entre a fabrica e a comunidade ee 2000

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Elísio Estanque ENTRE A FÁBRICA E A COMUNIDADE subjectividades e práticas de classe no operariado do calçado Editora Afrontamento, Porto - 2000

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Este livro é uma versão ligeiramente adaptada da minha tese de doutoramento, concluida em 1999. O contexto em análise é S Joao da Madeira e o estudo das relações de trabalho entre a fábrica e a comunidade.

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Page 1: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Elísio Estanque

ENTRE A FÁBRICA E A COMUNIDADE

subjectividades e práticas de classe no operariado do calçado

Editora Afrontamento, Porto - 2000

Page 2: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

10

Í N D I C E

Agradecimentos ................................................................................................................. 7

Introdução ........................................................................................................................ 9

I PARTE

PROBLEMÁTICA TEÓRICA E PERSPECTIVA ANALÍTICA

Capítulo 1

ENTRE A CLASSE E A COMUNIDADE: ESTRUTURA DE CLASSES, INDUSTRIALIZAÇÃO

E IDENTIDADES CULTURAIS EM MUDANÇA

1.1 - Análise de classes e estrutura de classes ....................................................................................... 20

1.1.1 - Dilemas em torno da análise estrutural das classes ............................................................. 00

1.1.2 - O conceito de “lugares contraditórios de classe” (modelo Wright I) .................................. 00

1.1.3 - Novos desenvolvimentos no modelo de Wright (modelo Wright II)...................................... 00

1.2 - Identidade e comunidade na formação da classe operária ........................................................ 40

1.2.1 - Identidade e identificação .................................................................................................... 00

1.2.2 - Comunidade e emancipação ................................................................................................. 00

1.2.3 - O problema do enquadramento espacial .............................................................................. 00

1.2.4 - A formação da classe operária, a comunidade e a acção colectiva ..................................... 00

1.3 - Controle, consentimento e despotismo: regimes de acumulação e

relações na produção ..................................................................................................................... 77

1.3.1 - Classe e processos produtivos, de Braverman a Burawoy ................................................... 00

1.3.2 - Regimes despóticos e regimes hegemónicos ......................................................................... 00

1.3.4 - Relações de consentimento, sistemas de poder e novos despotismos ................................... 00

1.4 - Lazer, Cultura Popular e Controle Recreativo ............................................................................ 96

1.4.1- Lazer e classes sociais ........................................................................................................... 00

1.4.2 - Cultura popular e cultura de massas ................................................................................... 00

1.4.3 - O lazer popular e a comunidade nos regimes autoritários .................................................. 00

Capítulo 2

PROCEDIMENTOS ANALÍTICOS E METODOLÓGICOS

2.1 - Hipóteses de partida ....................................................................................................................... 101

2.2 - Orientação metodológica ............................................................................................................... 105

2.2.1 - Compreensão e auto-reflexão ............................................................................................... 111

2.2.2 - O macro e o micro ................................................................................................................ 111

2.2.3 - O método de caso alargado .................................................................................................. 111

2.2.4 - As técnicas de recolha utilizadas ........................................................................................... 111

Page 3: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

11

II PARTE

EVOLUÇÃO HISTÓRICA: INDÚSTRIA, LAZER E COMUNIDADE

Capítulo 3

INDUSTRIALIZAÇÃO, MOVIMENTO OPERÁRIO E TRADIÇÃO FESTIVA NA

VIRAGEM DO SÉCULO

3.1 - A chapelaria, o calçado e o movimento operário local ................................................................ 122

3.1.1 - A primeira fase de industrialização: a chapelaria e o calçado ............................................ 222

3.1.2 - Condições de vida do operariado nos princípios do século ................................................. 222

3.1.3 - Associativismo e clivagens ideológicas na chapelaria e no calçado .................................... 222

3.1.4 - Movimento grevista e acção operária na chapelaria e no calçado ...................................... 222

3.2 - Cultura, festa e tradição nas comunidades locais ........................................................................ 150

3.2.1 - Expressividade popular, religiosidade e mercado ............................................................... 222

3.2.2 - Alguns contrastes de classe: a vida quotidiana na viragem do século ................................. 222

3.2.3 - O discurso bairrista e o novo estatuto de vila e de concelho ............................................... 222

Capítulo 4

SOB A TUTELA DO ESTADO NOVO: ACÇÃO COLECTIVA E PRÁTICAS DE LAZER,

ENTRE A REGULAÇÃO E A RESISTÊNCIA

4.1 - Impactos locais do Condicionamento Industrial ......................................................................... 181

O sector da chapelaria ........................................................................................................ 000

O crescimento do sector do calçado ................................................................................... 000

A indústria metalúrgica e o caso da “Oliva” ..................................................................... 000

4.2 - Exemplos de resistência operária local: militância sindical e política durante o salazarismo . 193

4.3 - Controle recreativo e práticas culturais no Estado Novo............................................................ 217

4.3.1 - Instituições estatais e festividades locais ............................................................................. 000

4.3.2 - As formas locais de lazer e a moral dominante .................................................................... 000

A taberna ............................................................................................................................. 000

Cinemas e cafés ................................................................................................................... 000

O campismo ......................................................................................................................... 000

O desporto ........................................................................................................................... 000

4.3.3 - A acção da FNAT em S. João da Madeira e o caso da “Oliva” .......................................... 000

III PARTE

TENDÊNCIAS RECENTES: AS CLASSES, A FÁBRICA E A COMUNIDADE

Capítulo 5

A ESTRUTURA DE CLASSES NA REGIÃO DO CALÇADO: MOBILIDADE

SOCIAL, SUBJECTIVIDADES E PRÁTICAS ASSOCIATIVAS

5.1 - Caracterização da estrutura de classes da região ........................................................................ 256

5.2 - Mobilidade social intergeracional ................................................................................................. 267

5.3 - Subjectividades ambivalentes: emancipação e conservadorismo ............................................... 000

5.4 - Os problemas sociais identificados: entre o optimismo e a resignação ...................................... 000

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Entre a Fábrica e a Comunidade

12

5.5 - Práticas associativas e acções de protesto ..................................................................................... 000

5.6 - Os usos do lazer e a massificação do consumo ............................................................................. 000

Capítulo 6/ Capítulo 6-A

ESTUDO DE CASO: RESISTÊNCIA, CONSENTIMENTO E EVASÃO NUMA

FÁBRICA DE CALÇADO/ UMA EXPERIÊNCIA NA FÁBRICA

O Sociólogo na Fábrica: fragmentos de um “Diário de Campo” .................................... 298

6.1 - A importância da linha de montagem no processo de fabrico .................................................... 000

6.2 - Disciplina, poder, consentimento e resistência ............................................................................. 000

6.2.1 - O patrão e os operários ........................................................................................................ 000

6.2.2 - Os encarregados e o poder: uma posição de fronteira ....................................................... 000

6.2.3 - Os jogos de poder do colectivo operário .............................................................................. 000

6.3 - Evasão e humor: rituais de descompressão .................................................................................. 6.3.1 - Os intervalos e as brincadeiras sexistas ...............................................................................

6.3.2 - Jogo e humor na produção .....................................................................................................

6.3.3 - Ambiguidades e heterogeneidades de classe ........................................................................

CONCLUSÃO ......................................................................................................................................... 423

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 000

ANEXOS ................................................................................................................................................. 000

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Entre a Fábrica e a Comunidade

13

AGRADECIMENTOS

O presente estudo destinou-se inicialmente a uma tese de doutoramento em

sociologia cuja defesa teve lugar na Universidade de Coimbra em Julho de 1999.

Embora tenha procedido a algumas alterações para esta edição em livro, manteve-se, no

essencial, a mesma estrutura expositiva. Apesar da pesquisa ter sido recentemente

concluída, os primeiros trabalhos que realizei sobre este tema tiveram o seu início há

alguns anos atrás no âmbito da actividade académica que tenho vindo a desenvolver na

Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e no Centro de Estudos Sociais1.

Muitos colegas e amigos contribuíram com o seu incentivo e solidariedade para que

as inúmeras hesitações e dificuldades com que me deparei ao longo deste percurso,

pudessem ser ultrapassadas. Não sendo possível enumerar todos aqueles que de um

modo ou de outro me apoiaram, cabe-me no entanto destacar alguns nomes, de pessoas

e instituições, que mais de perto me acompanharam nesta tarefa.

Em primeiro lugar, cabe um agradecimento especial a Boaventura de Sousa Santos,

meu orientador científico, pela permanente motivação, confiança e apoio que me tem

dedicado desde que em 1985 integrei a equipa de investigadores por ele liderada. A

solidariedade que prontamente manifestou nas fases de maior inquietação e desânimo

por que passei, em especial durante a observação participante que realizei na fábrica, foi

decisiva para levar por diante este projecto.

Em segundo lugar, quero expressar a minha gratidão aos colegas, companheiros do

Centro de Estudos Sociais, da Revista Crítica de Ciências Sociais e da FEUC, que desde

sempre se interessaram pelo meu trabalho e comigo partilharam o dia-a-dia de vida

académica ao longo das diferentes etapas desta caminhada. Sem o acolhimento e as

palavras de incentivo que de um modo geral recebi e sem o ambiente de diálogo

informal no âmbito dos projectos e seminários do CES, as dificuldades de realização

deste estudo teriam sido, sem dúvida, muito maiores. Gostaria de destacar o estímulo

intelectual que obtive da parte do João Arriscado Nunes; os entusiasmos e angústias

1 Entre eles contam-se o Relatório de Síntese das Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica,

intitulado A Empresa em Contexto: relações de poder e cultura local na indústria do calçado em S. João

da Madeira, Coimbra, FEUC, 1990. Os projectos realizados no CES e que mais directamente se

relacionam com o actual tema, foram os seguintes: Estado, Economia e Reprodução Social na

Semiperiferia do Sistema Mundial: O Caso Português, coordenado por Boaventura de Sousa Santos

(CES/FEUC, 1992); Turismo e Cultura em Portugal: quatro estudos sobre mentalidades, práticas e

impactes sociais (CES/FEUC, 1995), coordenado por Carlos Fortuna; Estrutura de Classes e Trajectórias

de Classe em Portugal (CES/FEUC, 1997), sob a minha coordenação e em colaboração com José Manuel

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Entre a Fábrica e a Comunidade

14

partilhados com o José Manuel Mendes, meu parceiro no projecto de pesquisa sobre as

classes sociais em Portugal; os incentivos que obtive do meu amigo João Peixoto,

sobretudo no período inicial do meu trabalho académico em Coimbra; o apoio que

recebi dos jovens colegas Hermes Costa e Daniel Francisco; a troca de ideias e o

permanente interesse, solidariedade e amizade do António Casimiro Ferreira; as

cumplicidades que mesmo à distancia foram preservadas com os colegas do ISCTE,

Cristina Lobo, Anália Torres, João Camarate, Ana Paula Nunes, Salomé Marivœt e

Rosa Parkinson. E para a colega e amiga Graça Capinha, pelas muitas ideias que

trocámos ao longo destes anos, vai uma palavra de especial gratidão.

Agradeço em terceiro lugar, às instituições que financiaram projectos, viagens e

estágios, directa ou indirectamente relacionados com a pesquisa: Fundação Calouste

Gulbenkian, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Comissão

Fulbright, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, Reitoria da

Universidade de Coimbra. À Universidade de Wisconsin-Madison, em especial ao

Professor Erik Olin Wright e ao Departamento de Ciências Sociais, que me acolheram

durante as estadias que aí efectuei em 1992 e 1994.

Cumpre-me igualmente agradecer ao Sindicato dos Operários do Calçado, Malas e

Afins dos Distritos de Aveiro e Coimbra, sediado em S. João da Madeira, que me

disponibilizou os seus serviços, e especialmente ao seu dirigente Manuel Graça, pelo

seu interesse e pelo incansável apoio ao longo de vários anos. Às Câmaras Municipais

de S. João da Madeira e de Santa Maria da Feira, nomeadamente os serviços das

respectivas bibliotecas que sempre me facilitaram o acesso a diferente documentação.

Ao Director do jornal “O Regional”, daquela localidade, igualmente por me ter

facilitado o acesso aos seus arquivos. À empresa que me acolheu nessa cidade para o

trabalho de observação participante, nomeadamente o apoio entusiástico do seu

proprietário merece ser destacado pelo contributo que prestou a esta pesquisa. Para os

trabalhadores dessa empresa que me receberam e comigo partilharam esses momentos

inesquecíveis e me transmitiram abertamente aspectos importantes das suas vidas – em

especial para os amigos mais próximos, como o Acácio, o Cunha, o Manuel, o tio

António, a Cila e a Celeste –, vão a minha amizade e solidariedade.

Uma palavra de especial gratidão é ainda devida à Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra e ao Centro de Estudos Sociais, instituições onde trabalho e

Mendes. Estes projectos foram financiados pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica,

no quadro do Programa Estímulo para as Ciências Sociais.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

15

que, por esse motivo, são também a minha casa. Aos seus funcionários e colaboradores,

o meu sincero reconhecimento, em especial aos serviços da biblioteca, da secretaria e da

secção de informática da FEUC e ao pessoal do CES: o Nuno Serra, a Maria Lassalete

Simões e a Sandra Nogueira.

Finalmente, agradeço também aos meus alunos da cadeira de Classes,

Desigualdades e Identidades – sobretudo os que a frequentaram no ano lectivo de

1998/1999 – com quem partilhei muitas das minhas perplexidades e entusiasmos em

torno desta pesquisa.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

16

INTRODUÇÃO

As temáticas da classe e da comunidade têm suscitado inúmeras reflexões e

debates nas ciências sociais, na sequência dos quais se vem assistindo a uma

reformulação teórica significativa em torno desses conceitos. Sem dúvida que tais

elaborações conceptuais derivam, em boa medida, dos processos de fragmentação social

a que, quer a classe, quer a comunidade têm estado sujeitos, no quadro do capitalismo

global de finais do milénio.

É sabido que os grandes processos de transformação social no capitalismo

decorrem sob ritmos e temporalidades diferentes, consoante o grau de modernização das

sociedades e o lugar que cada uma ocupa no sistema mundial. O facto de a sociedade

portuguesa ser marcada por traços de periferia na sua relação com os países centrais

significa, entre outras coisas, que ela encerra fenómenos cuja natureza contraditória e

polifacetada é porventura mais evidente do que nas sociedades de capitalismo avançado.

Algumas das tendências de mudança que vêm ocorrendo em Portugal ao longo das

últimas três décadas remetem-nos por vezes para problemas já identificados nos países

centrais noutras épocas históricas. Contudo, não deve esquecer-se que cada sociedade e

cada contexto particular contêm as suas próprias especificidades – históricas, socio-

económicas, políticas e culturais – e obedecem a variados ritmos de mudança.

O presente estudo desenvolve-se em torno do núcleo industrial de S. João da

Madeira (SJM)2, localidade tradicionalmente ligada à produção chapeleira, mas

actualmente mais conhecida por ser a zona de maior concentração da indústria do

calçado. O seu principal objectivo é analisar o processo histórico de desenvolvimento

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Entre a Fábrica e a Comunidade

17

industrial desta região e o seu impacto na estruturação da classe trabalhadora, através da

observação das suas práticas, subjectividades e atitudes, e dando especial atenção às

formas adaptativas e de resistência de um operariado situado entre as pressões da

indústria e a lógica comunitária e semi-rural das colectividades da região.

Desde as últimas décadas do século XIX que esta região tem conhecido profundas

mudanças induzidas pelo impacto da industrialização e suas formas de adaptação a nível

local. Todavia, reconhece-se hoje que, apesar das transformações, adaptações e

resistências produzidas pela articulação entre a produção fabril e as comunidades locais

ao longo do tempo, os traços de ruralidade e a força da tradição cultural têm subsistido à

presença crescente da lógica capitalista. Num contexto de desenvolvimento tardio, como

este, as linhas de ruptura e de continuidade socioeconómicas e culturais parecem

condensar no tempo algumas das clivagens e ambiguidades do sistema capitalista mais

geral, e simultaneamente fazem emergir o carácter contraditório e dramaticamente

disruptor que esse sistema tem vindo a impor à humanidade desde os primórdios da era

moderna.

Pretende-se, assim, compreender até que ponto as lógicas de classe modeladas

pelas relações de produção incorporaram e reproduziram os vínculos e afinidades

colectivas estruturados a partir das raízes comunitárias. As formas de consentimento e

resistência dos trabalhadores serão observadas, quer no terreno das subjectividades e

representações, quer no domínio das práticas e dos comportamentos concretos e tendo

presentes, por um lado, a dimensão produtiva e das relações de trabalho, e, por outro, as

actividades desenvolvidas na comunidade, nomeadamente a esfera dos consumos e das

práticas de lazer.

2 Localidade que daqui para diante será simplesmente designada por “SJM”. O objecto de estudo inclui

os concelhos de S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Stª. Maria da Feira. Como se poderá ver no

Anexo 1, neles se concentra a grande maioria das empresas do sector do calçado.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

18

Como se verá na apresentação das principais hipóteses e dos procedimentos

metodológicos que guiaram a investigação (Capítulo 2), a perspectiva de análise

adoptada pretende não só dar conta das especificidades regionais atrás referidas, mas ao

mesmo tempo captar os impactos locais de algumas das conjunturas políticas e

estratégias institucionais que mais marcaram a sociedade portuguesa ao longo do século

XX. A análise é, assim, historicamente balizada por três períodos distintos: um período

que vai de finais do século XIX até aos anos vinte do último século, em que se pretende

acompanhar a primeira fase de industrialização e implantação do mercado nesta região e

o seu impacto sobre o movimento operário local e as actividades festivas ligadas aos

rituais da comunidade rural; um segundo período que corresponde à vigência do Estado

Novo, no qual a acção institucional e a ideologia salazarista desempenharam um papel

decisivo na tentativa de impor às classes trabalhadoras comportamentos conformistas e

disciplinados, tanto na esfera laboral como nas actividades recreativas e de lazer; e,

finalmente, um período que vai do pós-25 de Abril à actualidade continuando a articular

a dimensão do trabalho industrial com a da massificação dos consumos e dos usos do

“tempo-livre”.

Na sua organização formal, o livro divide-se em três partes: uma primeira parte diz

respeito à apresentação do quadro teórico e às metodologias e hipóteses de partida; uma

segunda parte centra-se na evolução histórica desde finais do século XIX até à queda do

Estado Novo; e uma terceira parte, mais centrada na actualidade, analisa a estrutura de

classes da região e apresenta estudos de caso baseados na observação directa da vida

social local nas suas diversas vertentes, em especial no quotidiano dos trabalhadores nas

suas relações com a actividade sindical, o ambiente fabril e as comunidades locais. Estas

grandes linhas de abordagem desdobram-se em nove capítulos que passarei a sumariar.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

19

No Capítulo 1, dá-se conta das principais linhas de reflexão e discussão teórica e

conceptual que serviram de inspiração ao modelo de análise adoptado. As questões da

classe e da comunidade ocupam aqui um lugar decisivo e serão tratadas, quer

separadamente, na medida em que se ligam a tradições teóricas distintas, quer na sua

interconexão, na medida em que remetem para linhas de investigação em que as duas

vertentes se encontram estreitamente ligadas. É precisamente na base dessa articulação

que se desenrola o principal fio condutor do presente livro. Além disso, como é

evidente, esta problemática não poderia deixar de conduzir-nos para outros percursos

teóricos que directa ou indirectamente se prendem com o tema em estudo. Posso

adiantar desde já alguns dos pontos que mereceram maior aprofundamento: as

discussões no campo da análise estrutural das classes nos anos setenta e as

reformulações teóricas que esta corrente tem vindo a promover nos últimos tempos,

nomeadamente através das contribuições de Erik Olin Wright (cujo modelo de análise

será utilizado no estudo da estrutura de classes da região); os conceitos de comunidade e

identidade serão discutidos enquanto instrumentos teóricos de grande actualidade que

poderão situar a análise das práticas e subjectividades operárias, bem como a dimensão

do consumo e do lazer, em quadros analíticos capazes de permitir articular a classe com

outras esferas de acção e de produção de sentido; os problemas da acção colectiva e da

consciência de classe serão tratados, não apenas à luz dos modelos estruturais, mas

sobretudo à luz do enquadramento comunitário do operariado e da sua histórica

vinculação aos contextos locais (em que as análises históricas de E. P. Thompson,

constituem uma referência importante); o tema dos regimes de acumulação e dos

sistemas de poder em vigor nas empresas, bem como a sua articulação com o mercado e

a comunidade fornecem importantes pistas de explicação para os mecanismos de

consentimento e controle que emergem na esfera da produção (dando-se aqui maior

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Entre a Fábrica e a Comunidade

20

realce aos estudos de Michael Burawoy); as actividades culturais, de lazer e o campo do

consumo constituem igualmente um campo de reflexão a ter em conta, tanto no que se

refere à compreensão das culturas operárias e populares (às quais, desde sempre, as

experiências do movimento operário e sindical estiveram ligadas), como pela

importância decisiva que assumiram no desenvolvimento das políticas disciplinares

levadas a cabo pelos estados fascistas e autoritários. Estes são alguns dos principais

tópicos que foram objecto de discussão teórica.

O Capítulo 2 destina-se à apresentação das principais hipóteses de trabalho e nele

se procede a uma breve discussão em torno das opções metodológicas seguidas. Aí se

realça a pluralidade de instrumentos de pesquisa a que recorri, destacando-se a ênfase

dada à análise qualitativa, à sociologia reflexiva e ao método de observação participante

(utilizado no estudo de caso efectuado numa empresa de calçado).

No Capítulo 3, entra-se na análise histórica. Procede-se, por um lado, ao estudo do

processo de industrialização e do movimento operário local a partir do último quartel do

século de oitocentos, o qual foi animado sobretudo pelos operários chapeleiros. Por

outro lado, apresentam-se e analisam-se algumas das formas e rituais festivos,

procurando relacioná-las com as identidades tradicionais, mas tendo presente os efeitos

da implantação industrial e da expansão do mercado. Assume-se aqui um tipo de

abordagem de características etnográficas, na medida em que me pareceu interessante

retratar alguns dos ambientes populares da época, a fim de observar mais de perto os

modos de vida das populações, tanto nas dificuldades económicas e laborais em que se

encontravam como na esfera das actividades lúdicas e rituais festivos em que

participavam. O objectivo é mostrar como os modos de vida comunitários e as

experiências operárias foram a pouco e pouco sendo modeladas não só pela lógica

económica moderna e pela acção do mercado, mas também pelo discurso moralista e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

21

burguês que nessa altura começou a impor-se de forma mais nítida. Ainda neste

contexto, referem-se aspectos ligados ao fenómeno do “bairrismo”, promovido pelas

elites locais, cujo impacto disruptor sobre as identidades tradicionais e de classe foi

muito significativo.

O Capítulo 4 dá continuidade à abordagem histórica, mas agora tendo como pano

de fundo o aparelho de Estado salazarista e a sua articulação com as instituições e os

interesses das classes dominantes da região. O discurso local, com os seus contornos

moralistas, continua a promover o sentimento bairrista em nome do progresso industrial

da vila, reproduzindo no mesmo passo o carácter nacionalista, autoritário e conservador

da ideologia do regime. Exemplos de resistência operária ao salazarismo são aqui

apresentados a partir de relatos e histórias de vida de dois activistas político-sindicais

ligados ao sector do calçado que foram vítimas de perseguição e repressão do regime,

assim como outros documentos onde algumas situações e movimentos grevistas são

testemunhados, apesar da fraca capacidade combativa do operariado. As formas de

ocupação dos “tempos livres” – as festas locais, a taberna, o cinema, os espectáculos, os

hábitos de vida dos jovens etc. – e a tentativa dos organismos locais e estatais em tutelá-

las e discipliná-las são igualmente analisadas, dando-se aqui algum destaque ao papel da

FNAT e à sua presença numa das empresas de maior significado local neste período (a

fábrica metalúrgica “Oliva”). Pretende-se assim mostrar os impactos da acção

disciplinadora e doutrinária do regime e das suas delegações e agentes locais (incluindo

os sectores da burguesia industrial por ele protegidas), sublinhando a sua relevância na

modelação dos hábitos de consumo dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo sem

esquecer as capacidades de resistência da cultura popular estruturada a partir do

cruzamento entre a experiência fabril e as comunidades tradicionais. A dimensão

comunitária (e as formas locais de consumo e de lazer) revela-se aqui um elemento

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Entre a Fábrica e a Comunidade

22

fundamental para se perceberem as ambiguidades de uma classe que simultaneamente

sofre as pressões da exploração na fábrica e reproduz a sua identidade em íntima

sintonia com a vida na comunidade.

O Capítulo 5 analisa a estrutura de classes da região a partir do modelo de análise

de Erik Olin Wright e interpreta os seus resultados – obtidos a partir de um inquérito à

população activa –, equacionando-os com as dimensões analíticas referidas,

nomeadamente os aspectos históricos e contextuais. Com base nesta abordagem, será

possível não só caracterizar a estrutura regional das classes como compará-la com os

resultados referentes à sociedade portuguesa no seu conjunto (recolhidos através da

mesma metodologia)3. De registar é o facto de estes resultados quantitativos

comprovarem variados aspectos respeitantes às classes sociais desta região assinalados

noutros capítulos, além de sublinharem o elevado peso morfológico da categoria

proletária, o esvaziamento das classes médias comparativamente com os valores do

continente, e as altas taxas de mobilidade intergeracional, bem como de imobilidade.

Por outro lado, também no plano das atitudes políticas, das práticas associativas e

ocupações de tempo livre, por exemplo, os valores que aqui aparecem são

particularmente reveladores da natureza contraditória e ambígua dos comportamentos

deste sector da classe operária.

Na última parte do estudo surgem, lado a lado, o Capítulo 6 e o que designei como

Capítulo 6-A (alternando-se entre as páginas ímpares e pares), ambos centrados na

experiência de observação participante efectuada numa empresa de calçado. O primeiro,

procura analisar as relações na produção, girando o seu principal fio condutor em torno

das relações de poder na empresa e das práticas de resistência e consentimento dos

operários. Quer as contradições estruturais entre os trabalhadores e o patrão, quer as

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Entre a Fábrica e a Comunidade

23

dinâmicas de jogo e interacção do quotidiano fabril serão aqui tratadas com algum

detalhe. Se em termos estratégicos e de resistência organizada os trabalhadores

evidenciam um certo individualismo e parecem submeter-se ao poder arbitrário do

patrão e dos encarregados, já quando se observam de perto as suas atitudes espontâneas,

os rituais e os jogos que desenvolvem no espaço produtivo é notória a presença de

atitudes de resistência, ainda que de características tácitas e que se manifesta sobretudo

através uma rebeldia dissimulada, feita de gestos contidos e de silêncios, ou seja, uma

postura de contrariedade nunca completamente manifesta. Outros aspectos são aqui

objecto de análise detalhada, tais como os jogos sexistas, as clivagens entre os

encarregados e a situação específica em que se encontram no contexto da empresa, o

ritmo de trabalho e o stress, a selectividade que preside às atitudes autoritárias das

chefias, o uso do saber técnico por parte dos operários como fonte informal de poder, as

relações afectivas e transações amorosas dentro da fábrica, a importância do sentimento

de evasão e de fuga, as actividades fora da empresa (de trabalho e de lazer), as atitudes

perante o sindicato, etc. O Capítulo 6-A diz respeito às reflexões, notas pessoais e outras

questões relacionadas com o decurso da investigação – que decorreu de 26 de Fevereiro

a 3 de Maio de 1996 –, em especial os dilemas e angústias que esta metodologia

levantou. Em coerência com o que desde o início assumi ser uma abordagem

compreensiva e auto-reflexiva, decidi realçar essa dimensão autobiográfica e de

envolvimento pessoal e, nesse sentido, apresento-a aqui sob a forma de Diário de

Campo e em contraponto com a exposição mais analítica e interpretativa do Capítulo 6.

Finalmente, apresentam-se as principais conclusões da pesquisa, onde se salienta a

natureza eminentemente contraditória deste segmento da classe trabalhadora portuguesa,

em cujas práticas e orientações se inscrevem as múltiplas adaptações, resistências e

3 Refiro-me ao inquérito às classes sociais em Portugal que foi realizado a partir do Centro de Estudos

Sociais, cujo projecto de investigação foi por mim dirigido, em colaboração com o colega José Manuel

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Entre a Fábrica e a Comunidade

24

ambiguidades socioculturais em que assentou a dinâmica de expansão industrial da

região.

Mendes (cf. Estanque e Mendes, 1998).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

25

Capítulo 1

ENTRE A FÁBRICA E A COMUNIDADE: ESTRUTURA DE CLASSES, INDUSTRIALIZAÇÃO

E IDENTIDADES CULTURAIS EM MUDANÇA

Este estudo centra-se num segmento social – o operariado industrial – que desde

sempre ocupou um lugar decisivo nas discussões em torno da “classe”. Mas isso não

significa que a pesquisa se circunscreva à “análise de classes”, em sentido restrito. O

conceito de classe e os debates teóricos que desencadeou, em especial no interior da

corrente marxista, constitui o ponto de partida para uma análise das práticas e

subjectividades operárias a partir da combinação entre três dimensões distintas: o

processo histórico de industrialização; as relações de produção e o ambiente fabril; e as

vivências quotidianas dos trabalhadores na esfera da comunidade e do consumo. O

objectivo é, como referi na introdução, equacionar as múltiplas conexões e

impregnações entre estas diferentes esferas da vida social local a fim de compreender a

sua incidência sobre as identidades e formas de acção colectiva que caracterizam o

operariado do calçado e o contexto sociocultural em que se insere.

Procurar-se-á neste capítulo esclarecer as principais linhas de abordagem teórica

em que o estudo se apoiou. Entre elas, destacam-se: a análise marxista das classes, em

especial o modelo de Erik Olin Wright que serviu de base à caracterização da estrutura

de classes da região; a reflexão em torno dos conceitos de identidade e comunidade,

tanto em termos genéricos como no que se refere às classes e ao operariado industrial; a

formação histórica da classe operária e a importância da sua vinculação às comunidades

tradicionais; os regimes de acumulação e sistemas de poder, nomeadamente os regimes

despóticos e hegemónicos analisados por Michael Burawoy; e, finalmente, as questões

do lazer e da cultura popular na sua relação com as classes e o operariado, que serão

abordadas à luz das políticas de controle recreativo levadas a cabo pelos estados

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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autoritários europeus nos anos vinte e trinta, incluindo as suas repercussões no caso

português.

1.1 - Análise de classes e estrutura de classes

As discussões em torno da classe são, como se sabe, recorrentes desde Marx e

Weber. Mais recentemente, e em especial após o colapso dos sistemas comunistas e

socialistas da Europa do Leste, alguns dos ataques à análise marxista das classes sociais

ganharam novo vigor. Contudo, apesar das polémicas sobre o “declínio” ou a “morte”

da classe (Clarke e Lipset, 1991; Clarke et al., 1993; Hout et al., 1993; Pakulsky, 1993;

Pakulsky e Waters, 1996a e 1996b), sobre a perda de centralidade do conceito ou a

premência da sua reformulação (Wright, 1985, 1989, 1997a; Callinicos, 1991), o que é

facto é que a produção teórica centrada na análise de classes está longe de ter perdido a

sua pertinência e actualidade. Em articulação ou não com outras temáticas, envolvendo

ou não análise empírica substantiva, as conceptualizações à volta da noção de classe

social continuam a assumir-se como um tema fundamental na literatura sociológica

actual4.

4 Desde a escola neoweberiana (Parkin, 1968, 1978 e 1979; Hindess, 1987; Giddens e Held, 1990; McAll,

1992; Esping-Andersen, 1993; Crompton, 1993; Butler e Savage, 1995; Pakulsky e Waters, 1996a,

1996b; Marshall, 1990 e 1997), aos contributos do marxismo estrutural e do chamado “marxismo

analítico” (Therborn, 1978, 1980 e 1983; McNall et al., 1991; Mayer, 1994; Chilcote e Chilcote, 1992;

Roemer, 1982a e 1994; Wright et al., 1992; Wright, 1985, 1989, 1994, 1996 e 1997a), passando pelas

discussões em torno dos novos movimentos sociais e da emancipação (Pizzorno, 1985; Touraine, 1985;

Arrighi et. al., 1989; Eyerman e Jamison, 1991; Ray, 1993; Aronowitz, 1992; Offe, 1985b; Calhoun,

1991 e 1994; Cohen e Arato, 1994; Melucci, 1989; Eder, 1993; Santos, 1994 e 1995; Maheu, 1995;

Laclau, 1996), é inquestionável a vitalidade da produção teórica e da investigação empírica que, directa

ou indirectamente, continua a tomar a classe e a análise das classes como um campo incontornável no

estudo das desigualdades sociais, da acção colectiva e da mudança sociocultural nas sociedades actuais.

Também em Portugal, apesar da institucionalização tardia da sociologia no nosso país, a análise de

classes teve um papel fundamental no desenvolvimento das ciências sociais: a investigação de Sedas

Nunes e David Miranda (1969); os estudos dirigidos por Eduardo de Freitas, Teixeira de Sousa,

Villaverde Cabral e Ferreira de Almeida (Sousa e Freiras, 1973; Freitas, 1973 e Freitas et al., 1976); a

análise de Mozzicafreddo (1981); a pesquisa de Marques e Bairrada (1982); os trabalhos de João Ferrão

(1982, 1985 e 1990) e Jorge Gaspar (1987); os estudos desenvolvidos pela equipa do ISCTE (Almeida,

1986; Almeida et al., 1988 e 1994; Costa, 1987; Costa et al., 1990); os trabalhos recentes de Villaverde

Cabral (1997). Estas são algumas das contribuições mais relevantes da sociologia portuguesa para a

análise das classes sociais na nossa sociedade. Para além desses trabalhos, refira-se ainda a pesquisa

apoiada no modelo de Erik Wright em que esteve envolvido o autor deste livro (Estanque, 1997; Mendes,

1997; Estanque e Mendes, 1998 e 1999).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

27

A presente investigação não se assume – disse-o no início –, como uma análise de

classes em termos genéricos. Mas a classe é aqui, claramente, um dos conceitos em

questão. Nesse sentido, começarei por dar atenção à abordagem estrutural, na medida

em que ela constituiu um dos principais campos de produção e reflexão teórica da

análise marxista das classes (incluindo no próprio pensamento de Marx). O modelo de

Wright é aqui privilegiado, não só por ser um dos que mais contributos analíticos tem

prestado à sociologia das classes e porque tem vindo a proceder a constantes

reactualizações (Wright, 1989 e 1997a) – apesar das limitações que encerra e das

críticas que tem suscitado –, mas também porque em alguns pontos desta pesquisa (em

especial no Capítulo 5) irei utilizar como termo de comparação a análise recentemente

efectuada à estrutura de classes portuguesa com base nessa matriz teórica (Estanque e

Mendes, 1998). Essa dimensão do estudo, para além de permitir a comparação entre os

resultados do país e da região, será também objecto de uma análise compreensiva à luz

do processo histórico de industrialização e dos seus efeitos sobre as práticas e

subjectividades do operariado, no contexto local. A esse propósito, os estudos históricos

desenvolvidos por E. P. Thompson sobre a formação da classe operária inglesa

merecerão particular atenção. Em suma, tanto a perspectiva estrutural e abstracta como

a perspectiva histórica e conjuntural das classes constituem duas dimensões de análise

que podem completar-se no estudo de contextos concretos, não obstante o facto de (quer

uma quer outra) serem ao mesmo tempo ilustrativas das inúmeras contradições e

ambiguidades que, desde o próprio Marx5, têm acompanhado a teoria marxista das

classes no seu conjunto.

5 Na clássica distinção de Marx classe em si/ classe para si reflecte-se a oposição – presente de forma

difusa e muitas vezes incoerente na sua obra – entre a visão abstracta de cariz estruturalista e a visão

subjectivista, de cariz historicista ou sociopolítico (Giddens, 1975). Pode dizer-se que daí resultaram duas

linhas distintas de orientação do pensamento marxista ao longo do século XX. A primeira orientou-se

mais para a definição rigorosa dos conceitos, elaborando os critérios que permitissem mapear categorias,

fracções e fronteiras, esperando com isso estabelecer correspondências entre categorias abstractas e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

28

1.1.1 - Dilemas em torno da análise estrutural das classes

Principalmente a partir de finais da década de sessenta assistiu-se a uma

proliferação sem precedentes de estudos e reflexões de base marxista virados para a

análise da estrutura das classes nas sociedades capitalistas. Daí resultaram obras de

elevada elaboração conceptual e apoiadas numa sofisticação técnica e metodológica até

então inexistentes6. Os contributos teóricos de pensadores como Althusser e Balibar

(1970, 1975 e 1976), Poulantzas (1971, 1974), Carchedi (1977), Lukács (1971),

Miliband (1969 e 1987) e Wright (1981, 1985), ao lado do aparecimento de programas

de investigação sobre as classes em sociedades concretas, deram lugar a toda uma

profusão de pesquisas de inspiração marxista que conjugaram, pela primeira vez, o

desenvolvimento simultâneo da reflexão teórica e da análise empírica. Mas, apesar da

vitalidade do debate e das diversas linhas de pesquisa que o acompanharam, a classe

permaneceu ao longo da década de setenta “um conceito essencialmente contestado” ou

seja, “um conceito que não apenas ocupa um lugar numa teoria científica, mas serve

como campo de batalha a inúmeras disputas metodológicas, políticas e ideológicas”

(Conolly, 1972). Neste contexto, as contradições permaneceram entre as diversas

correntes marxistas, uma vez que, como reconhece Wright, “ou a cuidadosa

investigação empírica efectuada não era directamente orientada para abordagens

alternativas da análise de classes ou se desencadearam debates especulativos e

classes concretas (nomeadamente as correntes estruturalistas marcadas pelo pensamento de autores como

Althusser, Poulantzas e Wright, que adiante irei discutir). A segunda mostrou-se em geral mais sensível

ao estudo das conjunturas e processos de mudança, e centrou-se em especial na análise histórica e na

acção política do operariado inglês e americano do século passado (Thompson, 1987; Hobsbawm, 1984;

Tilly et al., 1975; Tilly, 1996; Jones, 1984, 1989), bem como no estudo aprofundado dos processos

produtivos (Lockwood 1966; Braverman, 1974; Gutman, 1977; Edwards, 1979). 6 Deverá reconhecer-se, todavia, que a preocupação com a construção rigorosa de categorias analíticas

orientadas para a análise empírica das classes foi partilhada pelos weberianos que, tal como os marxistas,

sentiram a necessidade de conceber instrumentos de análise mais ajustados à natureza complexa e à

profundidade das transformações ocorridas nas sociedades ocidentais. Pode ainda adiantar-se que

enquanto os primeiros pretenderam sobretudo contribuir para a “construção empírica” das classes – em

especial sob o impulso do funcionalismo americano –, os marxistas procuraram antes de mais desenvolver

os fundamentos teóricos de análise da estrutura de classes.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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abstractos cujos resultados serviam para ilustrar selectivamente os vários argumentos e

não para avaliar especificamente as diferentes alternativas” (Wright, in Prefácio a

Estanque e Mendes, 1998). A resposta a estas dificuldades procurou afirmar-se através

da estreita combinação entre o maior refinamento conceptual e os resultados da pesquisa

empírica. A linha de pesquisa lançada por Erik Olin Wright em 1979 – o Projecto

Comparativo da Análise de Classes – orientou-se justamente para a recolha sistemática

de dados comparáveis entre uma variedade de países, de maneira a que o debate pudesse

tornar-se mais focalizado nos resultados empíricos obtidos7.

As polémicas assim instaladas no próprio campo marxista permitiram, por um

lado, lançar novas bases para o avanço da investigação sociológica em torno das classes

e, por outro lado, recolocaram a reflexão no terreno do pensamento de Marx,

nomeadamente, a partir das propostas para a sua “releitura” empreendidas sob

influência de Althusser (Althusser et al., 1970; Poulantzas, 1971 e 1974). O problema

da articulação entre o económico e o político ocupou um lugar central nestes debates, o

que, em boa medida, se liga ao facto de as definições abstractas de Marx terem, em

muitos casos, sido contrariadas pelas transformações históricas e pela prática política8.

7 Da parte dos teóricos weberianos, as iniciativas então desencadeadas surgiram como reacção à falência

do paradigma parsoniano do status-attainment – que pretendia medir a mobilidade observada a partir das

mudanças estruturais na divisão social do trabalho e com base em escalas de medição do status – e

procuraram clarificar as formas de articulação entre a estrutura socioeconómica e a acção de classe no

terreno político-social. Tal como aconteceu com o campo rival, também neste caso se pode dizer que se

assistiu a uma crescente inovação e vitalidade, quer a nível conceptual e teórico, quer no campo da

investigação empírica, o que, em certos casos, resultou num diálogo académico e numa reflexão teórica

mais estreitamente ligados aos conceitos de raiz marxista, especialmente a propósito dos processos de

mobilidade social e trajectórias de classe (cf., entre outros, Goldthorpe 1969 e 1980; Erikson e Goldthorpe,

1993; Lenski, 1966; Giddens, 1975 e 1982; Lipset, 1975; Blau, 1975; Parkin, 1974 e 1979; Dahrendorf,

1982; Sorensen, 1986; Marshall, 1990; Marshall e Rose, 1990; Crompton, 1993; Esping-Andersen,1993;

Pakulsky e Waters, 1996a e 1996b). 8 No entanto, é justo lembrar – como chamou a atenção Stuart Hall (1982) – que o próprio Marx não

deixou de apontar alguns factores de complexidade no que respeita às articulações entre o económico e o

não-económico na estrutura das classes: “são as fases de desenvolvimento do modo de produção que

fornecem a condição necessária, embora não suficiente, para uma teoria marxista das classes: não é o

económico, num sentido mais evidente, que „determina‟. (…) São as relações sociais e materiais em que

os homens produzem e reproduzem as suas condições materiais de existência que „determinam‟ – o como

continua por elucidar. A desigual distribuição das riquezas económicas, mercadorias e poder (…) é, para

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30

Exemplo disso é a visão acerca do antagonismo das classes (no quadro da teoria do

materialismo histórico): de facto, nunca as classes rivais se confrontaram como “dois

exércitos inimigos colocados frente a frente” (Balibar, 1991). E foi à volta desse pano

de fundo que a discussão sobre a relação entre as instâncias do económico e do político

– o mesmo é dizer, em torno dos tradicionais antagonismos marxianos, classe em si/

classe para si e infraestrutura/ superestrutura – procurou responder à questão da

correspondência entre as classes enquanto categorias abstractas e enquanto actores

concretos da luta política9. Mas, apesar da tónica repetidamente colocada na

determinação “final” do económico sobre as outras instâncias da formação social, por

parte de Althusser10, o mesmo autor não deixou de reconhecer a complexidade das

relações entre o económico e as diversas condicionantes históricas: “a contradição entre

capital-trabalho nunca é simples, mas sempre tornada específica pelas formas e

circunstâncias historicamente concretas da superestrutura… pela situação histórica

interna e externa” (Althusser e Balibar, 1970)11.

