entre abalos ontológicos e novas pulsações

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1807-1384.2014v11n2p229 Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não Adaptada. ENTRE ABALOS ONTOLÓGICOS E NOVAS PULSAÇÕES: A SOCIEDADE PÓS- MODERNA E A NECESSÁRIA RECONCEITUALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Agnaldo Sousa Barbosa 1 Ana Carolina de Morais Colombaroli 2 Resumo: O presente ensaio tem como objetivo empreender uma reflexão acerca dos caminhos e descaminhos da chamada pós-modernidade, considerando a dinâmica da mudança social operada em seu contexto e a modificação dos parâmetros de sociabilidade do homem pós-moderno, buscando relacioná-los com uma concepção prática, multicultural e, sobretudo, efetiva dos direitos humanos. Na “pós-modernidade” evidencia-se um poder crescente dos atores sociais e uma emancipação das estruturas tradicionais. O espaço ocupado pelas estruturas modernas tradicionais se reduz cotidianamente. Os indivíduos apresentam-se cada vez menos controlados pela tradição e pela convenção; uma maior modernização lhes exige mais informação, educação e democratização, o que permite a crítica da realidade e a reflexão sobre si mesmo. As identidades não mais se vinculam exclusivamente aos conflitos entre capital e trabalho, mas ligam-se intimamente ao conflito “emancipação X opressão”. Essas emancipações diversas são justamente a expressão da pós-modernidade. A sociedade já não suporta um cenário cultural linear, homogeneizante, monocêntrico. A concepção jurídico-positiva e formalista dos direitos fundamentais não é suficiente para a nova sociedade. Os direitos humanos devem ser encarados como fruto de nossas práticas sociais e relações humanas, buscando consolidar novas formas de normatividade, que atendam às necessidades das novas coletividades e de novas sociabilidades. Palavras-chave: Sociedade pós-moderna. Mudança Social. Emancipação. Direitos humanos. Reconceitualização. 1 INTRODUÇÃO A partir de meados da década de 1970, em respostas às crises econômicas do período, processaram-se em escala global profundas modificações na dinâmica de 1 Doutor e Pós-Doutor em Sociologia. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Franca, SP, Brasil. Professor e pesquisador do Depto. de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas da mesma instituição. E-mail: [email protected] 2 Bacharelanda em Direito na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Franca, SP e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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A sociedade pós moderna e a necessária reconceitualização dos direitos humanos

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    Esta obra foi licenciada com uma Licena Creative Commons - Atribuio 3.0 No Adaptada.

    ENTRE ABALOS ONTOLGICOS E NOVAS PULSAES: A SOCIEDADE PS-MODERNA E A NECESSRIA RECONCEITUALIZAO DOS DIREITOS HUMANOS

    Agnaldo Sousa Barbosa1 Ana Carolina de Morais Colombaroli2

    Resumo: O presente ensaio tem como objetivo empreender uma reflexo acerca dos caminhos e descaminhos da chamada ps-modernidade, considerando a dinmica da mudana social operada em seu contexto e a modificao dos parmetros de sociabilidade do homem ps-moderno, buscando relacion-los com uma concepo prtica, multicultural e, sobretudo, efetiva dos direitos humanos. Na ps-modernidade evidencia-se um poder crescente dos atores sociais e uma emancipao das estruturas tradicionais. O espao ocupado pelas estruturas modernas tradicionais se reduz cotidianamente. Os indivduos apresentam-se cada vez menos controlados pela tradio e pela conveno; uma maior modernizao lhes exige mais informao, educao e democratizao, o que permite a crtica da realidade e a reflexo sobre si mesmo. As identidades no mais se vinculam exclusivamente aos conflitos entre capital e trabalho, mas ligam-se intimamente ao conflito emancipao X opresso. Essas emancipaes diversas so justamente a expresso da ps-modernidade. A sociedade j no suporta um cenrio cultural linear, homogeneizante, monocntrico. A concepo jurdico-positiva e formalista dos direitos fundamentais no suficiente para a nova sociedade. Os direitos humanos devem ser encarados como fruto de nossas prticas sociais e relaes humanas, buscando consolidar novas formas de normatividade, que atendam s necessidades das novas coletividades e de novas sociabilidades. Palavras-chave: Sociedade ps-moderna. Mudana Social. Emancipao. Direitos humanos. Reconceitualizao. 1 INTRODUO

    A partir de meados da dcada de 1970, em respostas s crises econmicas do

    perodo, processaram-se em escala global profundas modificaes na dinmica de

    1 Doutor e Ps-Doutor em Sociologia. Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Planejamento e Anlise de Polticas Pblicas da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Franca, SP, Brasil. Professor e pesquisador do Depto. de Educao, Cincias Sociais e Polticas Pblicas da mesma instituio. E-mail: [email protected] 2 Bacharelanda em Direito na Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Franca, SP e bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, So Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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    acumulao do capital e das formas de organizao do trabalho, afetando

    dramaticamente dimenses fundamentais da vida social. Tais mudanas, que se

    deram especialmente como reflexo do engendramento de uma dinmica de

    acumulao flexvel3 (HARVEY, 1995) e do conseqente abalo das estruturas da

    sociedade salarial4 (CASTEL, 1998), foram sentidas com maior intensidade no Brasil

    a partir da segunda metade da dcada seguinte.

    No turbilho destas transformaes o mundo vivenciou a crise do Estado-

    Providncia, o avano do neoliberalismo e uma rpida e impetuosa modernizao

    cientfico-tecnolgica. Ao mesmo tempo, ganharam fora os movimentos sociais e de

    luta pela democracia: seja na oposio ao socialismo autoritrio no leste europeu, no

    enfrentamento das ditaduras latino-americanas ou, no caso do sul-africano, no

    combate ao apartheid, dentre outros. Diante da rapidez dos acontecimentos, a

    realidade parece ter tomado definitivamente a dianteira sobre a teoria para

    utilizarmos as palavras do socilogo portugus Boaventura de Sousa Santos (1995, p.

