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ENTRE ÁRABES E JUDEUS

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Entre árabes e judeus da Helena Salem Levy, um dos textos mais importantes da colecção Judaica.

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Page 1: Entre árabes e judeus

ENTRE ÁRABES E JUDEUS

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Título: Entre árabes e judeus

© Herdeiras de Helena Salem© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2010

Publicado pela 1.a vez no Brasil,pela Editora Brasiliense, São Paulo, 1991

ISBN 978-972-795-314-1

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Helena Salem

Entre árabes e judeus

Cotovia

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Para Nelson Pereira dos Santos

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I

“Entrando numa habitação desconhecida, o sr. K.procurou ver apenas, antes de se recolher, ondeeram as saídas da casa. Perguntado sobre isso,respondeu, sem jeito: ‘Este é um hábito antigo epenoso. Eu sou a favor da justiça; por isso ébom que a casa onde estou tenha mais que umasaída’.”

(Bertolt Brecht, Histórias do Sr. Keuner)

— Vamos ter outra guerra. Espere, vo-cê verá. Nos próximos dias haverá uma no-va guerra.

Mahmoud parecia falar com tanta se-gurança. Tanta. E estranha tranqüilidade.Como se anunciasse não uma catástrofeiminente, mas um acontecimento corri-queiro, uma viagem de Sadat, sei lá. Umoutro funcionário entrou na sala. Os dois

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trocaram opiniões, olhares cúmplices, e denovo Mahmoud voltou-se para mim, repe-tindo a previsão de guerra. Ouvia-o semquerer acreditar. Notícia descabida. Aindana véspera, antes de partir de Roma, lera to-dos os jornais no aeroporto, ninguém falavade guerra no Oriente Médio. Nem o Corrie-re della Sera, nem o L’Unitá, o Le Monde ouo The New York Times. Quem era aquelefuncionariozinho para pontificar assim cominabalável segurança, quando os mais infor-mados especialistas em política internacio-nal do mundo não levantavam sequer sus-peitas?

Não quis acreditar em Mahmoud. Me-do, defesa, descrédito ou preconceito. Nãosei. O bom humor só reapareceu quandome perguntou o hotel em que estava hos-pedada. Khan Khalil, respondi vacilante.Mahmoud riu muito, seu amigo também.Não, não era o melhor para uma jovem so-zinha, aquele hotel plantado em meio aocaos do Bazaar, o grande mercado do Cai-ro. Iria me arrumar um outro, em localmais apropriado. Alguns telefonemas, “vaipara o Windsor, bom, pequeno, familiar,bem situado, no centro da cidade”. Gratae cabreira, despedi-me, até amanhã.

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Em verdade, deixei o labiríntico pré-dio da Liga Árabe completamente ator-doada. Que diabo de história de guerra eraaquela? Já não bastava o impacto de desa-bar num mundo tão desconhecido, dife-rente, inimaginável? E agora, guerra? Não.Mahmoud devia estar delirando, só podiaser delírio. Pedi a conta no Khan KhalilHotel, nem foi preciso refazer a mala. Sóhavia retirado a escova de dentes, uma pe-ça de roupa. O Khan Khalil tinha sido umasolução de desespero, não uma escolha.O avião atrasara em Roma, medidas de se-gurança anti-terroristas no aeroporto, quedias antes sofrera um atentado palestino.Cheguei muito tarde no Cairo. Com umalista de telefones de vários políticos e jor-nalistas na bolsa, mas nenhum hotel reser-vado. Hábito de estudante, alojamentosempre um improviso. Peguei então o pri-meiro hotel que o escritório de turismo doaeroporto me indicou. Mas era o mês deRamadã, quando os muçulmanos jejuamde dia, até despontar a primeira estrela nocéu, e comem à noite. O que significavaque o Bazaar ficava em polvorosa madru-gada afora, só se acalmando quando apa-gava a última estrela, e reiniciava-se o je-

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jum. Foi difícil dormir naquela primeiranoite. Acho que desmaiei — de susto ecansaço.

O Windsor de fato era mais tranqüiloe acolhedor. A começar pela construção,antiga, do período colonial britânico. Mó-veis refinados, ainda que pouco conserva-dos, uma certa poeira, cheiro de mofo, po-rém charmoso. Apenas o gerente falavainglês; com os camareiros, sorrisos e ges-tos. O suficiente para a boa comunicação.Que não seria tão boa no fim de tarde queum camundongo irrompeu no meu quarto.Chamei aflita o camareiro, muitos gestos,ele vasculhou cortinas, cômoda, debaixoda cama, armários, e nada. Finalmente deuum sorrisinho irônico, malesh, a moça es-trangeira deveria estar com alucinações.Seu sorrisinho era eloqüente. Rendi-me,que fazer? Mas juro que o camundongoexistia mesmo…

Reinstalada no novo hotel, liguei paraa Ansa, agência de notícias italiana, e tive aboa notícia de que acabara de chegar umaequipe da RAI, a televisão estatal da Itália,para realizar uma série de reportagens.Possibilidade de falar uma língua comum,diálogo mais próximo. E de saber também

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que os reservistas haviam sido convocadosem todo o Egito, o aeroporto do Cairo fe-chado, estabelecida a censura no envio denotícias para o exterior.

