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amós oz Entre amigos Tradução do hebraico e notas Paulo Geiger

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amós oz

Entre amigosTradução do hebraico e notas

Paulo Geiger

Copyright © 2012 by Amós Oz

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título originalBe’in KhaverimBetween Friends

Capawarrakloureiro

Foto de capa<completar>

PreparaçãoAna Cecília Agua de Melo

RevisãoCarmen T. S. CostaMárcia Moura

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Oz, AmósEntre amigos / Amós Oz ; tradução do hebraico e notas Paulo

Geiger. — 1a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2014.

Título original: Be`in Khaverim.isbn 978‑85‑359‑2375‑9

1. Romance israelense (Hebraico) i. Título.

13‑12905 cdd 892.43

Índice para catálogo sistemático:1. Romances : Literatura israelense em hebraico 892.43

[2014]Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532‑002 — São Paulo — spTelefone: (11) 3707‑3500Fax: (11) 3707‑3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

Sumário

O rei da Noruega, 7Duas mulheres, 20Entre amigos, 28Pai, 44Um menininho, 63À noite, 78Dir Adjlun, 95Esperanto, 116

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O rei da Noruega

E em nosso kibutz Ikhat havia um homem chamado Tzvi Provizor, solteiro, baixinho, os olhos sempre a piscar, uns cinquen‑ta anos de idade. Ele gostava de dar más notícias: tremores de terra, desastres de avião, prédios que ruíam cheios de gente, in‑cêndios e inundações. Acordava cedo para ler o jornal logo de ma nhãzinha, antes de todos nós, e ouvia todos os noticiários do rádio para poder se apresentar na entrada do refeitório e deixar você chocado com os duzentos e cinquenta mineiros de carvão que tinham sido soterrados, sem esperança, no desabamento de uma mina de carvão na China, ou com uma barcaça que virou e afundou com seiscentos passageiros numa tempestade no mar do Caribe. Perseverava também em decorar os anúncios fúne‑bres. Tomava conhecimento antes de qualquer um da morte de pes soas famosas e passava a informação a todo o kibutz. Certa manhã ele me fez parar no caminho diante da enfermaria.

“Você ouviu falar de um escritor chamado Vislawski?”“Sim. Ouvi. Por quê?”“Ele morreu.”

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“Sinto muito pela notícia.”“Escritores também morrem.”E uma vez ele me pegou quando eu estava trabalhando em

meu turno no refeitório.“Vi no obituário que seu avô morreu.”“Sim.”“E há três anos também morreu um avô seu.”“Sim.”“Então este já foi o último.”

Tzvi Provizor trabalhava sozinho na manutenção dos jar‑dins e gramados públicos do kibutz. Ele acordava todo dia às cinco da manhã, desmontava e remontava canos e aspersores, afofava a terra de canteiros de flores, plantava, podava e irriga‑va, aparava gramados com uma máquina barulhenta, pulveri‑zava com pesticidas, espalhava e fazia penetrar na terra adubo orgânico e adubo químico. Trazia pendurado no cinto um rádio transístor do qual extraía uma corrente perpétua de péssimas no‑tícias:

“Você ouviu? Um grande massacre em Angola.”Ou:“Morreu o ministro das Religiões. Deram a notícia há dez

minutos.”Os chaverim do kibutz o evitavam. No refeitório procura‑

vam não se sentar à sua mesa. Nas tardes‑noites de verão ele se sentava sozinho num banco verde na beira do grande relvado em frente ao refeitório e ficava observando as crianças que cor‑riam na grama. A brisa vespertina enfunava sua camisa e lhe secava o suor. Acima das copas dos altos ciprestes nascia uma lua avermelhada pelo vento morno e seco. Num fim de tarde, Tzvi Provizor abordou uma mulher que estava sentada num banco próximo, Luna Blank, e observou com tristeza:

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“Você não ouviu? Na Espanha um orfanato pegou fogo e oitenta órfãos morreram asfixiados pela fumaça.”