    18).

    Os atores sociais da ps-modernidade so outros. Seu poder cresceu

    concomitante emancipao das estruturas tradicionais. A indstria fordista, o

    trabalho assalariado, a crena incondicional na cincia e a famlia nuclear foram

    perdendo cada vez mais espao. A tradio e a conveno passaram a exercer menos

    influncia sobre os indivduos. Tal dinmica modernizadora e emancipatria vem

    exigindo dos indivduos maior informao, domnio de novos cdigos e contedos

    cognitivos e democratizao processos estes que permitem a crtica da realidade e

    reflexo sobre si e sobre o meio social (BECK, GIDDENS & LASH, 1997).

    As lutas materializadas na polarizao entre capital e trabalho passaram,

    gradativamente, a dividir espao com os conflitos caractersticos da ps-modernidade,

    3 De acordo com Harvey, no contexto do que chama de acumulao flexvel (caracterizada pela flexibilizao dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padres de consumo), novos sistemas de coordenao foram implantados, quer por meio de uma complexa variedade de arranjos de subcontratao (que ligam pequenas firmas a operaes de larga escala, com freqncia multinacionais), atravs da formao de novos conjuntos produtivos em que as economias de aglomerao assumem crescente importncia, quer por intermdio do domnio e da integrao de pequenos negcios sob a gide de poderosas organizaes financeiras ou de marketing (a Benetton, por exemplo, no produz nada diretamente, sendo apenas uma potente mquina de marketing que transmite ordens para um amplo conjunto de produtores independentes). (1995, p. 150) 4 Uma sociedade salarial uma sociedade na qual a maioria dos sujeitos sociais recebe no somente sua renda, mas tambm seu estatuto, seu reconhecimento, sua proteo social. A sociedade salarial promoveu, neste sentido, um tipo completamente novo de segurana: uma segurana relacionada ao trabalho, e no somente propriedade (Castel, 1998, p. 150)

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    em especial aqueles que ampliaram o enfrentamento entre emancipao e opresso

    para as reivindicaes de gnero, raa, religio e cultura. Na tessitura scio-poltica

    desse novo cenrio, trs tenses dialticas so identificadas por Boaventura de Sousa

    Santos (1997, p. 12) na composio da trama da contemporaneidade ocidental: entre

    regulao social e emancipao social, entre Estado e sociedade civil e, por fim, entre

    Estado-nao e globalizao. Tais conflitos suscitam o questionamento sobre a

    globalizao da regulao e da emancipao social. A sociedade j no sustenta um

    cenrio cultural linear, homogeneizante, monocntrico; as construes transgressoras,

    plurais e transdisciplinares no podem ser contidas (WOLKMER, 2010, p. 7).

    Diante do avano neoliberal, dos atuais processos de dominao e excluso, se

    faz necessrio repensar a concepo de direitos humanos, questionar sua viso

    personalista, universalista, abstrata e estatizante. Neste aspecto, concordamos com o

    argumento de Antnio Carlos Wolkmer (2010, p. 7), segundo o qual devemos ir alm e

    buscar, lutar e consolidar uma outra formulao de normatividade, nascida das

    prticas e relaes sociais, expresso mais autntica das necessidades de novas

    coletividades e de novas sociabilidades. Para Wolkmer (2006, p. 113), o empenho

    maior e inconteste neste incio do novo milnio como tomar parte deste cenrio de

    mundializao neoliberal, mas sem deixar de estar consciente e agir no mbito cultural

    da diversidade e da legitimidade local.

    Nas pginas que seguem, empreenderemos uma reflexo acerca dos caminhos

    e descaminhos da chamada ps-modernidade, considerando a dinmica da mudana

    social operada em seu contexto e a modificao dos parmetros de sociabilidade do

    homem ps-moderno; nossa inteno, com isso, buscar relacion-los com uma

    concepo prtica, multicultural e, sobretudo, efetiva dos direitos humanos.

    2. PS-MODERNIDADE: EXPRESSES, PULSAES, ABALOS E

    RECONTEXTUALIZAES

    A expresso ps-modernidade vem sendo comumente utilizada para definir o

    contexto histrico representado pelas transformaes poltico-econmico-sociais

    ocorridas em todo o mundo a partir da dcada de 1970. Ainda que no seja uma

    definio livre de crticas, seu uso tem difuso e aceitao mais ampla que as

    tentativas de interpretao presentes nas acepes de hipermodernidade

    (LIPOVETSKY & CHARLES, 2004), modernizao reflexiva (BECK, GIDDENS &

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    LASH, 1997) ou modernidade lquida (BAUMAN, 2001). No nos deteremos aqui,

    com efeito, no confronto entre as possibilidades de interpretao desse processo

    histrico contidas em distintas expresses. Grosso modo, as crticas ao termo ps-

    modernidade se pautam pela negao da ideia de ruptura expressa na ambiguidade

    do termo ps entre as estruturas erigidas pelas transformaes das quatro ltimas

    dcadas e aquelas do perodo anterior. H ainda quem entenda o discurso da ps-

    modernidade como uma negao dos princpios do projeto iluminista caractersticos da

    modernidade, cujo resultado o irracionalismo e o conservadorismo (HABERMAS,

    2000).