Marx, não a base mas o resultado da distribuição prévia dos agentes da produção capitalista em classes e

relações de classe (…)” (Hall, 1982: 31). 9 Evidentemente que, do pondo de vista marxista, um dos factores que mais directamente interfere com a

“superestrutura” política da sociedade capitalista, prende-se com o Estado (veja-se, adiante, a nota 9,

sobre a concepção de Poulantzas). De um modo geral, estas correntes põem o acento tónico na

capacidade de dominação e na procura de homogeneização político-cultural por parte do Estado

capitalista, recorrendo para isso a uma vasta gama de aparelhos ideológicos e repressivos (Althusser,

1975). Na sua busca de coesão e integração social, o Estado “desorganiza as classes como classes”

(Lukáks, 1971:65), ou seja, a lógica que preside à acção do Estado tem em vista impedir que, sob o efeito

de uma multiplicidade de lutas, os grupos humanos – em especial os mais desapossados – sejam vistos e

se vejam a si próprios como membros de uma classe ou como membros de uma colectividade específica,

para serem simplesmente vistos como membros “da sociedade” (Przeworsky, 1978). 10 Algumas das formulações de Althusser (1975 e 1976; Althusser e Balibar, 1970) e o historicismo

abstracto de Lukács (1971) tonaram-se objecto de uma cerrada crítica, mas ao mesmo tempo esses

importantes trabalhos relançaram o debate marxista, reposicionando a discussão no pensamento de Marx

e denunciando algumas das deturpações a que o mesmo vinha sendo sujeito. 11 O próprio Lenine se referiu à existência de “interesses de classe absolutamente heterogéneos, lutas

sociais e políticas absolutamente contrárias [as quais terão emergido] (…) na sequência de uma situação

histórica absolutamente única” (Lenine, 1969). A definição de classe que Lenine formulara em 1919

tinha-se tornado uma referência central no campo marxista: “classes são vastos grupos de homens que se

distinguem pelo lugar que ocupam num sistema historicamente definido de produção social, pela sua

relação (na maioria das vezes fixada e consagrada pelas leis) face aos meios de produção, pelo seu papel

na organização social do trabalho, portanto, pelos modos de obtenção e importância da parte das riquezas

sociais de que dispõem” (Lenine, 1969: 425).

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Poulantzas veio entretanto introduzir novos elementos na abordagem estrutural

das classes. Para este autor, as relações sociais de produção são relações de

interdependência estruturadas na base da propriedade privada legalmente garantida pelo

Estado burguês. E isto segundo um modelo de dominação e de poder cuhjo objectivo

fundamental é a manutenção e a reprodução do modo de produção capitalista12. Um

conceito marcante no debate sobre a visão estruturalista foi o de determinação

estrutural das classes (Poulantzas, 1974), o qual aponta no sentido de que as relações de

classe se estruturam, não apenas a partir de elementos de natureza económica, mas

simultaneamente pelas dimensões política e ideológica. As relações de produção são

relações de classe apoiadas em poderes de classe que, como tais – sublinha Poulantzas –

, “estão constitutivamente ligados às relações políticas e ideológicas que os consagram e

os legitimam. Estas relações não se acrescentam simplesmente às relações de produção

„já lá‟, mas estão elas próprias presentes de forma específica em cada modo de

produção, na constituição das relações de produção” (Poulantzas, 1974: 24). A luta de

classes é parte integrante da própria formação das classes, e, portanto, não se trata de

conceber a estrutura económica de um lado, e a luta de classes sob a forma de relações

ideológicas e políticas, de outro lado. Ao procurar conceber a noção de ideologia como

um conjunto de práticas materiais (e não enquanto sinónimo de “sistema de ideias”),

12 Na concepção de Poulantzas, o Estado capitalista é definido na base da sua relativa autonomia face às

diferentes classes e fracções de classe, a qual lhe garante a capacidade de preservar e reproduzir o bloco-

no-poder. Traduzindo a linha do marxismo estruturalista, o Estado é visto por Poulantzas como um

sistema dinâmico que não está acima da luta de classes. Enquanto relação de forças condensada, que

interfere nas – e ao mesmo tempo incorpora as – contradições da sociedade, ele articula a conflitualidade

social e simultaneamente esconde-a. Boa parte da actividade do Estado e da sua eficácia social e política

deve-se, portanto, à sua não transparência. Enquanto fábrica de ideologia o papel do Estado ganha maior

relevo por aquilo que omite do que por aquilo que mostra. Todavia, ambas as vertentes são indissociáveis

na acção ideológica do Estado, embora cada uma dessas componentes se possa sobrepor à outra em

diferentes períodos históricos. Respostas contrárias podem até ter funções semelhantes, do ponto de vista

dos objectivos apaziguadores do Estado (Poulantzas, 1978). Embora pretenda ultrapassar as concepções

de Estado-coisa (visão instrumentalista de Lenine) e de Estado-sujeito, a sua conceptualização não deixa

de acentuar a ideia de “receptáculo” (onde se repercute a luta de classes) e a visão negativa ou reactiva

(face à vivacidade atribuída à luta e à conflitualidade social e de classe), em vez do papel activo e

empreendedor na relação entre a acção institucional e a sua intervenção na economia, na cultura e na

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Poulantzas parece aqui olhar mais para a dimensão reprodutiva do que para a esfera

restrita da produção. Todavia, não fica claro até que ponto as vertentes ideológica e

política continuam ou não a ser concebidas como instâncias secundárias onde se

projecta o económico mas que a ele permanecem subordinadas, ou seja – como também

alertou Mozzicafreddo (1981) –, sendo a produção sempre social, e se as “lutas” e

“práticas” (investidas de ideologia e de política) são a base da estruturação das classes,

não se percebe de que forma entram na própria constituição da “determinação

estrutural”, uma vez que, na sua perspectiva, a relativa autonomia de níveis aponta para

a determinação “final” do económico. O conceito de determinação estrutural das classes

de Poulantzas pode, contudo, permitir pensar as estruturas e práticas políticas e

ideológicas como dimensões sociais do comportamento humano situadas, não “de fora”

das bases que as determinam, mas que, enquanto elementos do social (incluindo o

económico), participam nas estruturas de “determinação” e, ao mesmo tempo, tomam

parte da sua constituição e transformação (Mozzicafreddo, 1981: 40-41)13.

1.1.2 – O conceito de “lugares contraditórios de classe” (modelo Wright I)

Um dos fenómenos que mais contribuiu para dar novo curso às velhas polémicas

sobre as teses da “proletarização” versus “emburguesamento” das classes intermédias

sociedade em geral, aspectos que mais tarde outros autores vieram a realçar (Evens et al., 1985; Jessop,

1990; Offe, 1984 e 1985a; Offe e Wiesenthal, 1984; Mann, 1987). 13 O próprio Marx, ao discutir a noção de indivíduo, perece diagnosticar, desde logo, a importância do

factor ideológico na criação do trabalhador “livre”. Na verdade, ele rejeitou claramente a assunção

veiculada pelos economistas clássicos que tomava os indivíduos num sentido natural, biológico, como um

dado – os “indivíduos desprovidos” da sociedade mercantil –, como se estivessem de fora, disponíveis

para posteriormente se tomarem como a “base” das classes. O homem, observou Marx, é produto de

muitas determinações: “a sociedade não é apenas um conjunto de indivíduos; é a soma das relações que os

indivíduos estabelecem uns com os outros. É como se alguém dissesse que, do ponto de vista da

sociedade, escravos e homens livres não existem; são todos homens. De facto, isso é o que eles são fora da

sociedade. Ser escravo ou cidadão é uma relação socialmente determinada entre um indivíduo A e um

indivíduo B. O indivíduo A não é, enquanto tal, escravo. Ele só é escravo na, e através da, sociedade”

(Marx, 1973: 265). Ainda a este propósito, José Barata-Moura refere-se ao problema ontológico da relação

entre o indivíduo e o colectivo no pensamento de Marx, sublinhando que “o colectivo não é uma „coisa‟ –

fora, acima ou ao lado daqueles que materialmente o integram –, não é uma generalidade substancializada

distinta dos seus portadores e da sua actuação enquanto tais. O colectivo são indivíduos actuando de um

modo determinado. O colectivo é um processo dialéctico de trabalho” (Barata-Moura, 1997: 304).

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foi o notório crescimento da chamada classe média nas sociedades avançadas – “este

grupo que não é grupo, esta classe que não é classe, este estrato que não é estrato”, na

curiosa acepção de Dahrendorf (1982: 56) –, crescimento esse que abalou

profundamente os pressupostos político-ideológicos do marxismo ortodoxo. Grande

parte do debate entre Poulantzas e Wright girou à volta desse fenómeno (se bem que,

enquanto marxistas, ambos recusaram e combateram as teses liberais ou funcionalistas

que acentuavam a crescente igualdade de oportunidades fornecida pelo sistema)14.

Principalmente devido à importância que dava ao critério ideológico, bem como ao

critério do chamado “trabalho improdutivo” (trabalho não directamente produtor de

mais valia), Poulantzas considerou que um vasto conjunto desses trabalhadores

assalariados integraria uma nova categoria de classe que, aliás, correspondia a um

“prolongamento” de uma classe já existente: a nova pequena burguesia (designação

que, em boa medida, justificou pela semelhança de traços ideológicos – o

individualismo, o feiticismo do poder, etc. – entre o sector dos empregados dos serviços

e a „velha‟ pequena burguesia).

Erik Wright, por seu lado, tecendo diversas críticas a Poulantzas15, tentou

especificar os fundamentos possíveis da unidade política da “classe média”, embora

14 O crescente protagonismo destas categorias intermédias remete para o conhecido fenómeno da

mobilidade social, a qual, embora reflicta a relativa perda de rigidez da estrutura social não significou um

simples aumento das oportunidades para os filhos da classe operária (como pretenderam algumas

correntes liberais e funcionalistas), tendo antes gerado mecanismos mais complexos na dinâmica social,

mecanismos esses que se traduziram simultaneamente em movimentos de “ascensão”, de “declínio” e de

“reprodução” em termos das disparidades de poder e de estatuto social. Diversos autores preferem falar

de “trajectórias de classe” em vez de “mobilidade social” (cf. Bertaux, 1978; Bourdieu, 1979; Almeida,

1984; Almeida et al., 1994; Goldthorpe, 1984 e 1992; Butler e Savage, 1995; Rodriguez, 1989). 15 A crítica ao critério do trabalho produtivo devido à sua irrelevância em termos das consequências

práticas para a determinação dos interesses de classe, a crítica ao conceito de pequena burguesia, pelo

excessivo ênfase colocado nas características subjectivas dessa classe, a crítica à exagerada importância

atribuída à dimensão ideológica, aspectos que teriam consequências negativas devido, por um lado, à

secundarização do papel da estrutura de classes na determinação do conflito e, por outro, à perda de

centralidade do conceito marxista de relações de produção (Wright, 1981: 40-56). Alguns dos critérios

relativamente consensuais entre os marxistas em termos de uma definição formal mínima da classe, são os

seguintes: a) a classe é um conceito intrinsecamente relacional; b) as relações em que se encontram as

classes conferem-lhes interesses objectivos; c) tais interesses são de natureza antagónica; d) esse

antagonismo deriva da relação de exploração inerente ao modo de produção capitalista; e) tal processo de

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34

aceitasse que esta categoria não constitui uma classe no sentido marxista. Em

alternativa, contrapõe o seu próprio modelo, construído em torno do conceito de lugares

contraditórios nas relações de classe (modelo Wright I) (Wright, 1981). Tais lugares de

classe são identificados não apenas no quadro do modo de produção capitalista (ou seja,

na base das relações de produção capitalistas), mas sim tendo em conta as articulações

complexas entre diferentes modos de produção que historicamente coexistem numa

mesma formação social (leitura que neste ponto é partilhada por ambos os autores).

Wright concebe um esquema triangular a partir das três classes tradicionais: burguesia e

proletariado (modo de produção capitalista) e pequena burguesia (modo de produção

mercantil simples)16. A razão pela qual alguém é considerado parte da pequena

burguesia ou da burguesia, e, por outro lado, a razão pela qual alguém é considerado

parte da pequena burguesia ou do proletariado é aferida em função de critérios como a

propriedade dos meios de produção, a autonomia na produção, o controle sobre a força

de trabalho alheia e a autoridade ou a posição nas relações de poder (Wright, 1981). A

mudança ocorrida na separação entre propriedade e controle, a distinção (parcial) entre

propriedade económica e controle, e a diferença entre “controle sobre os meios físicos

de produção” e “controle do processo de produção” são alguns dos factores que Wright

toma como centrais pelo seu alcance nas relações de classe. Assim, por exemplo,

enquanto o controle sobre os meios físicos e sobre o processo de produção constituem

factores incluídos nas relações de apropriação de mais-valia, o controle sobre a força de

trabalho faz parte das relações de dominação e autoridade. Em síntese, este primeiro

exploração fundamenta-se no modelo de organização da produção, ou seja, nas relações sociais de

produção (Wright, 1983: 11-13; 1985: 34-37). 16 Ao longo desses três eixos é possível detectar diversas posições de classe (ou “lugares contraditórios”),

primeiro, as situadas entre a pequena burguesia e cada uma das classes polares do modo de produção

dominante – a burguesia ou o proletariado (lugares situados entre o modo de produção mercantil simples

e o modo de produção capitalista), e, segundo, as posições situadas entre cada uma das classes polares do

modo de produção capitalista. Considerando que o impacto do desenvolvimento capitalista sobre a esfera

produtiva se repercute em fenómenos como: a) a progressiva perda de controle sobre o processo de

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modelo de Wright resulta da articulação entre seis critérios: 1) controle sobre os

recursos e investimentos (propriedade económica); 2) controle sobre os meios físicos de

produção (posse); 3) controle sobre a força de trabalho alheia (posse); 4) propriedade

legal sobre capital e imóveis (propriedade jurídica); 5) situação legal de empregador

(propriedade jurídica); 6) venda de trabalho assalariado. Como consequência, esta

tipologia traduz-se num conjunto de oito categorias de classe: por um lado, as três que

correspondem a situações inequívocas: burguesia, proletariado e pequena burguesia; por

outro lado, cinco lugares contraditórios de classe: pequenos empregadores, empregados

semi-autónomos, gestores, gestores-consultores e supervisores (Wright, 1981: 66).

Este primeiro modelo revelou diversas insuficiências teóricas e dificuldades de

operacionalização analítica, postas a nu pelo próprio terreno empírico. Eis algumas das

situações “anómalas” consideradas como reveladoras das deficiências do modelo: a

distinção entre as situações polares e os lugares contraditórios de classe não permite a

identificação de categorias de classe enquanto portadoras de interesses opostos (como

era objectivo declarado do autor); o caso dos empregados semiautónomos, considerados

numa situação distinta da classe operária devido à maior autonomia face às suas tarefas,

aspecto que, além de não pressupor nenhuma diferença essencial em termos de

interesses de classe, é definido com base num critério contingencial (que pode até ser

exterior ao processo produtivo) e não deriva das relações sociais de produção. Como

mais tarde reconheceu Wright, um porteiro poderia possuir mais autonomia do que, por

exemplo, um piloto de aviação, daí resultando que este último estaria mais firmemente

numa localização da classe operária do que o primeiro. A autonomia e a dominação,

enquanto critérios de pertença de classe, foram sobrevalorizados e deixam transparecer

trabalho por parte da classe operária; b) a diferenciação das funções do capital; e c) a crescente

complexificação das hierarquias no espaço produtivo (Wright, 1981: 59-66).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

36

um excessivo pendor institucional, ou seja, uma lógica demasiado dependente das

hierarquias da empresa e das posições funcionais no seio da divisão técnica do trabalho.

1.1.3 - Novos desenvolvimentos no modelo de Wright (modelo Wright II)

Deste modo, o combate crítico foi, em certa medida, dando lugar à própria

autocrítica do autor e as reformulações que se seguiram começaram a traduzir-se num

segundo modelo, cuja sistematização – sempre acompanhada de abundante pesquisa

empírica e respectivos modelos estatísticos – apareceu na obra Classes (Wright, 1985).

Este modelo reconstruído (Wright II) procurou recuperar o conceito marxista de

exploração para o centro da análise, considerando que o antagonismo de interesses entre

as classes passa necessariamente pela existência de relações de exploração. A

dominação, por si só, não chega para definir interesses objectivos antagónicos. Este é, no

entanto, um ponto delicado. Trata-se da tese das opressões múltiplas, segundo a qual as

sociedades capitalistas se caracterizam por uma pluralidade de mecanismos de

dominação, cada um deles exercendo uma forma particular de opressão: a desigualdade

sexual, o racismo, o colonialismo, o poder económico, etc. Uma boa ilustração da

diferença entre opressão e exploração é retirada da esfera familiar: a opressão dos filhos

pelos pais não implica a existência de interesses materiais (ou interesses “objectivos”)

opostos entre uns e outros. O mesmo se pode dizer dos grupos sociais em situações de

opressão não-exploradora – como acontece com os marginais, os pobres, os

desempregados, as minorias étnicas, etc. – que, por não traduziram uma relação de

interdependência com os opressores poderiam, do ponto de vista destes, ser banidos sem

que isso afectasse a sua condição, ou seja, ao contrário da situação de exploração, o

opressor não “precisa” do esforço produtivo do oprimido17. Por isso, a relação

17 Wright refere-se à diferença entre situações de opressão não-exploradora e situações de exploração

recorrendo aos exemplos históricos da colonização da América do Norte e da África do Sul. “No caso da

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Entre a Fábrica e a Comunidade

37

dominação/opressão não chega, por si só, para definir os interesses objectivos em causa.

Só a exploração pode estruturar as principais clivagens classistas porque só ela produz

interesses materiais antagónicos, visto que só neste caso o explorador “precisa” do

explorado para acumular riqueza e este último precisa do primeiro para sobreviver.

Relações de exploração geram, inevitavelmente, interesses objectivos contraditórios (já

que nenhum indivíduo tem um interesse objectivo em ser explorado) ainda que os

mesmos sejam camuflados através de atitudes subjectivas de anuência ou de

aceitação18. Daí a insistência do autor em que o conceito de exploração deve continuar

no centro da análise das classes.

Esta acepção em torno dos interesses objectivos (ou fundamentais) não deixou de

dar azo a acusações de ortodoxia e de voluntarismo. Conforme apontaram alguns dos

críticos de Writght, a crença implícita de que o verdadeiro interesse da classe operária

coincide com o interesse no socialismo reflecte, antes de mais, “uma arbitrária atribuição

de interesses, por razões de natureza política” (Laclau e Mouffe, 1985: 83). A questão

dos “interesses de classe”, além de ser um dos pontos mais combatidos e vulneráveis

deste modelo – bem como uma das noções que melhor exprimiu o dogmatismo marxista

em geral –, remete directamente para o problema da acção e da identidade de classe, a

que voltarei mais adiante. É, pois, imperioso reconhecer as dificuldades de Wright em

opressão não-exploradora os opressores ficariam felizes se os oprimidos simplesmente desaparecessem. A

vida teria ficado mais fácil para os colonos europeus na América do Norte se o continente não estivesse já

habitado por pessoas. O genocídio é assim uma estratégia potencial para a opressão não-exploradora. O

que não é uma opção numa situação de exploração económica porque os exploradores precisam do

trabalho dos explorados para o seu bem-estar material. Não é por acidente que culturalmente temos o

hediondo ditado „o único índio bom é o índio morto‟, mas não outros ditos como „o único trabalhador

bom é o trabalhador morto‟ ou „o único escravo bom é o escravo morto‟. Fará sentido dizer „o único

trabalhador bom é o trabalhador obediente e consciencioso‟, mas não que „o único trabalhador bom é o

trabalhador morto‟. O contraste entre a América do Norte e a África do Sul no tratamento dos povos

indígenas reflecte esta diferença pungente: na América do Norte, onde os povos indígenas foram

oprimidos (através da expulsão coerciva das terras), mas não explorados, o genocídio foi a política

primária de controlo social em face da resistência; na África do Sul, onde a população colona europeia

dependia fortemente do trabalho africano para a sua própria prosperidade, essa não podia ser uma opção”

(Wright, 1997a: 11-12).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

38

libertar-se de alguns dos insolúveis equívocos que o marxismo estrutural introduziu na

análise abstracta das classes, aspectos que se foram tornando mais claros à medida que

outras clivagens sociais concorrentes com a classe foram sendo reconhecidas19.

Apesar da vulnerabilidade de Wright a algumas destas críticas (Wright, 1989,

1997a e 1997b)20, a classe – definida num sentido estrutural – continua a ser tomada

pelo autor como um mecanismo que além de encerrar, ele próprio, uma forma particular

de opressão, é dotado de capacidade para impor limites às outras formas de opressão

(embora não as “determine” directamente), ou seja, o conceito de classe é o único que

transporta simultaneamente mecanismos de opressão e de exploração. Todavia, é

questionável se a dominação é menos importante que a exploração. A propensão humana

para a acção é muitas vezes mais constrangida pela dominação/opressão do que pela

exploração. Como principal referência teórica, Wright inspirou-se abundantemente em

John Roemer (1982b)21, o qual considera que a exploração e as classes são, à partida,

fenómenos relativamente independentes um do outro. Para além disso, procura mostrar a

possibilidade teórica da existência de sociedades com exploração mas sem classes

sociais (Costa, 1987). As desigualdades sociais são analisadas como consequência de

mecanismos de exploração capazes de proceder à transferência de sobretrabalho de uns

grupos sociais para outros, ou seja, existe uma relação causal entre o bem-estar de uns e

18 Ao contrário da conhecida equação liberal – segundo a qual os interesses do indivíduo correspondem

aos seus interesses expressos –, em Wright, o verdadeiro interesse está longe de coincidir com os

interesses manifestos do agente. 19 Como mostraram alguns estudos sobre as desigualdades, a mudança e a acção colectiva que surgiram

nos últimos dez anos (cf. Balibar e Wallerstein, 1991; Aronowitz, 1992; Eder, 1993; Cohen e Arato,

1994; Calhoun, 1994; Crompton, 1993 e 1997). 20 Em artigo recente sobre a questão da diferença sexual, parecem claras as crescentes cedências de

Wright, ou seja, a tendência em considerar ambos os factores (classe e diferença sexual), com

semelhantes capacidades de estruturação das desigualdades: “o marxismo e o feminismo são as duas

tradições teóricas que mais atenção têm dado à tentativa de compreensão destas formas de opressão. No

passado dispendeu-se muita energia teórica em debates de carácter metateórico sobre se se deveria

conferir uma prioridade geral a um ou a outro destes feixes de processos causais. Uma das conquistas do

progresso teórico destes últimos anos consistiu em superar essas preocupações” (Wright, 1997b).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

39

a privação de outros. Ao contrário da teoria do valor-trabalho de Marx, Roemer defende

que pode haver exploração, por exemplo, num modelo de sociedade em que todos sejam

proprietários dos meios de produção e trabalhem em regime de autoprodução (economia

de subsistência sem mercado de trabalho), pressupondo-se para tal a existência de bens

produtivos e instrumentos técnicos desiguais à partida. Se, como demonstra Roemer

(1982b, 1986), o produtor X produzir mais mercadorias que o produtor Y dispendendo o

mesmo tempo de trabalho, ao trocá-las no mercado concorrencial, X pode obter um

cabaz de mercadorias maior que Y, tendo dispendido um esforço igual ou inferior, o que

significa que X explora Y. Em tal situação a exploração poderia acontecer, mesmo na

ausência de classes.

O mesmo autor postula ainda a existência de um processo de correspondência

entre classes e exploração, o qual tem lugar no quadro de um modelo de economia de

subsistência com mercado de trabalho. Neste caso, as classes emergem a partir da

diferença (qualitativa e quantitativa) na relação com os meios de produção. À existência

ou não existência de propriedade dos meios de produção e ao desigual volume de

propriedade, correspondem diferentes classes: os que vendem força de trabalho, os que

compram força de trabalho e os que não vendem nem compram força de trabalho. Em tal

situação é a propriedade a base da exploração e trata-se, portanto, de exploração

capitalista (com base na apropriação de mais-valia no processo de trabalho).

Segundo os modelos de Roemer, a desigual distribuição de recursos e a troca de

bens no mercado bastam para gerar transferência de mais-valia. São, portanto, dois os

tipos de recursos produtivos que estão na base desses processos: 1) – recursos alienáveis

(bens físicos, propriedade material); e 2) – recursos inalienáveis (capacidades,

habilidades, qualificações). As desigualdades nos primeiros dão origem à exploração

21 Os modelos propostos por este autor e a sua contribuição para as “novas e velhas questões” sobre a

teoria das classes foram objecto de importante reflexão e síntese teórica realizada por António Firmino da

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40

capitalista e as desigualdades nos segundos dão origem ao que Roemer designa por

exploração socialista22. Olin Wright acrescenta-lhes duas novas modalidades (que se

vêm juntar àquelas): 3) – recursos em pessoas (posse de força de trabalho) e 4) –

recursos organizacionais (controle dos mecanismos de decisão nas organizações). A

desigual distribuição dos primeiros refere-se especificamente à sociedade feudal, uma

vez que aí, diferentemente do capitalismo, nem todos possuíam uma unidade de força de

trabalho, visto que os servos não eram sequer proprietários do seu próprio corpo,

enquanto os senhores possuíam a força de trabalho dos seus servos. Deste modo, a

exploração feudal assenta na transferência directa do sobretrabalho a partir da

propriedade da força de trabalho alheia. Por sua vez, a desigual distribuição de recursos

organizacionais dá lugar a uma forma de exploração considerada dominante nas

sociedades de “socialismo de Estado” (onde as estruturas organizacionais do Estado se

estendiam a toda a sociedade) – a exploração socialista23.

Segundo Wright, as diferentes modalidades de recursos desigualmente distribuídos

combinam-se de forma complexa nas “sociedades concretas”, para darem origem a

múltiplas formas de exploração. Assim, ao propor o seu actual mapa das localizações de

classe, desde logo nos adverte que “na maior parte das sociedades haverá muitas

posições na estrutura de classes que são simultaneamente exploradoras e exploradas

segundo as diferentes dimensões das relações de exploração” (Wright, 1989a: 8).

Concretamente, nas sociedades capitalistas, o autor considera a combinação de três tipos

Costa (1987). 22 Escuso-me, por razões óbvias, de aprofundar a análise de Roemer, mas refira-se que uma segunda

componente de grande importância no contexto da sua “teoria geral da exploração” é inspirada na teoria

dos jogos. Dela se infere que as estratégias de retirada dos actores, perante as “alternativas viáveis” em

face de escolhas entre, por exemplo, participar no “jogo” feudal, capitalista, ou socialista, se tornam

condicionantes fulcrais das práticas e dos seus processos de estruturação em termos classistas (cf. Roemer,

1982a e 1982b; e Costa, 1987). 23 Em todo o caso, a noção de “exploração organizacional” ou “exploração burocrática” parece algo

ambígua, principalmente quando aplicada às sociedades capitalistas. De facto, não é fácil vislumbrar

situações em que aos desapossados dos meios de produção seja permitido estruturar com sucesso o “poder

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41

principais de exploração: exploração capitalista (baseada no desigual controle dos meios

de produção); exploração organizacional ou burocrática (desigual controle de recursos

organizacionais ou de autoridade); e exploração por credenciais ou qualificações

(desigual controle de qualificações escassas ou credenciais escolares). Se nas actuais

sociedades a única forma de exploração fosse de tipo capitalista, todos os assalariados

pertenceriam à classe operária. Porém, tendo em atenção as outras formas de exploração

será possível visualizar divisões internas de classe, pondo em relevo, por exemplo,

localizações da “classe média” onde se combinam múltiplas formas de exploração e em

que algumas dão lugar a situações ambíguas (que, no fundo, correspondem a lugares

contraditórios nas relações de classe), ou seja, situações que podem ser

simultaneamente exploradas (porque, por exemplo, não possuem os meios de produção)

e exploradoras (porque, por exemplo, possuem elevadas credenciais ou diplomas

académicos). O referido esquema dá então lugar a uma estrutura com um conjunto de

doze “localizações de classe” (o que, obviamente, não significa advogar a existência de

doze classes) as quais, embora correspondendo a uma estrutura abstracta, condicionam

no concreto as práticas individuais e as formas possíveis de acção colectiva24.

Uma das vantagens desta proposta reside justamente nas possibilidades que abre à

análise das chamadas “classes médias” a partir de um ponto de vista marxista,

permitindo visualizar diferentes lógicas de acção e diferentes estratégias segundo

critérios que se reconhecem hoje decisivos, como é o caso das qualificações (ou

credenciais escolares) e dos instrumentos de poder (recursos organizacionais ou

da organização”, em especial se se pretender usá-lo contra o proprietário. Por isso, dificilmente este factor

pode ser visto como uma relação independente. 24 Sobre a tipologia das doze localizações de classe e a sua operacionalização, ver Wright (1985: 64 e ss.).

No âmbito do presente estudo, o modelo de análise de Wright assume maior relevância no que respeita aos

resultados da estrutura regional das classes na zona da indústria do calçado (que apresentarei no Capítulo

6). A abordagem aí efectuada, embora apoiada nos pressupostos teóricos e metodológicos de Wright,

analisa os resultados obtidos recorrendo à dimensão histórica e cultural, ou seja, dando atenção a factores

que se aproximem mais da teoria weberiana.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

42

autoridade) de que se dispõe nas relações de trabalho. Mas há aqui incongruências

difíceis de ultrapassar.

Primeiro, o conceito de exploração é, na prática, utilizado num sentido puramente

quantitativo e, em termos operativos, as distinções são efectuadas arbitrariamente, o que

contraria o pressuposto de que a análise marxista é fundamentalmente relacional.

Segundo, não se vê como os três critérios – propriedade, recursos organizacionais (ou

autoridade) e credenciais escolares – se relacionam uns com os outros. Terceiro, é

duvidoso que a desigual distribuição de recursos em credenciais e em autoridade possam

ser concebidas como formas de exploração com o mesmo nível de importância da

exploração capitalista (propriedade e extracção directa de mais-valia), pois esta é a única

relação que, além de produzir lucro, implica relações intrínsecas de interdependência

entre explorado/ explorador. Por último, o procedimento de Wright no que respeita ao

tratamento da dimensão político-social – das formações de classe, da consciência de

classe e da subjectividade – levanta sérias dúvidas, em particular a sua insistência nas

articulações “objectivas” entre as posições estruturais e as formas de consciência

confunde-se com a ortodoxia essencialista, como lhe têm apontado alguns dos seus

críticos neoweberianos e pós-marxistas (Marshall et al., 1988; Laclau e Mouffe, 1985).

É importante nesta altura lembrar as aproximações de Wright ao pensamento de

Weber, particularmente notadas nos seus últimos trabalhos (Wright, 1997a e 1997b). Na

verdade, a abordagem estrutural das classes poderá sair enriquecida se for combinada

com factores mais identificados com o weberianismo, como sejam a dimensão

comunitária e a mobilidade social. O próprio Wright aponta, como se disse, as vantagens

de “marxianizar o weberianismo”25, considerando que o elo estrutural que liga

25 Em algumas formulações, o próprio conceito de “exploração” surge como elo de ligação entre as duas

tradições. É o que acontece quando, por exemplo, John Roemer fala em “exploração de status” ou em

“exploração socialista” e quando se admite que, em termos abstractos, pode haver exploração mesmo num

modelo de sociedade sem mercado de trabalho, ou seja, com todos os produtores a serem proprietários dos

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explorador e explorado na produção afecta as capacidades de mercado e as

oportunidades de vida dos membros das classes sociais em presença e, assim, o conflito

distributivo está em articulação com as relações de exploração sediadas na produção.

Recorrendo a uma parábola da banda desenhada – a história do shmoo (Wright, 1997a:

4) – o autor procura mostrar como os recursos e meios de vida que os trabalhadores da

indústria possam encontrar fora da empresa constituem uma dimensão que – embora

tenha lugar através das relações de mercado e não na relação directa capital/trabalho –

faz parte dos mecanismos de exploração, já que o enriquecimento de uns é efectuado à

custa da privação de outros. Neste caso, a exploração não é incompatível com o

compromisso entre as classes desde que as actividades complementares (na verdade, o

equivalente aos shmoos) se mantenham insuficientes para a subsistência do trabalhador,

acabando por favorecer simultaneamente os operários e o capitalista. Ou seja, enquanto

os primeiros podem reforçar o seu baixo salário, mantendo ao mesmo tempo o emprego

(por isso não têm interesse que a fábrica feche as portas), o segundo beneficia com isso,

pelo menos enquanto tais rendimentos paralelos forem insuficientes por si sós, e os

assalariados, à falta de melhores alternativas, forem obrigados a trabalhar para um patrão

que lhes paga mal26. Com esta ilustração o autor pretende mostrar como as relações de

mercado têm de facto uma interferência directa na estruturação das classes visto que tais

mecanismos de mercado, apesar de facilitarem certas formas de compromisso, não

deixam de se apoiar no antagonismo de interesses e na lógica exploradora.

seus meios de produção, os próprios mecanismos de mercado fornecem as bases da exploração. Wright

adere claramente a esta ideia quando, no seu último livro, desenvolve a metáfora do “efeito shmoo”

(Wright, 1997a; cf. também Estanque e Mendes, 1998). Para uma síntese desta discussão e em particular

dos modelos de Roemer, ver Costa (1987). 26 Mas se, por hipótese, a situação se alterasse no sentido de se obterem benefícios crescentes a partir, por

exemplo, da actividade agrícola, é provável que muitos trabalhadores preferissem trocar a fábrica pelo

trabalho na agricultura, fazendo escassear a mão-de-obra na indústria e consequentemente inflaccionando

os salários aí praticados.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

44

Por outro lado, a localização “directa” na estrutura de classes, sendo muitas vezes

insuficiente para explicar tanto as práticas como as orientações subjectivas dos

indivíduos, faz apelo a outras mediações, como sejam a interferência “indirecta” das

redes sociais (familiares e de amizade) e das trajectórias pessoais ou intergeracionais na

definição da posição de classe mediada, enquanto factor influente na explicação das

práticas e subjectividades individuais ou colectivas27. Efectivamente, parece cada vez

mais insustentável a ideia de que a estrutura de classes possa, por si só, fornecer

explicações plausíveis para a compreensão das subjectividades e comportamentos

colectivos, uma vez que na verdade não existem quaisquer interesses “essenciais” ou

“objectivos” directamente atribuíveis à posição de classe28. Se esta continua a ser um

elemento importante, ela deve conjugar-se com outros factores de natureza histórica,

contextual e cultural, nomeadamente o fenómeno das identidades.

O problema da acção colectiva e a questão dos “interesses” – classistas ou não –

podem ser equacionados com as identidades. Muito embora esse seja um tema que

abordarei mais à frente vale a pena adiantar que diversos autores o introduzem nas

discussões sobre a acção de classe. Por exemplo, Ted Benton prefere utilizar em vez do

conceito de “interesses”, a noção de “objectivos” (Benton, 1981), considerando que

estes são inerentes às práticas sociais e se manifestam sobretudo no seu conteúdo

simbólico. Esta ideia é sublinhada por Firmino da Costa quando afirma que “em

sociedade, cada actor ou categoria de actores não só tem um, mas diversos objectivos

possíveis, ligados à variedade de identidades colectivas sobreponíveis ou

27 Alguns resultados da sociedade portuguesa referentes às permeabilidades de classe entre diferentes

gerações e à posição de classe do cônjuge e do amigo mais próximo foram publicados noutro lugar

(Estanque e Mendes, 1998). Para novas discussões entre o modelo de Wright e a diferença sexual, ver

Wright (1997b) e Crompton (1997). 28 Michael Burawoy afirma que Wright faz concessões ao idealismo, ao formular o conceito de

“interesses de classe objectivos”, assumindo, implicitamente, que a classe operária tem um interesse

objectivo no socialismo (Burawoy, 1989).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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alternativamente colocáveis” (Costa, 1987: 77)29. Quer isto dizer que a tomada de

consciência dos “interesses de classe” não deriva directa e “objectivamente” dos lugares

de classe, uma vez que estes apenas estão em condições de desenvolver interesses

potenciais. De qualquer dos modos, os interesses manifestam-se sempre no quadro de

identidades sociais em relação às quais estão, em certa medida, dependentes (Marshall,

1997: 52). Como frisou Pizzorno (1981), a identidade precede os interesses. Isto vai

também ao encontro da leitura dos pós-marxistas Laclau e Mouffe (1985), para quem

são sobretudo a experiência e as práticas que condicionam a subjectividade e a vontade

dos actores, e não tanto o processo inverso.

Numa linha semelhante, os autores da escola neoweberiana de Essex (Marshall et

al., 1988), admitem que no caso da classe operária, as identidades sociais sejam

primariamente oriundas da produção, mas sublinham: “isso não é sempre verdade nem

tem consequências uniformes. Identidades sectoriais, tanto como identidades de classe,

podem emergir de experiências particulares de trabalho, mas elas não têm de ser

permanentes ou duráveis. Podem ser activadas em circunstâncias particulares, por

exemplo, no contexto de uma disputa industrial ou quando a fábrica está sob ameaça de

encerramento, mas noutras ocasiões permanecem latentes. Nessas alturas, as esferas da

vida fora do trabalho são provavelmente as mais salientes para activar as identidades

sociais. Na verdade, para alguns indivíduos estas identidades podem modelar outras

identidades potenciais” (Marshall et al., 1988: 273).

De um modo geral, pode dizer-se que a explicação da acção colectiva da classe

trabalhadora com base nas solidariedades da colectividade operária tem vindo a sofrer

29 Como refere Firmino da Costa, daqui deriva “a possibilidade de objectivos alternativos e o facto de

uma parte importante da luta de classes consistir em tentar-se persuadir outros de que os seus „interesses

verdadeiros‟ são uns, e não outros, ou seja, em advogar mudanças de identidade, em procurar induzir

orientações preferenciais, não para umas, mas para outras identidades colectivas”. Citando Benton, pode

ler-se no mesmo texto: “tentar persuadir alguém de que um certo curso de acção, em vez dum outro

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46

uma crescente contestação30. É certo que o pressuposto evolucionista da teoria do

materialismo histórico, bem como o pendor determinista e abstracto que acompanhou a

teoria das classes no passado, são formalmente rejeitados por Erik Wright (1997a;

Wright et al., 1992). No entanto, a grande preocupação do autor com o rigor conceptual

e a operacionalidade dos modelos estatísticos parecem ir de par com uma certa perda de

vitalidade crítica, fazendo com que alguns dos seus “equipamentos analíticos” apareçam

hoje envoltos num excessivo relativismo. A abordagem de Wright é ontologicamente

forte, mas epistemologicamente fraca. Ao advogar que as classes têm uma existência

concreta, independentemente do que se passa num dado quadro “mental” ou

“conceptual”31, parece esquecer que, apesar de tudo, a realidade é inseparável do sujeito

que a pretende captar e “moldada” pelo próprio acto de conhecer.

Uma análise realista das estruturas e da acção de classe exige a captação das

configurações concretas de ideologias, identidades culturais e práticas de classe inseridas

em contextos históricos particulares. Ou seja, a análise estruturalista das classes pode ser

útil a uma abordagem como a que está em causa neste estudo, mas é necessário

complementá-la com outras perspectivas que permitam uma compreensão mais profunda

e qualitativa da realidade social, capaz de captar os processos históricos e os contextos

socioculturais concorrentes com a estrutura de classes na modelação da acção colectiva.

As práticas e experiências vividas no processo produtivo e na comunidade não só se

inscrevem nas estruturas mais gerais do capitalismo, mas revestem-se de significados

qualquer, é do seu interesse significa tomar parte na constituição e/ou reconstituição da sua identidade

social e pessoal” (Costa, 1987: 77). 30 A perda de centralidade da classe nos processos políticos e na transformação social mais geral,

caminha de par com a emergência de outro tipo de fenómenos e de clivagens identitárias (socioculturais,

étnicas, sexuais, etc.), assunto a que irei referir-me no ponto seguinte (cf. Korpi, 1983; Goldthorpe, 1984;

Maheu, 1995; Eder, 1993; Aronowitz, 1992; Burawoy, 1985 e 1989; Pakulsky e Waters, 1996a). 31 Uma tentativa de demarcação face a Ernesto Laclau (e a outros críticos), segundo o qual “os objectos

não são nunca dados como meras „existências‟ mas, são sempre articulados no seio de totalidades

discursivas” (Laclau, 1990: 109). Alguns acusam-no de ser como o viajante meticuloso que “passa o

tempo a fazer as malas para não ir a lado nenhum”.

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47

simbólicos muito variados onde as lógicas estruturais e globais aparecem ligadas a

especificidades locais particulares. Significa isto que a captação da acção social e o

estudo de uma dada colectividade exige o reconhecimento de que as práticas colectivas

transportam as marcas das estruturas e sistemas de relações em que as pessoas se

inserem, mas, simultaneamente, sofrem a influência das histórias e subjectividades que

os próprios actores constróem e com as quais se identificam, mais do que a determinação

de “interesses essencialistas” que lhes sejam imputados (Somers e Gibson, 1994). É

nessa medida que a discussão teórica em volta das noções de “identidade” e de

“comunidade” poderá constituir um poderoso auxiliar que pode articular-se com a

abordagem estrutural, dando assim maior visibilidade aos processos de estruturação das

práticas e da acção colectiva do operariado.

1.2 - Identidade e comunidade na formação da classe operária

Os conceitos de “comunidade” e “identidade” têm nos últimos anos animado

diversos debates – sejam eles directamente relacionados com a classe ou, por exemplo,

a propósito das temáticas do nacionalismo, do racismo ou do feminismo – onde

diferentes correntes teóricas e tradições científicas se vêm cruzando, nomeadamente a

filosofia política, a sociologia, a história e os estudos culturais32.