Luna, professora viúva com cerca de quarenta e cinco anos, enxugou o suor da testa com um lenço e disse:

“Isso é terrível e chocante.”E Tzvi:“Só resgataram de lá três sobreviventes, e eles também estão

em estado grave.”Entre nós ele era respeitado por seu dedicado trabalho no se‑

tor de paisagismo; durante vinte e dois anos de sua vida no kibutz não se registrou junto a seu nome, na caderneta de trabalho, nem um só dia de doença. Os espaços exteriores do kibutz floresciam graças a ele. Em todo terreno vazio ele plantava as flores da es‑tação. Aqui e ali construía canteiros de pedra nos quais plantava vários tipos de cacto. Aqui e ali, em toda a extensão das áreas ex‑ternas comuns, ele erguia caramanchões de madeira que susten‑tavam parreiras. Em frente ao refeitório instalou uma fonte e um repuxo, com peixinhos dourados e plantas aquáticas. Tinha um senso estético bom e todos sabiam apreciar isso. Mas pelas costas ele era chamado de “Anjo da Morte” e corria a fofoca de que não tinha e nunca tivera interesse por mulheres, e na verdade, por homens também não. Havia um rapaz, Roni Shindlin, que o imitava admiravelmente bem e nos fazia a todos rolar de rir. Durante as tardes, quando todos os membros do kibutz ficavam sentados, cada família em sua varanda ou no pequeno gramado em frente a suas casas, tomando café e brincando com os filhos, Tzvi Provizor ia à casa de cultura para ler jornais e lá ficava na companhia de cinco ou seis homens solitários como ele, devora‑dores de jornais, polemistas, solteiros a envelhecer, divorciados, viúvos. Reuvke Roth, um homem pequeno e calvo com grandes orelhas de morcego, reclamava de seu canto que as operações de retaliação do exército israelense só faziam aumentar o banho de

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sangue, porque vingança puxa vingança, e represália puxa repre‑sália. Os outros reagiam imedia tamente investindo sobre ele e o repreendendo: “O que é que você está dizendo, com eles não se pode ficar calado, a contenção e a conciliação só aumentam o atrevimento dos árabes”. Tzvi Provizor piscava e dizia:

“No fim isso vai dar em guerra. Só pode levar a uma guerra terrível.”

E Emanuel Gluzman, o tartamudo, se entusiasmava:“G‑g‑guerra. M‑muito bom. Nós v‑v‑venceremos e vamos

c‑conquistar as t‑t‑terras deles a‑até o Jordão.”Reuvke Roth observava em voz alta:“Ben Gurion é um grande jogador de xadrez. Sempre enxer‑

ga cinco lances à frente. Só que o quê? Tudo com ele é sempre na força.”

Nesse ponto Tzvi Provizor profetizava com tristeza:“Se perdermos, os árabes virão e vão nos dizimar. Se ven‑

cermos, os russos virão e vão nos bombardear.”Emanuel Gluzman implorava:“B‑basta, chaverim, silêncio, deixem‑me l‑l‑ler o jornal em

s‑silêncio.”E Tzvi, após alguns minutos de silêncio:“Vocês ouviram? Está escrito aqui que o rei da Noruega está

com câncer no fígado. E aqui o diretor do nosso Comitê Regio‑nal também está com câncer.”

Roni Shindlin, o palhaço, quando encontrava com Tzvi Pro‑vizor no sapateiro ou na comuna de roupas, perguntava zombe‑teiramente:

“E aí, Anjo da Morte? Qual foi o avião que se estraçalhou hoje?”