Haveria mesmo uma guerra a cami-nho? Niccola, o gordo chefe da equipe daRAI, nem mencionou essa hipótese. E eleparecia saber das coisas. Eu, evidentemen-te, tratei de me manter caladinha.

É que a situação na área aparentavaestagnação. Israel ocupava os territóriosárabes desde 1967, os egípcios ameaça-vam, os sírios e palestinos também, masnada acontecia. Salvo ações isoladas, queprovocavam mortes mas nenhuma mudan-ça no panorama político-militar. Os dis-cursos radicais de Sadat caíam no vazio, Is-rael estava mais forte do que nunca.

Na manhã seguinte, retornei à LigaÁrabe. Mahmoud recebeu-me ainda maisconvicto. “Hoje à noite ou amanhã explo-de a guerra.” Agora deu argumentos, nãodeixava margem para dúvidas. Era um mo-reno alto, funcionário de escalão médio;quem me dera seu nome e telefone haviasido Giulia, uma jornalista romana estu-diosa do Oriente Médio. O amigo de Mah-moud, moreno-claro, bonitão, concordou

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novamente: questão de horas para o inícioda luta.

(Viver tudo. Viver tudo. “Vou entrar para oPartido, peço ingresso.” “Estamos contentescom sua decisão… um quadro de valor… com-panheira…” Grupos de estudo, PCBR, PC do B,PCB, Polop, a burguesia nacional entra na re-volução, não entra, etapa socialista, etapa delibertação nacional, quantas discussões e bri-gas por causa dessa coisa de etapa. Hoje tempasseata, a polícia desceu o pau, fulano levouum tiro, a faculdade fechada, não tem saída,clandestinidade, luta armada, um mundo novo,sacrifício, tudo pela revolução, morro de medodo meu pai se chego tarde em casa, ele estáme esperando, a cara feia, “papai não durmoem casa hoje, uma reunião na casa de fulano”,o primeiro amor, as pílulas escondidas. Clan-destinidade em casa também, o medo do meupai, quero sair dessa casa, trabalhar para sairde casa. “Trabalhar não tem importância, com-panheira, é inserir-se no sistema burguês. O im-portante é sair dele, preparar-se para a luta,a clandestinidade, a revolução.” “Não”, recuei.“Não quero mais ingressar no Partido. Tenhodúvidas… esperar mais um pouco.” “Vacilar énormal, companheira, você pode entrar assim

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mesmo, ir aos poucos. A hora é esta, que vocêainda não foi absorvida pelo sistema…” Não,não, tenho medo de morrer. Não quero morrer,não vivi nada ainda. Tenho medo do meu pai,como vou enfrentar um policial, um torturador?Estou com medo, medo, quero viver, sair dessacasa, derrubar esses muros de pedra que meseparam do mundo, ainda não pude viver na-da, quero viver, não quero morrer. O jornal,meu dinheiro, ficar livre de meus pais. A orga-nização, a clandestinidade, a prisão, a morte?Não, o jornal, a liberdade, vou embora.)

De novo saí da Liga Árabe completa-mente atônita. Aliás, bem mais que na vés-pera. E tratei de ligar para a equipe da RAI.“Não, nada de guerra, é mais um daquelesexercícios militares do presidente Sadat”,concluiu Niccola. De fato, Sadat, desdeque assumira o poder em 1970, esmerava--se em ameaças inócuas a Israel. Mas, comoeu também conhecia bem a habitual mávontade e desprezo da maioria dos jornalis-tas europeus em relação aos árabes, ficavasempre difícil saber se as certezas de Nic-cola tinham origem no preconceito (afinal,quem eram os árabes para desencadearemassim uma guerra contra o invencível Exér-

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cito de Israel?) ou em informações reais.Em síntese, estratégia (soviética) perfeita,ou falta de crédito (ocidental) aos árabes,a verdade é que ninguém, naqueles diasque antecederam o início das hostilidades,suspeitou de que uma guerra estivesse a ca-minho. E nenhum dos poucos correspon-dentes lá sitiados enviou despacho levan-tando essa lebre.

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