheres
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de seios à mostra e que vivem de seu corpo e de seu charme. Simbólico e político se encontrariam
aí, nessa circulação de sentidos que procedem a uma identificação do ser mulher brasileira nesse
imaginário.
Referências
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Between ‘said’ and ‘not said’. The brazilian woman’s image in Tourism discourse. Astract: This paper aims to analyze the different ways Brazilian women identities are constituted discursively. This identification/subjectification process is analyzed founding on the materialistic Discourse Analysis. In this sense, the results found are based on the different ways of ''naming'' employed to designate/describe women, found in those two French enunciation spaces, from which the analytical corpus is constituted: tourism guide books and discussion forums on the internet. This data crossing was extremely important, because it permitted to realize, in the categorization of women in the forums, such as ''beautiful women'', ''prostitutes'', ''sluts'', the subtle play on presence/absence of those names in the Tourism guides. This analysis aims to contribute with the studies interested in social construction of the “reality” (of the women) through the language (discourse), considering it is placed in the same current of thoughts that believes that giving a “name”, as a discourse act, might not be separated from its political and social consequences. Keywords: Discourse Analysis. Brazilian women. Identification/Subjetivation process. Tourism.