Entre Tzvi Provizor e Luna Blank criou‑se uma espécie de

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hábito, o de trocarem algumas palavras ao entardecer. Ele se sentava na extremidade direita do banco da esquerda na beira do gramado e ela se sentava perto dele, na extremidade esquerda do banco da direita. Ele conversava com ela e piscava e ela amassa‑va seu lenço entre os dedos. Ela usava um vestido de verão, de alças, leve e gracioso. Elogiava os jardins públicos do kibutz, fru‑to do trabalho dele, e lhe dizia que graças a ele nós vivemos aqui sobre tapetes de grama à sombra de um caramanchão florido e entre canteiros encantadores. Tinha uma certa tendência para usar palavras festivas. Era a educadora da terceira série e exímia em fazer delicados desenhos a lápis, que eram pendurados nas paredes de algumas de nossas pequenas residências. Seu rosto era redondo e sorridente e seus cílios compridos, mas o pescoço era um pouco enrugado, as pernas muito finas e busto ela quase não tinha. Seu marido morrera alguns anos antes quando servia como reservista na fronteira da Faixa de Gaza, e não tinham tido filhos. Nós a víamos como uma figura positiva, que assumira e enfrentara sua tragédia pessoal e se dedicara de corpo e alma à tarefa de ensinar. Tzvi falava com ela sobre variedades de rosas e ela assentia com um movimento de cabeça, como se concordas‑se entusiasticamente com cada palavra. Depois ele lhe explicava com detalhes como fora terrível a praga de gafanhotos que asso‑lara o Sudão. Luna disse:

“Você é um homem tão sensível.”E Tzvi piscou e disse:“De qualquer maneira, eles não têm muitas áreas verdes lá

no Sudão.”Luna disse:“Por que você toma sobre seus ombros toda a aflição que há

no mundo?”E Tzvi lhe respondeu:“Fechar os olhos para os aspectos cruéis da vida, em minha

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opinião, é uma tolice e também um pecado. Fazer, nós pode‑mos muito pouco. Então pelo menos é preciso dizer.”

Em uma das tardes do verão ela o convidou a vir à noitinha tomar um café gelado no quarto dela. Ele veio vestido com as roupas que costumava usar à noite, depois do trabalho, calças cáqui compridas e uma camisa azul‑clara de mangas curtas. Seu rádio transístor estava pendurado no cinto e às oito horas ele pediu licença para ouvir o resumo do noticiário. Nas paredes do quarto de Luna Blank estavam pendurados alguns de seus de‑senhos a lápis, em molduras simples. Nesses desenhos viam‑se garotas sonhadoras e algumas paisagens, colinas pedregosas e oliveiras. Sob a janela ficava uma cama de casal e sobre ela se estendia uma colcha e se espalhavam almofadas com bordados orientais. Na estante branca os livros estavam arrumados segun‑do sua altura, a começar por álbuns de arte sobre Van Gogh e Cézanne e Gauguin, continuando com os volumes da Bíblia hebraica na edição de Casutto, até a série dos romances da Biblio‑teca para o Povo. No centro do quarto havia uma mesa de servir café redonda e junto a ela duas poltronas modestas. Sobre a mesa fora estendida uma toalha bordada e sobre esta estavam dispostos utensílios para servir café e biscoitos para dois. Tzvi Provizor disse:

“É agradável este seu lugar.”E acrescentou:“Limpo. Arrumado.”Luna Blank disse, embaraçada:“Obrigada. Fico contente.”Mas não havia contentamento algum em sua voz, só uma

constrangida tensão.Depois tomaram café e comeram biscoitos e falaram sobre

árvores ornamentais e árvores frutíferas, conversaram sobre as

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dificuldades para manter a disciplina em classe nos tempos atuais, quando tudo é permitido, conversaram sobre a migração de pás‑saros. Tzvi piscou os olhos e disse:

“Em Hiroshima, eu li no jornal, dez anos depois da bomba ainda não há pássaros.”

Luna disse:“Você carrega nos ombros toda a aflição do mundo.”E disse também:“Anteontem, olhando pela janela, num galho baixo da árvo‑

re eu vi uma poupa.”