    Nossa anlise permeada pela compreenso da superao das condies

    histrico-sociais que demarcaram a vigncia do projeto da modernidade,

    consubstanciado na prevalncia da cincia e da tcnica, no domnio absoluto da

    burocracia racional-legal do Estado-nao, na hegemonia da grande empresa

    capitalista e no predomnio da sociedade salarial do trabalho industrial. Todavia, isso

    no equivale negao total das vises anteriormente mencionadas. Pelo contrrio,

    consideramos o vigor de suas interpretaes acerca das transformaes de nossa

    poca fundamentais para o entendimento da profundidade das mudanas em curso

    nas ltimas dcadas.

    2.1 A GLOBALIZAO ECONMICA COMO EXPRESSO DA PS-MODERNIDADE: NOVAS PULSAES E ABALOS ONTOLGICOS

    muito difcil definir precisamente o que globalizao. Muitas das definies

    referem-se s transformaes ocorridas na economia mundial, com a

    transnacionalizao de bens, servios e do mercado financeiro. Para os objetivos do

    presente ensaio, julga-se pertinente tratar desse fenmeno sob uma tica social,

    poltica e cultural. E, nesse sentido, importante cuidar para que a globalizao no

    represente simplesmente uma verso da histria contada pelos vencedores.

    Para Octvio Ianni (2000, p. ix), a globalizao est presente na realidade e no

    pensamento, desafiando um grande nmero de pessoas em todo o mundo. O

    socilogo fala em aldeia global, como expresso da globalidade de ideias, padres e

    valores, podendo ser entendida como uma cultura de massas, mercados e bens

    culturais, com smbolos, linguagens e sinais que determinam formas de

    relacionamento (IANNI, 2000, p. 119). J Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 14),

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    prope a seguinte definio para o termo: globalizao o processo pelo qual

    determinada condio ou entidade local estende a sua influncia a todo o globo e, ao

    faz-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condio social ou

    entidade rival. A concepo desse socilogo traz consigo uma srie de implicaes:

    aquilo que chamamos de globalizao , na verdade, a globalizao bem sucedida de

    um determinado localismo; a globalizao de um determinado padro implica,

    necessariamente, na localizao e particularizao de outros.

    Outro fenmeno importante diretamente relacionado ao da globalizao a

    modificao das noes de tempo e espao em especial, no que diz respeito

    dinmica de compresso desses elementos. Os fenmenos e informaes difundem-

    se pelo globo com uma velocidade nunca antes imaginada, alterando parmetros de

    percepo da realidade social quanto ao andamento e alcance de quaisquer

    experincias. As fronteiras parecem dissolver-se, novos horizontes se abrem,

    duraes e distncias se comprimem.

    Em paralelo globalizao da economia surgem preocupaes com o

    patrimnio comum da humanidade e com o meio ambiente, que somente tm sentido

    quando referenciado noo de totalidade. No entanto, tais temticas tm estado sob

    constante ataque dos pases hegemnicos. Nesse sentido, de acordo com a crtica

    aguda de Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 18), os conflitos, as resistncias, as

    lutas e as coligaes em torno do cosmopolitismo e do patrimnio comum da

    humanidade demonstram que aquilo a que chamamos de globalizao , na verdade,

    um conjunto de arenas de lutas fronteirias. As implicaes disso para a anlise social

    so evidentes. Conforme ressalta Antony Giddens (1997, p. 74),

    A nova agenda da cincia social diz respeito a duas esferas de transformao, diretamente relacionadas [...] Por um lado h a difuso extensiva das instituies modernas, universalizadas por meio dos processos de globalizao. Por outro, mas imediatamente relacionados com a primeira, esto os processos de mudana intencional, que podem ser conectados radicalizao da modernidade. Estes so processos de abandono, desincorporao e problematizao da tradio.

    E no universo do trabalho e da produo que o impacto desse reordenamento

    global faz-se sentir de forma pioneira. inegvel a radicalidade das mudanas em

    processos de trabalho, hbitos de consumo, poderes e prticas estatais, configuraes

    geogrficas e geopolticas. Tais dinmicas so impulsionadas pelo aprofundamento da

    globalizao econmica, marcada por fuses empresariais, reestruturao produtiva,

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    relocalizao industrial, hipercompetitividade e financeirizao. Vivencia-se a transio

    do modelo fordista clssico para o paradigma da acumulao flexvel, apoiada num

    modelo de trabalho igualmente flexvel, cujas principais caractersticas so a

    polivalncia, a subcontratao e o exerccio de atividades part-time. O abalo da

    sociedade salarial toma sua forma na radical reestruturao do mercado de trabalho,

    com a imposio de regimes e contratos mais flexveis, na reduo do emprego

    regular, paralelamente ao aumento do nmero de trabalhadores temporrios, de tempo

    parcial ou subcontratados. Como conseqncia, h o desmantelamento das

    organizaes da classe trabalhadora, alm da transformao dos objetivos e da luta

    de classes.

    Diante desse cenrio, Anthony Giddens chama a ateno para os efeitos

    colaterais de tais mudanas e caracteriza esse momento histrico como um perodo

    de insegurana ontolgica (BECK, GIDDENS & LASH, 1997), representado pela

    perda da estabilidade dos referenciais econmico-sociais fixos e slidos da

    modernidade. Em sua crtica negatividade que a emancipao de tais referenciais

    produz nos indivduos do nosso tempo, consubstanciando uma ideia de liberdade

    como angstia, Zygmunt Bauman (2001, p. 27) retrata com preciso as fraturas

    psicossociais engendradas por esse abalo ontolgico: ser abandonado a seus

    prprios recursos anuncia tormentos mentais e a agonia da indeciso, enquanto a

    responsabilidade sobre os prprios ombros prenuncia um medo paralisante do risco e

    do fracasso.