Poder-se-á dizer que, enquanto dimensões substantivas da realidade sociocultural,

a comunidade e a identidade estiveram, durante séculos, estreitamente imbricadas ou até

mesmo sobrepostas (no contexto das sociedades tradicionais). Todavia, com o avanço

do capitalismo e o consequente processo de edificação do Estado-nação33 tornou-se

32 Alguns desses debates têm surgido na literatura sociológica ao longo da última década (cf. Gilbert,

1992; Calhoun, 1982 e 1994; Anderson, 1991; Mouffe, 1996; Laclau, 1996; Bellah, 1991 e 1997;

Rajchman, 1995; Tilly, 1996a; Hall, 1996; Hall e du Gay, 1996; Ferrara, 1997; Bhabha, 1995; Santos,

1995 e 1996). 33 Na conhecida obra de Benedict Anderson – Comunidades Imaginadas – a nação é ela própria

concebida como uma comunidade imaginada. Apoiando-se em formulações de Ernest Gellner, aquele

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Entre a Fábrica e a Comunidade

48

inevitável a crescente fragmentação e desterritorialização da velha comunidade pré-

industrial. A ambiguidade dos conceitos de comunidade e identidade prende-se

justamente com a perda de importância da ideia de lugar34, e, por isso, a sua actual

pertinência não deixa de surgir como corolário de fenómenos sociais que, embora

típicos do século XX, nos remetem permanentemente para processos históricos e

civilizacionais anteriores como acontece, por exemplo, com as temáticas do racismo, do

colonialismo, dos movimentos religiosos, do feminismo ou do nacionalismo, para além

do próprio processo de industrialização e de expansão capitalista (Balibar e Wallerstein,

1991, Anderson, 1991, Calhoun, 1997).

Apesar da dimensão espacial e local continuarem a ser elementos que dificilmente

poderão ser subtraídos a este debate (uma vez que, mesmo as novas formas de

desestruturação identitária, não se manifestam no vazio mas sim em espaços social e

territorialmente definidos)35, é justamente o carácter fluído e instável, sob a pressão de

autor sustenta que o nacionalismo, em vez de corresponder ao “acordar das nações” é antes “a invenção

das nações onde elas não existem”. Todavia, isso não significa que se trate de uma invenção ou fabricação

(no sentido de „falsidade‟ por oposição a algo „genuíno‟, como pretendia Gellner): a nação é uma

comunidade política imaginada “porque os membros mesmo da mais pequena nação nunca conhecerão a

maioria dos seus concidadãos, encontrá-los, ou até ouvir falar deles, apesar de na mente de cada um

persistir a imagem da sua comunhão. (…). De facto, todas as comunidades mais extensas do que as

antigas aldeias onde prevaleciam os contactos face-a-face (e talvez mesmo estas) são imaginadas (…)”.

Trata-se de uma comunidade imaginada “porque, apesar da real desigualdade e exploração que prevalece

em cada uma, a nação é sempre concebida como uma profunda camaradagem horizontal. Em última

instância, foi esta fraternidade que tornou possível, ao longo dos últimos dois séculos, a tantos milhões de

pessoas disporem-se, não tanto a matar, mas a aceitar morrer em nome desse imaginário” (Anderson,

1991: 15-16). 34 Com o desenvolvimento capitalista e a consequente acção do mercado e do Estado a comunidade

tradicional (espacializada) foi sendo submetida a crescentes pressões. Nessa medida, o conceito de

comunidade vai ganhando novos contornos: “no sentido de afinidade contextualizada num lugar, a

„comunidade‟ tem sido, de facto, largamente destruída, ainda que se pudesse discutir até que ponto esse

processo ocorreu em contextos específicos” (Giddens, 1992: 91). 35 Mais adiante farei referência à dimensão espacial e geográfica na sua relação com a identidade e a

comunidade. Mas, vale a pena sublinhar como a questão do espaço é fundamental a diversos níveis. A

começar pela própria formação do moderno Estado-nação. No seio das sociedades feudais, os direitos

individuais eram circunscritos às pequenas elites locais por via de um estatuto geralmente herdado ou

restrito às situações excepcionais dos agentes da administração local. A vasta maioria das populações

camponesas estava simplesmente amarrada aos deveres para com os senhores das terras e, deste modo, o

exercício do poder era na prática mantido no quadro dos valores e costumes locais, ligados a esta ou

àquela comunidade, vila ou território de administração senhorial, isto é, como assinalou Perry Anderson

(1974), as relações feudais eram caracterizadas pela fusão entre o poder, a exploração económica e a

coerção legal numa dada base territorial e local. A grande maioria das pessoas nasciam, viviam e morriam

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Entre a Fábrica e a Comunidade

49

inúmeros factores (político-económicos e simbólico-culturais) oriundos das mais

diversas instâncias e mediados por uma enorme panóplia de meios tecnológicos, que

mais distingue os actuais processos de fragmentação/estruturação identitária nas

sociedades avançadas. A tal ponto que as concepções substantivas da comunidade e da

identidade têm vindo a ser questionadas pela generalidade dos teóricos. Em todo o caso

é bom sublinhar que as referidas noções são conceptualmente distintas e nessa medida

merecem ser discutidas em separado.

1.2.1 - Identidade e identificação

Não sendo possível tratar aqui a vasta e crescente discussão em torno da noção de

identidade, convém no entanto ter presentes algumas das suas premissas teóricas. A

identidade é sobretudo associada à subjectividade e ao modo como os sujeitos se vêem a

si próprios enquanto intérpretes da sua experiência passada a partir das suas condições

de vida no presente. Seja no plano individual, seja no quadro de uma comunidade

territorializada (localidade, região ou nação), a história – pessoal ou colectiva – é um

elemento decisivo. É decisivo não porque se imponha por si mesmo, mas sim porque “o

passado que afecta o presente é um passado construído e/ou reproduzido no presente”

(Friedman, 1994). Segundo Jonathan Fiedman, trata-se de uma “prática do mito”, o que

não quer dizer os efeitos de um mito na prática, mas sim a própria prática da

fabricação do mito: “a imposição de um modelo do passado sobre o presente ocorre

como um acto de vontade na socialização (…). A constituição da identidade é um

elaborado e mortalmente sério jogo de espelhos. É a complexa interacção temporal de

múltiplas práticas de identificação externas e internas a um sujeito ou população”

(Friedman, 1994: 141). Para Charles Tilly, o conceito de identidade é fundamental na

no mesmo espaço comunitário, já que os movimentos de massa praticamente se limitavam às actividades

militares e, nessa medida, o poder soberano a que obedeciam assentava num critério de controle-através-

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Entre a Fábrica e a Comunidade

50

análise social, por três motivos: 1) não é um fenómeno privado e individual, mas

público e relacional; 2) abarca todos os níveis, desde o de „categoria‟ ao de

„organização‟; e 3) qualquer actor possui múltiplas identidades – raça, sexo, classe,

emprego, religião, filiação, nacionalidade, etc. –, pelo menos uma por categoria,

ligação, papel, rede social, grupo ou organização a que o actor permanece ligado. O

facto de permanentemente os outros tipificarem um indivíduo ou grupo, apontando

apenas um dos seus traços identitários é o que permite estabelecer a unidade entre as

várias dimensões/identidades, tornando uma delas dominante na consciência e no

comportamento do actor (Tilly, 1996a: 7).

A noção de identidade é cada vez mais associada aos processos que os actores

põem em prática na procura de identificação. Por vezes sugere-se o abandono da

primeira noção e a sua substituição pela segunda. Tendo em conta as múltiplas formas

de identificação, simultaneamente reais e fictícias – “identidades”, “comunidades”,

“categorias”, etc. – com que se depara o indivíduo nas sociedades actuais, muitos

interrogam-se sobre se é ou não possível conceber identidades unificadas e coesas.

Alguns acentuam o papel da dimensão racional. Por exemplo, Giddens (1991) refere

que as “auto-identidades” poderão manter uma linha de coerência e preservar a

estabilidade através da reflexividade. Etienne Balibar, discutindo as relações entre

identidade cultural e identidade nacional, apresenta diferentes distinções e ambiguidades

inscritas no conceito de identidade36: “na realidade não existem identidades, apenas

identificações (…) ou, se se preferir, identidades são apenas os objectivos ideais de

processos de identificação” (Balibar, 1995: 187). Boaventura Sousa Santos, referindo-se

do-espaço, segundo os princípios instituídos de “perpetuação de laços e de obrigações” (Clegg, 1989:

173). 36 Nomeadamente, a distinção entre a dimensão objectiva/ subjectiva, a contradição universal/ singular, a

oposição entre identidade das elites/ e das massas e a distinção entre elementos de fixidez ou resistência/

elementos de fluidez e mudança, contradições estas que reflectem o carácter dialéctico do conceito de

identidade cultural (Balibar, 1995: 174-176).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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às características fluídas das actuais comunidades – as comunidades-amiba37 –,

sustenta que nelas “a identidade é sempre múltipla, incompleta, levando a cabo um

processo de reconstrução e reinvenção, ou seja, um processo de permanente

identificação” (Santos, 1995: 485). Stuart Hall aponta num sentido semelhante ao

advogar que “a identificação tornou-se um dos últimos conceitos bem compreendidos –

embora quase tão enganoso como, é preferível à própria „identidade‟” (Hall, 1996: 2).

Por seu lado, as identidades categoriais de que fala Calhoun (1997: 42 e ss.)

representam o impacto das múltiplas categorias construídas nas sociedades modernas –

a profissão, o status, a classe, a juventude, a terceira idade, etc. – que, de certo modo,

concorrem com a linhagem familiar, a etnia, a comunidade local e os laços de

vizinhança, ou seja as putativas similitudes individuais desenrolam-se em divergência

com as redes concretas de interacção das formas primárias de socialização38.

Elementos fundamentais na compreensão da identidade são a subjectividade e a

narrativa, os quais apontam directamente para a relação entre o sujeito e o Outro39 – já

que o termo identidade envolve sempre negação ou diferença: “alguma coisa é alguma

coisa, e não outra coisa”; isto é, a identidade tem pelo menos dois significados

diferentes: primeiro, aponta para “o que dá a uma coisa ou pessoa a sua natureza

37 Como adiante se verá, este autor inscreve aqui as “comunidades emancipatórias”, enquanto novo

paradigma de realização identitária que se orienta em oposição às comunidades-fortaleza (Santos, 1995). 38 Essa divergência não significa, obviamente, que as identidades categoriais não possam dar lugar a

grupos concretos e a formas de acção colectiva. Um exemplo disso é, num certo sentido, a própria classe,

já que, na formulação que o marxismo lhe deu, começou por ser um processo teórico de “classificação”,

mas que nem por isso deixou de ter um notável alcance prático na modelação da “identidade de classe” do

operariado (Bourdieu, 1987). Mas, a maior ou menor coincidência entre “categorias” e redes concretas de

interacção reflecte-se, sem dúvida, nas potencialidades da acção colectiva: quanto mais as colectividades

e as redes organizadas de interacção coincidirem com as identidades categoriais – se os indivíduos

casarem com membros da mesma categoria, trabalharem em empresas etnicamente estruturadas, etc. –,

maior será a sua capacidade de mobilização para a acção colectiva (Calhoun, 1997: 48). 39 Stuart Hall, recorre à teoria da psicanálise, citando Freud, para mostrar o legado semântico do conceito

de identificação, mostrando ao mesmo tempo a importância da relação Eu/Outro: “Freud chama-lhe a

primeira expressão de um laço emocional com outra pessoa (…). No contexto do complexo de Édipo,

porém, toma a figura do pai simultaneamente como objecto amado e de rivalidade, desse modo inserindo

ambivalência no centro do processo. „A identificação é, de facto, ambivalente desde a sua origem‟”(Hall,

1996: 3).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

52

essencial, isto é, o seu eidos ou forma, e portanto, a sua continuidade através do tempo

e, em segundo lugar, o que torna duas coisas ou pessoas na mesma” (Zaretsky, 1994:

199-200). A identidade constrói-se na interacção entre o Nós e o Outro e ambos são, em

boa medida, fruto da imaginação e do sentimento: em prole da defesa de um in-group, a

ideia de irmandade ou de um Nós, exige a presença de um Outro, de uma ameaça, de

um inimigo, como condição para que se preserve uma linha de demarcação (ainda que

contingente e imaginária) e se assegure a lealdade e cooperação no seio desse Nós

(Bauman, 1997: 42). Se, na maioria dos casos, o referente identitário transcende as

relações face-a-face, a construção da identidade – seja ela a etnia, a classe, o trabalho, a

localidade ou a nação – emerge sob a forma de comunidades imaginadas (Anderson,

1991; Balibar e Wallerstein, 1991) apoiadas em lógicas paradoxais e sob o signo das

ambivalências entre presença e ausência, entre práticas e representações, entre razão e

emoção, entre estrutura e acção ou entre universalismo e localismos (Fortuna, 1991). É

este um dos paradoxos da vida social a que Ernesto Laclau se refere fazendo uso da

noção de deslocação, a qual considera como “o nível ontológico primário de

constituição do social”, uma vez que a compreensão da realidade social exige, “não a

compreensão do que a sociedade é, mas do que a impede que ela seja” (Laclau, 1990:

44). Uma formulação retomada por Paul du Gay, quando afirma que “qualquer

identidade é deslocada, na medida em que ela depende de um exterior, o qual nega essa

identidade e cria ao mesmo tempo as condições da sua possibilidade” (du Gay, 1996:

37). A produção identitária passa, assim, por processos contraditórios de construção

simbólica e discursiva. E, como assinalou Donna Haraway, referindo-se ao papel do

discurso científico em tais processos, passa também pela assunção de “estratégias

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Entre a Fábrica e a Comunidade

53

epistemológicas” de crucial importância na imaginação de possíveis unidades, embora

estas, não passem muitas vezes de mistificações políticas falhadas (Haraway, 1991)40.

Mas, este jogo de espelhos, onde sobressai a dimensão construcionista, simbólica

e interactiva da realidade e das subjectividades não deve, porém, impedir-nos de pensar

o poder das identidades colectivas na promoção do sentido de movimento, da

contestação e da acção, os quais – embora possam ser mais ou menos contingenciais –

continuam a emergir em diversas atmosferas sociais. É sobretudo nos contextos onde os

mecanismos de opressão ou os sentimentos partilhados de segregação e exclusão se

tornam mais patentes (acentuando o sentido de pertença a um destino comum), isto é,

onde a presença do Outro se torna mais ameaçadora – seja essa ameaça real ou ilusória

– é onde a identidade mais tende a ganhar uma materialidade própria e a estruturar-se

em formas concretas de acção, sejam elas defensivas ou ofensivas, sejam elas

emancipatórias ou autodestrutivas41.

Em todo o caso, mesmo em relação a situações e ambientes de maior

constrangimento como os da produção42 – como fez notar Sainsaulieu (1988) –, a

40 Apoiada na ideia de identidades fracturadas, Haraway discute o papel do discurso marxista e do

“feminismo socialista” na “naturalização” e, ao mesmo tempo, na “desnaturalização” da categoria da

“mulher”, postulando que o combate da diferença sexual, do racismo ou da consciência de classe são

movimentos resultantes das terríveis experiências históricas geradas respectivamente pelo sistema

patriarcal, pelo colonialismo e pelo capitalismo. E interroga-se: “E quem conta como o „nós‟ na minha

própria retórica? Que identidades estão disponíveis para sustentar um tão poderoso mito político chamado

„nós‟ e o que poderia motivar o alinhamento nesta colectividade? (…)”. E mais adiante sublinha: “é

importante notar que o esforço para construir bases revolucionárias e epistemologias como movimentos

de pessoas empenhadas em mudar o mundo foi parte de um processo que mostrou os limites da

identificação. Os instrumentos amargos da teoria da pós-modernidade e os instrumentos construtivos do

discurso ontológico acerca dos sujeitos revolucionários devem ser vistos como aliados irónicos na

dissolução dos selves ocidentais em nome da sobrevivência” (Haraway, 1991: 157). 41 Não é, sem dúvida, por acaso que nos regimes nacionalistas, autoritários ou “fundamentalistas”, a

prática discursivo-ideológica do Estado tende a acentuar a ameaça externa, procedendo a recorrentes

alertas e pondo em marcha sentimentos de ódio contra “o inimigo”, seja ele o comunismo, o capitalismo

ou qualquer outro potencial invasor. O facto de a identidade fermentar sob poderosíssimas ilusões torna-a

um elemento susceptível de manipulação em variadíssimas esferas da vida social, cujos efeitos mostram

(por vezes de forma dramática) a força do imaginário sobre a realidade. Um caso extremo de

autodestruição através da exaltação da fé foi, por exemplo, o do suicídio colectivo da seita “Templo do

Povo” na herdade de Jonestown, na Guiana (em 18 de Novembro de 1978). 42 Numa perspectiva teórica diferente, Alain Touraine referiu-se à importância do princípio da

identidade, enquanto elemento constituinte da consciência operária, mas esta só atingiria a sua verdadeira

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identidade decorre, em boa medida, dos processos de aprendizagem cultural e das

identificações entre sectores da força de trabalho nas relações que estabelecem entre si e

com as estruturas de poder. Mas não são apenas estes factores que estão em causa. A

identidade resulta de múltiplos processos de “interdependência entre a experiência de

poder na empresa e da identidade pessoal dos indivíduos confrontados com as

modalidades de acesso ao reconhecimento de si no meio social do trabalho”

(Sainsaulieu, 1988: 13)43. Teresa Rosa, por exemplo, apoia-se nas tipologias de

Sainsaulieu e de Dubar (1991) para nos propor um modelo misto das identidades no

trabalho em que os recursos, categorias profissionais e qualificações inerentes aos

diferentes postos e sectores – mas também aos percursos e experiências dos

trabalhadores – se apresentam como factores de bloqueio ou de desenvolvimento da

identidade44 (Rosa, 1998: 104 e ss.). Convirá, pois, ter presente que, seja no âmbito das

dimensão em termos de acção estratégica e política quando, além daquele, integrasse também os

princípios de oposição e de totalidade (Touraine, 1966: 305 e ss.). 43 O mesmo autor assinalou uma variedade de modelos identitários/ culturais estruturados no quadro da

empresa: retaimento, unanimismo, separatismo, solidariedade democrática, individualismo, compromisso,

afinidades selectivas, estratégico e de integração. Estas orientações culturais estariam vinculadas às

diferentes condições de trabalho e categorias socioprofissionais e, segundo Sainsaulieu, relacionam-se

ainda com modalidades de representação do poder que “desenham as estratégias prováveis” dos actores, a

saber: o modelo de fusão, caracterizado pela solidariedade conformista e pela dependência e que é típico

dos operários da linha de montagem sem qualificação; 2) o modelo de negociação, que orienta os actores

para a firmação da sua diferença cimentada nas suas competências técnicas, é típico dos operários

qualificados e quadros técnicos; o modelo de afinidades, que privilegia as afinidades e lealdades pessoais,

excluindo a adesão às solidariedades de grupo ou de classe, é típico dos jovens tecnocratas, dos quadros

autodidactas e daqueles que tiveram uma mobilidade socioprofissional rápida; e, finalmente, o modelo de

retraimento, que traduz conformismo e evitamento face a qualquer adesão à acção colectiva, é típico dos

sectores sem qualquer qualificação, jovens, mulheres, imigrantes, operários ainda rurais, etc. (Sainsaulieu,

1988). 44 Tendo em conta o contexto de transformação do tecido industrial da região de Setúbal (abordando

casos dos sectores: químico, construção naval, indústria automóvel e electricidade), a autora postula a

seguinte tipologia de modelos identitários vinculados a diferentes grupos profissionais: 1) operários

profissionais, uma simbiose crítica da arte e da técnica no trabalho: o caminho para uma identidade

bloqueada – este é um grupo misto composto por antigos profissionais de ofício, quase profissionais,

novos profissionais tecnicamente qualificados e novos profissionais polivalentes (marcado pela

confrontação de linguagens e de culturas, tradicionais e modernas: o saber tradicional, a virilidade, a força

física, etc., de um lado, os novos saberes técnicos e teóricos, a racionalidade e a preocupação com o

mercado, etc., de outro lado). Trata-se em geral de percursos sinuosos e situações ambíguas situadas entre

o velho e o novo mundo empresarial, cujos estatutos não obtiveram o reconhecimento social requerido e

por isso neles pontificam as atitudes defensivas (p. 105/ 107); 2) operários executantes de emprego

estável: a identidade retraída – “são operários formados no posto de trabalho, sem acesso a uma formação

profissional continuada, tendo em geral baixa escolaridade (…) que ficam dependentes, para a sua

sobrevivência, da sobrevivência da própria empresa” (p. 108); 3) operários em mobilidade ascencional: a

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experiências produtivas ou noutros contextos, a identidade inscreve-se nas trajectórias

pessoais e colectivas e, portanto, remete sempre para o passado, embora este seja

também objecto de desconstrução e reconstrução, isto é, o processo de construção

identitária afirma-se como um contínuo que interage com outras identidades

previamente estruturadas e que apela aos elementos biográficos e relacionais (Duarte,

1996; Oliveira, 1998)45.

Algumas das actuais abordagens em torno da temática das identidades têm vindo a

pôr em evidência os contributos de diferentes tradições e disciplinas, nomeadamente

cruzando os estudos da acção colectiva com os estudos da narrativa conceptual, bem

como a dimensão ontológica com os conteúdos históricos e empiricamente fundados

sobre a acção social. A questão linguística é aqui um factor incontornável, visto que ela

se prende ao mesmo tempo com a prática e a sua representação simbólica, exprimindo a

produção de sentido e as forças culturais e políticas que a modelam. Contributos do

campo antropológico ou da análise literária podem ser mutuamente enriquecedores na

análise da identidade46: “O conceito de identidade não existe fora da linguagem e dos

progressão de uma identidade carreirista – “este grupo privilegia as boas relações com a hierarquia,

relações que considera colaborantes e responsáveis” (p. 109); e 4) operários vigilantes do processo e

operários executantes precários: entre a identidade bloqueada e a identidade autónoma e incerta – este é

um grupo misto que revela “uma configuração identitária sinuosa, cuja curva se desenha entre pontos

marcados pelo bloqueio e os da autonomia-dependência identitárias” (p. 109) (Rosa, 1998: 105-109). 45 Ana Maria Duarte estudou a importância das identidades sociais no caso dos mineiros de Pejão perante

uma situação de desemprego e verificou como as acções de formação e de intervenção para a reconversão

profissional foram mal sucedidas precisamente devido à presença dos factores identitários no seio daquele

colectivo (Duarte, 1996). Luísa Oliveira, por seu lado, apresenta uma interessante análise dos processos

de reconversão e inserção profissional dos trabalhadores da indústria de lanifícios da Covilhã, tendo em

conta não só as articulações entre o contexto local, o sindicalismo e as identidades profissionais

estruturadas na produção, mas também o efeito de expectativa e das trajectórias socioprofissionais dos

operários vividas num processo de grandes mudanças e rupturas político-económicas (Oliveira, 1998). 46 Graça Capinha desenvolveu uma interessante abordagem dirigida a comunidades de emigrantes

portugueses nos EUA e no Brasil, em que combina um olhar de carácter antropológico com uma análise

discursiva de inspiração literária e centrada na poesia popular: “Toda a fragmentação e multiplicidade do

sujeito se acentua fortemente devido à experiência da própria emigração. Sem dúvida que aquilo que se

identifica como „o outro‟, aquilo que é deixado de fora, aquilo que se considera como diferença, é tão

importante para o entendimento do processo de identificação quanto aquilo que se inclui para o definir. O

jogo com a palavra, a adequação desta a um contexto que é, de per si, mobilidade e diferença, traduz-se

nesse „discurso de fronteira‟ que simbolicamente reconfigura a multiplicidade identitária do emigrante”

(Capinha, 1997: 105).

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poderes que a estruturam. Assim, ao tratar a questão da identidade, é inevitável que se

trate de um processo de articulação e de representação, ou seja, um processo que é

linguístico e literário” (Capinha, 1997: 104).

Uma orientação interdisciplinar pode, sem dúvida, ser vantajosa. Pode ser “uma

oportunidade para interligar os interesses de longo prazo numa sociologia da acção a

partir de estudos sobre a formação identitária” (Somers e Gibson, 1994: 41). Para estas

autoras, um aspecto decisivo será o recurso a uma epistemologia histórica: “todo o

nosso conhecimento, a nossa lógica, as nossas pressuposições, na verdade as nossas

práticas racionais são (ainda que obscuramente) indelevelmente marcadas com a

assinatura do tempo” (Somers e Gibson, 1994: 44). O tempo e a distância47 constituem

traços estruturadores da identidade, como mostraram alguns estudos sobre as

comunidades emigrantes (Feldman-Bianco, 1993; Capinha 1996 e 1997). Por exemplo,

a memória associada às “saudades da terra” exprime um processo de reinvenção “no

contexto de experiências de migração, vida e trabalho na intersecção de culturas, molda

a construção da identidade do „eu‟ e eventualmente reforça identidades regionais que se

contrapõem à identidade nacional” (Feldman-Bianco, 1993: 194).

Esta ideia da remissão para a história, para o passado projectivo, pode colocar-se

em diferentes níveis de análise, mas ela não deixa de comprovar como o passado e/ou a

sua permanente reinvenção constituem fundamentos incontornáveis no quadro das

actuais discussões à volta de temas como a identidade, a comunidade e a emancipação.

Ou seja, a relação entre o Homem e a história é a pedra de toque da relação entre o

Homem e a acção, já que “o „passado projectivo‟ introduz nas narrativas da identidade e

47 “A identidade de alguém ou de algum grupo é produzida simultaneamente em muitos locais diferentes

de actividade através de muitos agentes diferentes em nome de muitos propósitos diferentes. A identidade

do lugar onde vivemos, entre os nossos vizinhos, amigos, familiares ou „co-estranhos‟ é apenas um

contexto social, e talvez não o mais importante em que ela é modelada. Para uma abordagem moderna da

identidade na etnografia, é a identidade dispersa em muitos lugares diferentes e de carácter diferente que

tem de ser captada” (Marcus, 1992: 315).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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da comunidade uma necessária discrepância entre o momento do discurso e o espaço da

memória” (Bhabha, 1995: 59). Perante a crise das velhas utopias e as imensas nuvens de

incerteza que se deparam ao mundo contemporâneo, os desafios futuros e a recriação de

novas utopias exige, pois, uma permanente reinvenção do passado como resposta ao

risco de eternização do presente que as subjectividades fragmentárias e simplificadas

acarretam. Como nos alerta Boaventura Sousa Santos ao abordar, a partir do dilema

entre raízes e opções, os actuais perigos que se colocam à humanidade, “o futuro já

perdeu a sua capacidade de redenção e o passado ainda não a adquiriu. Já não somos

capazes de pensar a transformação social a partir da equação entre raízes e opções, mas

tão pouco somos capazes de a pensar sem ela. O perigo reside na eternização do

presente e na sua capacidade de fulguração kafkiana. O perigo reside em que, uma vez

desprovidos das tensões em que formámos a nossa subjectividade, nos quedemos por

formas simplificadas de subjectividade” (Santos, 1996: 31)48. Se o desenraizamento

prometido pela era moderna foi, num certo sentido, vivido como libertação, se o

individualismo moderno constituiu um factor de emancipação, de conquista de

autonomia e de ampliação de escolhas, a ambivalência que tal processo transporta é hoje

cada vez mais visível nos efeitos destrutivos do individualismo atomizado, da

desfiliação (Castel, 1990), do aumento do risco (Beck, 1992) e da insegurança: “no

mesmo acto, a individualização-emancipação dobra-se numa individualização-

48 A crítica da modernidade e do progresso efectuada por Walter Benjamim a partir da imagem do

Angelus Novus é aqui retomada por Santos, quando discute o binómio raízes e opções. A interpretação

que Benjamim faz do quadro de Klee – de que o autor se serve como metáfora que para ele simboliza a

necessidade de preservar o inconformismo perante o futuro a partir da redenção do passado, um passado

cuja capacidade redentora tem sido tragicamente ameaçada pelo anjo da história moderna – dá-nos a

imagem dramática e catastrófica da modernidade e do progresso: “Representa um anjo que parece estar a

afastar-se de alguma coisa que contempla fixamente. Os olhos estão arregalados, tem a boca aberta e as

asas estendidas. É este, seguramente, o aspecto do anjo da história. Ele tem a face voltada para o passado.

Onde vemos perante nós uma cadeia de acontecimentos, vê ele uma catástrofe sem fim que

incessantemente amontoa ruínas sobre ruínas e lhas vai arremessando aos pés. Ele bem gostaria de ficar,

de acordar os mortos e de voltar a unir o que foi destroçado. Mas do paraíso sopra uma tempestade que

lhe enfuna as asas e é tão forte que o anjo já não é capaz de as fechar. Esta tempestade arrasta-o

irresistivelmente para o futuro, para o qual tem as costas viradas, enquanto o montão de ruínas à sua

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Entre a Fábrica e a Comunidade

58

fragilização. Tudo se torna mais indeterminado e cada um de nós é levado a organizar a

sua vida de um modo mais precário e solitário” (Fitoussi e Rosanvallon, 1997: 19). Este

processo parece arrastar consigo um “mal-estar identitário” – o qual, de resto, se afirma

mais ligado à dimensão afectiva e sentimental do que à dimensão racional49 – que é

tanto mais notório quanto mais se assiste ao desmoronamento de alguns dos corpos

secundários que asseguraram a estabilidade, a solidariedade e o “contrato social”: a era

do “pós-contratualismo” comporta uma infinidade de riscos não só do ponto de vista do

indivíduo frágil e despojado, mas também no que respeita à defesa dos regimes

democráticos (Santos, 1998).

Se a questão da identidade nos coloca perante desafios e representações da

realidade – passada, presente e futura –, capazes de condicionar de forma decisiva a

nossa acção na sociedade, tais desafios passarão certamente por formulações inovadoras

acerca das novas e velhas formas de vida colectiva, de participação cívica e política50,

pela capacidade de denúncia das novas formas de opressão e alienação que se nos

deparam e, consequentemente, pela redefinição de possíveis caminhos emancipatórios.

Uma tal leitura aconselha-nos a dar atenção à noção de comunidade, a qual parece vir a

ressurgir como um elemento central em algumas correntes das ciências sociais e da

teoria política.

1.2.2 - Comunidade e emancipação

Seria difícil proceder ao recenseamento dos diferentes sentidos que hoje envolvem

a noção de comunidade na teoria sociológica: conjunto de imperativos morais capazes

frente cresce até ao céu. Esta tempestade é aquilo a que chamamos progresso” (Walter Benjamim, citado

por Santos, 1996: 7). 49 Especialmente quando nos referimos ao indivíduo e à “auto-identidade” (Giddens, 1991: 171). 50 A “morte” da esfera pública e a sua “compensação” individual através da subjectividade narcisista

aventada por Richard Sennett (1990) corresponde, sem dúvida, a uma tendência visível nas sociedades

actuais. Mas essa leitura pode conduzir-nos a uma atitude de inelutável e deprimente paralisia. Se os

Page 51: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

59

de preservar o modo de vida natural; conjunto de experiências sociais definidor de um

sistema cultural particular; conjunto de relações sociais estruturadas numa dada

instituição; conjunto de relações sociogeográficas enraizadas numa dada localidade;

conjunto de valores e sentimentos subjectivos produtores de identidade colectiva em

torno de um projecto de sociedade; eis algumas das perspectivas em que a comunidade é

concebida51. Em diferentes linguagens e disciplinas científicas (da história à ciência

política, da sociologia à geografia, da antropologia aos estudos linguísticos e literários)

ou no quadro de diferentes temas de reflexão (a globalização, a acção política, os

movimentos sociais, as relações de trabalho, os consumos simbólicos e culturais) a

comunidade assume variadíssimos contornos e significados.

A maioria dos autores clássicos da sociologia lidou com a noção de comunidade

sem a definir com rigor, mas as principais referências que lhe fizeram – Comte, Marx,

Durkheim e Weber – quase sempre a conceberam, ainda que implicitamente, na sua

interferência com a classe e a acção colectiva. O que significa que a comunidade se

tornou objecto de reflexão no quadro do mesmo processo que trouxe a classe para o

centro de discussão. Ou seja, tal como acontece com a classe, a questão da comunidade

apenas se coloca perante o processo de industrialização das sociedades ocidentais. Em

Weber, ela traduz a presença do sentimento subjectivo por oposição à racionalidade da

relação associativa; em Comte é uma forma de vida social em declínio a que se opõe a

nova sociedade industrial; em Durkheim o desaparecimento da solidariedade mecânica e

a emergência das situações de “anomia” resultou da desagregação da comunidade

tradicional; e também Marx, embora menos “saudosista” do que a maioria dos seus

sinais de tragédia se tornassem bloqueadores de qualquer esperança na humanidade nada mais nos restaria

do que abdicar da acção e adormecer perante o precipitar dessa tragédia. 51 Giddens, por exemplo, refere que “a noção de comunidade, aplicada tanto a culturas pré-modernas

como a culturas modernas, compreende vários conjuntos de elementos que devem ser distinguidos: as

relações comunais de per se (que tratarei basicamente em relação com o lugar); as relações de parentesco;

as relações de intimidade pessoal entre pares (amizade) e as relações de intimidade sexual” (1992: 90).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

60

contemporâneos, não deixou de estar atento aos efeitos destrutivos do capitalismo sobre

as formas de sociabilidade comunitárias da sociedade pré-capitalista.

A visão tradicionalista do termo “comunidade” é fortemente devedora do conceito

de gemeinschaft (comunidade), inicialmente definido por Ferdinand Tönnies. Segundo

este autor, ao contrário da gesellschaft (sociedade)52, a gemeinschaft envolve três

aspectos fundamentais, a saber: os laços sanguíneos; o sentido de pertença a um lugar; e

a memória. Estes três aspectos adquirem profundas consequências em termos do

sentimento de pertença e dão lugar a fortes relações de solidariedade, de vizinhança e de

amizade, permanecendo estreitamente inter-relacionados “em todos os fenómenos e no

seu desenvolvimento, bem como na cultura humana em geral e na sua história”

(Tönnies, 1963: 42)53. O enquadramento da comunidade no tempo e no espaço

52 Esta, é sobretudo marcada pela racionalidade e pela presença de laços impessoais e contratuais. De

acordo com Tönnies, a gesellschaft caracteriza-se pela negação, ou seja: nela não existem acções

derivadas de qualquer unidade existente à priori; nenhuma acção manifesta a vontade e o espírito dessa

unidade, mesmo quando desencadeada pelo indivíduo; nenhuma acção, enquanto desempenhada pelo

indivíduo, tem lugar em nome dos que a ele estejam unidos (Tönnies, 1963: 65). Na base deste conceito,

cada indivíduo é concebido como actuando por si mesmo. Tanto os objectos e o valor dos bens que são

objecto de troca como os seus proprietários são tomados separadamente uns dos outros: “o que alguém

possui permite-lhe daí retirar proveito excluindo todos os outros”. Contudo, se à partida não existe algo

que tenha um valor comum, esse algo pode ser introduzido pelos indivíduos, o que significa que “eles

precisam de inventar uma vontade e personalidade comuns”. Assim, para que a gesellschaft se realize e

desenvolva o consenso deverá ter lugar sob determinadas “valores objectivos” – de tipo contractual – que

garantam os diversos tipos de intercâmbio da sociedade através de uma “vontade racional” (por oposição

à “vontade natural” característica da gemeinschaft) (Tönnies, 1963: 64 e ss). 53 Na linha da definição de Tönnies, a pequena comunidade está estreitamente vinculada à ideia de

partilha de grupos unidos por laços de sangue ou de vizinhança no seio dos quais prevalecem os valores

partilhados e inquestionáveis. Para a maioria dos autores do século passado, a comunidade era sobretudo

centrada nas relações face-a-face, vinculada à ideia de lugar e, portanto, vista num sentido conservador.

Robert Nisbet caracteriza o conceito clássico de comunidade nos seguintes termos: “inclui todas as

formas de relação caracterizadas por um alto grau de intimidade pessoal, profundidade emocional,

envolvimento afectivo, coesão social e continuidade no tempo. A comunidade funda-se no homem

concebido na sua totalidade, mais do que num ou noutro dos papéis, tomados separadamente, que ele

pode abraçar na ordem social. Ela desenha a sua força psicológica em níveis mais profundos de

motivação do que os de mera volição ou interesse e alcança a sua realização submergindo a vontade

individual que está presente em uniões de mera conveniência ou base racional” (Nisbet, 1970: 48). Por

seu lado, Max Weber dá, como se sabe, grande atenção ao grupo de status, o qual, segundo ele, pode

constituir mais facilmente uma comunidade do que a classe. Apenas excepcionalmente e quando “os

efeitos da situação de classe são nitidamente reconhecíveis (…), só então o contraste das possibilidades

de vida pode ser apreendido e sentido”. Ou seja, a acção comunitária pode estar na base de uma actuação

de classe, mas esta “não é, no seu aspecto fulcral, uma actuação dos participantes de uma mesma classe,

mas sim uma actuação entre membros de diferentes classes” (Weber, 1989: 741). Refira-se ainda que

Weber faz uso de noções originalmente diferentes da distinção gemeinschaft/ gesellschaft – usa antes as

noções vergesellschaftung/ vergemeinschaftung que no original alemão significariam à letra

Page 53: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

61

continuou presente em variadíssimos estudos ao longo do século XX. Norbert Elias, por

exemplo, interrogou-se a esse propósito sobre a noção de comunidade, procurando

explicitar os termos em que o conceito deve ser entendido: “quais são, por outras

palavras, os aspectos específicos da comunidade numa comunidade? Referem-se,

evidentemente, às redes de relações entre as pessoas organizadas numa unidade

residencial – de acordo com o lugar onde normalmente vivem. As pessoas estabelecem

relações se realizam negócios, se trabalham, se comungam uma religião ou se se

divertem umas com as outras e essas relações podem ser ou não altamente

especializadas e organizadas. Mas também estabelecem relações quando vivem juntas

no mesmo lugar, quando fazem as suas casas na mesma localidade” (Elias e Scotson,

1994: 146). O entendimento da comunidade (ou da identidade) no quadro de um dado

espaço ou território continua a ser, sem dúvida, um procedimento analítico pertinente54.

Mas os propósitos aqui em causa justificam que se proceda a uma reflexão mais

alargada em torno do referido termo55.

“socialização/ comunalização” (cf. Weber, 1944: 33, nota* dos tradutores para a língua espanhola) –, mas

que são em geral traduzidas por communidade/ sociedade visto que possuem um significado idêntico ao

dos termos cunhados por Tönnies. 54 A vastidão de estudos “de comunidade” impossibilita qualquer levantamento exaustivo. Refira-se, a

título de exemplo, alguns dos que se centraram em comunidades ou localidades particulares (Pinto, 1985;

Almeida, 1986, A. N. Almeida, 1993; Silva, 1994; Oliveira, 1998; Davies, 1992; Bentley, 1992; Bourke,

1994). Outras análises tomaram a ideia de local e de território como factores decisivos para a

compreensão das lógicas de estruturação urbana (Gama, 1987; Thrift, 1996) ou dos processos de

implantação industrial (Medeiros, 1988; Reis, 1987, 1988 e 1992; Ferrão, 1987; Silvano, 1997). Os

estudos de Fernando Ruivo e outros autores olham o local do ponto de vista do poder autárquico na sua

articulação com o Estado (Ruivo, 1990 e 1995; cf. VVAA, 1988); Pedro Hespanha centra-se nas

comunidades camponesas e na importância da propriedade fundiária como elemento providencial e factor

de segurança e reprodução social das famílias em meio rural (Hespanha, 1993; 1994); e Carlos Fortuna

questionou a ideia de local no contexto da globalização (Fortuna, 1991). 55 Embora seja conveniente recordar que os propósitos desta investigação têm como base a relação entre

comunidades espacializadas e a produção industrial – assunto a que mais diante me dedicarei,

direccionando a reflexão para a vertente histórica de emergência da classe operária e sua inserção

comunitária –, a ideia de “comunidade” está longe de se circunscrever à noção territorializada que acaba

de ser referida. E é justamente porque à dimensão tradicionalista e espacial se junta a importância da

dimensão simbólica, discursiva e até doutrinária veiculada, por exemplo, em expressões como a

“comunidade operária”, a “classe operária” ou o “proletariado” que os conceitos de “classe” e de

“comunidade” permanecem tão estreitamente ligados e levantam problemas teóricos tão profundos. Mais

profundos do que pode parecer quando tais noções são interpretadas no seu sentido mais clássico.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

62

Tal como a identidade, também a comunidade56 é hoje um conceito que suscita

renovados debates. Dada a enorme diversidade de sentidos com que tem sido utilizada,

a noção de comunidade corre o risco de se tornar um conceito desprovido de significado

e sem potencialidades analíticas. Pese embora a sua capacidade descritiva, não é um

conceito neutro: “é normalmente ambíguo, parcialmente analítico, parcialmente

normativo e muitas vezes romanticamente nostálgico” (Gilbert, 1992: 32)57. Durante

muito tempo a ideia de comunidade manteve uma carga conservadora, sendo sobretudo

evocada perante a ameaça de destruição de uma dada tradição cultural e, portanto,

concebida em contraste com a modernidade. É também nessa base que a comunidade

apareceu ligada às primeiras formas de resistência do operariado inglês face à

industrialização “selvagem”. O que significa que foi no quadro comunitário que o

artesanato pré-industrial ganhou relevo na formação da classe operária, uma vez que a

emergência da “consciência de classe” terá, no seu início, sido animada mais por um

instinto “conservador” do que por uma consciência “emancipatória”58.

56 Por exemplo, a classe, a nação, a etnia, a fábrica ou a aldeia podem ser concebidas como produzindo

formas de identificação específicas, isto é, podem fazer emergir o sentido de partilha comunitária

geralmente inscrito na identidade colectiva. O “espaço da comunidade” é, em Boaventura Sousa Santos,

visto como constituído pelas “relações sociais reunidas em torno da produção e reprodução de territórios

físicos e simbólicos e identidades e identificações comunitárias” (Santos, 1995: 420). 57 Apesar de todos os problemas teóricos e sociais que no passado se levantaram à volta do conceito de

comunidade, o que é facto é que o seu abandono, sugerido por Alain Macfarlane (1977), não foi possível

porque simplesmente não se encontrou outro melhor para o substituir. O termo continua a ser usado quer

pelas pessoas que vivem na comunidade, quer pelos sociólogos e antropólogos que as estudam, incluindo

o próprio Macfarlane que propôs a sua rejeição continuou a usá-lo, sem no entanto o definir (Calhoun,

1978: 363). 58 Segundo Ernesto Laclau a emancipação pode ser concebida em múltiplas dimensões: 1) uma dimensão

dicotómica, em que há uma absoluta descontinuidade entre emancipação e ordem social; 2) uma

dimensão holística, em que a emancipação afecta todas as esferas da vida social; 3) uma dimensão de

transparência, em que na emancipação não há lugar para nenhum tipo de alienação ou representação de

poder, ou seja, a emancipação pressupõe a eliminação do poder e a abolição da distinção sujeito/ objecto;

4) a pré-existência de forças opressoras, em que a opressão significa a existência de poderes que

impedem o livre desenvolvimento de algo, isto é, a emancipação é um acto de libertação, mais do que um

acto de criação; 5) pressupõe a existência de um terreno ou uma base de partida (ground) que será

deixada para trás; e 6) finalmente, pode falar-se de uma dimensão racional, ou seja, ao contrário do

discurso escatológico de base religiosa, que absorve o real num sistema de representação totalizante,

numa escatologia secular a ideia de uma absoluta representação não pode apelar a uma entidade externa

ao real (Deus) e, nessa medida, numa acção de emancipação radical o real terá de coincidir com um

princípio de racionalidade absoluta por forma a que esse real deixe de se apresentar como uma

positividade opaca com a qual nos confrontamos (Laclau, 1996: 1-2).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

63

Como já foi referido, o presente estudo dirige-se a uma região territorialmente

identificada e tem por objectivo analisar, por um lado, as diferentes formas de

interconexão entre a lógica produtiva e as modalidades identitárias e de acção colectiva

aí recriadas e, por outro lado, o efeito da lógica comunitária veiculada por um

operariado que se mantém ligado às diversas comunidades espalhadas por esta zona de

implantação industrial. Mas, se a própria natureza do objecto de estudo poderia

justificar, por si mesma, a importância do conceito de comunidade, deve sublinhar-se

que o mesmo não pode ser utilizado nem acriticamente nem no sentido tradicionalista.