Assim, os dois começaram a se encontrar nas primeiras horas da noite. Sentavam‑se para conversar em um dos bancos do jar‑dim, debaixo de uma frondosa buganvília, ou tomavam café no quarto de Luna. Ele voltava do trabalho às quatro horas, tomava banho, se penteava em frente ao espelho, vestia as calças cáqui bem passadas com a camisa azul‑clara e ia ao encontro dela. Às vezes trazia consigo mudas das flores da estação para plantar no pequeno jardim particular dela. Uma vez levou um tomo com poemas selecionados de Iaakov Fichman. Ela lhe deu biscoitos de papoula num saquinho, e também um desenho a lápis repre‑sentando dois ciprestes e um banco. Mas já às oito horas, ou oito e meia, se despediam e Tzvi voltava ao seu quarto monástico de solteiro, onde sempre pairava um pesado cheiro de solteiri‑ce. Roni Shindlin, o palhaço, dizia no refeitório que o Anjo da Morte estava descendo sobre a Viúva Negra. Na sala dos jornais, numa tarde, Reuvke Roth disse a Tzvi, com zombeteiro afeto:

“E então, a mão encontrou uma luva, hein?”Mas Tzvi e Luna não se assustaram com as fofocas e com

as alfinetadas. A ligação entre eles se fortalecia quase que dia a dia. Ele lhe revelou que em suas horas vagas, na solidão de seu

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quarto, sentava‑se para traduzir do polonês para o hebraico um romance do escritor Iwaszkiewicz. Um romance cheio de deli‑cadeza e de sofrimento. Para esse escritor, nossa situação aqui no mundo é ridícula, mas toca o coração. Luna o escutou com a cabeça um pouco inclinada, os lábios entreabertos, e serviu mais café quente em sua xícara, como se as coisas que ele con‑tava a ela estivessem atestando que ele precisava de consolo, e o merecia, e como se o café pudesse compensá‑lo um pouco pela aflição do escritor Iwaszkiewicz e por sua própria aflição. Ela sentia que a ligação entre eles lhe era cara e preenchia seus dias, que até então tinham sido sem graça e sempre iguais uns aos outros. Numa das noites sonhou que os dois montavam o mesmo cavalo, o peito dela grudado às costas dele e os braços cingindo sua cintura, e cavalgavam num vale entre altas montanhas onde serpenteava um rio caudaloso. Resolveu não contar esse sonho a Tzvi, embora lhe contasse seus outros sonhos em todos os seus detalhes e com muita serenidade. Ele, por sua vez, piscou os olhos e contou que em sua infância, na pequena cidade de Yanow, na Polônia, sonhara em ser um estudante. Mas quando surgiu o movimento juvenil sionista de pioneiros,* Tzvi se deixou le‑var por ele e desistiu dos estudos. Assim mesmo, não parou de aprender nos livros, durante toda a sua vida. Luna recolheu com cuidado duas pequenas migalhas da toalha da mesa e disse:

“Você foi um rapaz muito tímido. Mesmo agora você ainda é um pouco tímido.”

Tzvi disse:“Você não me conhece muito bem.”

* Os movimentos juvenis sionistas de pioneiros surgiram no início do século xx, em âmbito mundial, na esteira do movimento sionista (1897) e visavam preparar a juventude judaica para imigrar para Erets Israel (a Palestina) como “pioneiros”, geralmente fundando colônias agrícolas coletivas (moshavim, ki‑butzim) para redimir o solo e preparar o país para ser o futuro Estado do povo judeu.

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Luna disse:“Conte‑me. Estou ouvindo.”E Tzvi disse:“Ouvi no rádio esta noite: no Chile um vulcão entrou em erup‑

ção. Quatro aldeias ficaram totalmente soterradas nas correntes de lava. A maior parte dos habitantes não conseguiu fugir.”