    Esto cada vez mais confusas e contraditrias nossas concepes sobre o

    capitalismo, o Estado, o poder e o direito (SANTOS, 1995, p. 115). Vivemos um

    momento de transio e a prospeco do futuro nos revela um mundo sob os

    auspcios da incgnita. Devido aos grandes avanos cientfico-tecnolgicos, a

    capacidade de ao do homem ps-moderno cada vez maior, enquanto a

    capacidade de previso cada vez menor. O futuro est mais prximo e, ao mesmo

    tempo, imperscrutvel. Conforme nos alerta Ilya Prigogine, em sua obra O Fim das

    Certezas, estamos numa situao de bifurcao em que a menor mudana no

    sistema pode produzir um desvio de largas propores (PRIGOGINE apud SANTOS,

    1995, p. 37). Zygmunt Bauman (2001, p. 14), da mesma forma, descreve esse perodo

    de transio de modo no menos dramtico:

    Estamos passando de uma era de grupos de referncia predeterminados a uma outra de comparao universal, em que o destino dos trabalhos de

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    autoconstruo individual est endmica e incuravelmente subdeterminado, no est dado de antemo, e tende a sofrer numerosas e profundas mudanas (grifo nosso).

    O conhecimento, por sua vez, passa a ser considerado principal ferramenta

    produtiva, modificando completamente a validade das categorias econmicas

    tradicionais. O trabalho se apropria dos saberes do indivduo de forma integral,

    inclusive de suas habilidades cotidianas. A riqueza antes constituda por capital

    material fixo est sendo substituda por um capital dito imaterial, tambm chamado de

    capital humano, que valoriza a inteligncia, o saber e a imaginao do indivduo

    (GORZ, 2005, p. 15-16). A produo deixa de ter como caracterstica essencial a

    centralidade de estoques e meios fsicos (matrias-primas, mquinas, manufatura,

    etc.) e passa a ser hegemonizada por meios imateriais e estoques imaginativos

    (softwares, conhecimento, C&T, etc.). Em outras palavras, o conhecimento o insumo

    primordial do capitalismo ps-industrial, uma vez que a nova dinmica produtiva e a

    nova funcionalidade dos bens de consumo dependem diretamente de contedos

    cognitivos e de seu aperfeioamento contnuo para sustentar o processo de

    acumulao.

    De outra parte, se a natureza do trabalho fordista/taylorista se distinguia pela

    expropriao de saberes do indivduo, produzindo o gorila domesticado na

    memorvel acepo de Taylor, o trabalho na ps-modernidade (ps-fordista), pelo

    contrrio, se apropria dos saberes do indivduo de forma integral. Apropria-se,

    inclusive, das habilidades cotidianas adquiridas no lazer e no entretenimento. Como

    ressalta Andr Gorz (2005, p. 19), seu saber vernacular que a empresa ps-fordista

    pe para trabalhar, e explora.

    Diante das exigncias cognitivas representadas pela nova configurao do

    mercado de trabalho, faz-se imperativo ao indivduo adquirir habilidades no

    processamento de informao, o que exige alto nvel de instruo e informao. Eis o

    pressuposto do fenmeno chamado por Anthony Giddens, Scott Lash e Ulrich Back de

    modernizao reflexiva: tendo em vista que os pr-requisitos para mais

    modernizao so educao, informao e democratizao (no aspecto poltico-

    social), tal processo permite pela qualificao dos atores a reflexo sobre si

    mesmo e a crtica da realidade. Considerando que a nova fora de trabalho deve

    possuir cada vez mais um alto nvel de instruo e grau cada vez mais elevado de

    conhecimentos acerca de processos de informao, estes indivduos menos

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    controlados pela tradio e pela conveno sero cada vez mais livres para estar em

    oposio heterodoxa s conseqncias distpicas da modernizao (BECK,

    GIDDENS & LASH, 1997, p. 138).

    A relao entre o moderno e o ps-moderno mostra-se ainda bastante

    contraditria. H situaes de completa ruptura ao lado de situaes de continuidade.

    No entanto, h que se precaver para evitar o equvoco de caracterizar a ps-

    modernidade como cultura de fragmentao. Nas palavras de Boaventura de Sousa

    Santos (1995, p. 110),

    A fragmentao maior e mais destrutiva foi-nos legada pela modernidade. A tarefa agora a de, a partir dela, reconstruir um arquiplago de racionalidades locais, nem mnimas nem mximas, mas to-s adequadas s necessidades locais, quer existentes, quer potenciais, e na medida em que elas foram democraticamente formuladas pelas comunidades interpretativas.

    2.2 SOCIABILIDADE E IDENTIDADE PS-MODERNA: RECONTEXTUALIZAO E NOVOS MPETOS

    O indivduo ps-moderno mostra-se muito diverso do homem moderno

    tradicional: modifica-se sua relao com o trabalho, com o conhecimento, com a

    educao, com o mundo e com as outras pessoas. evidente a recontextualizao e

    reparticularizao das identidades e das prticas, o que leva a uma reformulao dos

    vnculos de nacionalidade, classe, raa, etnia e sexualidade (SANTOS, 1995).

    Decididamente, as ltimas dcadas foram marcadas pelo regresso do indivduo.

    Para Giddens, Lash & Back esse fenmeno pode ter um sentido positivo se

    corresponder emancipao das estruturas rgidas da modernidade tradicional

    indstria fordista, trabalho assalariado, crena incondicional na cincia, famlia nuclear,

    etc. Conforme argumentam, a modernizao plena s acontece quando uma maior

    individualizao tambm liberta a ao at dessas estruturas sociais (simplesmente)

    modernas (1997, p. 139). Por outro lado, a anlise acurada de Boaventura de Sousa

    Santos (1995, p. 20-21) nos chama a ateno para o paradoxo inerente a esse

    processo de individualizao:

    Contudo, em aparente contradio com isso, o indivduo parece hoje menos individual do que nunca, a sua vida ntima nunca foi to pblica, a sua vida sexual nunca foi to codificada, a sua liberdade de expresso nunca foi to inaudvel e to sujeita a critrios de correo poltica, a sua liberdade de escolha nunca foi to derivada das escolhas feitas por outras antes dele.