Em primeiro lugar, porque, como aconteceu de um modo geral, também nesta região as

características tradicionalmente associadas à ideia de comunidade – o vínculo

sentimental às convenções e costumes de uma terra, de um lugar querido e familiar –

foram sendo ao longo do tempo pulverizados pelos novos arranjos geográficos e

demográficos sob o impulso do mercado e da industrialização (Sack, 1992)59. Em

segundo lugar, porque também neste contexto fará todo o sentido perspectivar a noção

de comunidade para uma abordagem mais construcionista, dado que a acção colectiva –

seja ela de sentido conservador ou emancipatório, apoie-se ela em práticas de

consentimento ou de resistência e tenha ela lugar na esfera do consumo ou das relações

de trabalho – transporta dimensões simbólicas cruciais para o entendimento dos

processos de construção e reconstrução das identidades. Refiro-me, inclusive aos

processos de reestruturação da comunidade tradicional, os quais se inserem numa

relação dialéctica entre os efeitos modeladores das acções e experiências de luta da

59 Como tenho vindo a referir, esse fenómeno continua a dar lugar a inúmeras reflexões onde se destacam

os contributos da análise geográfica. David Sack – numa passagem referida por Giddens (1992) –

comenta-o nos seguintes termos: “o sentido primário e integrador de lugar tem vindo a fragmentar-se em

formas complexas e desconcertantes. O espaço está a tornar-se muito mais integrado, mas territorialmente

fragmentado. Os lugares são específicos e únicos, mas em muitos sentidos parecem genéricos e

semelhantes (…). A nossa sociedade armazena informação sobre lugares, mas nós temos pouco sentido

de lugar. E as paisagens que resultam dos processos modernos parecem ser pastiches, desconcertantes,

inautênticas e justapostas” (Sack, 1992: 642).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

64

força de trabalho e a sua capacidade para as condicionar, enquadrando-as,

neutralizando-as ou disseminando-as. Mas, obviamente que tais processos não se

limitam – como, aliás, tentei mostrar no ponto anterior – a sofrer os efeitos directos da

experiência espacializada, visto que a produção de identidade não depende apenas, nem

sempre primariamente, do observável ou das actividades concentradas num local

(Marcus: 1992: 315)60.

Para situar a reflexão para além da visão tradicionalista e orientar o conceito de

comunidade numa perspectiva crítica, há que ter presente que, no fundo, em qualquer

grupo envolvido em algum processo temporal relativamente duradouro, na grande ou na

pequena escala, haverá sempre algum tipo de partilha de valores e de objectivos. A

sociedade e o colectivo não resultam apenas da dimensão contratual construída na base

do interesse racional e individual dos seus membros, como sugerem alguns

individualistas mais radicais, nem resulta, em contrapartida, de uma total

homogeneidade ou acordo consensual.

Por vezes as discussões que envolvem a noção de “comunidade” orientam-se para

uma dimensão societal mais abrangente, nomeadamente quando se centram na escala

nacional, à semelhança, de resto, com o que acontece na teoria política em que a acção

do Estado e o papel das instituições governativas são tomados como factores de

promoção da regulação social, ou seja, instâncias produtoras de comunidade política

(Weber, 1944; Huntington, 1975). Neste quadro, a escola liberal sempre colocou a

ênfase no domínio das “oportunidades”, no papel da “escolha racional” e na liberdade

individuais, apresentando-as como o antídoto da comunidade “coerciva” apoiada em

60 George Marcus refere que a conotação da comunidade com a ideia de solidez e homogeneidade, seja

ela dispersa ou concentrada num lugar, foi subsituída no quadro da modernidade pela ideia de que a

produção de identidade não depende apenas ou sequer principalmente do observável num local ou numa

diáspora. Mas, chama a atenção para a importância do poder integrador do Estado e da economia –

nomeadamente através da inovação tecnológica – sobre os processos de dispersão e fragmentação

identitária (Marcus, 1992: 315).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

65

valores tradicionalistas61. Segundo Robert Bellah, uma comunidade ou boa

comunidade (Bellah et al., 1991) contém elementos de acordo e elementos de desacordo

quanto ao significado dos valores partilhados, bem como do que são ou devem ser os

objectivos de realização do bem comum: “uma boa comunidade é neste sentido uma

forma de vida inteligente e reflexiva na qual existe de facto consenso, mas onde o

consenso pode ser desafiado e muda, muitas vezes gradualmente, algumas vezes

radicalmente, ao longo do tempo porque a comunidade coloca continuamente a questão

„que espécie de comunidade é esta?‟ nos termos do significado institucional que lhe dá

valor e substância” (Bellah, 1997: 388). Discutindo o problema da “comunidade” versus

“oportunidade”, este autor salienta a importância decisiva do papel das instituições

(jurídicas, pedagógicas, etc.) enquanto dimensão central sem a qual não existe de facto

“livre escolha”, sem a qual a vida comunitária dificilmente se poderia tornar efectiva

nas sociedades modernas e sem a qual estariam ameaçados os valores e padrões de vida

colectiva que permitem modelar o tipo de pessoa capaz de conquistar oportunidades.

Esta concepção neoliberal recusa como solução a ideia da “comunidade adquirida” (da

pequena tradição), mas ao mesmo tempo denuncia o excesso de individualismo e

advoga para as sociedades complexas a “comunidade escolhida”, enquanto sinónimo de

“bem comum”, uma comunidade plural e heterogénea, assente em pressupostos

61 Vale a pena lembrar algumas da principais divergências entre liberais e comunitaristas. Os teóricos

liberais, em especial no âmbito da teoria política, centram-se sobretudo no respeito pelos direitos

individuais. Os indivíduos têm desenvolvem direitos morais uns face aos outros os quais servem de

constrangimento perante o governo e perante os outros. A ideia de direitos morais baseada na igualdade

moral, na igualdade perante a lei e no universalismo, no direito à propriedade individual constitui o

principal garante da liberdade e da justiça, isto é, fornece a base de legitimidade do sistema político

democrático. Ao contrário, os “comunitaristas” clamam que o que os liberais vêem como normas

universais baseadas no carácter universal da humanidade, são de facto normas enquadradas por

entendimentos partilhados de comunidades específicas. Os indivíduos não podem ser uma base firme de

julgamento moral já que o mesmo é recolhido a partir da comunidade onde esses indivíduos estão

inseridos. O indivíduo abstracto não existe e por isso a base da teoria moral é a comunidade e o seu bem,

os indivíduos possuem direitos na mesma medida em que eles sirvam o bem comum. É a essa luz que os

comunitaristas têm combatido as ideias liberais. “A ideia de direitos morais num universalismo vazio que

erradamente abstrai da única base real de direitos morais, a comunidade. Apenas na base de uma

concepção partilhada de boa-vida, apenas no quadro de uma substantiva comunidade política e ética (com

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Entre a Fábrica e a Comunidade

66

semelhantes aos defendidos por Bellah, segundo os quais a recuperação da dimensão

comunitária passará mais pela acção institucional do que pelo reforço da actividade

associativa da sociedade civil ou pela acção dos movimentos sociais e das correntes

culturais. É a resposta institucional às supostas ameaças de “anomia” e deterioração das

estruturas sociais, uma resposta que já Durkheim tinha enfatisado e que John Dewey

retomou ao sustentar que as sociedades do século XX “invadiram e parcialmente

desintegraram as pequenas comunidades de épocas passadas, sem gerarem uma grande

comunidade” (Dewey, 1927, citado por Ferrara, 1997: 399). Esta orientação tem vindo a

animar alguns debates actuais entre liberais e comunitaristas, dando também lugar a

propostas mistas ou de compromisso, que, ao mesmo tempo, rejeitam a solução

individualista e o saudosismo idealista62 da comunidade tradicional (Bauman, 1997:

86).

Em alternativa à visão liberal que concebe a cidadania num sentido restrito de

defesa dos direitos políticos individuais assegurados pelo Estado, diversos autores

(Etzioni, 1994; Taylor, 1991; Mouffe, 1996) vêm propondo que o défice de comunidade

seja colmatado, não por formas atomizadas de intervenção, mas sim por modos de

participação colectiva em novas bases, em que se recusa a solução individualista e se

procuram novos caminhos de orientação emancipatória (Santos, 1994, 1995 e 1998;

uma cultura política específica) podemos alcançar vidas morais com significado e usufruir da verdadeira

liberdade” (Cohen e Arato, 1994: 10). 62 Segundo Zigmund Bauman, uma das razões do sucesso dos autores “comunitaristas” prende-se com a

ideia nostálgica que apresenta a “comunidade natural” como independente e geralmente em oposição ao

Estado. Aquele autor acusa os filósofos comunitaristas de verem o Estado como se este estivesse

abandonado a um papel de garante contra os factores de produção de risco que se colocam à existência

humana: “ele cuida da liberdade, mas ao fazer isso deixa os indivíduos entregues a meios patentemente

inadequados à sua luta para navegar por entre os riscos da liberdade no sentido de rumar até ao paraíso

das „escolhas significativas‟. Como outrora a nação, também agora a „comunidade natural‟ se ergue em

defesa desse sonho de segurança celestial. Esse céu localiza-se longe das estradas da exploração, em

lugares que os navegantes solitários já foram há muito desencorajados de visitar. Todavia, por mais

ansiosos que estejam os comunitaristas de „enraizar‟ esses lugares num genuíno ou inventado passado

pré-moderno, é o moderno espírito de aventura, de explorar o inexplorado, de tentar o não tentado que os

torna atractivos, tanto para os filósofos como para os seus leitores. Talvez desta vez...” (Bauman, 1997:

86).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

67

Mouffe, 1996; Laclau, 1996; Ferrara, 1997; Bellah et al., 1991 e Bellah,1997; Bauman,

1996).

Para Boaventura Sousa Santos a comunidade é um dos princípios em que o

projecto da modernidade se apoiou (ao lado dos princípios do mercado e do Estado)

para levar a cabo a acção de enquadramento e regulação dos processos sociais. Todavia,

tal não impediu que a comunidade se constituísse como um princípio de representação,

de argumentação e de acção que permanece em aberto. Quer isto dizer que,

comparativamente com os princípios do mercado e do Estado, o princípio da

comunidade “foi o mais negligenciado nos últimos duzentos anos e tanto assim é que o

mesmo quase acabou sendo absorvido pelos princípios do mercado e do Estado. Mas

também por essa razão, é o princípio que permaneceu menos estorvado pelas

determinações (sistémicas) e está em melhor posição para ser envolvido numa dialéctica

positiva com o pilar da emancipação” (Santos, 1995: 23). Segundo Santos, apesar da

enorme diversidade dos elementos constituintes da comunidade, há um ponto que lhes é

comum: a sua capacidade de resistência. Assim, o lugar marginal que ocupou face à

acção predadora e racionalizadora do mercado e do Estado, tornou-a aberta a novos

contextos e preservou-lhe potencialidades de sentido emancipatório, as quais podem ser

activadas a partir das suas dimensões menos sujeitas à colonização pelo projecto da

modernidade: a participação, a solidariedade e o prazer. As comunidades inserem-se

hoje em redes comunitárias e não existem fora das determinantes estruturais das

formações sociais. Articulam-se com uma diversidade de locus de poder estrutural63.

Nessa medida, para se oporem aos poderes hegemónicos precisam de uma representação

de si mesmas e de meios para ampliar as suas audiências e públicos. Enquanto parte de

processos de mudança sociocultural mais vastos, a acção emancipatória traduz-se na

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Entre a Fábrica e a Comunidade

68

recusa do discurso hegemónico colonizador64. Esta proposta de combate apoiada na

recuperação do princípio da comunidade só é possível com a emergência de um novo

paradigma de conhecimento emancipatório orientado no sentido do cosmopolitismo

contra-hegemónico e capaz de reconstruir a neocomunidade em espaços mais vastos de

solidariedade (Santos, 1995: 48).

A realização da comunidade significa, neste sentido, a presença de fórmulas

discursivas ou processos em construção que aspiram à conquista de uma nova forma de

identidade colectiva. Importa, também aqui, ter presente a dupla dimensão espaço/

tempo. Quer as instâncias do poder hegemónico que intervêm em nome da comunidade,

quer os actores que a pretendem preservar ou desenvolver, posicionam-na na história.

Tal como já se viu a propósito da dimensão narrativa das identidades, também aqui se

pode dizer que o processo de “destradicionalização” da comunidade constitui uma

forma de reinventar a tradição: “a redefinição e o retrabalhar do passado realmente cria

esse passado” (Morris, 1996: 224). A comunidade tornou-se, de resto, tema de reflexão

no preciso momento em que as bases da comunidade tradicional começaram a ser

ameaçadas pelo capitalismo.

É neste sentido que o estudo do movimento operário tem de ser situado entre a

comunidade pré-moderna em fragmentação e o programa político de formação da classe

proletária enquanto construção identitária (ou comunidade emancipatória) no quadro do

projecto da modernidade. Por outro lado, a acção colectiva vista num sentido

comunitário é marcada por orientações e subjectividades, ora dirigidas para a defesa das

63 Os seis espaços estruturais propostos por Santos são os seguintes: o espaço doméstico, o espaço

produtivo, o espaço do mercado, o espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço mundo

(Santos, 1995: 420-424). 64 As possibilidades de acção emancipatória a partir do princípio da comunidade traduzem-se na prática

nas acções de resistência e de luta que os grupos oprimidos podem desencadear, uma vez que a

comunidade é aqui entendida como uma neocomunidade inserida em processos de mudança histórico-

social e não como a comunidade romântica onde impera a igualdade e o consenso ou a ignorância

submissa.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

69

raízes e do passado, ora num sentido prospectivo e projectadas para o futuro. A

distinção, formulada por Paul Morris, entre comunidades de descendência e

comunidades de ascendência é, a este propósito, sugestiva. As comunidades de

descendência correspondem a uma centragem nas origens e na tradição. Tendem a

defender a autenticidade das suas raízes no sentido em que a identidade dos seus

membros se apoia sobretudo nos valores e crenças particulares, cimentadas no passado e

procuram preservar a sua diferença através das sucessivas gerações65. As comunidades

de ascendência, pelo contrário, correspondem a um sentido missionário e apoiam-se

principalmente na construção de uma retórica ou doutrina centrada num futuro desejado.

Apesar destes processos poderem ser observados em diferentes campos da vida social –

tais como a religião, a classe, a etnia ou a nação –, pode dizer-se que se trata, sobretudo,

de fórmulas discursivas que em geral se revestem de um conteúdo político e ideológico.

Enquanto as comunidades de ascendência se projectam para fora e para diante (são de

tipo centrífugo) e aspiram a uma totalidade, as comunidades de descendência projectam-

se para dentro e para trás (são de tipo centrípeto) e aspiram à recuperação de uma

identidade anterior, que supostamente pré-existe a qualquer construção (Morris, 1996:

238-243).

Convém, no entanto, ter presente a complexidade inerente a cada uma destas

orientações e interpretá-las num sentido dialéctico. Ou seja, nem sempre aquela

distinção é claramente tangível, já que qualquer dessas subjectividades contém

elementos de ambos os tipos (ascendente e descendente), os quais, por sua vez, se

inscrevem nos mitos e na retórica que acompanham cada um dos discursos

comunitaristas. Existem por vezes estreitas conexões, se bem que nem sempre nítidas,

entre motivações e „causas‟, ou melhor, entre os ideais voluntaristas e os seus

65 O mesmo autor refere também que as comunidades de descendência apoiam-se geralmente em

Page 62: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

70

fundamentos sociológicos. Se tomarmos o exemplo da classe enquanto projecto que

procura realizar uma identidade de tipo ascendente, existe uma apropriação metafórica

de elementos do passado „comunitário‟ que é facilmente detectável, por exemplo, no

discurso em torno da utopia comunista. Paralelamente, e como atrás indiquei, as

orientações apoiadas na defesa da tradição não raro escondem processos de reconversão

que transportam uma lógica ascendente. Dir-se-ia que o discurso comunitário dirigido

numa lógica emancipatória e cosmopolita procura sobretudo articular estas duas

dimensões – que também poderiam ser vistas como a oposição raízes versus projectos

ou defesa territorializada versus procura da universalidade –, defendendo as origens mas

ao mesmo tempo adaptando-as e projectando-as no futuro e no exterior. Estaríamos

neste caso perante uma forma de localismo que tenta globalizar-se, como diria

Boaventura Sousa Santos.

1.2.3 - O problema do enquadramento espacial

Um importante problema que desde sempre se colocou na análise histórica da

formação do operariado como classe, residiu na dificuldade em situar a classe, quer no

nível nacional, quer no nível local. No primeiro caso, muito embora esse tenha sido o

plano de eleição das abordagens estruturais (marxistas e não marxistas) ela pressupõe,

por um lado, que as “formações sociais” são um todo homogéneo modelado pela acção

institucional e pelo sistema produtivo “nacional”, mas, por outro lado, tem subjacente

uma visão idealista e liberal, segundo a qual as classes se estruturam na base de uma

miríade de indivíduos com características comuns que podem actuar racionalmente para

organizar os seus interesses de classe em acção colectiva. O problema é que na escala

nacional é impossível observar as classes em acção, já que qualquer espaço nacional

contém uma imensidão de contextos diversificados, culturas e formas identitárias e,

hierarquias menos estruturadas e coercivas do que as comunidades de ascendência.

Page 63: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

71

portanto, a classe não passa de uma abstracção. No caso da escala local – embora, como

mostrou Weber, seja difícil a acção de classe coincidir com a comunidade66 – é mais

fácil que a classe surja como uma entidade observável e envolvida em conflitos

concretos na base das similitudes locais, das circunstâncias particulares e dos interesses

partilhados em oposição ao enquadramento do capital ou do poder político (Calhoun,

1982: 15; cf. também Thompson, 1987).

A questão do espaço continua, portanto, a ser crucial na articulação entre a classe

e a comunidade. Do mesmo modo que as relações de produção e de reprodução do

capitalismo não podem ser tomadas como entidades a flutuar no vazio, os processos

sociais de estruturação identitária – sejam eles baseados numa lógica comunitária, numa

lógica de classe, ou na base da articulação entre ambas – decorrem sob o ritmo da

estruturação espacial67. Efectivamente, esta questão prende-se directamente com a

relação entre a classe e a comunidade e liga-se ainda ao fenómeno dos tempos livres que

aqui é tomado como elemento importante na estruturação das identidades de classe e/ou

de base espacial e comunitária. A atenção que os estudos sobre as comunidades

industriais da Inglaterra do século XIX deram a aspectos como o alargamento da

educação primária, a mudança e a luta pela redução do horário de trabalho, etc., são

significativos a este respeito. Basta lembrar que tais aspectos já então reflectiam a

estreita conexão entre a luta da classe trabalhadora e a acção das instituições de

66 No seu famoso texto “Classe, Status e Partidos”, Weber (1989) sustenta que, embora uma situação

comum de classe possa fazer despontar uma acção de comunidade, não se trata de modo nehum de um

fenómeno universal: “Toda e qualquer classe pode, pois, ser veículo de qualquer „acção de classe‟,

possível em inúmeras formas, mas não tem necessariamente de o ser, e em qualquer caso não constitui,

por si própria, uma comunidade (…). Se, pois, as classes em si não „são‟ comunidades, não é menos

verdade que as situações de classe são engendradas meramente na base de um processo de agregação

comunitária. Simplesmente, a acção comunitária que constitui a sua génese não é, no seu aspecto fulcral

uma actuação dos participantes de uma mesma classe, mas sim uma actuação entre membros de

diferentes classes” (Weber, 1989: 741). 67 A complexa unidade da divisão internacional do trabalho e a penetração do mercado capitalista afecta a

vida das pessoas em múltiplas circunstâncias físicas da vida social, desde a esfera pública à vida privada,

segundo a dinâmica geográfica do sistema capitalista como um todo. Tais processos variam muitíssimo de

Page 64: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

72

enquadramento na esfera da comunidade (Joyce, 1980; Thrift, 1996). As novas formas

de interacção e diferenciação social que emergiram desses processos inscrevem-se nas

estruturas de classe locais, ou seja, o importante a reter é que a expansão da indústria

moderna às comunidades rurais erigiu a fábrica num ponto fulcral para a experiência de

vida das colectividades, realçando a significância de cada localidade no capitalismo

moderno (Urry, 1981: 464).

Esta linha de reflexão ajusta-se bem ao estudo da acção operária e da emergência

da classe operária num contexto onde a expansão industrial ainda hoje permanece

articulada com a lógica rural, como no caso da presente pesquisa. Um contexto

semelhante ao que João Ferreira de Almeida tem presente quando faz referência ao

interconhecimento, à intensidade e continuidade que estruturam as colectividades rurais

através de relações estabelecidas no interior de fronteiras espaciais. Segundo ele, essa

reiteração de contactos “permite às classes e fracções de classe locais,

independentemente da diversidade dos seus sistemas de disposições e de

comportamentos, incorporar com eficácia os princípios de referência recíproca”

(Almeida, 1986: 257). Mas, se as comunidades outrora fechadas se viram cada vez mais

sujeitas aos ritmos impostos pela expansão urbana e industrial, nem por isso os espaços,

crescentemente estruturados em domínios mais amplos, complexos e multifacetados,

deixaram de moldar a vida social das populações e colectividades. Fábricas e escolas,

bairros operários e auto-estradas, centros comerciais e parques de diversões, etc., são

espaços diferenciados de relações sociais, marcados pelos ditames do capitalismo.

Como sugerem algumas abordagens da geografia humana, podemos, portanto, conceber

as formas de integração ou de conflito social – as disputas por uma parcela de terra, as

políticas de urbanização, os padrões regionais de industrialização, as concentrações

lugar para lugar e ligam-se directamente às próprias transformações físicas que o capitalismo induz,

cavando diferenças, estabelecendo canais de comunicação e novas formas de estruturação espacial.

Page 65: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

73

residenciais ou as alianças de classe em espaços territoriais como a nação, a região ou a

comunidade – à luz das articulações entre a análise marxista do capitalismo e o ponto de

vista geográfico e espacial (Thrift, 1987 e 1996; Sibley, 1995). Na verdade, as múltiplas

interferências da dimensão espacial na estruturação das classes ligam-se de forma clara

ao problema da articulação entre os mercados e a urbanização, ou seja, entre o

capitalismo e as estruturas espaciais, como também mostraram Derek Gregory e John

Urry (1985).

É a essa luz que as conexões entre comunidade, classe e identidade nos

aconselham a fazer uso de instrumentos conceptuais que nos ajudem a inscrever os

processos sociais no espaço e no tempo. Por exemplo, o conceito de locale (local),

proposto por Anthony Giddens, encerra aspectos da relação espaço-tempo na construção

das representações e práticas sociais que importa ter presentes nesta reflexão.

Os locale referem-se aos usos do espaço e à forma como eles estruturam lógicas

de interacção que se revelam essenciais para especificar a contextualidade em que se

situam (Giddens, 1985: 271). Entendidos como as instâncias que asseguram a fixidez

das instituições, os locale combinam fluxos ininterruptos de prática humana no tempo e

no espaço, modelando as identidades grupais sob a forma de ritmos, práticas e

significados particulares (Pred, 1985: 337). As estruturas físicas – que podem ser as

mais variadas, desde a esquina de uma rua, o hall de entrada de uma vivenda ou o

pavimento de uma fábrica, até aldeias, cidades, regiões ou territórios nacionais – são

inseparáveis do significado simbólico que adquirem na vida social. Nessa medida,

qualquer locale é internamente diferenciado, isto é, contém os seus próprios zonamentos

espaciais (ou linhas de regionalização internas), os quais são fundamentais na

Page 66: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

74

constituição dos contextos da interacção (Giddens, 1989: 96)68. Cada locale não só é

distintamente apropriado segundo as habituais modalidades de demarcação social – a

idade, o sexo, a classe ou a etnia –, como constitui, ele mesmo, um importante

ingrediente na construção e reprodução dessas distinções. Os estudos inspirados em

Bourdieu (1979) já mostraram como os processos de organização do espaço (desde o

doméstico ao do consumo) transportam marcas de distinção social através das quais as

diferentes classes sociais produzem e reproduzem estilos de vida e práticas sociais

particulares. Outras abordagens centradas na cultura popular e nos consumos

simbólicos, nomeadamente os trabalhos de John Fiske, referem-se aos locale como

manifestações de resistência dos grupos oprimidos e da cultura popular, na sua

capacidade de subverter as formas hegemónicas de poder simbólico veiculadas pelos

mass media (Fiske, 1993). Voltarei a este assunto mais adiante (ponto 1.4.2). Importa,

para já, ter presente o problema da diversidade espacial e da dimensão comunitária,

problema esse que se liga directamente à compreensão do fenómeno histórico de

emergência da classe operária: os seus enraizamentos locais, as formas classistas e não-

classistas de acção colectiva e as influências da tradição artesanal são aspectos que nos

ajudam a compreender com um pouco mais de detalhe a questão da classe e da sua

génese.

1.2.4 - A formação da classe operária, a comunidade e a acção colectiva

Um dos pressupostos presentes no célebre estudo de E. P. Thompson (The Making

of the English Working Class, 1987 [1ª edição, 1963]) é a ideia de que a força do

68 Algumas formulações do interacionismo simbólico, como a oposição entre a zona dos „bastidores‟ e o

„palco‟ das representações na constituição do self (Mead, 1934) ou a demarcação entre regiões „da frente‟

e regiões „de trás‟ (Goffman, 1959), referidas por Giddens, constituem elementos que podem elucidar

como o desempenho de determinados papéis se liga simultaneamente à ocultação ou ostentação de

recursos de poder: “a diferenciação entre regiões da frente e regiões de trás não coincide em absoluto, com

a divisão entre o fechamento de aspectos do self e a sua abertura. Estes dois eixos da regionalização

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Entre a Fábrica e a Comunidade

75

proletariado tem as suas raízes mais profundas nas comunidades locais e no artesanato.

Diversos autores têm analisado a formação do movimento operário como o resultado do

choque entre a força de trabalho pré-industrial ameaçada de extinção e a modernização

industrial (Moore, 1978; Calhoun, 1982 e 1983; Kocka, 1991; Jones, 1989; Lopez,

1992). É na génese comunitária e na ligação identitária ao passado pré-industrial que

deverão procurar-se as causas do movimento de resistência do operariado. Ao lado das

influências do jacobinismo francês, a memória de um passado melhor terá levado o

movimento operário do século XIX a assimilar uma visão de futuro fundada no apelo

popular às aspirações dos trabalhadores enraizados nas comunidades locais (Calhoun,

1982: 9). O combate ao individualismo segundo o argumento de que este se fundamenta

em bases nacionais e nos princípios da ideologia burguesa e liberal justificava-se ainda,

na medida em que o mesmo não poderia, por esse motivo, beneficiar os trabalhadores

no contexto local. Como refere Calhoun (1982: 15), o individualismo significava, não a

independência mas a sujeição comum aos novos “amos”, detentores do capital. A

economia nacional triunfante era, assim, vista como sinónimo da perda das formas

tradicionais de entreajuda.

A cultura e as experiências partilhadas no quotidiano assumem uma importância

fulcral na definição thompsoniana de classe. Segundo Thompson, para identificarmos

uma classe social é fundamental conhecer o seu processo de formação, ou seja, a classe

é antes de mais uma categoria histórica em que a experiência vivida é tomada como o

substracto material em torno do qual decorrem as condições sociais de existência. Uma

vez inseridos nos modelos culturais pré-existentes, os indivíduos desenvolvem

determinadas expectativas, as quais, por sua vez, produzem novas orientações político-

culturais, uma nova consciência e um sentido de pertença a um dado grupo social. A

operam num complicado nexo de possíveis relações entre significado, normas e poder (Giddens, 1989:

102).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

76

consciência e a cultura aparecem aqui estreitamente ligadas, e este sentimento de

pertença é claramente imbuído de uma lógica comunitária, isto é, emerge de um sistema

de valores, interesses e crenças comuns cimentados em fortes sentimentos de

solidariedade. Trata-se de um processo de auto-identificação que decorre e se estrutura

segundo os princípios da co-determinação e da consciência (Anderson, 1985: 34),

ambos organizados no quadro de uma dada experiência.

De acordo com a definição fornecida por Thompson, “a classe acontece quando

alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas),

sentem e articulam a identidade dos seus interesses entre si e contra outros homens

cujos interesses diferem dos seus (e geralmente se lhes opõem). A experiência de classe

é determinada , em grande medida, pelas relações de produção em que os homens

nasceram ou nelas entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como

essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas

de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o

mesmo não ocorre com a consciência de classe” (Thompson, 1987: 10). O critério da

consciência de classe aparece, assim, como aquele que define as formas de identificação

entre os membros de uma classe. Deste modo, apenas faz sentido falar de classe quando

estamos perante um conjunto de indivíduos que se vêem a si mesmos como parte de

uma dada colectividade, fundada na comunidade de interesses, de ideias e de

experiências. Esta concepção é, portanto, claramente divergente da visão abstracta de

Marx, nomeadamente no que se refere ao conceito de “proletariado” enquanto sujeito

portador da emancipação.

No pensamento de Marx, a noção de “proletariado” é, como se sabe, parte

integrante da teoria do materialismo histórico, cujos pressupostos são altamente

devedores do idealismo de Hegel (Cohen, 1980). Núcleo central da própria noção de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

77

classe, o proletariado é – mais do que um sujeito histórico real – o resultado da

construção teórica efectuada por Marx (Lovell, 1988: 17), tendo em vista a elaboração

de um princípio unificador para dar sentido a uma “classe” ou grupo, cujos contornos

são, social e culturalmente, confusos69: “Marx vê no proletariado a realização

contemporânea da universalidade, e é apenas nessa medida que lhe imputa significado e

missão histórica” (Avineri, 1968: 97). Caínzos Lopez (1992: 140 e ss.) considera que a

invenção do proletariado obedece a princípios idênticos ao da construção de um mito –

no sentido de Barthes (1984: 181) – e permitiu conciliar no pensamento de Marx as

influências da filosofia hegeliana com as da luta política e as ideias socialistas de

influência francesa: “a identificação do proletariado como sujeito revolucionário serviu

de fundamento da síntese entre filosofia e socialismo, na medida em que pôde

proporcionar o princípio de realização do seu fim comum: a universalidade como

unidade de essência e existência para a filosofia, e como interesse social para o

socialismo” (Lopez, 1992: 146). Efectivamente, tal elaboração teórica combinou a carga

valorativa que a noção já possuía no seu uso vulgar com um sentido vago e impreciso

do seu referente objectivo: a partir do termo francês “proletaires”, que envolvia tanto os

trabalhadores como os oprimidos, construiu-se uma visão inclusiva de amplos sectores

populares e com ela a legitimação de um projecto político orientado para o interesse

geral da comunidade (Lovell, 1988).

O novo significado do termo nasceu dos traços negativos da exclusão e privação

atribuídos à condição proletária. Por um lado, estes traços combinam características de

uma realidade difusa – trabalho industrial, consciência da exclusão, pobreza,

radicalismo político, jacobinismo etc. – que diz respeito a uma diversidade de grupos

69 A este propósito, Etienne Balibar, referindo-se à ideia de “população” no pensamento de Marx

(considerada como a mediação par excellence entre as noções de “classe” e de “massa”), acrescenta que

“a ideia de proletariado como „sujeito‟ pressupõe uma identidade, seja ela espontânea ou adquirida como

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Entre a Fábrica e a Comunidade

78

sociais (em França, na Inglaterra, na Alemanha) e, por outro lado, fundem-se num

princípio unificador recolhido no contexto da assimilação crítica da dialéctica hegeliana

e no horizonte redentor materializado no princípio ético da realização universal da

história (Lopez, 1992: 172). Pode, pois, dizer-se que a invenção do proletariado no

pensamento de Marx foi o resultado da “invasão da política e da história pela metafísica

alemã” (Henry, 1976: 149), isto é, tratou-se de uma elaboração ideológica que procedeu

à liquidação – embora parcial – do referente histórico originário e à sua substituição por

um significado normativo e “a-histórico”, sem correspondência com a realidade

concreta70. Importa, contudo, salientar que a não correspondência não é sinónimo de

ausência de relação com a realidade empírica, já que, como assinalou Roland Barthes

(1984), o mito não oculta nem cria a partir do nada, mas antes constitui uma outra “fala”

que emana da recriação da realidade e que, por se afirmar como a rejeição da

interrogação, tende a rigidificar-se, sobrepondo à realidade dinâmica e heterogénea um

discurso unificador e absoluto. Neste sentido, o “proletariado revolucionário” é a

substituição da diversidade histórica das comunidades operárias pela unidade simbólica

de um supersujeito mítico.

resultado de um processo de formação e tomada de consciência , mas sempre já garantida pela condição

de classe” (Balibar, 1994: 147). 70 Como assinala Villaverde Cabral – em O Proletariado: O Nome e a Coisa (1983) –, na França de

finais do século XVIII, os proletários eram associados aos ociosos e indigentes que pretendiam escapar ao

trabalho e à necessidade. Citando Marat e Babeuf, Cabral sustenta que o nome e a coisa, embora estejam

relacionados, se desenrolam sob dinâmicas diferentes. Enquanto em França era a conotação com a

pobreza, marginalidade, etc., em Inglaterra, só a partir da década de vinte do século XIX se começa a usar

a expressão working classes (supõe-se que foi Robert Owen quem usou o termo pela primeira vez em

1813) associada à condição socioeconómica dos trabalhadores da indústria, embora continuasse a

prevalecer a formulação plural e não uma working class unificada. A noção de proletário ressurgiria em

França na sequência da revolta de Lyon de 1831, e a mesma passaria a ser abertamente conotada com o

“novo” sujeito da história: “o conjunto dos proletários torna-se proletariado no título de uma brochura

prudentemente anónima: Aperçu sur la question du prolétariat”. Sendo o nome “proletariado” de origem

francesa e nunca se tendo vulgarizado nem sido assimilado pelos trabalhadores dos países anglo-

saxónicos (continuou a ser um termo erudito), houve no entanto quem defendesse (Tom Nair, aliás, na

linha de E. P. Thompson) que o falhanço do marxismo junto dos operários ingleses não se ficou a dever à

ausência de consciência, mas antes a uma intensa consciência de classe que preservou a sua autenticidade

fundamental, intensidade essa que está presente nos reflexos e nas atitudes – pré-requisito e melhor

garantia do socialismo –, que se assume como um “reflexo de classe”, mas que, paradoxalmente, “em vez

de servir de fundamento à revolução, como na filosofia marxista, serve pelo contrário de fundamento à

ausência de revolução” (Cabral, 1983: 24).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

79

Na base da conceptualização marxista do “proletariado” está a velha discussão da

articulação entre os “interesses” e a “acção” de classe71. Como se sabe, o idealismo

voluntarista de Marx e dos seus seguidores mais ortodoxos sempre tropeçou com este

problema. Diversas análises alternativas72 têm levantado o problema da racionalidade

na definição dos “interesses” dos actores sociais. Por exemplo, para Mancur Olson

(1998) – em A Lógica da Acção Colectiva (1ª edição, 1965) –, as teorias marxistas da

acção de classe erraram ao assumir que os indivíduos tendem a agir numa base racional

na perseguição dos seus interesses comuns. Para este autor, o interesse individual e

racional no seio do grupo tende a inibir a participação nas acções colectivas, em

especial nos grupos ou organizações de maior dimensão, onde funciona uma lógica que

Jon Elster (1985) designou como o dilema do prisioneiro: um jogo em que o indivíduo

“I” está de um lado (decidindo por si se deve ou não envolver-se em determinada acção)

e todos os restantes do outro; cada um pensa no que tem a ganhar e a perder

participando ou abstendo-se; se todos os outros participarem e o indivíduo “I” se

abstiver, este pode beneficiar dos resultados da acção dos restantes; se todos os outros

se abstiverem e ele também, pode na mesma beneficiar ao evitar expôr-se a uma acção

unilateral. É o chamado síndroma do free-rider, segundo o qual, se todos os agentes na

posição de “I” pensarem assim, todos decidirão abster-se e a acção colectiva não terá

lugar (Elster, 1991: 360). Todavia, outros factores tendem a impelir os membros de um

dado grupo para as acções colectivas, quando estas se dirigem à conquista de um

benefício comum. É o caso, por exemplo, das estruturas coercivas da organização, as

formas de liderança e os recursos mobilizáveis. A dimensão do grupo é importante na

medida em que, para Olson e outros, é sobretudo nos pequenos grupos ou colectividades

71 Já atrás me referi a esta questão, a propósito do modelo de Erik Olin Wright (ver ponto 1.1.3). 72 As propostas alternativas de compreensão da acção colectiva e da complexidade das relações entre o

indivíduo e o grupo ou entre o indivíduo e as estruturas sociais, abundam na literatura sociológica (cf.,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

80

que o envolvimento espontâneo de todos os membros é maior. A dificuldade da acção

de classe, definida em termos económicos e na base do interesse individual, deve-se,

não à falta de racionalidade (consciência), mas à predominância do comportamento

racional: “a acção de classe não ocorrerá se os indivíduos que compõem uma dada

classe agirem racionalmente” (Olson, 1998: 96).

O problema da acção colectiva e dos movimentos de protesto de tipo classista é

que eles, embora muitas vezes sejam impelidos pelos constrangimentos e interesses

estruturados pelas relações produtivas, raramente podem ser desligados de formas de

acção e de dinâmicas de rebeldia ligadas a outras esferas da identidade colectiva. Por

um lado, a acção colectiva do operariado exige inúmeras negociações entre os

trabalhadores individuais no interior das suas estruturas organizacionais, em especial os

sindicatos, de modo a ultrapassar o problema da heterogeneidade interna dos

assalariados, das suas subjectividades, interesses e habitus individuais. Isto prende-se

com a natureza dialógica da acção colectiva por parte do operariado, como assinalaram

Offe e Wiesenthal (1984). Também os irmãos Tilly viram a importância da mudança

estrutural e da acção colectiva de grupos concorrenciais – lutas entre aldeias, vilas e

comunidades rivais – como factores que induzem a uma acção colectiva, sobretudo de

tipo “reactivo”. Mesmo no caso de uma acção de tipo “pró-activo”, como acontece na

ocorrência de uma greve, ela apoia-se, geralmente, em exigências que não puderam ser

realizadas através de outras formas de negociação ou resolução de conflitos73. Segundo

os autores d‟O Século da Rebelião (Tilly et al., 1975), a generalidade das lutas

colectivas ocorridas desde os princípios do século XIX são fundamentalmente fruto da

expansão do capitalismo e do reforço do Estado-nação. A acção de classe pode ser

entre outros, Touraine, 1966 e 1973; Crozier e Friedberg, 1977; Elster, 1991; Calhoun, 1983; Giddens,

1975 e 1989; Parkin, 1979; Cohen, 1980 e 1987; Gilbert, 1992). 73 Veja-se a este propósito, Adams e Raynaud (1983), Lima et al. (1992), Stoleroff (1988), C. Ferreira

(1996), H. Costa (1998).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

81

entendida como derivando das capacidades de classe e não tanto dos interesses de

classe. Os contextos de industrialização tardia (ou os que caracterizaram os ambientes

industriais da Inglaterra até finais do século XIX, por exemplo) dão muitas vezes lugar a

desajustamentos entre situações fabris onde os interesses do capital e do trabalho estão

fortemente polarizados e situações onde a classe não tem condições concretas para

poder agir colectivamente. Quer isto dizer que as “capacidades de classe” não estão

sempre estritamente enraizadas na produção: são em geral “modeladas por outros

factores, incluindo a persistência das comunidades tradicionais pré-existentes, a

vulnerabilidade do mercado de trabalho e a mudança na estrutura política das

oportunidades, os quais não se reduzem ao desenvolvimento das forças produtivas”

(Aminzade, 1984: 437).

A questão das trajectórias sociais veiculadas pela diversidade de origens e

experiências dos agentes que integram uma dada classe – o mesmo é dizer, as suas

identidades colectivas e individuais em estruturação –, constituem, também aqui, um

aspecto relevante. O conceito de habitus (Bourdieu, 1979), por exemplo, ajuda-nos a

perceber a forma como as práticas activadas pelos agentes sociais obedecem a processos

de “acção” e de “classificação” neles incorporados, ou seja, resultam simultaneamente

da experiência cultural sedimentada no subconsciente e dos mecanismos cognitivos da

percepção74. Tais experiências derivam não só dos contextos em que se inserem num

dado momento, mas das trajectórias vividas pelos agentes no âmbito de mudanças

estruturais modeladoras dos seus estilos de vida e sentimentos partilhados

estruturadores de uma dada identidade. Com efeito, como refere Ferreira de Almeida,

74 “Os esquemas do habitus [são] formas de classificação originais, devem a sua eficácia ao facto de

funcionarem para além da consciência e do discurso, isto é, fora da avaliação e do controle voluntário:

orientam praticamente as práticas, inscrevem o que vulgarmente chamaríamos os valores [que se

reflectem] nos gestos mais automáticos ou nas técnicas do corpo aparentemente mais insignificantes,

como os movimentos das mãos ou as formas de caminhar ou de se sentar ou de se mover, as maneiras de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

82

“os efeitos de trajecto derivam da história da classe. É necessário reconstituir o processo

transgeracional das lutas desenvolvidas em sucessivas conjunturas na dialéctica de

enfrentamento com outras classes e fracções” (Almeida, 1986: 89). Como se sabe, as

condições objectivas do espaço fabril, por mais “degradantes” que sejam, encontram

pela frente múltiplos factores que neutralizam as possibilidades de acção colectiva.