Certa noite, quando discorria animadamente para ela sobre a fome na Somália, num rompante de ternura ela subitamente segurou a mão dele e a puxou para o seu colo. Tzvi estremeceu e se apressou a recolher a mão num gesto quase violento. Fortes piscadelas acometeram seus olhos. Em toda a sua vida nunca to‑cara nos outros e se arrepiava se tocavam nele. Ele gostava do con‑tato dos torrões de terra afofada e da maciez dos talos das mudas, mas o toque de pessoas estranhas, homens ou mulheres, o fazia se encolher todo como se tivesse sofrido uma queimadura. Sem‑pre se esquivava de apertos de mão, de batidinhas nos ombros e do roçar casual de um braço em seu braço na mesa do refeitório. Pouco tempo depois se levantou e foi embora. No dia seguinte não veio se encontrar com ela, porque começara a temer que a relação entre eles estivesse levando, de uma maneira que pelo visto era inevitável, a lugares prenhes de perigo, que ele não só não queria como até repugnava. Luna não compreendeu nada, mas com sua sensibilidade adivinhou que com certeza o tinha magoado de algum modo. Resolveu lhe pedir desculpas, embora não soubesse por quê. Será que lhe fizera uma pergunta que não era para ser feita? Ou talvez tivesse falhado em captar alguma insinuação importante codificada entre as palavras dele?

Alguns dias depois enfiou por baixo da porta do quarto dele um bilhete escrito em sua caligrafia redonda e ingênua:

Perdão se o magoei. Vamos poder conversar?Tzvi lhe respondeu com um bilhete:Melhor não. Isso não vai acabar bem.

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Assim mesmo ela o esperou embaixo do cinamomo na saí‑da do refeitório, depois do jantar, e perguntou, envergonhada:

“Explique‑me, o que foi que eu fiz?”“Nenhuma coisa ruim.” “Então por que você está se afastando de mim?”“Entenda: isso é… desnecessário.”

Desde então não se encontraram mais, e quando passavam um pelo outro no caminho, ou se encontravam no pequeno al‑moxarifado,* cumprimentavam‑se com um leve aceno de ca‑beça, hesitavam um instante e continuavam cada qual em seu caminho.

Na hora do almoço Roni Shindlin disse aos que estavam sentados à sua mesa que o Anjo da Morte tinha interrompido sua lua de mel e que de agora em diante estávamos todos novamente em perigo. E de fato Tzvi começou a contar aos solteiros que se reuniam na sala dos jornais que na Turquia uma grande ponte tinha desmoronado, exatamente na hora de maior movimento.

Dois ou três meses depois começamos a notar que Luna Blank tinha parado de ir às reuniões do grupo de amigos da mú‑sica clássica e até estava faltando a algumas reuniões de profes‑sores. Ela tingiu seu cabelo de vermelho‑cobre e começou a usar um batom de cor forte. De vez em quando não vinha jantar. Na festa de Sucot, viajou para a cidade, onde ficou alguns dias e de onde voltou usando um vestido que nos pareceu um tanto ousado, com uma profunda abertura no lado. No início do ou‑tono nós a vimos algumas vezes sentada no banco em frente ao

* Como no kibutz não havia propriedade privada nem circulava dinheiro, os pequenos produtos necessários no dia a dia (material de higiene, cigarros, pe‑quenos utensílios etc.) eram distribuídos, segundo um sistema de pontos, nos almoxarifados destinados a esse fim.

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grande gramado na companhia do treinador de basquete, um homem dez anos mais moço que ela que vinha de Netanya para o kibutz duas vezes por semana. Roni Shindlin comentou que ela com certeza estava aprendendo a quicar e driblar durante as noites. Depois de duas ou três semanas ela se afastou do treina‑dor de basquete e começou a ser vista por nós na companhia de um comandante de pelotão da Nachal,* um rapaz de uns vinte e dois anos de idade. Já não era possível deixar isso passar e o comitê educacional realizou uma reunião discreta para discutir as projeções dessa situação sob o ponto de vista educacional. Toda noite Tzvi Provizor se sentava sozinho no banco diante da fonte com o repuxo que tinha construído com as próprias mãos, observando, imóvel, as crianças que brincavam na grama. Se você passasse por ele e o cumprimentasse com um boa‑noite, ele respondia com outro boa‑noite e lhe contava com tristeza sobre as inundações que tinham ocorrido no sudeste da China.