    No mbito do trabalho se sobressai a figura do auto-empreendedor. O indivduo

    tornou-se uma "pequena empresa" e tem de "produzir a si mesmo": deve aprimorar

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    seus conhecimentos continuamente para manter-se no mercado de trabalho, tem

    metas a cumprir e h que se desdobrar para faz-lo. No h mais separao entre o

    trabalhador, trabalho e produto: todos os aspectos da vida do indivduo, inclusive suas

    atividades de lazer, tornam-se dimenso do trabalho imaterial.

    Em contrapartida, diante das novas exigncias mercadolgicas, a mo-de-obra

    teve de se capacitar, atingindo altos nveis de educao e informao; disso decorre o

    processo de modernizao reflexiva, uma reflexo sobre si mesmo e uma crtica a

    respeito da realidade. Em oposio modernizao convencional, a modernizao

    reflexiva abre uma individualizao genuna, abre possibilidades de subjetividade

    autnoma em relao a seus ambientes naturais, sociais e psquicos (BECK;

    GIDDENS; LASH, 1995).

    O indivduo mostra-se cada vez menos controlado pelas estruturas sociais

    tradicionais. Emancipa-se, torna-se um ator social de fato, com um poder crescente

    nas mos. O ser humano ps-moderno no pode simplesmente ser enquadrado como

    membro da classe proletria ou da classe burguesa. Suas relaes sociais so

    inmeras e complexas, as circunstncias em que vive e interage so diferenciadas. Na

    acepo de Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 107):

    Somos um arquiplago de subjetividades que se combinam diferentemente sob mltiplas circunstncias pessoais e coletivas. Somos de manh cedo privilegiadamente membros de famlia, durante o dia de trabalho somos classe, lemos o jornal como indivduo e assistimos ao jogo de futebol da equipe nacional como nao. Nunca somos uma subjetividade em exclusivo, mas atribumos a cada uma delas, consoante as condies, o privilgio de organizar a combinao com as demais. medida que desaparece o coletivismo grupal, desenvolve-se, cada vez mais, o coletivismo da subjetividade.

    Por isso no simples falar das relaes sociais do final do sculo XX e incio

    do sculo XXI. Percebe-se muito claramente o desgaste e as mudanas nas formas

    tradicionais de representao social, ao mesmo tempo em que surgem novos e

    expressivos movimentos sociais. O homem e a sociedade ps-moderna esto muito

    alm do mundo do trabalho e do Estado.

    Na viso de Octvio Ianni (2000, p. 124):

    No mbito da sociedade mundial em formao, quando se revelam cada vez mais numerosos e generalizados os sinais da globalizao, tambm multiplicam-se os pastiches, os simulacros e as virtualidades. As mais diversas realidades sociais, em suas expresses econmicas, polticas e culturais, adquirem configuraes desconhecidas e imaginadas, no s pelo pblico em geral, mas tambm pelos cientistas sociais. Em todas as esferas da vida social, compreendendo evidentemente as empresas transnacionais e as organizaes multilaterais, os meios de comunicao de massa e as igrejas,

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    as bolsas de valores e os festivais de msica popular, as corridas automobilsticas e as guerras, tudo se tecnifica, organiza-se eletronicamente, adquire as caractersticas do espetculo produzido com base nas redes eletrnicas informticas automticas instantneas universais.

    Enquanto a produo difundida pelo globo, fragmentando geogrfica e

    socialmente o processo de trabalho, as classes trabalhadoras so isoladas,

    transformando o operariado em mera fora de trabalho o que, de certa forma,

    neutraliza e arrefece o mpeto do movimento operrio. A classe mdia cada vez mais

    lida com a questo do auto-emprego. grande o nmero de trabalhadores que

    oscilam entre empregos formais, trabalhos como profissionais liberais e gesto de

    novas pequenas empresas. Reduzem-se as oportunidades de trabalho assalariado

    formal.

    As relaes sociais passam por um fenmeno primeira vista incoerente. Estas

    so cada vez mais desterritorializadas, ultrapassando no s fronteiras nacionais,

    mas, e principalmente de costumes, nacionalismo, linguagem e ideologia. Segundo

    Boaventura de Sousa Santos (1995, p. 22), paradoxalmente, assiste-se a um

    desabrochar de nossas identidades regionais e locais aliceradas numa revalorizao

    do direito s razes (grifo nosso). Os vnculos de identificao social multiplicam-se e

    se sobrepem.

    No mbito da representao, os partidos polticos tm demonstrado uma

    reduzida capacidade de representao social. Isso se d com especial intensidade no

    Brasil, em razo dos longos perodos de ditadura e inmeros processos de

    modificao dos sistemas partidrios. Os sindicatos, mais importantes representantes

    do movimento operrio, tm o seu poder limitado pelas modificaes econmicas da

    ps-modernidade. Ao passo que surgem e ganham fora os novos movimentos

    sociais.

    A internacionalizao da produo e o conseqente enfraquecimento dos

    movimentos operrios propiciaram a emergncia de novos movimentos sociais, com

    novos sujeitos e novas prticas de mobilizao. Seus interesses no so voltados ao

    moderno conflito entre capital e trabalho, visando, todavia, questes fora do mundo da

    produo e do marco poltico nacional.

    A mais-valia econmica apenas mais um dos componentes de dominao.