Especialmente em contextos de industrialização recente e sem uma experiência

significativa de luta, a diversidade de trajectórias e a presença de habitus individuais de

recorte rural conferem ao colectivo operário características de dependência e aceitação

inibidoras de qualquer envolvimento em formas de luta colectiva organizada.

Já em contextos onde a tradição artesanal e a cultura “oficinal” adquiriu raízes,

conforme mostram as várias abordagens históricas sobre a “formação da classe

operária”, sai reforçada a ideia de que a classe se ergueu sob os despojos do radicalismo

conservador do artesanato (Jones, 1989; Calhoun, 1982; Sewell, 1990 e 1992; e Joyce,

1991). A emergência da classe operária é muitas vezes interpretada como sinónimo de

um processo de conversão dos artesãos em elementos “politicamente activos”, o que

significa que os movimentos reivindicativos e os protestos políticos do século XIX nos

países ocidentais foram dominados pelos artesãos qualificados e não pelos operários das

novas fábricas industriais: “o movimento operário nasceu na oficina artesanal e não na

obscura fábrica satânica” (Sewell, 1992: 15). Tal distinção parece coerente com os dois

tipos de trabalho que Marx tinha em mente quando, nos Manuscritos, desenvolveu a sua

teoria da alienação, a saber, a contraposição entre o trabalho qualificado, artístico e

expressivo, de um lado, e o trabalho manual indiferenciado e desqualificado, do outro

(Marx, 1975a: 136-138). Todavia, foi o primeiro e não o segundo que fez emergir os

sectores mais activistas do operariado.

mexer a boca ao comer ou a falar e orientam os princípios fundamentais da construção e da avaliação do

mundo social (…)” (Bourdieu, 1979: 543).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

83

Esta ideia não é, no entanto, coincidente com a visão que sobressai na já citada

obra de E. P. Thompson (1987), onde é notória a concepção inclusiva de “classe

operária”, segundo a qual aqueles dois sectores da força de trabalho partilham uma

experiência geral unificadora que se traduz na alteração das suas condições de

existência e resultou da recomposição das relações sociais induzida pelo capitalismo

industrial. Efectivamente, a análise de Thompson parece dar por adquirido que tal

alteração qualitativa das condições de vida impôs uma lógica de modernidade sobre as

relações de produção e sobre o trabalho em geral (industrial e artesanal), de tal modo

que deixaria de fazer sentido continuar a usar a categoria de artesão no seu sentido mais

restrito. Por outro lado, a ênfase colocada na dimensão histórica leva o autor a uma total

rejeição da vertente estrutural: “se parássemos a história num dado ponto não teríamos

classes mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de

experiências” (Thompson, 1987: 11). Será este procedimento revelador do excesso de

simplismo de Thompson ou uma exigência da própria leitura historicista por ele

empreendida? Os autores do marxismo analítico – como Cohen (1980), Roemer (1982a,

1982b e 1986), Elster (1985) e Przeworski (1978 e 1991)75 – referem-se a esta visão

historicista, afirmando que a classe não é apenas um processo, antes se torna um

processo de formação cultural e política, sendo que este tem de ocorrer no âmbito de

uma estrutura que lhe dá sentido e que o alimenta. Elster reconhece, porém, que

“devem existir sub-processos que seguem dentro da estrutura e contribuem para a sua

constituição, distinguindo-a de outras estruturas” (Elster, 1991: 343).

75 Muito embora haja, evidentemente, claras diferenças nas abordagens destes autores. Por exemplo,

Cohen é em geral considerado funcionalista na sua visão da evolução histórica, enquanto Elster coloca

menos ênfase na dimensão estrutural, preocupando-se sobretudo com a questão da escolha racional e do

chamado individualismo metodológico. Já Przeworski, por seu lado, ao analisar os regimes sociais-

democratas no capitalismo, apesar de fazer uso da teorias da “rational choice”, admite que no capitalismo

moderno o poder das estruturas é um factor fortemente restritivo da escolha individual. A propósito desta

corrente (na qual também se inclui Erik Wright) ver E. Chilcote e R. Chilcote (1992) e T. Mayer (1994).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

84

A experiência histórica que Thompson procura dar conta não deixa de ser

fragmentária, se bem que a coberto de um discurso classista. Partir da evidencia

empírica das práticas culturais do operariado para substituir o conceito de classe pelo de

comunidade é um procedimento, no mínimo, falacioso. Para que tais experiências sejam

concebidas em termos classistas é, pois, necessário proceder à introdução de um

princípio integrador externo e objectivo (Lopez, 1992: 549). Tal tarefa terá

obrigatoriamente de contemplar uma dimensão estrutural, na medida em que, só a partir

do estabelecimento de critérios definidos analiticamente é possível procurar a dialéctica

das relações causais entre a situação de classe dos indivíduos e as suas práticas,

experiências e formas de consciência ou de acção. Dito de outro modo, “não podemos

sustentar que conhecemos essas estruturas sincrónicas de determinação enquanto não

pudermos mostrar, através de narrativas circunstanciais, como elas modelam e são

modeladas pelas acções reais no tempo histórico experienciado” (Sewell, 1990: 75).

Socorrendo-se de formulações de Althusser acerca dos múltiplos sistemas de

autonomia relativa, William Sewell refere ainda que a linguagem de classe não é a

única disponível para os trabalhadores, mesmo os que estão directamente enquadrados

em estruturas de classe. Entre os diferentes discursos a que os operários podem aderir

num contexto particular, o da classe concorre, por exemplo, com o da resignação76

sugerido por certas correntes católicas, o da auto-realização, o do reformismo, o do

nacionalismo, etc.: “os discursos rivais podem não apenas permanecer na mesma classe,

mas até na mesma mente” (Sewell, 1990: 72). O que pode levar os assalariados a optar

por um em detrimento de outros depende de múltiplos factores conjunturais, estruturais

e históricos, ou seja, o que importa é, acima de tudo, ter presentes as experiências

76 Voltarei a esta questão mais à frente, a propósito da análise dos mecanismos de produção do

consentimento nas relações de trabalho desenvolvida por Michael Burawoy (1979, 1985, 1991).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

85

comunitárias da força de trabalho em diversas épocas históricas e procurar compreender

como elas se articulam e confrontam com a estrutura de classes vigente.

A reflexão precedente afigura-se fundamental para nos ajudar a direccionar a

análise do operariado inserido num contexto onde a acção colectiva decorre sob a

influência de identidades estruturadas entre o trabalho e a comunidade. Contudo, os

objectivos do presente estudo não se limitam a olhar a acção colectiva do operariado no

âmbito relativamente genérico da comunidade local, mas pretendem igualmente captar a

forma que os processos produtivos adquirem quando observados a partir do seu interior.

Nesse sentido, o mundo das relações laborais merece uma discussão mais detalhada, a

qual será aqui efectuada à luz das abordagens dos processos produtivos e dos regimes de

acumulação capitalista. Se o ponto de vista histórico é decisivo para articular as

experiências do passado nas configurações presentes das práticas e da acção social, o

ponto de vista das modalidades de poder e das tipologias de controle disciplinar que têm

vigorado no mundo industrial ao longo do último século afiguram-se temas

incontornáveis no estudo do operariado industrial. No ponto seguinte abordarei a

questão dos regimes de fábrica, pondo em destaque as análises de Harry Braverman e

Michael Burawoy.

1.3 - Controle, consentimento e despotismo: regimes de acumulação e

relações na produção

O espaço da produção foi, como se sabe, o ponto fulcral das análises de Marx

sobre o modo de produção capitalista e constituiu a esfera de eleição da luta de classes

entre o proletariado e a burguesia. São conhecidas as suas teses acerca das tendências do

capitalismo para a progressiva concentração, homogeneização e “imiseração” da força

de trabalho. De acordo com aquela perspectiva, a modernização do capitalismo iria fazer

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Entre a Fábrica e a Comunidade

86

com que os interesses de classe dos trabalhadores se tornassem cada vez mais propensos

à acção revolucionária. Mas, se tais tendências pareceram viáveis até às primeiras

décadas do século XX, à medida que o capitalismo se foi expandindo elas tornaram-se

cada vez mais duvidosas. E isto porque em muitos aspectos, a transformação histórica –

nomeadamente no que diz respeito à mudança tecnológica e à crescente heterogeneidade

na divisão técnica do trabalho induzida, em boa medida, pelas novas tecnologias –

contrariou claramente aquelas previsões.

1.3.1 - Classe e processos produtivos, de Braverman a Burawoy

Diversas pesquisas no campo das ciências sociais forneceram diferentes caminhos

de reflexão sobre a problemática das relações de trabalho e a sua conexão com a questão

da acção de classe. Braverman (1974), Gutman (1977), Edwards (1979), Korpi (1981 e

1983), Offe (1984 e 1985a), Gordon et al. (1983), Dahrendorf (1982), Lash e Urry,

(1987), são alguns dos autores consagrados que estudaram esta problemática. Adam

Przeworsky (1991) procurou encontrar no nível macro das instituições políticas e do

sistema democrático pistas de explicação para compreender as razões que levaram os

trabalhadores manuais dos países desenvolvidos a abdicar da acção revolucionária.

Gordon, Edwards, e outros acentuaram a importância da segmentação dos mercados e

das diferenças no interior dos processos de trabalho (Hyman, 1992), as quais

promoveram a divisão no seio do operariado, contribuindo, assim, para inibir a sua

actuação enquanto classe.

Numa linha diferente, Michael Burawoy (1979, 1985), inspirando-se e criticando

Braverman (1974)77, analisa o processo de trabalho no capitalismo dando ênfase aos

77 Pode até dizer-se que as análises de Burawoy são a este respeito uma resposta à investigação de

Braverman. Enquanto este punha o acento tónico na opressão e dependência do operariado face ao poder

crescente do capital, Burawoy vê antes os operários a entregarem-se e a produzirem eles mesmos os

mecanismos de consentimento. Retomarei este assunto mais adiante (ponto 1.3.2).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

87

efeitos políticos e ideológicos que emanam da própria esfera produtiva e se ligam aos

aparelhos de Estado78. Para Burawoy é fundamental o papel dos mecanismos internos

ao espaço produtivo e a forma como estes se articulam com as estruturas política e

económica mais gerais para explicar o consentimento dos trabalhadores face à

exploração. Algumas das concepções tradicionais sobre os regimes de fábrica,

nomeadamente o insucesso do modelo taylorista em impor uma total separação entre

concepção e execução, são abertamente confrontadas. Com base no conceito de relações

na produção, que distingue do conceito de Marx de relações de produção, aquele autor

estabelece que, enquanto este último conceito define o modo de produção capitalista, o

primeiro pode ser detectado em diferentes modos de produção, isto é, o “processo

capitalista de trabalho” é algo distinto do “processo de trabalho na sociedade

capitalista”. De acordo com esta concepção é necessário admitir que as relações sociais,

políticas e culturais que têm lugar no interior da fábrica podem obedecer a diferentes

modalidades, ou seja, apesar de ocorrerem em sociedades capitalistas, transportam

muitas vezes lógicas de acção e regulação não capitalistas. Estes fenómenos são, aliás,

particularmente visíveis em sociedades periféricas ou semiperiféricas, como a

portuguesa (Santos, 1990, 1993, 1994).

78 Embora Burawoy veja a relação entre a produção e o Estado enfatizando sobretudo as suas articulações

na esfera produtiva, convém recordar aqui as abordagens de autores como Bob Jessop e Claus Offe pelo

realce que colocam nas vinculações entre o Estado e a economia. O Estado capitalista é entendido como

um sistema com as seguintes características: a) situa-se fora do processo de produção e acumulação

capitalista; por tal facto b), precisa, para subsistir, de obter meios e rendimentos criados fora do seu

controle imediato; c) não sendo auto-suficiente nem auto-regulado é mandatário para preservar as

condições necessárias à acumulação; d) como resultado disso, funciona à custa do capital e, por esse

motivo, precisa de fazer equivaler os interesses nacionais aos do capital e assegurar o apoio popular

necessário para que a acumulação prossiga o seu curso (Offe, 1984). São, portanto, evidentes as

consequências desse processo sobre as classes, uma vez que é às estruturas do Estado que cabe assegurar

as condições de consentimento ou “compromisso” entre capital e trabalho. “O Estado é interventor com

limitações para assegurar as condições de acumulação” (Jessop, 1990: 46) e, como tal, o papel central que

o poder de Estado tem de assumir na acumulação de capital liga-se, assim, à necessária adequação entre a

reprodução da lógica económica e as respectivas classes em aliança sob protecção do sistema institucional

do Estado. A acção ideológica e de intervenção cultural pode, porém, ser conduzida directamente pelo

Estado, ou proveniente dos sectores da sociedade civil em que ele se apoia para sustentar o exercício da

sua hegemonia (Gramsci, 1985; Laclau e Mouffe, 1985).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

88

Confrontando o pressuposto do antagonismo através do controle exercido pelo

capitalista sobre o operário, Burawoy sustenta que o processo de trabalho,

tradicionalmente visto somente na sua componente económica, deve antes ser visto nas

suas capacidades de modelação de novas subjectividades e identidades no trabalho (du

Gay, 1996), através das experiências vividas pelo trabalhador e da sua capacidade

interpretativa dessa mesma experiência. A importância dos elementos políticos e

ideológicos no interior do processo de trabalho é realçada por Burawoy nos seguintes

termos: “as adaptações do dia-a-dia dos trabalhadores criam os seus próprios efeitos

ideológicos que se tornam elementos focais na operação do controle capitalista. Não só

não se pode ignorar a dimensão „subjectiva‟ mas a própria distinção entre „objectivo‟ e

„subjectivo‟ é arbitrária. Qualquer contexto de trabalho envolve uma dimensão

económica (produção de coisas), uma dimensão política (produção de relações sociais) e

uma dimensão ideológica (produção de uma experiência dessas relações). Estas três

dimensões são inseparáveis. Mais do que isso, elas são todas „objectivas‟ na medida em

que são independentes das pessoas concretas que vêm para o trabalho, dos agentes

particulares da produção” (Burawoy, 1985: 39). É, portanto, errónea a ideia de uma

classe em si, definida em termos puramente económicos, sobre a qual viriam

posteriormente a inscrever-se, sob certas condições, os factores subjectivos vinculados à

superestrutura. Seguindo Thompson neste ponto, o autor afirma que “não há notícia

„objectiva‟ de qualquer classe, previamente ao seu aparecimento no palco da história.

(…) Assim, a classe torna-se o efeito combinado de um conjunto de estruturas

económicas, políticas e ideológicas situadas em todas as arenas da actividade social”

(Burawoy, 1985: 39). A centralidade do processo de trabalho é pois considerada sob

múltiplas perspectivas e não apenas em termos puramente económicos. Se,

aparentemente, esta asserção já estava presente na abordagem de Poulantzas, atrás

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Entre a Fábrica e a Comunidade

89

referida, é bom recordar que, ao contrário do registo abstracto e estrutural daquele autor,

a análise de Burawoy se dirige sobretudo às práticas sociais concretas, em unidades de

produção estudadas directamente – fazendo uso da observação participante –,

enfatizando as observações e vivências no micro-nível para questionar os pressupostos

abstractos das teorias existentes sobre o capitalismo. Além disso, como se observou

acima, os determinismos macro-sociais e macro-económicos são abertamente recusados.

Deste modo, ao contrário da visão estruturalista e abstracta, a orientação teórica de

Burawoy é centrada nos micro-fundamentos do capitalismo no espaço produtivo e não

nos macro-fundamentos da classe à escala da sociedade.

Apesar de apoiadas em perspectivas teóricas distintas, é possível detectar pontos

de aproximação entre as análises de Burawoy e Braverman. Um deles diz respeito à

ideia – desenvolvida na obra de Braverman, Labor and Monopoly Capital (1974) e

subscrita por Burawoy (1985) –, segundo a qual a localização das fronteiras de classe só

pode ser captada através do estudo da organização dos processos de trabalho. Estes

autores acentuam principalmente os impactos negativos da tecnologia sobre as

condições de trabalho e a tendência para a “degradação” dessas condições. Mas, mesmo

admitindo que o processo de alteração das fronteiras de classe (com o crescimento de

novos sectores da classe média) passou pelo acesso a empregos mais vantajosos por

parte de muitos filhos de trabalhadores manuais, é inegável que a evolução da

componente tecnológica e científica, teve também um alcance no terreno político-

ideológico: a penetração e o reforço desta dimensão na esfera produtiva, nomeadamente

ao criar a ideia de que a maior sofisticação técnica se traduz sobretudo na abertura das

oportunidades oferecidas aos operários mais qualificados e com maiores aptidões. Daí se

pode retirar que o êxito económico obtido foi conseguido não apenas pela crescente

inovação e eficácia tecnológica no campo da produtividade, mas sobretudo – como

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Entre a Fábrica e a Comunidade

90

sublinha Braverman –, porque conseguiu anular as capacidades de classe dos

trabalhadores. Esta é também a ideia de David Gordon (1983) e outros, quando chamam

a atenção para “a habilidade da classe governante para reproduzir a sua dominação do

processo de produção e minimizar a resistência dos produtores” (Mackenzie, 1982: 79).

Quer isto dizer que o sucesso da classe capitalista não pode desligar-se do insucesso e

fragilização da classe operária.

1.3.2 - Regimes despóticos e regimes hegemónicos

A compreensão das articulações entre a lógica capitalista e as dinâmicas do

trabalho no dia-a-dia da fábrica passa pela rejeição da ideia de uma total submissão da

força de trabalho. Se a dimensão coerciva pontificou nos regimes despóticos que

vigoraram na primeira fase do capitalismo, nos regimes hegemónicos, apoiados no

capital monopolista e na maior intervenção estatal, tem pontificado sobretudo uma

lógica de consentimento nas relações laborais. Neste quadro, dificilmente é defensável a

noção bravermaniana do operário totalmente esmagado perante o inelutável

aniquilamento das componentes criativa e autónoma, típicas do antigo trabalho oficinal.

A separação entre execução e concepção, prefigurada no modelo taylorista, nunca foi

demasiado rígida e teve pouca tradução empírica nos regimes de fábrica. Uma das

vantagens que o modo de produção capitalista retirou desse modelo serviu na perfeição a

necessidade vital de obscurecer os mecanismos de transferência de mais-valia, condição

fundamental para a sua reprodução.

Demarcando-se de Braverman, Michael Burawoy – principalmente na sua obra

The Politics of Production, 1985 – sublinha que o que define o capitalismo não é a total

sujeição ao capital por parte da economia no seu conjunto. O princípio de totalidade

expressiva – atribuído por Braverman ao controle do processo de trabalho pelo capital

monopolista – é questionado por Burawoy, em especial no capitalismo monopolista: o

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91

modo de produção é visto como uma instância determinante da vida “social, política e

intelectual” cuja essência comporta uma totalidade estruturada, com capacidade para

articular diferentes lógicas e encontrar diferentes formas de “reprodução das

combinações entre as relações de e na produção”. Mas, ao contrário do que acontece

com o referido conceito de Braverman, esta lógica reprodutiva nem sempre terá de estar

subordinada ao económico. A ênfase por este colocada no poder do capital monopolista

– visto como dominando tendencialmente toda a economia à medida que a sua expansão

vai interferindo e absorvendo as diferentes esferas da vida social –, leva-o, segundo

Burawoy, a confundir capital monopolista com capitalismo monopolista (Burawoy,

1985: 58). Ao contrário, a totalidade estruturada é “composta por diversas partes, cada

uma com a sua própria estrutura que ao mesmo tempo exprimem e escondem as relações

económicas, cada uma movendo-se na sua própria dinâmica histórica em relativa

independência face à economia (…). Na prática, muito embora as instâncias políticas,

jurídicas e ideológicas não estejam implicadas dentro do modo de produção capitalista,

elas são, apesar disso, necessárias para a reprodução das relações de produção” (ibidem:

60). Enquanto nos sistemas pré-capitalistas as relações de produção puderem, em certas

fases da história, ser reproduzidas por elementos extra-económicos – como, por

exemplo, a religião durante o feudalismo –, no modo de produção capitalista “as

relações de e na produção reproduzem-se (em princípio) elas próprias a partir delas

próprias”. Mas, embora as dimensões ideológica, política e legal estejam formalmente

sediadas fora da esfera económica, isso não diminui a sua importância nas relações que

mantêm com a actividade produtiva, como já se viu. Na passagem do capitalismo

concorrencial para a sua fase monopolista, a ciência e a tecnologia, enquadradas pela

crescente concentração do capital e intervenção estatal na vida económica79, não apenas

79 Segundo o mesmo autor, “a estrutura legal, por exemplo, exerce funções decisivas de legitimação, ao

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Entre a Fábrica e a Comunidade

92

contribuíram para baixar os custos de produção e enfrentar a competitividade (aliando a

organização científica do trabalho à mecanização), mas ajudaram igualmente a criar

condições para travar a força sindical e a acção contestatária do operariado fabril. É aí

que o papel do Estado se torna decisivo, visto que uma das maiores dificuldades do

capitalismo avançado tem sido a sua incapacidade de fazer ajustar as mais-valias do

capital às mais-valias da força de trabalho (Offe e Ronge, 1975). Assim, perante

situações de crise ou a iminência de ruptura das forças reguladoras do mercado, a acção

estatal vê-se obrigada a procurar rearticular o capital improdutivo com a força de

trabalho desempregada. Deste modo, acrescenta Burawoy, “a distribuição de

mercadorias, em vez de aparecer como inevitável e natural, torna-se objecto da luta

política. O Estado deve procurar novos caminhos para justificar os padrões de

distribuição existentes e descobre-se a emergência das políticas de preços e

rendimentos” (Burawoy, 1985: 61).

Esta questão tem uma incidência directa nas dinâmicas do capitalismo,

nomeadamente nas suas formas de organização no tempo e no espaço. Os diferentes

modelos de regulação e acumulação – em geral identificados com diferentes ciclos

económicos e períodos de estabilidade ou de crise –, nomeadamente quando observados

à escala local ou regional, não podem deixar de evidenciar a multiplicidade de

vinculações inscritas nos processos socioculturais que lhes dão suporte (Gregory e Urry,

1985; Reis, 1992). Neste caso, o que me parece pertinente é ter presente as grandes

tendências do desenvolvimento económico ao nível do sistema mundial (Wallerstein,

1974, 1984; Amin, 1980, 1991), não tanto para as tomar como “causas”, não tanto para

verificar os seus “impactos”, nacionais ou locais (globalmente determinados), mas sim

mascarar as relações de produção, em especial através da criação de distinções entre pessoas e coisas,

confundindo distinções entre diferentes tipos de coisas (coisas consumidas produtivamente – máquinas –

e coisas consumidas improdutivamente – camisas), e diferentes tipos de pessoas (os que devem vender a

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Entre a Fábrica e a Comunidade

93

para estudar o modo como contextos históricos particulares se articulam com essas

tendências globais, introduzindo-lhes novas linhas de complexidade. Os debates

travados ainda recentemente no âmbito da teoria económica sobre a crise do regime

fordista80 forneceram interassantes contributos a este respeito.

Um ponto decisivo, que não pode deixar de estar presente neste estudo, é a

importância dos dinamismos locais e as especificidades de cada contexto, tanto na forma

como localmente se vão configurando as modalidades de penetração do capitalismo

(Freitas et al., 1976), como no próprio processo de sedimentação temporal dos diferentes

regimes de acumulação e regulação económica. Nessa medida, poder-se-á assistir, a

nível local, à assimilação de lógicas de organização que subvertem qualquer concepção

linear do tempo e da história, isto é, parece possível admitir a presença de dinâmicas

“anacrónicas”, mesmo quando se fala de esquemas de controle da força de trabalho ou

de sistemas de organização produtiva.

A análise dos regimes de fábrica empreendida por Burawoy, realça sobretudo a

importância dos trabalhadores e a centralidade da produção. Não pretendo abordar aqui

toda a complexidade conceptual de que o autor faz uso, mas antes atentar, por um lado,

sua força de trabalho e os que possuem os seus próprios meios de produção), e ao reconstruir os agentes

da produção, ideologicamente apresentados como cidadãos „livres e iguais‟” (Burawoy, 1985: 60). 80 As características fundamentais atribuídas ao fordismo são as seguintes: crescente desenvolvimento

industrial e concentração do capital e da produção; maior conjugação estratégica entre a indústria, as

instituições financeiras e as políticas estatais; reforço da racionalidade económica e o incremento da

inovação tecnológica; ampliação das interdependências e deslocações de capitais à escala mundial, etc. A

par destes aspectos, assistiu-se ao reforço da intervenção sindical e política da força de trabalho; ao

surgimento de mecanismos mais eficazes de mediação e concertação de interesses de classe; ao aumento

do poder de negociação; ao aumento do consumo de massa; a uma maior estabilidade da relação salarial,

etc. Veja-se também, sobre a sociedade portuguesa, Santos (1994: 76-79) e Reis (1992: 30-36). Os debates

em torno dos regimes de regulação fordista e pós-fordista permitiram uma compreensão mais aprofundada

acerca da crise dos modelos de produção de massa e das potencialidades da especialização flexível

(Aglietta, 1979; Boyer, 1989; e Lipietz, 1987). A problemática da teoria económica da regulação e

flexibilização, apesar de se apoiar predominantemente em elementos de pendor macro-estrutural e

abstracto, forneceu nos últimos anos importantes contributos para a superação da tradicional visão a-

histórica e individualista da economia. Neste sentido, pode dizer-se que o próprio conhecimento científico,

ao questionar e reelaborar certo tipo de modelos de análise económica, por exemplo, torna-se um factor de

legitimação dos poderes dominantes mais do que uma representação da realidade (Piore e Sabel, 1984) e,

como tal, devem livrar-se da tradicional pretensão de uma (impossível) correspondência absoluta com a

„realidade‟ (Resnick e Wolff, 1987; Graham, 1991).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

94

nas distinções entre o regime paternalista e o despotismo de mercado do século XIX e,

por outro, assinalar a evolução dos regimes despóticos para os regimes hegemónicos do

capitalismo avançado. Estas transições não foram, evidentemente, uniformes nem

generalizáveis, variando segundo uma multiplicidade de factores económicos, históricos,

demográficos, tecnológicos e políticos. A maior ou menor proletarização da força de

trabalho, as formas de articulação entre os processos de trabalho e as forças de mercado,

as formas de intervenção do aparelho legislativo e estatal, etc., são algumas das variáveis

que o autor tem em conta ao contrapor como exemplos distintos de transformação nos

regimes de fábrica as regiões do Lancashire em Inglaterra e da Nova Inglaterra nos

EUA. Estas experiências do século XIX fornecem-nos interessantes pistas de

interpretação que parecem muito pertinentes para o estudo da região portuguesa do

calçado.

O regime paternalista é apresentado como distinto do regime patriarcal. Enquanto

este último correspondia a uma etapa anterior onde a família era ainda dotada de

bastante autonomia, como aconteceu com o sistema artesanal da oficina familiar, o

paternalismo (ou regime paternalista) é apontado como traduzindo a progressiva

sujeição desse sistema à lógica fabril no quadro mais alargado da comunidade81. Esta

81 Uma das temáticas que está subjacente à lógica patriarcal das articulações entre a fábrica e a

comunidade é, portanto, a família. E, com ela, o estatuto da mulher: quer pela acção que desempenhou e

continua a desempenhar no seio da família (nas relações de produção antroponómica, como lhes chamou

Daniel Bertaux, 1978: 120), quer enquanto sector fundamental que desde muito cedo alimentou a força de

trabalho na indústria (em especial o sector têxtil), a posição da mulher na reprodução do capitalismo é

fundamental, como têm vindo a mostrar os inúmeros estudos centrados na discriminação sexual. Como

assinalou Heidi Hartman, os empregadores sempre olharam a mulher como mais dócil e menos

independente do que a força de trabalho masculina. Para além da sua ancestral subordinação no seio da

família, a mulher revelou-se, desde a primeira fase do capitalismo industrial, menos propensa à

organização e participação colectiva do que o homem. E o homem, por seu lado, fez uso da actividade

sindical, pelo menos em parte, tendo em vista minar a posição da mulher no mercado de trabalho. De

resto, como acrescenta a mesma autora, a luta para alcançar algum grau de poder perante o patronato por

parte do operário é de certo modo reforçada pelo seu hábito de comando dentro da família, assim como

pelos seus privilégios na esfera pública e no Estado. Ao longo do desenvolvimento do capitalismo a

subordinação da mulher foi-se intensificando e, com a crescente separação entre a esfera doméstica face

às esferas política e económica, o poder masculino reforçou-se, enquanto a situação da mulher tem em

geral permanecido na dependência económica do homem (Hartmann, 1982). Por outro lado, se é verdade

que nas últimas décadas se vem assistindo a um aumento de protagonismo da mulher na sociedade – em

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modalidade vigorou na Inglaterra na segunda metade do século XIX, em particular nas

pequenas cidades fabris de Lancashire, onde se desenvolveu a indústria algodoeira. Após

as intensas lutas sindicais das décadas de trinta e quarenta do século oitocentista,

chegou-se a uma situação de compromisso de classe relativamente estável entre o

patronato e as estruturas sindicais e o controle patriarcal da produção ganhou um novo

equilíbrio, ficando cada vez mais vinculado à cultura comunitária. Com a progressiva

extinção da produção oficinal e familiar, o despotismo patriarcal foi substituído por um

paternalismo de tipo “neofeudal” sem passar pelo despotismo de mercado. Neste regime,

“a família era moldada, regulada e sujeita a apertada vigilância dos empregadores. Do

governo pela família evoluiu-se para o governo através da família. A comunidade

também perdeu a sua autonomia, passando de um bastião de resistência a um veículo de

dominação” (Burawoy, 1985: 95-98).

Por outro lado, o exemplo da Nova Inglaterra nos EUA, mostra-nos a emergência

de um regime de despotismo de mercado. Dada a escassez de mão de obra qualificada, a

ausência de tradição artesanal e a frágil capacidade de resistência dos trabalhadores, a

expansão dos processos mecanizados na indústria têxtil processou-se muito mais

rapidamente do que em Inglaterra, principalmente a partir dos anos vinte do século XIX.

Uma parte importante da força de trabalho fabril foi inicialmente recrutada entre jovens

raparigas filhas de agricultores pobres (e só mais tarde entre imigrantes irlandeses e

franco-canadianos) em busca de independência financeira. Transferiam-se para cidades

como Lovell, onde viviam em habitações subsidiadas pela própria empresa (as boarding

houses), sob a responsabilidade de “matronas” ao serviço do patronato, sujeitas a um

boa medida, aliás, no seguimento dos movimentos feministas despoletados a partir dos anos sessenta –,

não é menos verdade que esse protagonismo esbarra com inúmeros obstáculos e mecanismos

discriminatórios tendentes a impedir ou a travar o seu acesso a postos de chefia, tanto no mercado de

trabalho como na política e na vida pública em geral. Cf. entre outros: Hartmann (1982 e 1987),

Gamarnikow et al. (1983), Crompton e Mann (1986), Garnsey (1982), Walby (1986), Haraway (1992),

Vicente (1998), Ferreira (1993 e 1998), Amâncio (1992 e 1994).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

96

policiamento moralista extremamente apertado na residência e à tirania arbitrária dos

supervisores e patrões dentro da fábrica. Ameaçadas de despedimento pelo poder

absoluto e pelas represálias que o patronato podia exercer82, totalmente dependentes do

salário para subsistir, a sua capacidade de resistência era diminuta. Apesar da

comunidade solidária que se erguia a partir dos lares de habitação comum e da

participação nas lutas contra os cortes salariais e pelas dez horas de trabalho, tanto esta

força de trabalho feminina como a dos imigrantes encontravam-se em situação de grande

precaridade, sem alternativas de vida e por isso se sujeitavam a um regime fortemente

coercivo e discricionário, apoiado exclusivamente na lei do lucro (Burawoy, 1985: 99-

102).

Este tipo de regime foi característico do capitalismo liberal que vigorou sobretudo

até princípios do século XX. A acção reguladora que o projecto da modernidade

procurava levar a cabo deu lugar a uma expansão da lógica do mercado cuja pressão

sobre a lógica da comunidade se traduziu na total ou parcial absorção desta nas

estratégias de acumulação capitalista, tanto na primeira situação, em que o paternalismo

não foi senão um esquema de controle apoiado em laços de lealdade e dependência

tradicionalista ao serviço da ideia lucrativa, como na segunda solução, em que a

debilidade dos laços comunitários abriu mais facilmente o caminho à imposição de um

liberalismo sem lei e totalmente desumanizado. Pode porventura dizer-se que, apesar

disso, a ideia de emancipação da classe operária é corolário desse mesmo processo,

como Marx e Engels tentaram mostrar e a que os estudos históricos de Thompson

acrescentaram abundante evidência empírica. Ao longo desta fase de expansão do

capitalismo industrial as transições e mudanças ocorreram sob diferentes ritmos. Em

82 Burawoy refere a existência de acordos concertados entre os empresários da região que impediam a

admissão de uma trabalhadora que tivesse saído em litígio com o antigo patrão. Os próprios capatazes e

responsáveis da produção estabeleciam o salário à peça e os níveis de produtividade exigidos com base em

acordos tácitos inter-empresas.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

97

certos contextos a velocidade da mudança podia observar-se numa única geração: os

ambientes tradicionais dos dias de festa centrados na comunidade e na variação cíclica e

sazonal das ocupações em diversas actividades agrícolas rapidamente deram lugar a

dinâmicas onde passou a imperar a lógica produtiva da máquina industrial e a vida local

começou a ser comandada pelo relógio da fábrica. Um tipo de controle fabril que Weber

designou como de “disciplina militar” e que toma os operários, literalmente, como as

“mãos” intermutáveis, sendo recrutados enquanto tal pelo patronato industrial (Clegg,

1989: 175). Como defende Boaventura Sousa Santos, apesar do pilar da emancipação ter

sido ao longo deste período muitas vezes confundido com formas e manifestações pré-

modernas, estas foram desde cedo moldadas “pela vocação de globalidade e pela

aspiração de racionalidade radical da existência inscritas no projecto da modernidade”

(Santos, 1994: 75).

No panorama de relativa estabilidade social e de crescimento económico acelerado

nas sociedades avançadas que caracterizou o período do pós-guerra83, os regimes

despóticos atrás referidos foram dando lugar ao capitalismo monopolista onde

pontificaram os regimes hegemónicos de acumulação. Neste período, a intervenção do

Estado passa a ocupar um lugar cada vez mais central, seja através da criação de

políticas sociais que passam a garantir as condições mínimas de reprodução da força de

trabalho independentemente da produção, seja através do reconhecimento de direitos

laborais e políticos. Como resultado de tais políticas o regime despótico de acumulação é

cada vez mais dificultado e, deste modo, as práticas coercivas tornam-se mais

circunscritas. O processo de trabalho, ou seja, os aparelhos políticos da produção são

levados a procurar encontrar formas de persuasão dos trabalhadores assentes na

cooperação e no consentimento.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

98

1.3.4 - Relações de consentimento, sistemas de poder e novos despotismos

Embora, como sublinha Burawoy, também nos regimes hegemónicos a coerção

continue a estar presente, nestas condições passa a ser o consentimento que prevalece

sobre a coerção: “a aplicação da coerção não é apenas circunscrita e regularizada, mas a

própria imposição da disciplina e punição se torna ela mesma objecto de consentimento”

(Burawoy, 1985: 126). A importância do consentimento nos processos de trabalho e

regimes fabris apoia-se, pois, numa concepção das relações de produção que se distingue

da visão estrutural de Marx. Segundo Burawoy, as relações de produção “são sempre

combinadas com um conjunto de relações correspondentes nas quais homens e mulheres

participam, enquanto transformam as matérias-primas em objectos da sua própria

imaginação. É isto o processo de trabalho. Ele tem duas componentes analíticas distintas

mas concretamente inseparáveis – uma relacional e outra prática. Refiro-me ao aspecto

relacional do processo de trabalho como as relações na produção ou relações

produtivas” (Burawoy, 1979: 15). Esta dimensão diz respeito às práticas informais no

dia-a-dia da produção, as quais constituem um factor de legitimação das regras

instituídas e contribuem decisivamente para o obscurecimento de certos elementos do

processo produtivo, nomeadamente a exploração. A produção de bens não constitui

apenas um factor de produção e reprodução das relações sociais, mas simultaneamente

cria a experiência vivida dessas relações, ou seja, as condições de existência na produção

pressupõem uma relação real e uma relação imaginária resultante dessa relação vivida. A

experiência vivida apresenta o que é socialmente criado como algo “natural” e é neste

quadro que a ideologia deve ser entendida. Quer isto dizer que é a experiência vivida que

produz a ideologia e não o contrário. É, portanto, fruto dessa dimensão subjectiva, real e

83 Tal crescimento liga-se aos programas de recuperação económica, na sequência do Plano Marshall,

num contexto em a luta de classes do operariado continuava a ser associada à ameaça do espectro

comunista.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

99

imaginária simultaneamente, que a ideologia pode ser tomada como uma fantasia

concreta que organiza as representações e permite que as relações sociais e as vontades

colectivas sejam cimentadas (Therborn, 1980).

As formas de consentimento que emergem das vivências das relações na produção

são, em boa medida, criadas a partir da dimensão informal e de jogo que têm lugar no

dia-a-dia da fábrica. Quando se participa num jogo é necessário, por definição, aceitar as

suas regras e objectivos. As condições em que decorre o jogo no contexto do trabalho

capitalista não se podem explicar apenas por via das relações de produção. Não basta

saber que os operários vêm para o trabalho e que são expropriados pela extracção de

mais-valia. É preciso saber porquê e como o fazem. Ou seja, é preciso saber o que os

leva a aceitar a sua participação num tal sistema e a consentir a situação de exploração

em que se encontram. Os trabalhadores criam ou aceitam certas regras informais nas

relações de trabalho, apostam nelas e estabelecem para si mesmos certos objectivos

cobertos ou tolerados pelas regras vigentes. Por isso as defendem sempre que elas são

ameaçadas pela gestão. Segundo Burawoy, o jogo informal não existe apenas enquanto

luta organizada em disputa pelo poder nas zonas de incerteza que o processo de trabalho

deixa em aberto (Bernoux, 1985; Crozier, 1966; Crozier e Friedberg, 1977). O jogo não

é necessariamente uma expressão da afirmação das relações informais em oposição à

estratégia de gestão ou sobretudo uma actividade de sabotagem (Homans, 1950; Jermier,

1988; Collinson, 1992). Em geral as estruturas da gestão e os encarregados fabris estão

activamente empenhados na organização e facilitação dos jogos no trabalho, tanto mais

quanto eles interferem nos outputs da produtividade. A tese de Burawoy da teoria dos

jogos sustenta que os operários se envolvem numa luta concorrencial para atingir os

patamares de produtividade, com base no trabalho à peça (making out) e que contribui

para “a conciliação das relações de produção ao coordenarem os interesses dos

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Entre a Fábrica e a Comunidade

100

trabalhadores e da gestão”. Ao aceitarem participar em tal jogo, eles são seduzidos,

como acontece em qualquer jogo, pela ideia de um resultado incerto combinada com a

ideia de um aparente controle racional, visto que essa opção aparece como uma escolha

em detrimento de outras. Embora o grau de controle seja estreitamente circunscrito, os

trabalhadores são impelidos diariamente para a fábrica quando tudo o resto parece

irrevogável. Quem estabelece as regras do jogo em primeiro lugar? Pergunta-se. Isso é

uma questão de luta, responde Burawoy. As práticas de jogo informal inserem-se

historicamente na luta do operariado pela autonomia mínima e pelas condições de

negociação e decorrem sobretudo em situações em que estão garantidos certos limites

salariais mínimos e certas margens de lucro. O jogo representa uma espécie de elo de

ligação entre a racionalidade individual e a racionalidade do sistema capitalista e requer

condições mínimas de autonomia e de incerteza, as quais derivam de o processo de

trabalho conter em si mesmo combinações específicas de força e consentimento.

Para além destes traços genéricos, os regimes de fábrica – quer os despóticos, quer

os hegemónicos –, variam em função de diversos aspectos consoante as características

estruturais e os factores conjunturais e históricos das diferentes sociedades e regiões

onde se inserem. A maior ou menor intervenção estatal, o padrão de proletarização da

força de trabalho, as qualificações, a forma dos processos de trabalho, a tecnologia

empregue, a competitividade entre firmas, a dimensão das empresas e até os contextos e

comunidades residenciais são aspectos a ter em conta neste domínio. Por exemplo, nas

situações “onde os trabalhadores mantêm laços estreitos a formas de economia de

subsistência, vários regimes paternalistas com maior ou menor carácter coercivo podem

emergir para criarem bases adicionais de dependência nos empregos” (Burawoy, 1985:

126). A variedade de dimensões e a complexidade das estruturas organizacionais e

tecnológicas utilizadas nas empresas constitui um factor adicional, também ele de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

101

primordial importância e que interfere directamente com os sistemas de poder que nelas

vigoram.

Nas unidades produtivas de reduzida dimensão, dada a proximidade pessoal entre

os pequenos patrões e os seus empregados, tendem a afirmar-se sistemas de controle

baseados em laços de lealdade e afinidades pessoais, obscurecendo as relações de classe.

Esta situação, que Richard Edwards designou por sistema de controle simples (Edwards,

1979), é aquela que mais claramente condiz com a fase de nascimento e afirmação das

pequenas fábricas, funcionando segundo processos produtivos de tipo artesanal. Nestas

circunstâncias, é fácil prever que os “laços de lealdade se estendam para além da estreita

esfera do trabalho, legitimando as desigualdades de poder na base de uma autoridade

tradicional”. Estaremos, nestes casos, perante uma estratégia patronal de tipo

paternalista, nos termos definidos por David Goss (1991: 77).

O progressivo crescimento e complexidade organizacionais, acarretando um maior

peso das hierarquias intermédias (supervisão) e maiores investimentos técnicos

destinados a assegurar a rentabilidade económica – os sistemas de controle técnico, de

R. Edwards –, são muitas vezes acompanhados de políticas patronais que se traduzem

numa autêntica “obsessão lucrativa”. Quando a isso se junta uma conjuntura instável,

quando a mão-de-obra é particularmente vulnerável (por exemplo, constituída por

mulheres ou jovens recentemente admitidos e pouco qualificados), cria-se uma situação

de falta de alternativas e de forte dependência por parte dos trabalhadores. É, pois,

provável que estes factores favoreçam uma aquiescência que se traduz na sujeição ao

poder arbitrário sustentado, acima de tudo, pelo medo das sanções económicas. Esta é

uma forma de hiper-exploração que Goss designa por sweating (Goss, 1991: 84).