E no início do inverno, sem aviso prévio, no meio do ano letivo, Luna Blank viajou sem licença da secretaria executiva do kibutz para encontrar sua irmã, que vivia nos Estados Uni‑dos. A irmã tinha lhe enviado uma passagem e Luna foi vista certa manhã no ponto de ônibus, usando seu vestido ousado e uma echarpe colorida, se equilibrando em cima de sapatos de salto alto e arrastando uma grande mala. “Vestida a caráter para Hollywood”, disse Roni Shindlin. A secretaria executiva decidiu suspender sua condição de membro do kibutz até que a questão fosse debatida e Roni Shindlin disse a seus comensais de sempre: “A Viúva Negra está fugindo do Anjo da Morte”.

* Nachal (sigla de Noar chalutzi latsavá, “juventude pioneira no exército”): a divisão do exército israelense em que servem grupos orgânicos de jovens dos movimentos juvenis, que pretendem ir viver em kibutzim depois do exército e, por isso, passam parte de seu serviço militar trabalhando em kibutzim, aos quais muitas vezes se integram depois.

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Enquanto isso o quarto de Luna Blank permanecia tranca‑do e às escuras, embora no comitê de moradia já houvesse gente de olho nesse quarto, por causa da carência de unidades habita‑cionais. Na pequena varanda tinham ficado cinco ou seis vasos de plantas simples, filodendros, gerânios e cactos, e Tzvi Provi‑zor passava às vezes por lá para regá‑los e afofar‑lhes a terra.

Depois veio o inverno. Nuvens baixas roçavam as copas das árvores ornamentais. Nos campos e nos pomares a lama era pesa‑da e os que trabalhavam nas culturas de cereais e de frutas eram escalados para trabalhar na fábrica. As chuvas eram cinzentas e não paravam de cair. Durante as noites as calhas faziam barulho e um vento frio se infiltrava pelas frestas das persianas. Todas as noites, até as dez e meia, Tzvi Provizor ficava sentado ouvindo todas as edições dos noticiários e entre uma edição e outra se curvava sobre sua mesa monástica, à luz de uma luminária cor‑cunda, e traduzia para o hebraico mais algumas linhas do livro carregado de sofrimento do escritor polonês Iwaszkiewicz. Aci‑ma de sua cama estava pendurado o desenho a lápis que Luna lhe dera, dois ciprestes e um banco. Os ciprestes lhe pareciam tristes, e no banco não havia ninguém. Às dez e meia se agasa‑lhava e saía para ficar de pé em sua varanda e contemplar as nuvens baixas e os caminhos de concreto desertos e molhados, à luz amarela do lampião. Se houvesse uma interrupção entre uma chuva e outra, saía para um pequeno passeio noturno e veri ficava como iam os vasos de planta na varanda dela. Os de‑graus da varanda já estavam cobertos de folhas decíduas e Tzvi imaginava sentir o sopro de um aroma de sabonete ou xampu vindo de dentro do quarto trancado. Depois vagava um pouco pelos caminhos desertos do kibutz, enquanto gotas de chuva caíam dos galhos das árvores sobre sua cabeça descoberta, vol‑

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tava para seu quarto para ouvir, os olhos a piscar, sem acender a luz, a última edição do noticiário.

Um dia, bem cedo na madrugada, quando a escuridão gela‑da e úmida ainda envolvia tudo, parava no meio do caminho um dos trabalhadores do estábulo que seguia para a ordenha matinal e lhe dava a notícia, com tristeza:

“Você ouviu? Esta noite morreu o rei da Noruega. Ele tinha câncer. No fígado.”