    Neste aspecto:

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    A mais valia pode ser sexual, tnica, religiosa, etria, poltica, cultural; pode ter lugar no hbito (que no no ato) de consumo; pode ter lugar nas relaes desiguais entre grupos de presso, partidos ou movimentos polticos que decidem o armamento e o desarmamento, a guerra e a paz; pode ainda ter lugar nas relaes sociais de destruio entre a sociedade e a natureza, ou melhor, entre os recursos ditos humanos e os recursos ditos naturais da sociedade (SANTOS, 1995, p. 260).

    Os novos movimentos sociais incluem os movimentos de consumo, feministas,

    ecolgicos, pacifistas, antiracistas, de auto-ajuda e religiosos. Identificam formas de

    dominao social que ultrapassam os limites das relaes de produo, tal qual a

    guerra, a poluio, a degradao ambiental, o racismo e o machismo. Sua novidade

    consiste no fato de representarem uma crtica tanto regulao social capitalista

    quanto emancipao social tal qual foi definida pelo marxismo. Advogam um

    paradigma social singular, que se preocupa mais com a cultura e a qualidade de vida

    do que com riqueza e bem estar material.

    Para esses novos movimentos sociais, a prioridade no se encontra no Estado

    ou no Mercado, mas sim na fora da sociedade como um novo espao comunitrio de

    efetivao da pluralidade democrtica, comprometida com a alteridade e com a

    diversidade cultural (WOLKMER, 2006, p. 114). De acordo com Boaventura de Sousa

    Santos (1995, p. 261), a emancipao por que lutam os novos movimentos sociais no

    poltica,

    [...] mas antes pessoal, social e cultural. As lutas em que se traduzem pautam-se por formas organizativas (democracia participativa) diferentes das que presidiram as lutas pela cidadania (democracia representativa) [...]. As formas de opresso e de excluso contra as quais lutam no podem, em geral, ser abolidas com mera concesso de direitos, como tpico da cidadania; exigem uma reconverso global dos processos de socializao e de incluso social e dos modelos de desenvolvimento, ou exigem transformaes concretas imediatas e locais, [...] exigncias que, em ambos os casos, extravasam a mera concesso de direitos abstratos e universais.

    Uma caracterstica importante a localizao momentnea e espacial da luta dos

    novos movimentos sociais. O quotidiano deixa de ser um mbito menor, descartvel e

    passa a ocupar o palco principal de luta para uma vida melhor, um mundo melhor.

    Impe-se buscar, lutar e consolidar uma outra formulao de normatividade, nascida

    das prticas e relaes sociais, expresso mais autntica das necessidades de novas

    coletividades e de novas sociabilidades (WOLKMER, 2010, p. 7).

    A globalizao e os conflitos em espaos scio-polticos marginais,

    sobrecarregados e dspares como a Amrica Latina torna urgente o reconhecimento

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    dos novos movimentos sociais como forma autntica de engendrar prticas legais

    emancipadoras e construir direitos humanos, assim como perfilhar aes contra-

    hegemnicas (WOLKMER, 2006, p. 121).

    3 UMA CONCEPO MULTICULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS

    necessrio questionar o suporte jusnaturalista e liberal do sistema de garantias

    de carter moral, transcendental e linear dos direitos humanos. Em razo da garantia

    moral, assenta-se a existncia de direitos individuais e de propriedade, cuja supremacia

    apregoada inconteste, em detrimento de contextos e prticas sociais. A garantia

    transcendental indica a nfase a um mbito indiferente s relaes e ingerncias

    humanas. Em relao garantia liberal e progressista, considera-se a preexistncia do

    bem, construdo em um plano ideolgico, que considera o mundo como homogneo.

    A tradio liberal repercute no pensamento e nas instituies ocidentais,

    influenciando sobremaneira a concepo de direitos humanos, de forma abstrata,

    simplista e estreita. Segundo a tese de Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 18-19),

    enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos

    tendero a operar como globalismo localizado uma forma de globalizao de cima

    para baixo. Sero [...] como arma do Ocidente contra o resto do mundo.

    Os direitos humanos como o so concebidos, seja em seu sentido amplo

    (terico), seja em seu sentido estrito (positivao jurdica), acabam por colaborar para o

    distanciamento entre a teoria e a prtica dos direitos humanos, uma vez que so

    concebidos sob uma tica ps-violatria e de modo destacado da realidade em que se

    inserem.

    Pretender valores universais seria ignorar outros valores culturais que deveriam

    ser resguardados. Os direitos humanos no podem ser entendidos unicamente como

    emanao jurdica ou estudados por meio da Declarao Universal de Direitos

    Humanos e pelas Constituies Federais de pases do Ocidente. Conforme observa o

    filsofo Joaqun Herrera Flores (2009, p. 16):

    Os direitos humanos constituem um produto cultural surgido no mbito que de denominou Ocidente, sobretudo porque, por um lado, necessitava-se de justificaes ideolgicas para as expanses coloniais por todo o globo, e, tambm, porque era necessrio enfrentar a globalizao das injustias e opresses que tal expansionismo ia produzindo por toda parte.

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    Se observarmos a histria dos direitos humanos, em especial aps as guerras

    mundiais, pode-se concluir que foram manipulados e usados, de forma geral, a servio

    dos pases capitalistas hegemnicos. Foi adotada uma poltica de hiper-visibilidade ou

    de invisibilidade de acordo com os interesses dos Estados dominantes.

    A prpria Declarao Universal de Direitos Humanos foi elaborada sem a

    participao de grande parte dos pases, perfilhando somente os direitos individuais e

    o direito de autodeterminao, que, no entanto, foi negado aos povos colonizados. Os

    direitos cvicos e polticos foram colocados em situao de superioridade aos direitos

    sociais, econmicos e culturais.