Finalmente, nas empresas de maiores dimensões, mais bem apetrechadas, mais

modernizadas, mais lucrativas e que dedicam maior atenção às estruturas internas, à

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Entre a Fábrica e a Comunidade

102

gestão planificada a longo prazo, etc. – naquelas que, na terminologia de Edwards,

correspondem aos sistemas de controle burocrático –, será de esperar encontrar relações

de poder que, além de combinarem aspectos dos dois modelos anteriores (paternalismo e

autoritarismo), reflictam também, em algum grau, práticas de negociação informal com

os operários. Assim, as atitudes coercivas e o sistema de incentivos postos em marcha

pelos proprietários podem aliar-se à presença de laços de lealdade entre dirigentes e

trabalhadores, operando nestes um sentido pragmático de “lidar com a situação”,

levando-os a evitar posturas conflituantes devido à construção de uma imagem do patrão

como “um tipo fixe”, embora essa imagem não transponha os muros da empresa para o

exterior. Uma realidade deste tipo pode ser designada por um modelo de autocracia

benevolente (Goss, 1991: 79).

Muito embora muitos destes fenómenos persistam hoje em muitas sociedades e

regiões do globo, as tendências mais recentes de globalização da economia vieram

conferir-lhe novos contornos. As teses da homogeneização do operariado há muito que

foram postas em causa, face às profundas alterações ocorridas nos mercados de trabalho

das sociedades do mundo inteiro. Lado a lado com a crescente heterogeneidade classista

da força de trabalho, o movimento operário tem vindo a enfraquecer (em especial na

Europa) e assiste-se à pulverização ou des-standardização (Beck, 1992: 140 e ss.) das

formas tradicionais de trabalho e de acção sindical nos principais sectores produtivos

(Hyman, 1975, 1988a, 1988b, 1992, 1994 e 1998; Hyman e Ferner, 1994; Regini, 1994;

Ruysseveldt e Visser, 1996; Costa, 1998; Ferner e Hyman, 1998). A expansão de

problemas como o desemprego de longa duração, a precarização da relação salarial e a

perda de peso do trabalho industrial – questões que remetem para a crise do fordismo e

do Estado-Providência (Offe, 1984; Esping-Andersen, 1996, Graham, 1991) ou o que

alguns designaram como “o fim do capitalismo organizado” (Offe, 1985a; Lash e Urry,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

103

1987) – espelham o período de grande instabilidade que as sociedades ocidentais têm

vindo a experimentar, principalmente nas últimas duas décadas. A des-standardização

ou desagregação dos tradicionais processos de trabalho e o anunciado fim do

sindicalismo solidarista (Hyman, 1994: 156) emergem num panorama de tendências

mais ou menos inquietantes: a fragmentação e descentralização do processo produtivo, a

flexibilidade dos horários, o esbatimento de fronteiras entre trabalho e não-trabalho, a

pluralidade e flexibilidade de situações, o subemprego, etc., tendências estas que vêm

dando lugar a um novo modelo caracterizado pelo aumento da individualização das

relações sociais, da insegurança e do risco em diferentes níveis da vida social (Beck,

1992: 140-149).

Se, globalmente, a economia mundial assentou desde sempre em múltiplos

desequilíbrios entre centros e periferias, quando observada à escala nacional ou local, o

“centro” e a “periferia” justapõem-se, fazendo emergir situações chocantes e

discrepâncias sociais insustentáveis (do ponto de vista humano), de que são exemplo

alguns países do oriente onde as mais modernas tecnologias convivem lado a lado com

relações laborais próximas da escravatura. Daí que os processos de expansão do

capitalismo e da indústria devam ser entendidos num sentido polimórfico, isto é, embora

as regras do jogo possam ser semelhantes em termos sistémicos, a interacção a que os

mecanismos de mercado dão lugar quando se implantam num dado contexto espacial e

cultural adquirem as mais diversas configurações (Boyer e Hollingsworth, 1997).

Mesmo a elevação positiva dos indicadores económicos e a promoção de oportunidades

para certos segmentos sociais escondem, por vezes, os efeitos perversos sobre outros

segmentos, arrastados para situações de maior precarização e exclusão, como tem

acontecido, nomeadamente, em economias da União Europeia consideradas das mais

dinâmicas, como é, por exemplo, o caso da Irlanda (O‟Hearn, 1998). E o problema é que

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Entre a Fábrica e a Comunidade

104

esses efeitos contrários parecem ser interdependentes uns dos outros, já que as diferentes

instituições, dinâmicas de desenvolvimento e formas de poder se tornaram

estruturalmente interligadas à escala global (Hirst e Thompson, 1996), fazendo com que

as assimetrias e clivagens sociais se combinem dialecticamente, através de constelações

de poder hegemónico e horizontes de possibilidade emancipatória, ambos vinculados às

características estruturais do capitalismo mundial (Santos, 1995: 455).

Estes fenómenos parecem vir reforçar as tendências já detectadas nos anos oitenta

– no quadro das orientações neoliberais personificadas pelo tatcherismo e o reganismo –

que levaram Burawoy a falar de uma nova forma de despotismo: “o novo despotismo é

fundado na base do regime hegemónico que veio substituir. É de facto um despotismo

hegemónico. Os interesses do capital e do trabalho continuam a ser coordenados, mas

onde o trabalho costumava ter concessões garantidas na base da expansão do lucro,

agora faz concessões na base da lucratividade relativa de um capitalista em relação a

outro” (Burawoy, 1985: 150).

É a esta luz que os estudos centrados na mudança e na natureza dos diferentes

regimes de acumulação ou formas de controle das relações laborais, não podem deixar

de contemplar a resistência criativa dos processos e práticas sociais que lhes dão forma

e os interesses contraditórios dos actores que neles participam. Das suas acções, sejam

elas adaptativas ou de resistência, ressaltam dinâmicas de poder que combinam

assimetricamente lógicas de constrangimento e de acessibilidade. Pode dizer-se que tais

lógicas transportam diferentes antagonismos, os quais podem ser simultaneamente

vinculados a diferentes linhas de estruturação espacial – espaços estruturais – como

sejam, o espaço produtivo, o espaço doméstico e o espaço da comunidade (Santos, 1995:

420-422). Uma abordagem dialéctica dos regimes de acumulação terá de ter presente

não apenas a reversibilidade dos determinantes causais (Resnick e Wolff, 1989) e os

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Entre a Fábrica e a Comunidade

105

múltiplos vectores espacio-temporais neles inscritos – a produção e o consumo, o

mercado e a comunidade, o local e o global, a estrutura e a conjuntura, o presente e o

passado –, mas também a importância dos processos sociais e da força organizacional e

política da acção colectiva. Ao estudarmos tais processos é fundamental tentar

compreender de que forma se compaginam e conjugam os diferentes tipos de clivagens e

lógicas de identificação que lhes subjazem e qual o grau de centralidade aí ocupada pela

esfera produtiva.

1.4 - Lazer, cultura popular e controle recreativo

Se o trabalho e os regimes fabris constituem uma dimensão central para o estudo

do operariado, das suas práticas e identidades, também a esfera do lazer, das actividades

festivas e do consumo se afirmou como um terreno incontornável, quer enquanto

elemento de ligação entre o espaço produtivo e o espaço da comunidade, quer enquanto

dimensão através da qual se estruturam múltiplas relações sociais. E estas podem ir da

colectividade de fábrica aos movimentos de luta e experiências associativas, da

identidade local à identidade nacional. Assim, através da análise das actividades

recreativas dos trabalhadores será possível compreender aspectos decisivos dos

processos de acção colectiva e das formas de adaptação e de resistência de que se

revestem os comportamentos e subjectividades – classistas e não-classistas – fora e

dentro da esfera produtiva.

1.4.1- Lazer e classes sociais

O “lazer” e o “ócio” constituem uma actividade da vida social durante séculos

circunscrita às classes dominantes e em particular à aristocracia. Sebastian de Grazia

entende o lazer, não como uma actividade social mas, acima de tudo, como um “estado

de alma”, uma capacidade transcendental, contemplativa e criativa do espírito humano,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

106

própria do mundo dos pensadores, artistas e músicos que se distinguem pela constante

elevação da mente (de Grazia, 1962: 408 e ss.).

Porém, se esta concepção clássica parece adequar-se ao estudo das “classes

ociosas” (Veblen, 1970) das sociedades pré-industriais, pode dizer-se que, com o triunfo

da industrialização, o lazer sofreu profundas alterações. A modernidade reorientou-o no

sentido de uma actividade fugaz e estreitamente ligada ao campo laboral. Importa neste

caso captar o papel que desempenharam as actividades de tempo livre dos assalariados

industriais na dinâmica cultural que acompanhou os processos de estruturação da classe

operária, contrapondo as tendências reguladoras e homogeneizantes às práticas culturais

de resistência enraizadas no quotidiano popular. Thompson (1987) e outros

investigadores ingleses (Jones, 1977, 1986 e 1989; Joyce, 1991; Davies, 1992)

chamaram a atenção para a importância das relações quotidianas da vida extra-trabalho

na afirmação de uma praxis cultural que se foi orientando para o convívio de rua, para o

pub, a taberna, o jogo e para um conjunto de formas de diversão e entretenimento

popular (Davies, 1992). Como adiante irei referir, foi em boa medida devido às

potencialidades de rebeldia dessas atmosferas que os estados fascistas e autoritários

deram tanta atenção ao “controle recreativo” do operariado.

É neste quadro que se torna necessário adoptar um entendimento menos selectivo

do conceito de “lazer” e orientá-lo para a análise das práticas de tempo livre e das

expressões da “cultura popular” junto das classes trabalhadoras. A concepção de Chris

Rojek insere-se nessa perspectiva ao considerar que as culturas populares têm dado

provas de resistência à assimilação da ideologia da classe média, comprovando que só

em parte o capitalismo conseguiu civilizar as ocupações de lazer do mundo operário

(Rojek, 1985). Com efeito, algumas “vitórias” das classes populares no campo cultural

podem ser assinaladas nomeadamente quando certas práticas de lazer oriundas da cultura

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Entre a Fábrica e a Comunidade

107

popular dão entrada nos consumos das classes médias como, por exemplo, a taberna e

alguns desportos e modalidades de jogo que se afastam das características apontadas ao

lazer das elites – visto que nestas, as actividades lúdicas são bastante mais marcadas

pelas dimensões do repouso, da reflexão e da contemplação (Rosenzweig, 1983).

Parker e D‟Epiney definem o lazer por referência ao campo do trabalho, ou seja, o

lazer é o “tempo livre das obrigações quer para si próprio quer para outros – o tempo

para realizar o prazer de cada um” (Parker, 1983: 10). Na classe média-alta predomina

um modelo de extensão, isto é, uma grande proximidade e mistura entre lazer e trabalho,

uma vez que muitas das actividades de tempos livres são colocadas ao serviço da

carreira, no sentido de antecipar e modelar, sempre que possível, o futuro (D‟Epinay,

1982: 217). No caso dos trabalhadores manuais, em contrapartida, dominam os violentos

ritmos de produtividade e a alienação é mais comum. Aí, verifica-se um modelo de

oposição, isto é, a prática do lazer é, ao invés, claramente distinta e até oposta à esfera

do trabalho, traduzindo-se numa ruptura ou numa fuga aos constrangimentos laborais,

como refere Parker (1983). Esta orientação instrumental relativamente ao vínculo

laboral, embora reflectindo a necessidade de resguardar a esfera familiar e de lazer face

ao campo laboral (Goldthorpe, 1969), anuncia ao mesmo tempo uma clara

interdependência entre os dois domínios. Mas é importante reconhecer que nos tempos

mais recentes se vem assistindo a uma crescente autonomização do campo do lazer e do

tempo livre, que tende a criar a sua própria lógica em relação ao trabalho (D‟ Epiney,

1991: 170; Pronovost, 1998).

Muito embora continuem a surgir concepções diversas acerca da relação trabalho/

lazer – umas que acentuam o lazer como compensação ou oposição ao trabalho, outras

que põem a tónica no prolongamento entre os dois campos; umas pessimistas, que se

centram na desumanização do trabalho e na alienação, outras que salientam as vantagens

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Entre a Fábrica e a Comunidade

108

do acréscimo de tempos livres proporcionado pelas novas tecnologias e modalidades

flexíveis de trabalho; umas sublinhando a mudança de valores e as suas consequências

em ambas as esferas, outras advogando a crescente ausência de relação entre elas –, pode

dizer-se, seguindo Pronovost (1998), que as tendências mais recentes se caracterizam

sobretudo pela diversidade de situações e pela mutação das orientações e subjectividades

face ao trabalho e ao lazer.

O problema da separação entre trabalho e lazer não se coaduna, porém, com

distinções simplistas. Diversas situações ambíguas têm sido mencionadas por autores

como de Certeau (1984) e du Gay (1996). Para o primeiro, os procedimentos tácticos de

consumo prendem-se com trajectórias erráticas cuja lógica muitas vezes transgride as

tradicionais demarcações entre dimensões como o tempo e o espaço, ou entre trabalho,

consumo e lazer. As práticas de consumo podem insinuar-se nas mais diversas esferas,

incluindo as do trabalho, complexificando a separação entre trabalho e não-trabalho. De

Certeau também salienta a importância que certas técnicas de consumo tácito assumem

na esfera económica. Refere o exemplo da secretária que escreve uma carta de amor

durante as horas de serviço ou do operário que aproveita o tempo e os instrumentos de

trabalho para fabricar um objecto pessoal, tomando o tempo da empresa como o seu

próprio tempo, ou seja, estas „tácticas‟ – que de Certeau ilustra com o exemplo da

„peruca‟ (La perruque), para acentuar a ideia de „mascarada‟ ou „farsa‟ a que os

indivíduos se dedicam no quotidiano84 – não obedecem à lógica do espaço laboral, antes

atravessam as suas habituais fronteiras de separação: “a linha divisória entre trabalho e

lazer deixa de ter lugar. Estas duas áreas de actividade seguem juntas. Repetem-se e

reforçam-se uma à outra” (de Certeau, 1984: 29). É neste sentido que se pode dizer que a

lógica por que se rege o consumo se diferencia da racionalidade da produção e, mais do

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Entre a Fábrica e a Comunidade

109

que as divisões espaciais, é a percepção temporal que está em causa: as linhas

multiformes, fragmentárias e “erráticas” com que os consumidores traçam percursos

insinuantes ou invisíveis mostram que, enquanto as estratégias produtivas dependem da

erosão do tempo através da imposição de uma ideia de lugar (um espaço circunscrito

onde impera uma dada lógica de poder), a dimensão das tácticas do consumidor recusa o

estabelecimento de um locus específico. O espaço da táctica é o espaço do Outro (du

Gay, 1996: 90), o que, uma vez mais, nos remete para a questão da identidade, atrás

discutida. Ou seja, a ambiguidade que envolve a articulação entre produção e consumo

liga-se ao problema da identidade na medida em que do cruzamento entre ambos

emergem, segundo Ernesto Laclau, “semi-identidades relacionais”, envolvidas em

“relações instáveis de imbricação” (Laclau, 1990: 24).

Para além da dimensão espacial, é igualmente fundamental a questão da percepção

do tempo: por exemplo a ambiguidade que essa percepção transporta, seja quando

introduz no âmbito familiar uma orientação importada da actividade laboral, seja

quando, ao contrário, inscreve no espaço produtivo tempos de evasão e tácticas de fuga

aos constrangimentos organizacionais e laborais85. Neste sentido, poder-se-á contrapor

ao mito do “consumidor passivo” o mito do operário desqualificado e totalmente

determinado: “o mundo rotinizado e empobrecido do trabalho assalariado torna-se o

„outro‟ contra o qual „a tese dos prazeres do consumo‟ constitui a sua própria

identidade” (du Gay, 1996: 88).

A articulação entre estas duas esferas da vida social – trabalho/lazer – invoca ainda

uma série de outras dimensões e linhas de abordagem: a diferente orientação para as

actividades de lazer consoante a evolução do ciclo de vida, a flexibilidade de horários, a

84 Estes aspectos foram, como se sabe, inicialmente tratados pela correntes do interaccionismo simbólico

(Mead, 1934; Goffman, 1959). 85 Tratarei esta questão no Capítulo 8, com base na metodologia da observação participante.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

110

expansão e significado económico das indústrias ligadas ao lazer (apesar de não

anularem as clássicas distinções entre categorias e classes sociais em face das diferentes

oportunidades e modelos de lazer que se lhes oferecem) assumem-se como aspectos que

põem em evidencia a mudança de atitudes e de valores perante a esfera do lazer e a sua

relação com o emprego, e subscrevem as múltiplas e renovadas diferenciações sociais

que podem ser identificadas no campo das actividades de lazer (Pronovost, 1998: 110-

121).

Para autores como Elias e Dunning (1992), o lazer corresponde ao domínio das

actividades miméticas ou de jogo86 (onde os indivíduos podem participar, quer como

espectadores, quer como intervenientes, exceptuando-se o caso de obrigação

profissional), isto é, àqueles contextos onde estão ausentes ou fortemente atenuadas as

restrições e o constrangimento, onde as emoções e a excitação se combinam com “uma

agradável sensação de segurança e onde o risco e a violência são reduzidos ao mínimo”

(Elias e Dunning, 1992: 108). A progressiva institucionalização dessas actividades – em

que o desporto de massas é talvez o exemplo mais óbvio – transformou-as em formas de

excitação controlada que funcionam como catarse capaz de compensar os

constrangimentos impostos sobre as rotinas da vida quotidiana. O lazer mimético serviria

assim de válvula de escape para as energias transgressivas ou contestatárias das classes

baixas, cujos efeitos se repercutem tanto no domínio do simbólico e das práticas

quotidianas como na acção política. As experiências dos estados autoritários dos anos 20

e 30, pela atenção que prestaram à organização disciplinada do lazer para os

trabalhadores (de Grazia, 1981) e em particular através da institucionalização e

86 Estes autores consideram as seguintes actividades, abrangidas pelo espectro do tempo livre: 1) as

relações familiares e os trabalhos particulares; 2) o repouso; 3) as actividades biológicas; 4) as relações de

sociabilidade [obrigações “sociais”]; e 5) as actividades miméticas ou de jogo. Só estas últimas são

actividades de lazer, onde se incluem iniciativas como a ida ao teatro ou a um concerto, às corridas ou ao

cinema, à caça, à pesca, jogar bridge, fazer montanhismo, apostar, dançar ou ver televisão (Elias e

Dunning, 1992: 110).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

111

massificação do desporto, parecem ilustrar esta orientação de forma particularmente

nítida, como mais abaixo mostrarei (ponto 1.4.3).

Uma concepção que segue de perto a visão que acabo de mencionar é a de Chris

Rojek, segundo o qual as relações de lazer se inscrevem numa englobante economia do

prazer cujo significado histórico original foi no sentido de facilitar a vigilância e o

controle das populações (Rojek, 1985: 177). Para além disso, convém não esquecer o

papel do lazer na estruturação das classes sociais, quer na análise histórica da

emergência da classe operária, como vimos (Thompson, 1987), quer, por exemplo, no

estudo das práticas e da acção cultural das novas classes médias ou dos novos

movimentos sociais (Offe, 1985b; Dawson, 1986 e 1988; Maheu, 1995). A organização

social do lazer, além de ser mediada pelas desigualdades de classe, sexo, etnia, etc.,

incorpora tanto a acção dos mecanismos de mercado como a dominação estatal,

mobilizando estes diferentes dispositivos na absorção de parcelas simbólica e

materialmente significativas das culturas tradicionais (Dawson, 1991). O significado

desse processo é que, nas nossas sociedades, o lazer não pode desligar-se das estruturas

de poder, das dinâmicas do capitalismo e da acção do Estado (Clarke e Critcher, 1985;

Bishop e Hoggett, 1986). Neste sentido, pode dizer-se que a acção de regulação dirigida

ao campo do lazer se inscreve no fenómeno mais geral de reestruturação e massificação

da cultura.

1.4.2 - Cultura popular e cultura de massas

Se quisermos remontar às raízes históricas da cultura popular teremos de referir-

nos à emergência da nação e, portanto, à ideia de povo. Como é sabido, só após a

Revolução Francesa e com o nascimento do Estado burguês se assistiu à entrada em cena

das massas populares enquanto actor social e histórico (Burke, 1991: 35; Hobsbawm,

1992: 76; Tilly et al., 1975; Tilly, 1996b). Mas, ao mesmo tempo que se impunham os

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Entre a Fábrica e a Comunidade

112

códigos da cultura burguesa sobre as novas classes médias em ascensão, cavava-se o

fosso cultural entre as camadas intermédias e o “povo”87. Tal processo viria a favorecer

a institucionalização de uma definição legítima e reconhecida de “cultura popular”88 da

qual beneficiou a estratégia estatal de “localizar, conter e incorporar as „multidões

perigosas‟” (Silva, 1994: 105). Mas, paradoxalmente, e à medida que essa clivagem

ficava mais clara – principalmente ao longo do século XIX, com o crescimento das

cidades e a consequente expulsão das classes baixas dos centros urbanos para a periferia

–, algumas figuras oriundas do mundo burguês ou da velha aristocracia estabeleciam

uma relação de certo fascínio pelas expressões e costumes populares (Burke, 1992: 302-

305). Aí emergiram alguns dos novos estilos de vida descomprometidos e de inspiração

aristocrática – práticas assumidamente marginais como a vida “boémia” ou os “flâneurs”

de Paris, o “dandyismo” na Inglaterra, etc. – que se tornaram expressões de fascínio e

atracção pela diferença, instituindo novas modalidades de “gosto transgressivo”, dando

origem a formas de contracultura personificadas por artistas e “intelectuais” como

Balzac ou Baudelaire que se afirmavam em ruptura com o mundo civilizado e burguês

(Featherstone, 1992). A remissão para esses ambientes permite-me, desde logo, salientar

as ambiguidades que acompanharam o processo de “normalização” dos hábitos

populares.

87 O afastamento gradual das classes dirigentes no contacto com a “pequena tradição” desenvolveu-se

sobretudo ao longo dos séculos XVII e XVIII. Segundo Peter Burke, por volta de 1500 “a cultura popular

era uma cultura de todos; Uma segunda cultura para os mais instruídos e a única para o resto” (Burke,

1991: 376). Naquela altura as classes superiores depreciavam o homem comum, mas compartilhavam a

sua cultura. “No entanto, em 1800 os seus descendentes tinham deixado de participar na cultura popular

de forma espontânea, mas estavam no processo de descobri-la como algo de exótico e por isso

interessante” (Ibidem: 396). 88 A ideia tradicional de “cultura popular” é coincidente com a da “comunidade harmoniosa” da

“pequena tradição” das sociedades pré-industriais, a que me referi na primeira parte deste capítulo. Mas

ao lado dessa visão bucólica e da ideia homogeneizante que subjaz à definição de “pequena tradição”

dada por Redfield, importa ter em conta a realidade heterogénea da cultura popular da Europa moderna.

Como assinalou António Gramsci, “o povo não é uma unidade culturalmente homogénea, mas antes está

estruturado de um modo muito complexo” (in Burke, 1991: 69).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

113

Os rituais recreativos das culturas populares tradicionais foram, inicialmente, o

principal objecto de disputa cultural sobre o qual assentou o processo de

institucionalização do lazer. Além dos conhecidas razões político-sociais que levaram as

classes populares a ser reconhecidas como um importante actor da história da

modernidade, a afirmação da cultura popular ergueu-se sobre uma fissura ideológica

fundamental: de um lado, a “expressividade” do folk, que se reflecte na irreverência do

riso carnavalesco, segundo a expressão de Bakhtin (1984)89; do outro lado, a

“objectividade” mecanicista da cultura oficial, que se reflecte na própria invenção do

folklore (cujo significado na língua inglesa é o estudo do povo, dos seus costumes e

tradições) e se orienta, acima de tudo, para a racionalização e regulação social. Nos

países europeus, a noção de povo tende a ser usada num sentido exclusivo (Burke, 1992),

ou seja, ela evoca demarcação, quer do povo face às classes dominantes, quer da parte

destas face ao povo, considerado “ignorante”, “sujo”, “desordeiro”, etc. O povo é, assim,

visto como envolvendo uma variedade de alianças em mutação, cujo traço comum é a

sua permanente ausência de privilégios e a sua privação comparativa de recursos

económicos e políticos.

A pressão reguladora procura controlar o planeamento da acção social e cultural

mais vasta e readaptar as suas manifestações espontâneas em subculturas acomodadas,

através dos inúmeros mecanismos de poder disciplinar que se difundem pela sociedade

no seu conjunto, como mostrou Foucault (1977 e 1980). Na linha de Gramsci (1985),

89 A cultura do “riso carnavalesco”, das celebrações populares da época renascentista, foi tomada por

Bakhtin como a imagem subversiva que se opõe à cultura oficial. Em Bakhtin, o carnaval e o “corpo

grotesco” simbolizam a subversão popular face à cultura dominante e à sua rigidez que procura, através do

folclore, criar o “duplo disciplinado” do folk. Numa crítica ao regime soviético, à sua exaltação do “corpo

funcional” e à forma displinada da cultura dominante, que reprime a paródia, a blasfémia e o obsceno,

Bakhtin opõe a imagem apoteótica e desregrada do corpo grotesco, que se assume na comida gordurenta,

nos contornos disformes, na bebida intoxicante e na promiscuidade sexual. O “corpo baixo” da impureza,

da desproporção, está em oposição ao “corpo clássico”, que é estético, bonito, simétrico. Para este autor, a

cultura do carnavalesco invoca, por um lado, uma visão do mundo que remete para a possibilidade de um

segundo nascimento a partir do espírito do riso e, por outro lado, enaltece a celebração festiva e a

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Entre a Fábrica e a Comunidade

114

podemos afirmar que o lazer se tornou um campo privilegiado de luta pela hegemonia

cultural, moral e política, cujo êxito passou pela acomodação dos valores e hábitos de

vida das classes subordinadas nos moldes da própria cultura dominante. A cultura

hegemónica não constitui uma entidade ou força exterior. Ela é hegemónica na medida

em que penetra as culturas dos grupos subordinados, remodelando-as, pirateando-as e

associando os seus membros aos valores e ideologias dominantes na sociedade.

Contudo, é preciso sublinhar que, no terreno cultural do quotidiano popular e na

perspectiva aqui adoptada, a cultura é actividade e é conflitualidade. Nela se recriam e se

escondem permanentes oposições, nela se justapõem e confrontam dialecticamente os

elementos “espontâneos” e os elementos “racionais” adaptados à cultura hegemónica

(Heron, 1991). Os constrangimentos e as oportunidades, o conformismo e a criatividade,

são dimensões inseparáveis e inscritas no mesmo processo de estruturação cultural.

Poder-se-á então aplicar este entendimento dinâmico da actividade cultural às

questões do consumo e da cultura de massas? Sem dúvida que as formas modernas de

expressão cultural de massas continuam a revelar as características que lhe foram

apontadas pela Escola de Frankfurt, nomeadamente nas expressões artísticas de massas

como o cinema, a televisão, a música, etc. A sua divulgação é comandada pelas

indústrias da cultura, encorajadoras da passividade, da obediência e do autocontrole dos

consumidores, segundo uma orientação unidimensional (Marcuse, 1968) que se reflecte

nas diferentes instâncias que todo esse processo envolve: a produção, a recepção, os

agentes intermediários e o próprio “texto” (Abercrombie et al., 1990: 200). Deste modo,

como vêm assinalando vários sociólogos da cultura, as consequências da tendência

massificadora traduzem-se na generalização de formas de desclassificação cultural, bem

como na esteticização da vida e do consumo, aspectos estes que tendem a produzir nos

morfologia do “extra-ordinário” da cultura que corrói as instituições dominantes (Bakhtin, 1984;

Lachmann, 1988).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

115

consumidores uma perda de sentido da história e uma descontextualização e disrupção

do tempo em perpétuos “fragmentos de presente” (Featherstone, 1992; Baudrillard, 1983

e 1991; Jameson, 1992). Uma outra formulação que me parece bem pertinente e actual

sobre as efeitos da massificação do consumo está bem expressa nas palavras de

Castoriadis (1998): ilustrando com o exemplo das crianças filhas da classe média, que se

“aborrecem como um rato morto” com as futilidades, os brinquedos e a diversidade de

gadgets a que têm acesso, para de seguida os abandonarem, isto é, olhando a

devastadora e imparável tendência para rapidamente se passar de uma inutilidade para

outra, o referido autor interpreta isso como “uma fuga desvairada perante a morte e a

mortalidade, as quais sabemos por outras vias que foram exiladas da vida

contemporânea. Ignora-se a morte, não há luto, nem público nem ritual. É isto que essa

acumulação de gadgets, que essa distracção universal procuram também esconder; aliás,

como sabemos pelas nevroses, elas estão, ainda neste caso, a representar a própria morte,

destilada a gotas e cambiada em pequenos trocos da vida quotidiana. Morte na distracção

ao olhar para um ecrã onde sucedem coisas que não se vivem e que nunca se poderão

viver” (Castoriadis, 1998: 154).

A carga negativista que encerra a noção de cultura de massas dificilmente lhe

permite dar visibilidade às formas transgressivas de apropriação da cultura dominante ou

às práticas de sentido criativo no domínio das culturas subordinadas. No seu sentido

clássico, o conceito – “cultura de massas” – é centrado na capacidade estratégica das

elites produtoras da “alta cultura” e nas “indústrias da cultura” cujo poder uniformizante

conduz os consumidores a apropriarem essas expressões passivamente e em modalidades

menores, deturpadas e retardadas (Santos, 1988). A ideia do consumidor passivo e

completamente manipulado parece, efectivamente, limitativa para os propósitos aqui em

causa. As análises de Bourdieu (1979), por exemplo, apesar de toda a atenção que

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Entre a Fábrica e a Comunidade

116

depositam na esfera do consumo – e do seu inegável contributo para a compreensão do

seu papel na produção e reprodução da diferenciação social nas sociedades de hoje –,

não conseguem dar visibilidade às formas de consumo ou às práticas culturais de sentido

transgressivo, eliminando a sua capacidade de contrariar as divisões sociais existentes e

a possibilidade dos grupos subordinados produzirem formas autónomas de expressão

cultural. Tal perspectiva tende a tomar os processos de estruturação das culturas

dominadas como um “pálido reflexo das culturas dominantes” (retomando aqui a

expressão de Maria de Lourdes Lima dos Santos, 1988).

É, pois, necessário dar atenção à dimensão irreverente e de resistência, contida na

cultura popular. Mesmo admitindo que o campo do consumo de massas esteja

subordinado à lógica produtiva, como sustentam os críticos da cultura de massas, se a

produção saturasse completamente o consumo, não faria sentido recorrer a termos como

o de “manipulação” (Miller, 1987). Se há algo que requer manipulação é porque de um

modo ou de outro tende a resistir ou a escapar a essa manipulação e logo, não é, à

partida, uma instância passiva. Na leitura de Foucault90, o poder é exercido onde existe

alguma liberdade e possibilidade de lhe resistir. Ou seja, para se ser bem sucedido na

obtenção do acordo ou da obediência é desejável ter-se conhecimento prévio dos

motivos por que se regem aqueles sobre os quais o poder pretende exercer-se (Foucault,

1982).

A concepção originária de de Certeau (1984) abarca na mesma noção de cultura

dinâmica e actuante, tanto a cultura popular, como a cultura de massas – ultrapassando a

90 O conceito de poder disciplinar de Foucault refere-se a um poder de características difusas, um poder

que não tem um centro específico, que penetra na sociedade através de canais mais ou menos invisíveis,

mais ou menos subtis, num sistema capilar que tende a constituir os seus próprios alvos em veículos

transmissores. Pode dizer-se que, num certo sentido, se trata de um poder que articula dialecticamente o

controle e a resistência – onde o top-down e o bottom-up se cruzam e se complementam – apoiando-se

sobretudo na racionalidade da ciência moderna e tendo em vista a docilização e normalização social. Na

visão foucaultiana, o poder emana de relações sociais que tendem a impor um padrão disciplinar,

inscrevendo-se na própria constituição do sujeito que sofre/ incorpora os seus efeitos e ao mesmo tempo

os reproduz e os exerce (Foucault, 1980: 108).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

117

clássica distinção entre alta cultura, cultura popular e cultura de massas – e permite que

os saberes chamados “menores”, os saberes não articuláveis em discurso, dêem lugar a

procedimentos em que os praticantes podem encontrar formas de organizar novos

espaços e linguagens e produzir rupturas transgressivas através de tácticas que procuram

transformar os acontecimentos em ocasiões (de Certeau, 1984). Para John Fiske, um

autor que, a meu ver, analisa a cultura de massas acentuando excessivamente a sua

vertente conflitual, a cultura é um processo constante de produção de significados que se

inscrevem nas diferentes experiências sociais e que interferem necessariamente nas

respectivas identidades sociais das pessoas envolvidas. Desta forma, os recursos da

cultura dominante (televisão, discos, vestuário, jogos de video, linguagem) contêm

linhas de força que são hegemónicas e se orientam para a defesa do status quo mas, por

outro lado, o poder hegemónico transporta ao mesmo tempo “linhas de força que são

apropriadas e activadas diferencialmente por pessoas diferencialmente distribuídas

dentro do sistema social” (Fiske, 1989: 2). É certo que as capacidades de “rebeldia

simbólico-interpretativa” a que se refere John Fiske são sobretudo observadas entre as

minorias étnicas e os grupos segregados da sociedade americana. Mas a sua abordagem

pode também aplicar-se a contextos mais vinculadas à “pequena tradição”, onde

germinam subjectividades ambíguas, situadas entre “contingências globais” e

“determinismos locais” capazes de resistir aos “monopólios da interpretação” através da

condensação de costumes e experiências do quotidiano (Santos, 1994: 96-97). Tal não

significa, evidentemente, considerar tais contextos imunes aos efeitos uniformizantes da

cultura de massas, mas pressupor que esses efeitos poderão, neste caso, adquirir mais

facilmente contornos de resistência simbólica ao combinarem-se com as identidades de

base local.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

118

O que é desejável sublinhar, no quadro da presente reflexão, é a oposição entre a

procura de homogeneidade e estabilidade, por parte da cultura dominante, e a

heterogeneidade e diversidade de formas com que a cultura dos grupos dominados

permanentemente se reformula e resguarda, conforme sustentam diversos analistas desta

temática (Hall, 1981; de Certeau, 1984; Jameson, 1992; Hall e du Gay, 1996; Fiske,

1989 e 1993). Nas suas características híbridas a cultura popular configura a identidade

dos grupos que, de um modo ou de outro, se indignam com a sua condição de

subordinados (Fiske, 1989, de Lauwe, 1970), isto é, ela não só transporta os traços da

sua diferença como revela as marcas da sua própria exclusão pela comunidade

hegemónica. A cultura popular “conta as histórias que a ideologia hegemónica procura

apagar” (Schirato, 1993: 283). Uma vez mais, a concepção de de Certeau é interessante

a este respeito. As tácticas quotidianas dos consumidores poderão constituir novas

potencialidades para fazer face às estratégias de controle disciplinar das instituições do

poder hegemónico ao criarem formas mais ou menos subtis de lidar com as estruturas e

com os poderes que delas emanam sob a forma de práticas – tais como conversar,

caminhar, ler, ludibriar formalidades – que se insinuam fragmentariamente em espaços

diversificados, imprimindo-lhes uma lógica transgressiva (de Certeau, 1984; Dirlik,

1987; Frow, 1991; Thrift, 1996). Pode, portanto, dizer-se – parafraseando de Certeau –

que, enquanto a cultura dominante actua como um exército de ocupação, a cultura

popular resiste como um exército de guerrilha, através de comportamentos tácticos de

evasão ou de resistência.

É neste sentido dinâmico que tomo aqui a cultura popular, realçando o seu papel

activo e o seu carácter dúctil, ou seja, a sua capacidade de combinar as dimensões

adaptativa e transgressiva inscritas nas práticas e formas de expressão cultural dos

grupos subordinados. O próprio processo de subordinação que presidiu à emergência da

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Entre a Fábrica e a Comunidade

119

classe operária nas sociedades industriais liga-se directamente a esta discussão em torno

da cultura popular, tendo em conta que esta – como vimos através das análises de E. P.

Thompson – foi profundamente marcada pelos contextos de industrialização e pela

chamada cultura operária. Dito de outro modo, a capacidade de mobilização colectiva e

a força social e política dos movimentos sindicais do século XIX e princípios do século

XX, revelou desde logo esta dupla vertente, ou seja, a consciência de subordinação

vivida na fábrica e a clivagem de classe aí estruturada só adquiriu a sua verdadeira

expressão na medida em que a identidade operária se assumiu também enquanto

contracultura. Contracultura essa que se estruturou não só no espaço produtivo mas

simultaneamente no espaço doméstico e comunitário – as relações de vizinhança, os

laços de afectividade, o convívio informal de rua, o jogo, a taberna, etc. – fazendo

germinar sentimentos de exclusão, de exploração e de revolta e ao mesmo tempo laços

de solidariedade colectiva (Davies, 1992; de Lauwe, 1970).

Sem dúvida que tais experiências tiveram uma importante incidência nos

processos de dinamização da cultura popular e na alteração das práticas de lazer. Se no

período pré-industrial o enquadramento sociocultural do lazer popular se orientou

fundamentalmente pela lógica comunitária da tradição rural, com o reforço dos

processos de implantação industrial e das relações de mercado, a esfera festiva de base

comunitária sofreu um dinamismo assinalável. Foi principalmente nos contextos onde a

troca simbólica e as actividades lúdicas do povo mais se confundiam com a actividade

mercantil que a acção organizada do operariado mais se intensificou e a cultura popular

mais rapidamente ganhou contornos de uma rebeldia politizada e “ameaçadora” para a

ordem burguesa (Burke, 1992).

1.4.3 - O lazer popular e a comunidade nos regimes autoritários

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Entre a Fábrica e a Comunidade

120

Ao salientar o papel da cultura popular e as ambiguidades que ela encerra, procurei

mostrar como ela nos invoca permanentemente as vinculações entre produção e

consumo, entre indústria e comunidade, entre trabalho e lazer91. A importância das

actividades recreativas dos trabalhadores prende-se, portanto, com o seu significado

social, económico, cultural e político. Tal significado foi, como se sabe, bem

interpretado por parte dos regimes autoritários da Europa e por isso lhes concederam

uma atenção especial ao porem em marcha todo um programa de acção institucional e

doutrinária especificamente dirigido ao enquadramento e controle disciplinar das classes

trabalhadoras através do lazer.

No que respeita às políticas de “controle recreativo” (como, de resto, em vários

outros domínios) as experiências do fascismo italiano e do nazismo alemão, bem como

do franquismo e do salazarismo, tiveram óbvias implicações sociais na modelação da

cultura popular (de Grazia, 1981). Se é certo que a preocupação em disciplinar o

operariado foi prioritariamente dirigido à esfera produtiva, a acção repressiva e

doutrinária do poder totalitário estendeu-se, como se sabe, muito para além do campo

laboral. A atenção que o estatismo autoritário dedicou às políticas de lazer e tempos

livres visou fundamentalmente reforçar – através de doutrinas e “terapias sociais”

sofisticadas – a lógica disciplinar já em vigor no interior da fábrica. Tratou-se, assim de

uma estratégia de “taylorização do lazer operário” destinada à obtenção de níveis de

consentimento e aceitação popular, apoiada na dupla lógica do policiamento versus

91 O próprio ambiente fabril desde sempre transportou importantes aspectos lúdicos. Não só as relações

de amizade, o jogo e as piadas entre amigos, as cumplicidades e brincadeiras, conferiram ao humor um

importante papel de resistência e celebração festiva no interior da esfera produtiva (Westwood, 1984;

Collinson, 1992), como as atmosferas sociais que rodearam a fábrica, as actividades recreativas durante

os intervalos, os ambientes dos intervalos, da saída do trabalho ou da taberna e do quiosque ao lado da

fábrica, constituem exemplos que parecem confirmar a afirmação de Stanley Parker, segundo o qual “as

actividades de lazer (...) são o cimento das relações sociais no trabalho e a fábrica da cultura ocupacional”

(in Dawson, 1986: 50).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

121

persuasão e inspirada nas políticas do neopaternalismo industrial oriundas do fascismo

corporativo italiano (de Grazia, 62-66).

O exemplo italiano do dopolavoro (Opera Nazionale Dopolavoro92, criada em

1923 e inicialmente vinculada ao Ministério da Economia Nacional) espelha bem a

forma como os estados fascistas e corporativistas – em Itália como em Portugal na

década seguinte – organizaram as suas políticas sociais sob influência dos climas

reivindicativos e de efervescência revolucionária que os precederam. Pode dizer-se,

seguindo Vitória de Grazia, que foi sob esse pano de fundo que se justificaram tais

políticas, destinadas a servir de “resposta para as complicadas necessidades de um

capitalismo organizado para os trabalhadores se tornarem consumidores disciplinados,

assim como operários diligentes, conduzindo a uma vida familiar „racional‟, e a um uso

do lazer de modo eficiente” (de Grazia, 1981: 2). Procurando fundamentar a sua acção

em bases científicas, o Estado fascista começou por penetrar as próprias estruturas do

sindicalismo autónomo, contando para isso com algumas figuras anteriormente ligadas

ao movimento operário93. Embora na sua fase inicial este projecto fosse lateral ao

movimento fascista, ele veio a ser incorporado pelos objectivos propagandísticos de

Mussolini que, deste modo, foram minando o sindicalismo socialista e fazendo germinar

a ideia de que a emancipação do trabalhador seria conseguida não contra o capital mas

através do auto-aperfeiçoamento individual (físico e moral) e da harmonia entre as

classes. Uma lógica muito idêntica à do projecto salazarista do Estado Novo94.

92 “Obra Nacional dos Tempos livres”, estrutura corporativa destinada à organização dos tempos livres

dos trabalhadores (equivalente à FNAT portuguesa). 93 Como foi o caso de Mário Giani que, sob influência das suas experiências profissionais nos meios do

management americano – foi director da Westinghouse Corporation –, já tinha começado a propagandear

(desde 1919) as vantagens das 8 horas de trabalho e dos tempos livres para uma organização “científica”

do trabalho. Mais tarde, o mesmo personagem (abdicando completamente do seu passado de sindicalista)

viria a ser nomeado por Mussolini consul-delegado e director executivo da OND, estrutura dirigente dos

Círculos Dopolavoro que entretanto se espalharam às empresas. 94 A doutrina em que assentou a edificação do Estado Novo, não só se rebelava contra as ideias

“subversivas” inspiradas no socialismo ou no comunismo mas exprimia também uma rejeição, ou pelo

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Entre a Fábrica e a Comunidade

122

Organizações semelhantes à da citada OND foram sendo adoptadas pelos restantes

estados ditatoriais da Europa dos anos trinta95. A atenção dedicada especificamente aos

lazeres dos trabalhadores por parte desses regimes pode perecer anómala vista da

actualidade. Mas se nos situarmos nesse contexto histórico, e principalmente se tivermos

em conta o significado social da luta pela diminuição do horário de trabalho – a bandeira

das “oito horas de trabalho” tinha-se tornado o “grito de guerra” das massas, na segunda

década do século XX –, facilmente se percebe a razão porque na Europa do pós-I Grande

Guerra se tornou familiar em muitos círculos empresariais e governamentais a referência

ao “problema do lazer do operário” (de Grazia, 1981: 238). Foi, portanto, como resposta

a este problema que a “nova ordem” fascista procurou encontrar as terapias adequadas.