    A diviso dos direitos humanos em geraes mostra-se muito simplista,

    reduzida e insuficiente. Conforme ressalta Sanchez Rubio (2010b, p. 43), essa posio

    sequencial dos direitos humanos defende que h um bloco de direitos bsicos,

    independente dos processos histricos e condies sociais de produo. Os direitos

    de primeira gerao so vistos como originrios e mais importantes, como os nicos

    universais e vlidos. J os de segunda e terceira gerao so considerados pseudo-

    direitos.

    No imaginrio popular, da forma como nos foram apresentados em sua posio

    conservadora, os direitos humanos esto intrinsecamente ligados ao ordenamento

    jurdico e so dele dependentes. Na maneira de pensar os direitos humanos ntida a

    separao entre o que dito e o que feito, entre ser e dever ser. Conforme

    argumenta David Sanchez Rbio (2010a, p. 13):

    Geralmente, quando se fala em direitos humanos, imediatamente nos ocorre a ideia dos mesmos baseados em normas jurdicas, nas instituies do Estado e nos valores que lhes do fundamentos (como a liberdade, a igualdade e a solidariedade) e que esto, ou bem fundamentados na condio humana ou bem refletidos em suas produes normativas e institucionais. Direitos humanos so aqueles direitos reconhecidos tanto no mbito internacional como nacional, pelas constituies, normas fundamentais, cartas magnas, tratados e declaraes baseadas em valores.

    Os direitos humanos so, em verdade, produes scio-histricas, geradas por

    atores sociais. problemtico pens-los como produto de iluminadas reflexes de

    filsofos como John Locke, Francisco de Vitria, Rousseau, Hobbes, Kant, Bobbio,

    Ferrajoli e Habermas. O Ocidente se apresenta como titular exclusivo dos direitos

    humanos, com uma ambio hegemnica, considerando-se a nica autoridade capaz

    de defini-los e defend-los. Para Wolkmer e Batista (2010, p. 133), "a(s) teoria(s)

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    hegemnica(s) no se adqua(m) pluralidade cultural do mundo, o que impossibilita

    sua realizao emancipadora e permite sua utilizao como instrumento de dominao

    e legitimao do poder".5

    Para que os direitos humanos possam alcanar efetividade e operar de forma

    contra-hegemnica, devem ser reconceitualizados, encarados como multiculturais. O

    multiculturalismo entendido por Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 19) como

    pr-condio para uma relao equilibrada e mutuamente potenciadora entre a

    competncia global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma

    poltica contra-hegemnica e de direitos humanos no nosso tempo.

    O socilogo portugus enumera cinco premissas para tornar vivel tal

    transformao por intermdio de um dilogo intercultural. A primeira se refere

    superao do debate entre universalismo e relativismo cultural, uma vez que ambos os

    conceitos polares so prejudiciais para os direitos humanos emancipatrios. Em

    segundo lugar, todas as culturas possuem sua concepo de dignidade humana, no

    entanto, nem todas a concebem em termos de direitos humanos, fazendo-se

    importante atentar para preocupaes semelhantes em diferentes comunidades. A

    terceira premissa refere-se incompletude da concepo de dignidade humana de

    todas as culturas, justamente em razo da pluralidade de costumes. A quarta premissa

    parte da ideia de que todas as culturas tm verses diferentes da dignidade humana,

    algumas mais amplas do que outras, algumas com um crculo de reciprocidade mais

    largo do que outras, algumas mais abertas a outras culturas do que outras. A quinta e

    ltima premissa refere-se tendncia de todas as culturas a distribuir pessoas e

    grupos sociais entre dois competitivos de pertena hierrquica: a igualdade e a

    diferena (SANTOS, 1997, p. 21-2).

    A aceitao de uma pluralidade de mundos no significa que deva haver uma

    completa separao ou incomunicabilidade entre eles. Pelo contrrio, o dilogo

    intercultural essencial, assim como critrios de uma nova legitimao social, para

    construir uma cultura jurdica antiformalista, anti-individualista e antimonista, baseada

    nos valores e poderes da comunidade.

    Tal dilogo deve incluir a troca de saberes e culturas, de diferentes universos de

    sentido. Para tanto, devem reconhecer incompletudes mtuas. A instituio de uma

    5 No original: la(s) teoras hegemnica(s) no se adecua(n) a la pluralidad cultural del mundo, lo que imposibilita su realizacin emancipadora y permite su utilizacin como instrumento de dominacin y legitimacin del poder.

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    cultura jurdico-poltica mais democrtica deve, necessariamente, discorrer sobre

    formas de produo do conhecimento a partir de uma prtica democrtica pluralista

    que permita a expresso do direito diferena, identidade coletiva, autonomia e

    igualdade de acesso a direitos (WOLKMER, 2006, p. 115).

    Para compreender os direitos humanos na atualidade, mostra-se essencial

    direcion-los em termos multiculturais, conceb-los como novas concepes de

    cidadania, reconhecendo as diferenas e promovendo polticas sociais tendo em vista

    a reduo de desigualdades, incluso e redistribuio dos recursos (WOLKMER, 2006,

    p. 124).

    Os direitos fundamentais no podem ser tratados como algo abstrato ou dado,

    no podem ser apenas congelados como norma de mximo status.

    O confinamento dos direitos humanos ao plano do direito estatal restringe

    sobremaneira seu potencial democratizador e emancipador. A luta social, a eficcia

    no-jurdica, a cultura, a sensibilidade popular e a eficcia jurdica no estatal so

    componentes dos direitos humanos relegados a segundo plano. Entretanto, por meio

    deles que se faz possvel superar o abismo entre o que se diz e o que se faz a respeito

    dos direitos fundamentais. Nesse aspecto, os direitos humanos devem estar mais

    intimamente relacionados com os processos de luta e consolidao de espaos de

    liberdade que vinculados normatividade. Em convergncia com tal perspectiva,

    Sanchez Rubio (2010a, p. 38) assinala:

    Em razo do que vimos, os direitos humanos entendidos a partir de uma perspectiva emancipadora, e que pretendem contribuir ao incremento dos nveis de humanizao, poderiam ser concebidos como o conjunto de prticas sociais, simblicas, culturais e institucionais que reagem contra os excessos de qualquer tipo de poder que impede os seres humanos de constiturem-se como sujeitos.

    Uma nova concepo de direitos humanos deve levar em conta uma

    participao da comunidade com base em um dilogo intercultural.

    3 CONSIDERAES FINAIS

    Em face de todas as mudanas estruturais, polticas, econmicas, sociais e

    culturais impressas pela ps-modernidade, faz-se necessrio repensar o poder de

    ao da comunidade, bem como a clssica concepo de direitos humanos.

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    Os indivduos tm um maior acesso informao e educao. Os modos de

    produo e de trabalho j no so os mesmos, o movimento operrio se enfraqueceu,

    ao passo que emergiram novos movimentos sociais, como novos sujeitos e prticas de

    mobilizao, com reivindicaes de consumo, feministas, ecolgicas, pacifistas,

    antiracistas, de auto-ajuda ou religiosas.

    Diante da pluralidade de culturas, de sujeitos e exigncias urgente superar a

    concepo individualista, positiva e monocultural dos direitos humanos. Deve-se, com

    base na ideia de anloga dignidade de culturas, interpretar os direitos humanos pelo

    prisma de uma viso intercultural, sem qualquer tipo de imposio etnocntrica ou

    homognea.

    Os direitos fundamentais no podem continuar a servio de uma poltica

    hegemnica e opressora. Conforme observa Boaventura de Sousa Santos (1997, p.

    29), precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de

    aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuda aos direitos humanos no

    contexto imperial seja convertida, na translocalidade do cosmopolitismo, num dilogo

    intercultural.

    Uma concepo multicultural e emancipadora dos direitos humanos, que

    respeite a condio de iguais e respeite sua condio diferenciada, seja ela cultural,

    tnica, sexual, familiar ou qualquer outra, pode fazer com que o homem ps-moderno

    seja sujeito no-abstrato ou alheio ao mundo em que vive.

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    BETWEEN ONTOLOGICAL SHUDDERS AND NEW PULSATIONS: A POSTMODERN SOCIETY AND THE REQUIRED RECONCEPTUALIZATION OF HUMAN RIGHTS. Abstract: This article aims to undertake a reflection on the ups and downs of Postmodernity, considering the dynamics of social change wrought in their context and the modification of the parameters of sociability of the postmodern man, seeking to relate them to a practical, multicultural and especially effective conception of the human rights. In Postmodernity, a growing power of the social actors and emancipation from the traditional structures become evident. The space occupied by the traditional modern structures is reduced daily. The individual is becoming less controlled by the tradition and the convention, the modernization requires from them more information, education and democratization, what allows a criticism of the reality and a reflection on himself. The identities arent bound exclusively to the conflicts between capital and work but, but are closely linked to the conflict emancipation X oppression. These diverse emancipations are precisely the expression of the Postmodernity. The society cant stand a linear, homogenizing, monocentric cultural view. The legal-positive and formalistic conception of the fundamental rights arent sufficient to the new society. The human rights must be faced as fruit of our social practices and human relations, seeking to consolidate new forms of normativity, which meet the needs of the new collectivities and new sociabilities. Keywords: Postmodern society. Social change. Emancipation. Human rights. Reconceptualization. ENTRE CONMOCIONES ONTOLGICAS Y NUEVAS PULSACIONES: LA SOCIEDAD POSMODERNA Y LA NECESARIA RECONCEPTUALIZACIN DE LOS DERECHOS HUMANOS Resumen: Este ensayo tiene como objetivo llevar a cabo una reflexin sobre los caminos y descaminos de la posmodernidad, considerando la dinmica de cambio social operada en su contexto ya la modificacin de los parmetros de la sociabilidad del hombre posmoderno, tratando de relacionarlos con una concepcin prctica, multicultural, y sobre todo, efectiva de los derechos humanos. En la posmodernidad se evidencia un poder cada vez mayor de los actores sociales y una emancipacin de las estructuras tradicionales. El espacio ocupado por las estructuras tradicionales modernas se reduce todo el tiempo. Los individuos que se presentan cada vez menos controlados por la tradicin y convenciones de su poca; una mayor modernizacin requiere de ellos ms informacin, ms educacin y ms democratizacin, permitiendo la crtica de la realidad y la autorreflexin. Las identidades ya no vinculan exclusivamente a los conflictos entre capital y trabajo, pero se relacionan estrechamente el conflicto "emancipacin Vs. opresin". Estas diferentes emancipaciones son precisamente la expresin de la posmodernidad. La sociedad ya no es compatible con un escenario cultural lineal, homogneo y monocntrico. La concepcin jurdico-positiva y formalista de los derechos fundamentales no es suficiente para la nueva sociedad. Los derechos humanos deben ser vistos como el fruto de nuestras prcticas sociales y las relaciones humanas, buscando establecer nuevas formas de normatividad, que satisfagan las necesidades de las nuevas comunidades y nuevos arreglos sociales. Palabras clave: Sociedad posmoderna. Cambio social. Emancipacin. Derechos humanos. Reconceptualizacin.

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    Ensaio: Recebido em Maro de 2014 Aceito em Setembro de 2014