Apesar de todas as diferenças e especificidades existentes entre as experiências da

Itália, da Alemanha e de Portugal, pode dizer-se que, em qualquer dos casos, a

intervenção estatal no campo recreativo tinha em vista disciplinar, não só a classe

operária, mas também o pequeno campesinato, não só a fábrica, mas também a

comunidade e a cultura de expressão popular em geral. E isso traduziu-se numa

crescente pressão sobre as comunidades tradicionais no sentido da sua total integração

nos mesmos princípios nacionalistas e disciplinares encarnados pelo Estado. Esta

orientação doutrinária e repressiva baseou-se na ideologia do “modernismo

menos uma travagem, das bases liberais do capitalismo. “O liberalismo morreu – exclamava Salazar – e

nós não somos livres, por consequência, de ter ou de não ter uma organização económica. Devemos

adoptar uma. Porquê? Porque nos pareceu que ela nos daria a síntese desejável dos diversos interesses, o

ponto de encontro dos representantes qualificados, a possibilidade de acordo substituída à luta de classes”

(Salazar, La Route à Suivre, Secretariado Nacional da Informação, Lisboa, 1958, citado por Albert

Pasquier, L’Economie du Portugal, Librerie Générale de Droit et de Jusrisprudence, Paris, 1961, pp 54, in

Alfredo Marques, 1980: 35). Mas, ao mesmo tempo, o enquadramento ideológico em que passou a ser

envolvida a actividade laboral denota claramente o combate que o regime desencadeou à organização da

classe operária e às suas estruturas sindicais. O Estatuto do Trabalho Nacional é, a este respeito, um

documento fundamental – talvez mais do que a Constituição de 1933 –, onde a prática política e a

orientação doutrinária do Estado Novo são postos a claro. “Damos a este termo [trabalho] uma

significação muito ampla: fazemos entrar nesta categoria económica todo o esforço de ordem intelectual

ou física que intervém e que é útil, directa ou indirectamente, ao processo de produção, do professor ao

governante, do agente da ordem ao simples operário” (Salazar, 1966, in Marques, 1980: 39).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

123

reaccionário” que – na expressão de Ernst Junger, referindo-se ao caso alemão –

pretendeu “modernizar” a comunidade, apoiando-se na dicotomia comunidade/

sociedade para reconverter o mito da comunidade pré-industrial e medievalista numa

“comunidade esteticizada, uma gemeinschaft do Estado nacional (…) que não era

apoiada na tradição mas na invenção da tradição, dirigida pelo nacionalismo e pelos

interesses do Estado Alemão” (Lash, 1990: 83).

Objectivos semelhantes presidiram à política turística e cultural do salazarismo,

empreendida pelo Secretariado da Propaganda Nacional (mais tarde reconvertido em

Secretariado Nacional de Informação), dirigido pelo ideólogo António Ferro (aliás, em

estreita colaboração com o próprio Salazar que, a partir de meados dos anos trinta

passou a envolver-se directamente na promoção do turismo, seguindo o exemplo de

Mussolini), desencadeando a conhecida campanha de reaportuguesamento de Portugal.

Dirigida sobretudo às comunidades rurais, esta colorida e nostálgica campanha ruralista

– na qual se inseriu o “Concurso da Aldeia mais Portuguesa”, bem como as encenações

idílicas das danças populares como o “Verde Gaio” e em geral a promoção dos

chamados “Ranchos Folclóricos” – propunha-se, nas palavras de Salazar, promover “o

culto das boas, sãs, fecundas tradições nacionais, tão próprias para nos darem

originalidade e carácter… [em] homenagem ao próprio espírito criador da raça

lusitana…”. Uma imagem e uma valorização do país para atrair o turismo, levando-o a

apreciar o Portugal passivo, ordeiro e alegre na sua “naturalidade” campesina: como

dizia António Ferro, “Portugal é um cofre de velhas e coloridas coisas que não é difícil

trazer à superfície, flauta rústica onde dormem velhos ritmos e melodias e um dos mais

sugestivos guarda-roupas da Europa. Medite-se, por exemplo, no interesse turístico dos

trajes sempre frescos das suas raparigas, dos seus grupos de cantadores e cantadeiras…”

95 Tais como, a estrutura nazi “Força pela Alegria” (KDF, em 1933), a FNAT portuguesa (em 1935), a

organização da ditadura grega de Metaxas, “Saúde dos Trabalhadores” (“Ergatixi Estia”, em 1937) e a

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Entre a Fábrica e a Comunidade

124

(in Pina, 1988: 153). A acção estatal e a pressão disciplinadora que se exerceu sobre a

cultura popular – promoção do “folclore”, do “teatro para trabalhadores”, etc. – tiveram

uma incidência notória, quer na modelação da referida imagem “alegre” e inofensiva da

comunidade local, quer no enquadramento e “reinvenção” das suas formas tradicionais

de expressão festiva, ou seja, esses processos ilustram o impacto do estatismo autoritário

sobre a comunidade e a esfera do lazer popular.

São conhecidas as inúmeras actividades desenvolvidas pela Fundação Nacional

para a Alegria no Trabalho (FNAT) no campo da acção social, cultural e recreativa,

cujos princípios se afirmavam em torno de valores como o “génio da raça”, e a firmação

dos “bons costumes da moral católica”, por forma a evitar “que o abuso da diversão

exterior comprometa a coesão da célula familiar, [e ela] se extravie dos seus deveres” e

tendo em vista enquadrar o povo no seio das corporações “com vista ao seu

aperfeiçoamento físico, intelectual e moral” (Brochura da FNAT, s/d)96. A força da

tradição católica e dos novos meios de comunicação de massas, ajudaram a que a

ideologia da resignação e da contenção do consumo chegasse junto de sectores

significativos da força de trabalho. Como se sabe, este estado de coisas prolongou-se em

Portugal muito para além do pós-Guerra. Enquanto nos regimes democráticos da Europa

crescia o acesso a novas formas de lazer e padrões de consumo no quadro do

desenvolvimento socioeconómico e da edificação do Estado-Providência – com o

aumento dos índices de mobilidade social e o crescimento das classes médias –, nos

regimes fechados e conservadores como o português, a propaganda estatal, além dos

objectivos gerais de obtenção do consentimento, continuava a apostar na preservação do

consumo das classes populares no baixo nível, através da pedagogia de contenção, da

franquista “Educación y Descanso” (em 1938). 96 Recorde-se que os filiados na FNAT eram obrigatoriamente sócios de um Sindicato Nacional

(corporativo), de uma Casa do Povo ou Casa de Pescadores. As estruturas de base eram, nas empresas os

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Entre a Fábrica e a Comunidade

125

travagem dos “gastos supérfluos” e do controle dos hábitos de consumo das famílias

trabalhadoras: “fazer algo de melhor do que fora feito antes e proporcionar serviço diário

que só dinheiro não possa recompensar. O dinheiro, mais tarde ou mais cedo, enfada;

(…) a única felicidade que vale a pena conhecer é a alegria do dever cumprido”

(programa radiofónico “Meia Hora de Cultura Popular”, Dezembro de 1949, citado por

Kuin, 1994).

Apesar das estruturas do Estado Novo dirigidas à promoção turística e à

organização dos tempos livres (a FNAT e a Mocidade Portuguesa, por exemplo) terem

sofrido influência e até mantido contactos directos com as suas congéneres europeias

(nomeadamente as alemãs), a sua implementação não foi isenta de contradições. No caso

das estruturas de lazer e de enquadramento juvenil, por exemplo, chegou até a haver

contestação clara aos que defendiam uma cópia fiel do modelo alemão (Kuin, 1993)97.

Também a modelação exercida ao nível das comunidades locais não foi linear e

uniforme. Mesmo no contexto de sistemas políticos fortemente autoritários, a articulação

entre o Estado e as comunidades exigiu alguma sagacidade e subtileza. Não obstante a

lógica homogeneizante e nacionalista dos aparelhos corporativos, e a componente

repressiva em que se basearam, eles sempre se debateram com múltiplas contradições e

formas heterogéneas veiculadas pelos “seus” sub-aparelhos localmente sediados. Tal

como nos regimes democráticos o Estado-Providência corporativo teve de lidar com as

lógicas e dinâmicas próprias da administração local promotoras da fragmentação

(Dunleavy, 1984: 49), também nos regimes de tipo fascizante a força do caciquismo e

das suas bases de apoio – a influência das famílias “notáveis” e do paternalismo já

Centros de Alegria no Trabalho (CAT) e na zona de residência os Centros de Recreio Popular (CRPs). As

Casas do Povo e as Casas de Pescadores eram, segundo os estatutos, considerados CRPs. 97 No caso da Mocidade Portuguesa, Simon Kuin refere-se ao contraste entre o discurso mobilizador dos

dirigentes e a prática muito mais moderada de enquadramento institucional. Os programas de intercâmbio

entre aquela estrutura portuguesa e a Juventude Hitleriana (Hitlerjugend), sofreram a oposição, primeiro

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Entre a Fábrica e a Comunidade

126

enraizado nas comunidades (Loureiro, 1991) – introduziram por vezes nas agências

locais de enquadramento estatal orientações comunitárias que, embora aceitando os

ditames do Estado, foram levadas a fazer concessões à própria lógica das comunidades.

O Estado Novo de Salazar, apesar do seu centralismo, deparou-se por vezes com a

necessidade de fazer cedências às administrações “periféricas” perante os poderes que

moviam e a implantação que detinham junto das populações: “através dos influentes, o

regime contactava e controlava os campos e as vilas do país interior e comprometera-se

por isso a não perturbar as estruturas sociais, económicas e culturais que permitiam essa

mediação, isto é, as bases desses poderes periféricos” (Ramos, 1986: 134). Quer isto

dizer que a submissão ao Estado nacionalista não deixou de afirmar – e de certa maneira

inscrever nas próprios aparelhos institucionais –, em maior ou menor grau, a capacidade

das identidades locais e a força cultural que lhes subjazia.

Em suma, estas experiências do estatismo autoritário desencadearam uma acção

sistemática de inculcação ideológico-cultural especialmente dirigida ao campo do lazer e

da cultura popular, cujos efeitos políticos foram inegáveis na esfera laboral – no rescaldo

de ciclos de grande agitação política e acção reivindicativa do movimento sindical

autónomo –, e cujo alcance no terreno da cultura e do consumo de massas se prolongou

muito para além do período de vigência desses regimes. Os seus mecanismos

institucionais articularam a comunidade local e o Estado nacional em novos moldes,

apesar dos arranjos particulares que por vezes os acompanharam. Tais experiências

tiveram um evidente efeito neutralizador da acção classista do movimento operário, mas,

ao mesmo tempo, contribuíram para fornecer novas conexões entre a esfera produtiva e a

do consumo, entre as identidades do trabalho e da comunidade.

tácita e mais tarde (a partir de 1938) aberta das estruturas da Igreja portuguesa (que se opunham a que “o

ídolo pagão do estatismo totalitário seduza a alma generosa da nossa mocidade…”) (in Kuin, 1993: 582).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

127

Capítulo 2

PRECEDIMENTOS ANALÍTICOS E METODOLÓGICOS

2.1 - Hipóteses de partida

A perspectiva de análise em que me apoiei na realização deste estudo pressupõe,

como tenho vindo a referir, a existência de múltiplas combinações entre a classe e a

comunidade, as quais permitirão compreender as formas de acção e de produção

identitária dos trabalhadores da indústria do calçado e das colectividades locais da zona de

S. João da Madeira. É na base das variadas formas de articulação entre a produção e o

consumo, entre o trabalho e o lazer, entre a economia e a cultura que terão de se encontrar

as principais linhas de interpretação sociológica para as formas aparentemente ambíguas e

contraditórias que definem o operariado do calçado desta região industrial.

Ao mesmo tempo, o passado histórico constitui uma dimensão fundamental que

procurei equacionar, no sentido de perceber as formas de estruturação e os traços

específicos – quer no quadro estrutural mais amplo, quer no terreno das práticas e

subjectividades – desta classe trabalhadora. Deste modo, é importante saber, em primeiro

lugar, até que ponto e de que maneira as experiências vividas em certos momentos da

história local deram lugar a uma identidade classista ou que tipo de mecanismos impediu

que a mesma se tornasse relevante em termos culturais e políticos. Em segundo lugar, só

equacionando essa dimensão se poderão compreender os principais processos de mudança

na região e de que modo eles foram ou não marcantes na estruturação da memória

colectiva dos trabalhadores. Qual o papel das experiências de luta vividas nos princípios

deste século – nomeadamente pelo sector chapeleiro – na emergência de uma cultura com

contornos de “aristocracia operária”? Que processos contribuíram para a sua posterior

reconversão e esbatimento? É possível ver, através das formas populares de expressão

festiva, a mistura de referências e a ductilidade de lógicas culturais e identitárias resultante

da penetração da indústria e do mercado no seio das culturas tradicionais? Que incidência

terá tido esse processo no domínio das formações de classe locais? Que outras dinâmicas

concorreram para impedir a emergência de uma identidade de classe com verdadeira

expressão social e política? Qual o papel do bairrismo local e de que forma ele estimulou

o paternalismo em detrimento da classe? Que factores favoreceram a acção do Estado

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Entre a Fábrica e a Comunidade

128

Novo a nível local e qual o impacto das suas políticas de controlo recreativo sobre os

trabalhadores?

Torna-se necessário procurar possíveis respostas a estas interrogações para que elas

nos ajudem a compreender algumas das especificidades e contradições que actualmente

acompanham a expansão da indústria do calçado na região. Tanto no passado como na

actualidade, este contexto socioeconómico continua a ser atravessado por tendências

contraditórias – a produção industrial e o mundo rural, o mercado e a comunidade

tradicional, a presença do Estado e as redes primárias e familiares, o sindicalismo e as

lealdades locais, etc. –, as quais se inscrevem no contexto cultural envolvente sob a forma

de redes de relações sociais em constante estruturação e fragmentação. De um lado, um

tecido industrial flexível que estende os seus mecanismos de suporte para diferentes

direcções e espacialidades, que os move de uns lugares para outros, que se implanta no

seio da família com o trabalho domiciliário, que liga as maiores empresas às inúmeras e

minúsculas unidades produtivas semi-clandestinas que se dispersam entre diferentes

comunidades. De outro lado, uma força de trabalho animada pela luta constante pela

renovação das formas de subsistência, procurando pôr em marcha novas estratégias de

acumulação, em que o trabalho industrial não é incompatível com as actividades

agrícolas, em que a relação salarial na fábrica não é incompatível com as mais diversas

formas informais de actividade económica. Neste conjunto extremamente maleável de

formas de ligação entre a indústria e as comunidades, torna-se impossível identificar

estruturas rígidas e práticas de classe bem definidas.

Uma primeira hipótese de partida que formulei prende-se justamente com a

abordagem das relações e práticas de classe deste operariado: pressupõe que as formas de

adaptação e de resistência se preservaram na base de uma constante ligação e

interdependência entre o trabalho industrial e as comunidades. Tal situação tende a

favorecer a preservação de sistemas de poder de índole paternalista apoiados em lógicas

identitárias ambivalentes e intermutáveis – estruturadas na transposição de fronteiras entre

a fábrica e a comunidade – em que a experiência vivida em cada uma dessas esferas é

fortemente impregnada pela experiência incorporada a partir da outra.

Uma segunda hipótese, diz respeito mais estritamente às relações de trabalho e

pressupõe que as transformações neste campo decorreram em três fases, as quais

correspondem a distintos regimes de acumulação: a fase de arranque da industrialização –

de finais do século passado até à queda da 1ª República –, em que o liberalismo

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Entre a Fábrica e a Comunidade

129

económico foi acompanhado pela emergência de uma lógica paternalista enraizada na

tradição artesanal e em que as experiências de classe foram marcadas pela “aristocracia

operária” da indústria de chapelaria; a fase de estagnação salazarista em que as políticas

autoritárias promoveram e se apoiaram no discurso bairrista promovido pelas novas elites

da vila industrial – e do qual a lógica nacionalista do Estado Novo tentou apropriar-se –,

deixando no entanto espaço para pequenas bolsas de “fordismo” (o caso da indústria

metalomecânica Oliva) onde a consciência de classe operária ganhou algum significado a

partir de meados do século; e, finalmente, uma fase que se desenvolveu a partir de finais

dos anos sessenta, de características “pós-fordistas”, cujo sector impulsionador foi o

calçado e que foi estruturando um modelo de massificação operária, com uma mão-de-

obra fragmentada e precarizada, vinculada aos habitus rurais, que se afasta da militância

sindical e em que a resistência passiva que promove é largamente suplantada pela lógica

do consentimento no interior da fábrica, onde prevalecem modelos de poder de tipo

despótico-paternalistas.

Uma terceira hipótese – continuando a considerar as mesmas três fases – dirige-se

às grandes linhas de mudança que ocorreram na esfera comunitária e das relações de lazer:

na primeira fase vigorou sobretudo o modelo rural, em que as festividades permaneciam

associadas ao “tempo natural” dos ciclos agrícolas, mas ao mesmo tempo assiste-se à

penetração das relações de mercado e à sua acção modeladora sobre a cultura popular, em

que os efeitos disciplinares do trabalho industrial são secundados pela crescente acção

moralista das elites locais face aos costumes do povo (considerados “desbragados”); na

fase seguinte, a incidência dos costumes e consumos burgueses fez-se sentir, a

moralização tutelada pelo Estado salazarista tornou-se mais notória e o enquadramento

institucional do recreio popular forneceu algumas bases para a expansão de novas formas

de lazer da classe trabalhadora local; na última fase, a massificação dos consumos ganha

maior expressão nas comunidades locais e a lógica mercantilista acompanha a expansão

dos contextos industriais, mas, embora os seus efeitos adaptativos estejam em

crescimento, não deixam de ter lugar ambientes populares e formas de expressão cultural

próximas do “carnavalesco”, onde a tradição e as culturas locais misturam a irreverência

popular com a estética uniformizante da cultura de massas.

Uma quarta hipótese desenvolve-se na base da mútua permeabilidade entre estas

duas dimensões – da produção e do consumo – e considera que as expressões pontuais da

cultura operária se dissiparam no seio de uma cultura popular mais dispersa e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

130

polifacetada, estruturada em espaços mistos de ruralidade e urbanidade, onde a

comunidade combina dialecticamente práticas e formações pré-modernas com os efeitos

da lógica moderna produzidas pela dupla acção da produção e do consumo, dando lugar a

um tecido sociocultural em acelerada recomposição.

Finalmente, uma quinta hipótese refere-se ao processo de formação e fragmentação

de classes e considera que as formas de acção e de consciência que este operariado dá

mostras nunca evidenciaram uma “identidade de classe” forte e estruturada98, antes

revelarão a natureza dúctil e ambígua de uma categoria social que na sua heterogeneidade

e nas suas posições contraditórias desenvolve práticas e subjectividades ambivalentes,

cujas capacidades de acção em termos colectivos não são suficientemente fortes para

combater a lógica despótica e exploradora a que se sujeita, mas cujos códigos culturais e

sentido identitário não são suficientemente fracos para ver no patrão o seu protector. Por

isso, é de prever que o aparente esbatimento de formas de luta não significará a total

ausência de expressões de rebeldia.

2.2 - Orientação metodológica

Para a ciência moderna, o conhecimento cientifico é, como se sabe, construído em

ruptura com o senso comum. Quer isto dizer que, no caso das ciências sociais, as

subjectividades e atitudes dos actores ou categorias sociais em estudo são tomadas como

parte dos determinantes estruturais em que os indivíduos estão mergulhados e dos quais

não se dão conta, segundo o conhecido princípio da não consciência. O cientista, pelo

contrário, e dado o domínio que detém do vasto arsenal teórico e metodológico ao seu

dispor, é situado num plano superior e regra geral aparece como que imune face às

armadilhas do senso comum. Ele posiciona-se no lugar da razão. É tido como o produtor

da verdade, enquanto os agentes sociais que ele estuda vivem no mundo da illusio, da

“ilusão bem fundada” durkheimiana (Bourdieu). Esta concepção dominante da prática

científica caracteriza-se não apenas pelo viés positivista mas inclusivamente pela posição

privilegiada que é atribuída ao cientista (neste caso ao sociólogo) no acesso à “verdade”, e

que exige a remoção das “pré-noções” e a denúncia da illusio que define o senso comum.

Embora bem ciente das incontornáveis “rasteiras epistemológicas” a que estarei exposto –

98 Sendo certo que a existência das classes enquanto forças sociais organizadas nunca teve uma

inquestionável tradução empírica, muitas lutas operárias foram durante muito tempo entendidas pelos

marxistas como estruturadas unicamente através das relações de produção. Mas, não pode esquecer-se,

evidentemente, que o conceito de classe foi muitas vezes perspectivado num sentido mais abrangente,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

131

qualquer que seja a orientação privilegiada –, ao adoptar uma postura compreensiva e

auto-reflexiva no manuseamento dos diferentes instrumentos metodológicos utilizados,

pretendi assumir uma perspectiva crítica destinada a questionar e confrontar a concepção

que acabo de referir.

Apesar de fazer uso de uma variedade de técnicas de recolha de informação – umas

eminentemente quantitativas, como é o caso de inquérito por questionário, outras

abertamente qualitativas, como a observação participante –, procurei, no entanto, articulá-

las na base de uma estratégia metodológica que obedece a um princípio comum: a de

privilegiar uma orientação compreensiva e reflexiva. Tal orientação, procurando em

primeiro lugar questionar e analisar o objecto de estudo, pretende ao mesmo tempo

questionar o próprio investigador na sua relação com o terreno e, na medida do possível,

dar conta das ambiguidades que esse processo encerra. Se quisesse catalogar a

metodologia adoptada, diria que ela se aproxima do “método de caso alargado” (Burawoy,

1991), a que mais adiante farei referência. Inspirando-me nessa orientação, procurei, por

um lado, centrar-me no detalhe e na minúcia das diversas situações observadas e, por

outro lado, pretendi inserir esses cenários sociais num quadro estrutural e histórico mais

amplo, tendo em vista utilizá-los como ilustração dos efeitos localizados – e nessa medida

dotados de características particulares – das tendências transformadoras ocorridas na

sociedade portuguesa ao longo dos últimos cem anos, em especial naquilo em que as

mesmas tiveram uma incidência directa nesta região e nas dimensões abrangidas pela

pesquisa.

Passarei então a apresentar uma breve discussão acerca da metodologia qualitativa

que privilegiei na elaboração do estudo. Refiro-me aos problemas que se ligam à

sociologia compreensiva, à relação macro-micro e ao método de caso alargado, a que atrás

aludi. Procurarei no final deste tópico sistematizar as várias técnicas a que recorri, em

função das diferentes dimensões analíticas que integram a pesquisa.

2.2.1 - Compreensão e auto-reflexão

A metodologia nas ciências sociais não é apenas uma mera ferramenta que o

investigador utiliza objectivamente para testar as suas hipóteses, tal como o social não

pode ser visto pelo investigador como simples objecto que ele mobiliza ou usa de forma

racional e utilitária. O social não está unicamente no objecto de estudo, e não basta

incluindo por vezes a própria esfera da comunidade, como acontece com E. P. Thompson (veja-se Capítulo

1).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

132

reconhecer cinicamente que o cientista é também ele um ser social para que o problema

esteja resolvido. Não só o sociólogo é um ser social como o processo de conhecimento

que ele procura levar a cabo é um processo social. Para desenvolver uma sociologia auto-

reflexiva, é inevitável que este entendimento seja extensível ao próprio trabalho de

pesquisa, de modo a questionar o vasto conjunto de riscos e de contradições que ele

encerra. Importa, portanto, considerar a prática de investigação enquanto processo social

orientado por uma dada estratégia, mas sujeito a uma infinidade de contingências. A

estratégia seguida e os procedimentos adoptados devem, pois, ser expostos a avaliação do

mesmo modo que o são os resultados obtidos. Sendo certo que este tipo de problemas se

levanta nos mais variados contextos de investigação, é evidente que quanto maior for o

grau de envolvimento do investigador com os sujeitos sociais sob observação, mais

pertinentes eles se tornam. Por isso, a presente discussão vem a propósito das diversas

situações de observação directa utilizadas durante a pesquisa, mas ganha um significado

especial no caso da observação participante realizada na fábrica.

Quer os actores ou agentes em estudo, quer o próprio investigador orientam as suas

acções e percepções segundo o esquema de disposições sócio-cognitivas e afectivas

modeladas pelo mundo vivido das suas experiências e trajectórias. A acção social não é

mera estratégia. O comportamento humano resulta do desdobramento de linhas de acção

que obedecem a regularidades e padrões de conduta socialmente inteligíveis e coerentes,

mesmo que não se limitem a seguir conscientemente um dado conjunto de regras com

vista a alcançar objectivos premeditados (Bourdieu e Wacquant, 1992: 25).

Para a sociologia compreensiva de Bourdieu, a principal diferença na estratégia de

pesquisa não é entre uma ciência que introduz no seu seio os pressupostos subjectivos do

investigador e uma ciência que não os introduz mas sim, entre uma ciência cujos efeitos

implícitos passam adiante sem que o investigador se dê conta deles ou uma ciência em

que o mesmo está alertado para eles e procura revelá-los o mais abertamente possível de

modo a que esses efeitos perversos sejam por ele controlados e incorporados na análise

(Bourdieu, 1996: 18). Quando o investigador mergulha no contexto da pesquisa, é

necessário procurar os efeitos arbitrários dessa intrusão, os quais são inerentes à própria

forma como ele se apresenta. Ele deve tentar situar e contextualizar as expectativas dos

observados e, ao mesmo tempo, esclarecer o modo como se estabelece a interacção e as

razões que levam uns a colaborar e outros a recusar entrar nesse tipo de intercâmbio.

Nesta mesma linha, outros autores, como Fowler, chamam a atenção para o facto de que,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

133

quando o sociólogo trabalha dentro de uma instituição, ele tende a criar mecanismos de

protecção contra os enviesamentos a que o seu trabalho está sujeito, incluindo o do

próprio estatuto “soberano” do cientista: “uma condição da compreensão é a constante

interrogação dos pressupostos tomados por adquiridos que nos autorizam a mover-nos no

mundo social como peixe na água” (Fowler, 1996: 11). A reflexividade baseia-se num

sentimento e num olhar sociológico que habilita o investigador a perceber e a dirigir no

terreno os efeitos da estrutura social em que a pesquisa está a decorrer, mas não se pode

dissociar a construção do objecto, do instrumento de construção do objecto e da sua crítica

(Wacquant e Bourdieu, 1992: 30). Acresce que o conhecimento é sempre situado e

produzido a partir de uma perspectiva parcial que, em situação, canaliza de modo

selectivo e definido dimensões sociais (concepções de justiça social, por exemplo)

diversificadas que são constitutivas de um contingente de subjectividades (Haraway,

1992). Quer isto dizer que, qualquer que seja a modalidade cognitiva de que falamos, o

processo de construção do conhecimento contém sempre uma dimensão autobiográfica, e

esta não é redutível à reflexividade, tal como a entende Bourdieu.

2.2.2 - O macro e o micro

Uma segunda preocupação que esteve presente na elaboração deste estudo diz

respeito à articulação entre os níveis de análise macro e micro. Desde logo, o facto de a

abordagem incidir no contexto específico da indústria do calçado assenta num pressuposto

de raiz metodológica e que remete para esta questão. A razão de ser desta delimitação

espacial prende-se com a ideia de que o processo de estruturação industrial constitui uma

importante base de modelação de práticas e subjectividades sociais, ou seja, a lógica

estrutural e sistémica desse processo é fortemente marcada por uma estratégia macro-

económica, mas a sua especificidade local e a coerência sociocultural que daí resultaram

ao longo do tempo devem-se, em boa medida, às formas particulares de acção dos agentes

e das comunidades, no modo como se adaptaram ou resistiram à sua implantação.

Embora, como lembra Giddens, se devam distinguir analiticamente os sujeitos e a

estrutura, o que importa é ter presente que a mudança depende das formas de articulação

entre ambas. Para compreender a transformação há que atender às linhas de

continuidade e descontinuidade no tempo e no espaço e conceber os sujeitos não como

meros “suportes” mas sim como elementos com “capacidade de monitorização

reflexiva” sobre as estruturas em que estão inseridos. Na prática, os sujeitos são parte

integrante da estrutura e por isso, embora estas imponham fortes limites e obstáculos ao

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Entre a Fábrica e a Comunidade

134

conhecimento e à acção dos indivíduos, as acções ou reacções que eles desenvolvem

face às pressões exteriores são geradoras de mudança, muito embora essa mudança

possa ser contrária às suas intenções. É nesse sentido que a estrutura pode ser vista

como uma “ordem virtual” que se refere às “propriedades de estruturação” (Giddens,

1989: 13), as quais tendem a assegurar as necessidades de reprodução sistémica, mas,

dadas as múltiplas pressões e adaptações que encerram, são obrigadas a uma

permanente reconstituição dessas propriedades (cf. Fine, 1991 e 1992; Collins, 1981).

Tal como a macroestrutura e a acção dos actores sociais são duas componentes de

um mesmo processo, a estruturação e a mudança têm implicações tanto no nível micro

como no macro. A manter-se esta distinção, ela só tem sentido se nos posicionarmos no

cruzamento entre os dois níveis para levar a cabo um conhecimento multifacetado e

complexo do mundo social mais vasto. É, pois, necessário estabelecer pontes que

permitam ver a forma como as dicotomias acção/ estrutura e micro/ macro, são

impregnadas uma pela outra (Fine, 1991: 162). Se nos situamos, por exemplo, no micro

nível das organizações, a análise do poder e dos seus efeitos exige que se observe o

exercício do constrangimento não só enquanto resultado da interiorização de normas e

valores aí sediados, mas ao mesmo tempo enquanto efeitos da estrutura societal que

modelam a organização a partir do exterior. Enquanto o constrangimento opera

internamente, tanto pela coerção como pela interiorização individual da disciplina, as

contingências da realidade exterior operam independentemente da percepção, impondo

limites ao sucesso almejado pelo esforço individual de agenciamento. A exterioridade é a

estrutura persistente, incontornável, que exerce os seus efeitos dramáticos sobre os

actores, mesmo quando estes não os reconhecem ou o analista não fala deles. É nessa

dupla articulação que se afirmam as bases ou os macro-fundamentos da micro-estrutura

(Fine, 1991). Não se trata de os indivíduos não poderem agir “como eles querem”, mas

sim de ter em conta que a percepção incorpora constrangimentos no comportamento. É o

nosso entendimento do mundo material, ou seja, na prática, é a actuação das pessoas num

sentido macro-sociológico que está em causa, já que a própria aprendizagem é a leitura do

mundo social através de tipificações de situações, de instituições, de ideias, etc., vistas

num sentido unitário e concebidas intuitivamente como efeitos da macro-estrutura. “O

mundo micro e macro são colocados num equilíbrio delicado. A liberdade do actor

individual é ilusória, mas através dessa profunda ilusão torna-se real para todos os efeitos.

As estruturas tornam-se reais e aceites como tais por aqueles que se encontram em

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Entre a Fábrica e a Comunidade

135

interacção com as suas manifestações. Os efeitos da estrutura não são ilusórios, mas,

apesar disso, as imagens que caracterizam a estrutura podem ter um charme fantástico”

(Fine, 1991: 165).

2.2.3 - O método de caso alargado

A importância das dimensões que acabo de referir pode ser enquadrada no

procedimento metodológico mais geral que foi privilegiado na presente pesquisa: o

chamado “método de caso alargado”, desenvolvido e aplicado em vários estudos de

campo, entre outros, por Boaventura Sousa Santos (1983 e 1995) e Michael Burawoy

(1979, 1985 e 1991; Burawoy e Lukács, 1992). Esta perspectiva está intimamente ligada

às questões que acabei de referir. A orientação metodológica que persegue destina-se a

contrariar os tradicionais métodos positivistas, opondo a generalização pela quantidade e

pela uniformização, a generalização pela qualidade e pela exemplaridade. Boaventura

Sousa Santos sintetiza bem as suas vantagens na seguinte passagem: “em vez de reduzir

os casos [em estudo] às variáveis que os tornam mecanicamente semelhantes, procura

analisar, com o máximo de detalhe descritivo, a complexidade do caso, com vista a captar

o que há nele de diferente ou mesmo de único. A riqueza do caso não está no que há nele

de generalizável, mas na amplitude das incidências estruturais que nele se denunciam pela

multiplicidade e profundidade das interacções que o constituem” (Santos, 1983: 11-12).

O método de caso alargado (extended case method) é discutido por Burawoy em

articulação com o método da “teoria apoiada” (grounded theory), tradicionalmente

utilizado pelos estudos etnográficos. Ambas as perspectivas incorporam o micro e o

macro, considerando estes dois níveis como mutuamente implicados na realidade. A

primeira centra-se numa situação social concreta procurando compreender as forças

particulares que a moldam, evitando assim o problema da generalização; enquanto a

grounded theory “pode construir o macro a partir das suas micro generalizações, o método

de caso alargado pode fazer emergir generalizações através da teoria reconstruída”

(Burawoy, 1991: 274). Ou seja, o contexto é visto como indissociável e reflexivamente

ligado às situações, e a sua invocação e explicitação deve ser feita de modo relevante para

conferir unidade às situações no quadro de uma realidade estruturada. Através desta

abordagem é possível demarcarmo-nos dos procedimentos que adoptam um excessivo

relativismo, segundo o qual parece não existir um mundo real mas apenas múltiplas

situações de acordo com as perspectivas particulares e, por outro lado, no que toca à sua

procura de características invariantes que tendem a universalizar todas as situações sociais

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Entre a Fábrica e a Comunidade

136

com base nesses princípios universais (a comunicação, a racionalidade, o tabu do incesto,

etc.). Enquanto a grounded theory descobre generalizações abstraindo-as do tempo e do

espaço, ou seja, pondo em marcha uma estratégia indutiva que leva a explicações

genéricas, o método de caso alargado visa construir explicações genéticas, isto é,

explicações com base em resultados particulares. “No modo genético, o significado de um

caso refere-se ao que ele nos diz acerca do mundo no qual está inserido. Qual será a

verdade acerca do contexto social ou passado histórico para que o nosso caso tenha

assumido as características que nós observámos? O significado refere-se aqui ao

significado societal. A importância do caso único recai sobre o que ele nos diz sobre a

sociedade como um todo mais do que acerca da população de outros casos similares”

(Burawoy, 1991: 281).

O método de caso alargado, embora também adopte uma análise situacional99, evita

os efeitos do relativismo e do universalismo, olhando a situação como fortemente

modelada a partir de cima. Pretende-se dar conta da generalização “através da

reconstrução das generalizações existentes, isto é, da reconstrução da teoria existente”

(Burawoy, 1991: 279). Procurei, no entanto, não ficar preso à ênfase, talvez excessiva,

que Burawoy coloca no consentimento e nas capacidades de modelação vindas de cima e

por isso não deixei de atender às formas de resistência dirigidas de baixo para cima. No

cruzamento entre estas duas lógicas contrárias – o top down e o bottom up – deverão

encontrar-se as especificidades deste tecido sociocultural, e é a essa luz que pretendo

explicar as suas características ambíguas. Significa isto que as formas particulares que

assumem as relações entre a classe e a comunidade ou entre a produção e as identidades

culturais locais nesta região devem dizer-nos alguma coisa acerca dos processos de

mudança estrutural mais vastos, mas as suas principais linhas de transformação histórica

podem assumir formas discrepantes nos níveis nacional e local. A metodologia de

Burawoy conduz directamente às questões da dominação e da resistência, aspectos estes

que, como já enunciei, ocupam um lugar central na presente tese. Adopta-se, portanto,

aqui uma perspectiva que se assume como herdeira da metodologia compreensiva e

multicausal de Max Weber. O método de caso alargado, ao reconstruir uma situação

social como única, coloca a atenção na sua complexidade, na sua profundidade e na sua

99 Porém, diferentemente da etnometodologia – que em geral trata o poder sobretudo através dos modos

como ele se realiza nas situações no interior do micro-contexto, colocando a ênfase nas variáveis que podem

ser manipuladas na situação imediata – a presente orientação metodológica não menospreza as forças mais

amplas procurando ver como elas limitam a mudança e criam os meios de dominação na esfera micro.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

137

amplitude. A causalidade torna-se assim múltipla, envolvendo uma interconexão entre a

situação social e o seu contexto de determinação, tentando descobrir os macro-

fundamentos da micro sociologia e os micro-fundamentos da macro sociologia. Uma

forma de evitar o determinismo e o descritivismo é dar visibilidade às práticas e

subjectividades observadas, adquiram elas a forma de adaptação e consentimento face aos

mecanismos de poder ou o carácter de resistência e transgressão em face da lógica

hegemónica – seja ela de base classista, estatal, cultural ou outra – que tais mecanismos se

destinam a servir.

2.2.4 - As técnicas de recolha utilizadas

Foi, portanto, à luz deste tipo de preocupações que procurei conjugar as técnicas

utilizadas, qualitativas e quantitativas. O facto de há vários anos ter começado a estudar o

sector do calçado nesta região (Estanque, 1991, 1992, 1993 e 1994) facilitou imenso a

realização deste projecto de pesquisa. Os contactos e ligações prévias que mantive com

diversas fontes e observadores locais, assim como a própria reflexão já realizada, foram

fundamentais para levar a cabo o presente estudo. Assim, numa primeira fase, a observação

sistemática, as entrevistas não estruturadas e conversas informais, a observação participante

em ambientes populares e celebrações festivas, e a análise documental de monografias,

jornais e revistas locais foram os instrumentos privilegiados.

A análise histórica apoiou-se, evidentemente, em diferentes fontes documentais,

nomeadamente jornais locais, monografias, comunicados, anúncios e ilustrações diversas

(Capítulos 3 e 4). No caso da resistência operária durante o salazarismo, foram realizadas

algumas entrevistas a antigos militantes ainda vivos e socorri-me também de um documento

escrito, autobiográfico de um dos mais destacados dirigentes do sindicato do calçado. Trata-

se de uma história de vida que descreve com assinalável detalhe os problemas e angústias

desse operário num clima de perseguição e até de prisão e tortura a que foi sujeito por volta

de meados do século (ver Capítulo 4). Esta foi, portanto, uma fonte de informação de

grande importância para a compreensão da resistência sindical desse período, nesta região.

Os ambientes festivos e recreativos foram abordados a partir de discursos em que por vezes

é nítida a orientação normativa dos observadores, eles mesmos membros activos da

comunidade local. Assim, por exemplo, na abordagem das comunidades tradicionais e suas

expressões festivas (Capítulo 3), recorri a diversas monografias elaboradas por esses

observadores privilegiados (nalguns casos, por figuras da terra e em geral publicadas por

instituições locais), procurando dar atenção ao viés subjectivo ou moralista que surge em

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Entre a Fábrica e a Comunidade

138

alguns desses testemunhos, tomando-os como um elemento do próprio processo de

normalização e enquadramento cultural, quer na análise das experiências laborais, quer no

campo dos lazeres populares. Quer isto dizer que os discursos centrados nos

comportamentos populares são por vezes vistos como uma espécie de contraponto moral

das práticas efectivas que por essa via podem ser captadas. Este aspecto prende-se, no

fundo, com um problema que não é novo nas ciências sociais e que diz respeito à escassez

de fontes e testemunhos directos, quando se trata de estudar as classes subordinadas e o seu

passado histórico. Como se sabe, são sobretudo os grupos dominantes, escolarizados e

poderosos, que nos deixam legados escritos. Essa lacuna poderá, portanto, ser compensada

desde que a leitura das fontes possa ser sujeita a escrutínio crítico e se proceda ao seu

enquadramento no contexto mais geral da pesquisa, de acordo com os pressupostos

analíticos já referidos.

No que se refere aos aspectos da análise mais centrados na actualidade, socorri-me de

instrumentos como a observação participante, o inquérito por amostragem, análise

documental, entrevistas e observação directa. Esta última técnica foi sobretudo utilizada

nos casos em que se pretendeu retratar os ambientes públicos (cafés, tabernas, festas, etc.).

Diversas entrevistas foram realizadas a operários, proprietários do sector do calçado,

dirigentes sindicais e da associação patronal, além das inúmeras conversas informais com

trabalhadores de variadas empresas. Por vezes acompanhei jovens trabalhadores nas suas

ocupações de lazer (bares, discotecas, festas populares, etc.) a fim de compreender algumas

das actuais tendências dos comportamentos juvenis neste campo. O sindicato do sector do

calçado e os seus mais destacados dirigentes prestaram um apoio que merece realce por

terem permitido o acesso a ambientes e situações laborais que de outra forma dificilmente

seriam detectáveis (Capítulo 6).

O inquérito foi aplicado a uma amostra representativa da população activa, com

idades entre os 18 e os 70 anos. A amostra foi constituída por 300 indivíduos,

seleccionados entre a população dos três concelhos estudados, tendo-se seguido os

procedimentos de representatividade e aleatoriedade que garantem uma margem de erro

de 5%, para um nível de confiança de 95% (ver Anexo Metodológico do Capítulo 6). O

questionário, bem como o modelo teórico utilizados nesta abordagem (que se apoia na

teoria de classes de Erik Olin Wright), foram os mesmos que se adoptaram no estudo

sobre a estrutura de classes em Portugal, num projecto recentemente concluído

(Estanque e Mendes, 1998). Esta vertente de análise destina-se, por um lado, a fornecer

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Entre a Fábrica e a Comunidade

139

uma visão mais sistematizada da estrutura de classes da região do calçado e, por outro

lado, permitiu-me articular a análise histórica e qualitativa com as conclusões fornecidas

por esta leitura estrutural, ao mesmo tempo que possibilitou também a sua comparação

com os resultados nacionais. Desde modo, não obstante o modelo de análise se apoiar

aqui numa técnica quantitativa, a interpretação dos dados insere-se na orientação

analítica mais geral do método de caso alargado.

A observação participante foi adoptada tendo em vista uma abordagem mais em

profundidade das relações de trabalho numa empresa do sector do calçado100 (Capítulo 7).

A selecção desta unidade foi efectuada a partir de um leque relativamente restrito de

alternativas, na sequência de contactos por carta que dirigi a um conjunto de cerca de vinte

empresas, explicando os meus objectivos. De assinalar é ainda o facto de a minha aceitação

pelo proprietário ter passado por uma negociação em que me comprometi a realizar,

paralelamente aos meus próprios interesses de pesquisa, um diagnóstico da situação social e

das atitudes dos operários perante o trabalho e a empresa.

Trabalhei como operário durante um período de cerca de três meses, cumprindo todos

os horários, executando diversas tarefas na linha de montagem e sujeitando-me o mais

possível a todos os condicionalismos inerentes ao processo produtivo. Os inúmeros

problemas com que me deparei durante esta fase da pesquisa – quer de natureza científica,

quer pessoal e humana, se é que estas duas vertentes se podem desligar – são

detalhadamente relatados no capítulo anexo ao da análise dos resultados (Capítulo 7-A),

apresentado sob a forma de Diário de Campo. Por esse motivo não vou aqui alongar-me

neste assunto. Como se sabe, uma das maiores dificuldades que este método levanta diz

respeito ao período de integração e aceitação do investigador no seio do grupo que vai

estudar. O esforço necessário para conquistar a aceitação é, como a antropologia cultural já

mostrou, um dos aspectos mais importantes do método de observação participante. “Raro é

o etnógrafo que, durante esse período de adaptação, não tenha sentido uma forte reacção

pessoal de desgosto, agressividade e até repulsa pela população escolhida” (Geertz, citado

por Pina Cabral, 1983: 331). Se as experiências de campo vividas pelos antropólogos, em

especial no estudo das sociedades tribais, contêm um grau de exigência, de dureza e se

sacrifício pessoal (até pela sua duração) incomparavelmente superior às dificuldades que eu

100 Tratou-se de uma pequena fábrica, com cerca de 55 trabalhadores, sediada em SJM. A empresa foi

criada no início dos anos oitenta e é actualmente dotada de um conjunto de equipamentos tecnológicos

bastante avançados. Como na maioria do sector, a sua produção é sobretudo destinada à exportação para a

Europa, Oriente e América do Norte.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

140

próprio vivi na fábrica, o mundo operário e o quotidiano fabril levantam um outro tipo de

problemas. Nomeadamente, os que se prendem com a questão da intensidade dos

antagonismos sociais aí presentes e que tornam extremamente difícil a gestão das opções

que o investigador tem pela frente na aproximação aos trabalhadores. Os conflitos de

interesse e as contradições de classe em que ele tem de se posicionar, a necessidade de

construir e preservar laços de confiança mútua com diversos sectores rivais entre si, tornam-

no um alvo de permanente desconfiança num contexto em que os campos opostos estão

claramente demarcados. Por outro lado, numa fábrica de pequenas dimensões torna-se

impossível preservar o anonimato. Colocado entre o desejo de me assumir como um

trabalhador “normal” e a premência de ser aceite pelo grupo, tornou-se necessário ir aos

poucos dando conta dos meus objectivos para que os operários me começassem a olhar

como alguém que estava do lado deles, apesar de, em rigor, nunca ter sido considerado

como um igual. Sendo o problema do poder um factor decisivo a todos os títulos, quando se

pretende estudar as estruturas de poder e ao mesmo tempo é preciso que o investigador use

o poder que o seu próprio estatuto lhe confere, entra-se num tipo de jogo simbólico

extremamente difícil de gerir.

Com todas as nuances e contingências que foram decorrendo (como relatarei no

Capítulo 7-A), consegui conquistar a simpatia geral dos trabalhadores e criar afinidades com

muitos deles, mas o reverso disso foram as desconfianças e dificuldades que surgiram na

minha relação com o patrão e alguns dos encarregados. Esta situação confirma a pertinência

e a relevância que continua ter a questão do whose side are we on (H. Becker), que não é só

um problema de escolha, mas o resultado da própria presença num terreno com estas

características (e, em geral, em qualquer terreno). Esta foi, pois, uma das mais ricas

experiências humanas que já vivi enquanto sociólogo, e é porque neste caso a experiência

pessoal e o trabalho de pesquisa são aspectos que se encontram intimamente imbricados um

no outro que se torna fundamental ter presente a dimensão compreensiva e auto-reflexiva

desta pesquisa, como referi no início.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

141

Capítulo 3

INDUSTRIALIZAÇÃO, MOVIMENTO OPERÁRIO E TRADIÇÃO FESTIVA

NA VIRAGEM DO SÉCULO (XIX-XX)

A histórica é sempre a construção do passado a partir do presente. Nesta simples e

óbvia circunstância repousa a preocupação de sustentar não só a compreensão do

presente com base nesse passado histórico, mas ao mesmo tempo a preocupação de

reafirmar a importância da própria construção histórica como processo simbólico onde

se inscrevem as condicionantes sociais e institucionais do presente (ou, se quisermos, de

cada presente). Assim, a referência ao passado serve de suporte empírico da análise,

clarificando aspectos decisivos dos impactos locais do processo de implantação

industrial sobre os modos de vida das populações, mas, simultaneamente, o passado

histórico ocupa um papel fulcral na construção das subjectividades, no sentido em que

atentar na narrativa histórica é tomar essa dimensão enquanto elemento estruturante das

comunidades locais e da sua identidade colectiva. Essa dupla vertente repercute-se,

pois, nas práticas e nas subjectividades dos actores sociais e é possível identificar os

seus impactos em diferentes esferas da vida colectiva: no campo da produção e no

campo do consumo, na economia e na cultura, no trabalho e nos tempos livres.

Em termos periódicos, este capítulo abrange o período que vai do último quartel

do século XIX, quando surgiram em SJM as primeiras indústrias modernas, até finais

dos anos vinte, com a derrota da 1ª República e o consequente destroçar do movimento

operário. Na primeira parte refiro-me à dimensão industrial e ao movimento associativo

(em particular à forma como ele se manifestou a nível local) e na segunda parte centro-

me nas práticas culturais e na tradição festiva das comunidades da região, terminando

com uma referência à questão do bairrismo.

3.1 - A chapelaria, o calçado e o movimento operário local

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Entre a Fábrica e a Comunidade

142

Ao longo da Idade Média, SJM foi um pequeno aglomerado rural como tantos

outros, inserido durante séculos no vasto condado senhorial das Terras de Sta. Maria da

Feira101, no qual permaneceu enquadrado até ao ano de 1801. Só nesse ano, e na

sequência da nova divisão administrativa, a então aldeia foi integrada como freguesia do

concelho de Oliveira de Azeméis, onde se manteve até à obtenção da autonomia

concelhia (em 1926). Dois anos antes tinha conquistado o estatuto de vila.

À entrada do último quartel do século XIX, Pinho Leal referia-se, no seu Portugal

Antigo e Moderno (1875) às actividades comerciais e industriais da freguesia de SJM,

indicando que “nela residem os maiores negociantes de manteiga nacional” e que “o

primeiro negociante de cavalos de Portugal é desta freguesia” e ainda que “exporta em

grande escala, para o Porto, Estremadura, Alentejo e Espanha, os seus chapéus de lã de

óptima qualidade, e também exporta constantemente para o Porto, gado bovino para

embarque, géneros agrícolas, madeiras, lenhas, etc.”. O mesmo autor salientava ainda

que à excepção da própria cidade de Aveiro SJM era então a localidade mais comercial

do distrito, devendo-se todo esse progresso ao “génio empreendedor, ao amor ao

trabalho, à energia e coragem de seus habitantes”, prevendo ainda o seu

desenvolvimento: “tudo leva a acreditar que a povoação de S. João da Madeira (que

nem ainda tem foro de vila!) será, ainda nos nossos dias, uma das primeiras do distrito

(…) sobretudo se o governo, atendendo ao grande desenvolvimento (…) mandar abrir

as estradas de que precisa, para chegar ao apogeu da sua prosperidade” (Leal, 1875: 20-

22). Esta exaltação do espírito empreendedor das populações da região começava então

a dar substância ao discurso paternalista das novas elites industriais e constituiu um

importante factor de promoção do espírito bairrista em SJM, tema a que voltarei na

101 O outrora designado “território santamariano” compreendia as terras situadas entre a margem sul do

rio Douro e o norte da bacia do Vouga, fazendo fronteira a sul com o Caima e nele se inseriam os

actuais concelhos de Gaia, Gondomar, Castelo de Paiva, Arouca, Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra,

Estarreja, Ovar e Espinho (cf. Leal, 1875: 267 e Vários, Monografia do Vale do Vouga, 1983).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

143

parte final deste capítulo. Importa para já situar a análise no arranque da

industrialização e no movimento operário deste período.

Tratando-se de um fenómeno de natureza societal e global, a estruturação do

tecido industrial e das classes sociais encontra, sem dúvida, nas instâncias regionais e

locais mediações fundamentais – de natureza cultural, económica e social – que lhe

conferem uma complexidade e configuração específicas. O estudo desse fenómeno pode

permitir-nos pôr em relevo novas vertentes da nossa história social recente, uma vez que

a dimensão local permanece estreitamente vinculada às tendências mais gerais do

processo de industrialização e do movimento operário emergente em Portugal. Apesar

das suas características dispersas e da sua fragilidade (Mónica, 1986), as experiências

sindicais e organizativas desta fase constituíram uma etapa fundamental na formação da

classe operária portuguesa. Para além do incontornável impacto disruptivo desse

processo sobre as culturas tradicionais, em regiões como esta, a implantação da

racionalidade capitalista não deixou de se apoiar em inúmeras contradições,

nomeadamente as que derivam do necessário esforço de adaptação às comunidades

socioculturais pré-existentes. Sem esse esforço, os resultados económicos teriam sido

certamente muito diferentes.

O âmbito regional deste estudo justifica que a análise seja situada, num primeiro

momento, no âmbito mais genérico da indústria local. Mas, são sobretudo as indústrias

da chapelaria e do calçado que merecem maior atenção. A primeira, porque foi o

primeiro sector responsável pela industrialização da localidade e pelas primeiras

movimentações operárias que aí tiveram lugar. Os operários da chapelaria foram, por

assim dizer, os primeiros porta vozes dos trabalhadores industriais da região e, portanto,

o primeiro factor da sua estruturação enquanto classe social. Ao longo do século XIX, a

chapelaria foi-se deslocando progressivamente para o norte do país, ao mesmo tempo

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Entre a Fábrica e a Comunidade

144

que decaíam as fábricas sediadas em Lisboa e, nas primeiras duas décadas do século

XX, a vila de SJM acabou por se impor como o principal núcleo industrial deste sector.

Quanto à segunda, o sector do calçado, encontrava-se igualmente em franca

expansão desde finais do século. Esta, foi efectivamente a indústria que – dadas as

próprias características do processo produtivo e a sua tradição artesanal e familiar – teve

maior impacto na dispersão da mão-de-obra pelas comunidades rurais da zona, tendo

esta ligação permanecido até à actualidade. Em todo o caso, as primeiras estruturas

associativas da sapataria (refiro-me ao associativismo de ofício que ao longo da Idade

Média foi enquadrado pelas irmandades religiosas), são contemporâneas ou antecedem

mesmo as da chapelaria102. Muito embora seja meu objectivo focalizar a análise em

SJM, não pode esquecer-se que a estruturação do seu tecido industrial sofreu uma

notável influência das cidades do Porto e de Aveiro e, por isso mesmo, faz todo o

sentido situar a abordagem do movimento operário e do processo de industrialização no

âmbito mais vasto da zona inserida no triângulo Aveiro - Porto - Braga.

3.1.1 - A primeira fase de industrialização: a chapelaria e o calçado

A indústria chapeleira

102 Nos primórdios da organização profissional do „Officio de Çapateyro‟ da região Norte está a

Irmandade Religiosa de S. Crispim e S. Crispiniano, sediada no Porto. Sob a designação de Palmeiros,

nome atribuído na Idade Média aos romeiros e peregrinos regressados da Palestina ou de passagem para

o lugar santo de Santiago de Compostela, ficou conhecida a confraria dos sapateiros cuja sede se

instalou em 1592 (sob Compromisso assinado por Filipe II de Espanha) no também chamado Hospital

dos Palmeiros. Os santos Crispim e Crispiniano, então reconhecidos na Europa como os protectores do

Ofício de Sapateiro, deram o nome a esta Confraria que albergou e protegeu os confrades Sapateiros e

Surradores/Curtidores do Porto, angariando grande prestígio na vasta Comarca de Entre Douro e Minho,

influenciando toda a actividade económica do Norte e Centro e assumindo-se como uma das mais

representativas forças corporativas do Reino (Mesquita, 1988: 10). No caso dos Chapeleiros há que

notar que “até à extinção da organização corporativa dos mesteres (em 1834), é possível que o termo

não tivesse sequer chegado a entrar na terminologia regimental, aparecendo o ofício de chapeleiro sob a

designação de „sirgueiro‟ [= o que, em Lisboa, vendia chapéus, segundo o Dicionário de Morais]”

(Mónica, 1979: 885). Anteriormente, os „sirgueiros‟ surgem organizados no ofício de São Miguel-o-

Anjo, enquanto os „sombreireiros‟ [= fabricante ou vendedor de sombreiros, ou chapeleiro, segundo o

Dicionário de Morais] pertenciam à bandeira de Santa Rufina e Santa Justa, isto segundo a regulação da

Casa dos Vinte e Quatro por D. João III, em 1539. Mais tarde, no alvará de 1771 que reorganizou a

representação dos ofícios, os sirgueiros continuaram sob a bandeira de São Miguel, mas foram

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Entre a Fábrica e a Comunidade

145

A produção chapeleira tem em Portugal uma longínqua tradição, embora até ao

século XVIII predomine a produção artesanal, caracterizada pela enorme dispersão de

pequenas oficinas dedicadas fundamentalmente à fabricação de chapéus rústicos de lã

grossa ou de pano, utilizadas nas lides da vida rural. Como refere Filomena Mónica, só

com a política pombalina, a partir de meados do século XVIII, se tenta modernizar esta

actividade em termos industriais, com a criação de unidades dedicadas à produção de

chapéus de luxo que até aí eram importados, principalmente de França (Mónica, 1986:

24). No âmbito do incremento industrial desencadeado pelo Conde da Ericeira e pelo

Marquês de Pombal, surge em 1759 a primeira indústria a introduzir como matéria-

prima o pêlo de coelho e de lebre, a “Real Fábrica dos Chapéus” situada na Quinta da

Garamela, perto da vila de Pombal (Amaral, 1967: 93). Este produto, cuja importação

havia sido proibida a fim de estimular a produção nacional, viria mais tarde a constituir

a base principal de fabrico de chapéus „finos‟, pautando-se pelas exigências da moda

procurada pelas classes privilegiadas e pelo gosto citadino. Entretanto, o sector da

chapelaria foi-se concentrando no Norte do país ao longo do século XIX, ao mesmo

tempo que as pequenas “fábricas” e oficinas da capital iam desaparecendo ou perdendo

importância103.

subdivididos em dois ofícios, os „sirgueiros de chapéus‟ e os „sirgueiros de agulha‟. Por outro lado, os

„carapuceiros‟, não estavam junto dos sombreireiros mas com os alfaiates (Mónica, 1979, nota 94: 884). 103 Devido às exigências técnicas no tratamento químico das peles, daqui resultaria mais tarde o

aparecimento da “indústria do pêlo”, em estreita dependência do sector da chapelaria, cujas vicissitudes,

derivadas da dispersão e descoordenação, viriam a culminar já nos anos 40 do século XX com a

fundação da Cortadoria Nacional do Pêlo, Lda., que ficou sediada em S. João da Madeira. Até meados

do século XIX, os dados mais remotos referentes à chapelaria reportam-se ao Inquérito às Fábricas do

Reino, elaborado em 1814 que regista a existência de 35 fábricas de chapéus distribuídas por Elvas,

Évora, Guarda, Lisboa, Moncorvo, Porto, Setúbal, Torres Vedras e Viseu, figurando à cabeça da lista

Lisboa, com 21 unidades, seguida de Torres Vedras com cinco e o Porto com três (in Mónica, 1986:

24). Note-se, porém, que o termo „fábrica‟ tinha então um sentido diferente da conotação actual, pois

indicava mais o processo de fabricação do que o tipo de unidade produtiva, que hoje possui. Nesse

período, as oficinas artesanais concentravam-se na zona de Alfama em Lisboa (Macedo, 1982: 94).

Produziam manualmente chapéus de palha, de pano e de lã grossa, dando resposta ao mercado nacional,

excepto no que se referia à parcela de modelos mais sofisticados, como os de plumagem e de castor, que

eram importados pelas classes aristocráticas. Essa importação chegou a ser proibida pela Lei Pragmática

de 1677 e mais tarde reautorizada, em 1692 (Macedo, 1982). Veja-se também, sobre a indústria de

chapelaria, Bonifácio (1980).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

146

A primeira indústria de chapéus que se conhece em SJM, surgiu em 1802 e era

propriedade de J. Gomes de Pinho. Além desta, nasceram, ao longo do século passado,

diversas fábricas, atingindo em 1862 um total de quinze unidades, distribuídas pelos

seguintes locais: lugar das Vendas, com 5 fábricas fundadas nos anos de 1820, 1848 e

1858; lugar de Casaldelo, com 5 fábricas fundadas em 1802, 1822, 1833 e 1853; lugar

de Pedaço, com duas fábricas fundadas em 1852; lugar de Quintã com uma fábrica

nascida em 1859; lugar de Corgas, com uma fábrica criada em 1842; e, lugar das

Fontainhas, com uma fábrica fundada em 1848 (Amaral, 1967: 127). Os dados referidos

por Filomena Mónica indicam que na década de 1860 existiam no distrito de Aveiro

“600 pessoas ligadas à chapelaria de lã. Nas oficinas trabalhavam cerca de 500 pessoas

de ambos os sexos, das quais 230 eram menores, auferindo apenas uma gratificação

proporcional ao tempo que tinham de ofício” (Mónica, 1986: 27).

Quer na chapelaria, quer no calçado o trabalho domiciliário e a pequena

agricultura familiar sempre funcionaram como importantes complementos na

viabilização destas indústrias na região. Devemos portanto interrogar-nos não quanto à

existência destas práticas há cem anos atrás, tanto mais que se trata de um contexto de

pequeno campesinato, mas sim quanto à força persistente da lógica rural que tem

conseguido manter até aos dias de hoje uma estreita conexão com a implantação

industrial. Reportando-se a este período, Fátima Bonifácio assinala a importância deste

fenómeno em contraponto com o crescimento da chapelaria. O Inquérito Industrial de

1881, embora destacando as três maiores unidades industriais que no distrito de Aveiro

empregavam 28, 26 e 8 pessoas (produzindo a primeira 48 mil chapéus por ano e as

duas últimas, 12 mil e 3 mil, respectivamente), indica que, ao lado destas três fábricas,

existiam mais 800 pessoas ocupadas no fabrico de chapéus de lã, que “trabalhavam

anualmente, com mais ou menos continuidade, ou em casa, ou em pequenas fábricas “

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Entre a Fábrica e a Comunidade

147

(Bonifácio, 1980). Ainda de acordo com este último estudo, referem-se como principais

locais de concentração da chapelaria no distrito, nesse mesmo período, Oliveira de

Azeméis, Vila da Feira e SJM. A tendência do sector apontava então para uma

ampliação da dimensão das indústrias e consequente diminuição relativa do trabalho ao

domicílio, mas a matéria-prima continuava a ser a lã.

É só nos finais do século, em 1891, que aparece em SJM a primeira fábrica de

chapéus de pêlo. Tal como a fábrica de Pombal significou o início de uma viragem

nesta indústria ao nível nacional, também esta nova empresa sanjoanense – Oliveira,

Palmares e Cª. – constituiu o arranque da “moderna” indústria chapeleira na vila de

SJM, a qual chegou a atingir no ano de 1909 uma produção de cerca de 150.000

chapéus104. O crescimento e a importância local desta fábrica foram enormes nesta

altura e em 1914, fruto da iniciativa do seu fundador, teve lugar uma remodelação e

ampliação das suas instalações com a construção de um novo edifício de grandes

dimensões equipado com as mais modernas máquinas existentes na época. Nascia então,

sob nova designação, aquela que constitui ainda hoje a maior unidade do país: a

“Empresa Industrial de Chapelaria”.

Muito embora o seu arranque tenha desencadeado um dos mais significativos

movimentos de contestação a nível local, o seu proprietário tornou-se uma figura grada

da vila. Foi condecorado pelo governo de Salazar com a medalha de „Mérito Industrial e

Agrícola‟ e recebeu o título de „Comendador‟; desempenhou o cargo de provedor da

Santa Casa da Misericórdia; instituiu um fundo para assistência aos pobres; e fundou

também um asilo para crianças órfãs. Além disso, foi alvo de várias homenagens da

população (que lhe mandou erigir um busto) e do município (que atribuiu o seu nome a

uma das principais ruas) como actos de “reconhecimento e gratidão” pela sua acção

104 Segundo informação do proprietário, José António de Oliveira Júnior (in Anais do Município de

Oliveira de Azeméis, 1909, p. 148).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

148

pioneira de impulsionador da indústria local e também pelos seus actos de “benemérito

e de altruísta” (Revista Terras da Nossa Terra, ano 21, 1984; e Amaral, 1967: 128).

O exemplo deste industrial favoreceu o processo de ampliação e mecanização de

outras unidades industriais – levando alguns analistas a sublinhar a importância decisiva

desta vila em matéria de chapelaria, cuja evolução foi “rápida e sempre crescente” – e

fez com que, principalmente desde princípios do século XX “todos os problemas

ligados à indústria e comércio da chapelaria, se fizessem sentir em especial nesta terra,

na medida em que, entre todas as outras que se dedicavam ao fabrico de chapéus, foi ela

a que mais evoluiu (…) mercê das suas características próprias, com o seu espírito de

luta e amor ao trabalho (…)” (Amaral, 1967: 134). A natureza “laboriosa” da população

local era, como atrás referi, um aspecto já nesta época bastante enfatizado em diversos

documentos como, por exemplo, numa publicação datada de 1919: “a indústria da

chapelaria, que vem exercendo há mais de um século e que há dez anos tomou um tão

grande incremento, que tornou esta freguesia a primeira do concelho e uma das

principais do distrito. O seu povo, que também se dedica ao comércio, é activo e de tão

entranhado bairrismo, que não conhecemos outro que se lhe compare, não se poupando

a sacrifícios quando se trata do progresso da sua terra” (Arede, 1919: 122). Outras

fontes confirmam que este período foi de grande impulso do sector chapeleiro a nível

local: em 1909 a Associação de Classe de SJM queixava-se que a situação global da

indústria era péssima e “a chapelaria de lã vai definhando anualmente” – talvez fruto da

concorrência das fábricas mais modernizadas do Porto – e em 1910 não existia ainda

qualquer mecanização nesta localidade; passados apenas sete anos, segundo os dados

referentes a 1917, SJM surge já na frente do sector, com 18 fábricas e 712 operários (L.

Costa, 1987: 36).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

149

As várias vicissitudes que o sector atravessou, nomeadamente os problemas

ligados à imposição de pautas aduaneiras (em 1892)105, estiveram na base das principais

movimentações associativas dos chapeleiros na viragem do século. Mas, apesar da

resistência contra a mecanização da indústria ter tomado, em alguns casos,

características inspiradas no “ludismo”106, o processo de modernização era irreversível e

foi este sector produtivo de chapéus de pêlo e de feltro (os chamados artigos “finos”)

que progressivamente se impôs aos tradicionais métodos de fabrico artesanais. Outras

crises viriam a surgir mais tarde, já no período salazarista, originando novas tentativas

de reorganização, então sob a tutela do Estado Novo, às quais adiante farei referência.

A indústria do calçado

A situação do ramo do calçado na viragem do século não diferia muito da

chapelaria. Os relatórios oficiais da época referem-se ao estado frágil e insipiente da

produção de calçado em moldes “industriais”, mas sublinham a sua importância

socioeconómica (Recenseamento Industrial, 1890). O regime de trabalho era

predominantemente artesanal e domiciliário, apenas permanecendo nos estabele-

cimentos os oficiais cortadores, as mulheres e os menores. Ao fabricante domiciliário,

um par de calçado acabado demorava cerca de 14 horas a ser executado e no final

recebiam aproximadamente 600 réis por cada um, pago pelos industriais (apenas

referente ao preço da mão-de-obra, já que as peles eram levantadas na fábrica já

cortadas). A indústria estava “tão dividida, tão deslocada, extremamente mesquinha e

enfezada, num tal grau de atraso nos processos de fabrico, disseminada por milhares de

miseráveis oficinas, à beira duma maior invasão dos calçados mecânicos provenientes

105 Primeiro reivindicadas pelas associações operárias e mais tarde contestadas, segundo Filomena

Mónica (1986). 106 Este conhecido movimento foi desencadeado em Inglaterra nos princípios do século XIX pelos

artesãos (principalmente os do sector têxtil) contra a introdução de máquinas na indústria. Recorreram

muitas vezes a métodos violentos, destruindo as máquinas durante a noite e desaparecendo sem deixar

rasto. A sua acção de luta contra o maquinismo que estava a acabar com a arte e os ofícios, lançando no

desemprego milhares de operários, era efectuada em nome de um mítico General Ludd.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

150

das grandes fábricas estrangeiras, para cuja defesa era importante, com toda a urgência,

que se procedesse à aplicação no calçado importado, duma elevada taxa aduaneira”

(Inquérito Industrial de 1881 in Mesquita, 1988: 84). Em finais do século XIX as

“fábricas” de calçado existentes eram pouco mais do que estruturas embrionárias de

organização e coordenação de uma produção dispersa, domiciliária e totalmente

elaborada segundo a tradição artesanal dos ancestrais sapateiros. A produção de calçado

em moldes industriais começou a concorrer com a chapelaria, não tanto pela quantidade

de mão-de-obra que directamente absorvia mas justamente porque arrastava atrás de si

um leque variado de situações de emprego precário e de trabalho ao domicílio,

funcionando em geral sob condições humanas de extrema dureza. Uma situação que,

como se sabe, se manteve em larga medida até aos dias de hoje.

Em SJM a primeira unidade industrial de calçado nasceu por volta de 1880107,

inicialmente dedicada “ao fabrico de botas por encomenda, (...) empregando 5

operários” (O Regional, 31/7/85). Foi, contudo a fábrica de Manuel Gomes da Silva (a

“Gomes e Filhos”, sediada em Lisboa) que nessa mesma década introduziu os primeiros

equipamentos mecânicos no fabrico de calçado. Em 1887 esta empresa possuía nove

máquinas de costura e uma variedade de outras, chegando a fabricar cerca de 100 pares

por dia108. Mas a produção “em série” que este pioneiro de Lisboa tentou desenvolver

não conseguiu obter êxito em SJM devido à falta de escoamento e às elevadas despesas

de importação de boa parte das matérias-primas109. Nessa época, Portugal era,

107 Trata-se da “Sapataria da Moda”, que foi criada por um antigo sapateiro, Gaspar de Almeida Pinho e

segundo a fonte consultada, foi fundada entre 1880 e 1883. 108 A firma “Gomes e Filhos”, situada na Rua dos Fanqueiros em Lisboa era propriedade de Manuel

Gomes da Silva. Além das máquinas de costura tinha introduzido outras para as seguintes funções:

cortar sola; coser sola; palmilhar; cortar tacões; apertar saltos; tornear saltos; máquina de contrafortes.

Este industrial possuía ainda uma segunda unidade no Porto, com 25 operários e um depósito em

Espinho. 109 Importavam-se na última década do século passado materiais como: couros envernizados; pelicas

pretas; peles de cabrito pretas; saltos; formas; fios de coser; ilhoses; colchetes; botões; e fivelas. No

mercado interno eram adquiridos: solas; pelicas brancas; peles de vitela brancas; atanados; e elásticos

(Recenseamento Industrial de 1890).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

151

literalmente, um país de “pé descalço” e o mercado brasileiro vinha sofrendo a forte

concorrência de outros centros produtores, como a Inglaterra, a Alemanha e a França.

Em 1897 surgiria na vila uma outra empresa que marcou a expansão posterior da

indústria de calçado em SJM. Fundada por Vitorino Tavares Lisboa, a sua produção foi,

numa primeira fase, destinada a feiras e mercados da região, sobretudo em Espinho e

Ovar, para onde, inicialmente, era levada a pé pelas recoveiras (O Regional, 31/7/85).

Mas é sobretudo com o eclodir da I Guerra Mundial que a indústria começa de facto a

expandir-se sob o impulso deste último industrial, abastecendo as tropas do exército

português estacionadas na Flandres. O grande aumento das encomendas levou outros

sapateiros a criar as suas pequenas indústrias, alguns deles, de início, produzindo para o

próprio Tavares Lisboa, num surto de crescimento que arrastou uma vasta rede de

fabricantes que iam de Braga a Oliveira de Azeméis (O Regional, 31/7/85). Apesar

disso, em 1920 apenas existiam em SJM quatro unidades industriais de calçado, número

este que foi aumentando ao longo dos anos 20 e atingiu um total de 16 fábricas em 1930

(Martins e Sousa, 1944). A progressiva implantação do sector do calçado em SJM viria

a introduzir novos elementos em termos do significado e das consequências do processo

de industrialização a nível local. Um dos aspectos a que me refiro prende-se, não com as

relações contratuais domiciliárias de tipo informal, mas com o facto de às características

artesanais deste tipo de indústria se somar a grande facilidade do seu desmembramento,

permitindo a instalação de pequenas unidades com custos relativamente baixos e sem

necessidade de ocupação de grandes superfícies, o que não era o caso, por exemplo, da

chapelaria. Foi assim que, a partir desta altura as pequenas unidades do sector (fábricas

de pequena e média dimensão nuns casos, ou oficinas de carácter familiar – as

chamadas “sapatarias” – que são criadas para alimentar as maiores empresas, noutros

casos) começaram a nascer, não só na própria vila como em muitas aldeias vizinhas que

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Entre a Fábrica e a Comunidade

152

continuavam a viver predominantemente da pequena agricultura familiar. Arrifana,

Santiago de Riba-Ul, Vila Chã de S. Roque, Cucujães, Escapães e Nogueira do Cravo,

além da rival e também vizinha vila de Oliveira de Azeméis, contam-se entre as

primeiras povoações que a partir da década de 20 seguiram o núcleo de SJM na difusão

da produção de calçado: “(…) as unidades de fabrico situavam-se em qualquer sítio,

fosse ou não o mais aconselhado, sem grandes preocupações de criar condições de

trabalho para os empregados. Muitos faziam encomendas a tarefeiros que recebiam à

peça (…). Trabalhava-se até 14 horas por dia, a família inteira, para satisfazer os

pedidos dos industriais” (Oliveira, 1989).

3.1.2 - Condições de vida do operariado nos princípios do século XX

A imagem do operário e o seu modo de vida eram aferidos nesta época pela figura

do operário da chapelaria, cujas dificuldades e condições de vida são bem ilustradas no

romance Unhas Negras, de autoria do sanjoanense João da Silva Correia. Apesar de se

tratar de uma versão ficcionada da realidade social de SJM, esta obra retrata com grande

realismo o dia-a-dia do ambiente operário deste período110, com a indústria da

chapelaria como pano de fundo. Vejamos uma passagem em que um pequeno patrão

(Sarmento) dialoga com um operário (Ferreira), a propósito das consequências da

mecanização que a nova empresa iria introduzir:

“Percebendo a emoção do operário ante a ameaça terrível, senhor Sarmento

carregou semblante desolado, emudecendo.

Parecia que pouco faltava para chorar.

Depois de longa expectativa, sempre continuou:

– Olhe que eu, Ferreira, tenho passado noites inteirinhas sem pregar olho, só no

receio do dia de amanhã. E não é apenas por mim (deixe-me dizer-lhe...). É

por mim e pelos meus operários!

110 Numa crónica do jornal local em 1954 afirma-se que aquele romance espelhava bem “o sofrimento,

digamos socialmente injusto e até cruel dos operários chapeleiros da nossa terra, nos alvores deste século”

(O Regional, 2/5/54).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

153

Nova pausa, e semblante sempre carregado de amargura. Por fim, de maneira

ainda mais tétrica, lá desembuchou:

– No dia em que a Fábrica Nova puser a funcionar a tal maquinaria moderníssima

vinda lá da Alemanha ou dos infernos, que vomita chapéus impecáveis às dezenas

ou até às centenas por fornada, quase que sem encargos de mão-de-obra, nesse dia

que já não vem longe, o que nós todos temos a fazer, meu caro Manuel Ferreira,

mas todos, já não é tratar de um hipotético horário de oito horas de trabalho. A

coisa fica resolvida por natureza! E o que temos a fazer é amarrar as mãos na

cabeça e deixarmo-nos ir para o fundo, como macaco em ribeira. Não estou a

carregar o quadro de tons sombrios... Ah!... Não vale a pena! As cores são essas

mesmo! Que diabo!... (…)

– Se eu fosse operário fazia como os tecelões de Lancashire, na Inglaterra, quando

lá apareceu o primeiro tear mecânico. Punha em pé de guerra todos os meus

companheiros, ia com eles à Fábrica Nova e antes mesmo das maravilhosas

máquinas nos reduzirem à miséria, reduzíamos nós as máquinas a sucata.

Perante estas palavras, Manuel Ferreira coçou de novo a cabeça numa hesitação

cruel, cogitando: „como se não bastasse o mar bravo das angústias que

tinham a vencer dia por dia, ainda aparecia agora, para cúmulo, o pesadelo

da Fábrica Nova. Porque – pensava – o seu patrão não estava a exagerar. Se

as tais máquinas eram coisa tão perfeita como se dizia... adeus fulas; adeus

apropriagens; adeus toda essa complicada engrenagem de sacrifícios

mediante a qual os pobres ainda tinham a sua oportunidade de trocar sangue

por pão‟” (Correia, 1953: 68-70).

Nos diálogos vivos destes personagens ressaltam as clivagens locais entre os

proprietários industriais: de um lado os das fábricas grandes e mecanizadas; de outro os

das pequenas e tradicionais oficinas. Esta estratificação entre os empresários favorecia

situações como a anterior que parece corresponder a uma aliança de classes entre

pequenos patrões e operários contra o “inimigo comum” prefigurado pelos pioneiros da

maquinaria moderna na região. Mas o desenvolvimento da produção “moderna” de

chapéus de “luxo” (em pêlo), parece ter também aprofundado as contradições no seio da

classe: os operários da produção moderna, ou seja, “do fino”, de um lado; e os das

oficinas tradicionais, “do grosso”, de outro.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

154

“– Fala-se para aí em oito horas de trabalho, em regalias ao operariado, em coisas

e loisas; só não se fala bem a sério é dos desgraçados da lã, tão castigados de

fadigas, afinal de contas, que nem direito têm de dormir a noite inteira na cama,

como todos os demais filhos de gente arrecebida.

Os do fino, perto de vocês são uns lordes!

– Todos querem qualquer coisa... – sentenciou Pimpão [operário] sempre

lentamente – Eles, os do pêlo, dão saltos de corça pelas oito horas de trabalho;

enquanto nós, os do grosso, já éramos felizes se, em vez de cinco, nos deixassem

descansar, de fio a pavio, sete noites por semana (…)” (Correia, 1953: 13-14).

Para além da ambiguidade das relações entre patrões e operários o que sobressai

destas passagens é a submersão das unidades produtivas na lógica tradicional das

comunidades locais e a força das afinidades pessoais a entrar em choque com os novos

antagonismos classistas em emergência. Note-se que nesta altura as relações sociais

eram ainda muito marcadas por vínculos de tipo senhorial. O capitalismo emergente não

apagara a proximidade dos laços entre trabalhadores pobres e pequenos patrões ou

artesãos remediados. Perante situações de extrema pobreza, o paternalismo dos

pequenos proprietários, partilhando o mesmo espaço comunitário, levava-os muitas

vezes a atitudes protectoras e filantrópicas face aos mais miseráveis.

Também os assalariados do calçado viviam, por altura da queda da monarquia, em

condições extremamente degradantes. De acordo com a Inquirição da Situação do

Operariado (1910), as despesas semanais relacionadas com a alimentação típica de uma

família operária do sector do calçado – efectuada à base de produtos como: pão de trigo;

broa; arroz; feijão; azeite; unto de porco; couves; café – somavam cerca de 3$900 (três

mil e novecentos réis); o rendimento para o mesmo período de uma semana era, em

média, para um sapateiro em regime domiciliário de 3$000 e para uma mulher

gaspeadeira no mesmo regime, entre 1$200 e 2$500; depois de deduzida a renda da

habitação (1$800 réis mensais) e despesas com vestuário, com a saúde, com as crianças,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

155

etc., facilmente se vê que não poderia haver lugar para artigos como a carne, o peixe, o

leite ou a fruta (Mesquita, 1988: 90).

As condições de vida da classe operária – fosse na chapelaria, no calçado ou

noutro sector – eram extremamente duras, os aprendizes começavam a trabalhar com 9

ou 10 anos, sem qualquer “paga” nos primeiros tempos, passando ao fim de vários

meses ou mesmo de um ano, a receber aproximadamente 20 réis por dia. Os horários de

trabalho eram igualmente variados, mas podiam oscilar entre as 11 e as 16 horas diárias.

3.1.3 - Associativismo e clivagens ideológicas na chapelaria e no calçado

No que se refere à vertente associativa, para além das estruturas de tipo mutualista

e corporativo da era pré-industrial, alguns autores assinalam como sendo as primeiras

estruturas autónomas do sector chapeleiro (após a extinção dos mesteres): a Associação

Fraternal de Chapeleiros e Sirgueiros de Lisboa (criada em 1853); e a Associação de

Trabalho dos Chapeleiros Lisbonenses (1865). Contudo, os seus estatutos mantinham

ainda uma base corporativa, incluindo os donos de fábricas e de lojas, oficiais de fula,

sirgueiros de agulha e operários e aprendizes das mesmas artes (Mónica, 1979: 885). No

movimento associativo repercutiam-se, como não podia deixar de ser, todas as

contradições que desde os anos setenta do século XIX até à queda da Monarquia

atravessaram a sociedade portuguesa, nomeadamente as clivagens sociais, políticas e

ideológicas que se digladiavam na base das diferentes correntes de opinião que

fervilhavam em todos os campos da vida social – católicas, socialistas, republicanas,

integralistas e anarquistas (veja-se Mónica, 1979; Cruz, 1980; Cabral, 1979; Freire,

1992).

A fragmentação do associativismo das velhas corporações profissionais, devido à

emergência das novas ideologias “de classe”, não deixava de constituir uma

preocupação dos industriais desta primeira geração. O sector do calçado dá-nos também

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156

exemplos disso. A direcção da Associação Industrial dos Logistas de Calçado de Lisboa

(presidida por Manuel Gomes da Silva) afirmava em 1890 ter como objectivo central

travar a “propaganda socialista [que] tem procurado criar associações de classe, em que

são admitidos exclusivamente operários, estas são principalmente destinadas à

resistência contra os patrões e procuram fundos para alimentar greves”. Talvez que o

maior avanço na mecanização e na concentração das profissões em Arruamentos de

Officios na capital, favorecessem o germinar de ideologias revolucionárias111. O

relatório anual daquela associação assinalava “o ódio ao capital, alimentado pelos

jornais sindicais que advogam que as fábricas deviam pertencer aos operários”, apesar

de reconhecer, naquele ano de 1890, que “a relação entre operário e patrão não está

ainda muito degradada (...)”. Todavia, a associação já se apercebia dos sinais da

insubmissão operária e alertava para a necessidade de dar atenção “não apenas aos

salários, porque os trabalhadores vivem empilhados em imundas habitações” (Mesquita,

1988: 85).

A imprensa operária de influência socialista – por exemplo, os jornais O Protesto

Operário e O Chapeleiro – advogava, na viragem do século, o combate, não só ao

patronato mas também aos “operários apáticos” e conciliadores, considerados

“amarelos”, a fim de “consolidar uma organização, criar uma força, constituir um poder

que se possa opor às prepotências, à força e ao poder capitalista” (O Chapeleiro,

8/10/1905 citado por Mónica, 1979: 892). A dinâmica do Partido Socialista até à

implantação da República, oscilando embora entre a descrença na ideia republicana e a

sua aceitação como um “mal menor”, chegou a obter um largo controle no seio dos

111 Ao contrário do que acontecia em Lisboa, na estrutura urbana do burgo do Porto não se instituíram

os arruamentos de ofícios (Carta Régia de D. João I, no ano de 1395), antes se mantiveram escalonados

em Oficiais, Mestres, Obreiros e Aprendizes. Também na cidade de Lisboa, data de 1563 um acordo

com o Prior e Cabido da Igreja Paroquial de S. Mamede de criação da Confraria dos Sapateiros de

Lisboa, enquanto os Curtidores se agrupavam na Confraria das Almas sediada na Igreja Matriz de S.

Pedro de Alfama.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

157

operários da chapelaria, nomeadamente através da Federação Nacional dos Operários

Chapeleiros Portugueses, com sede no Porto. Embora os socialistas tenham, por vezes,

sido conciliatórios perante a força dos anarquistas e participado em iniciativas

conjuntas, os chapeleiros foram, no dizer de Filomena Mónica, “dos poucos que

resistiram ao fascínio do anarco-sindicalismo” (1986: 57). Estes vinham, entretanto,

ganhando terreno, principalmente após a consolidação do novo regime republicano,

alcançando uma hegemonia crescente no seio do movimento operário português (nas

várias tentativas de unificação associativa) juntamente com os socialistas e outras

correntes na organização dos vários congressos nacionais112, entre 1909 e 1925. Ponto

culminante desta acção foi a fundação da Confederação Geral do Trabalho (CGT),

criada em 1919, em Coimbra (Freire, 1992: 126). Braga da Cruz (1980) assinala ainda a

importância fundamental do associativismo de inspiração cristã que deu origem aos

círculos operários católicos (CCO) situando a sua evolução em três fases: a primeira

fase surge em meados do século XIX, e dedicou-se a combater o liberalismo e a reflectir

sobre formas de intervenção na vida política, admitindo então transformar-se em

“partido católico” (é a fase do associativismo católico anti-liberal); a segunda fase

correspondeu ao período de lançamento dos primeiros Círculos Católicos Operários

(CCO) em 1898 até à implantação da República (é a fase do „sindicalismo‟ católico

anti-socialista); e a terceira fase é uma fase de intervenção política organizada, já em

plena República, que culmina com a criação do Centro Católico Português, em 1917, o

112 Segundo os dados de João Freire, ocorreram sete congressos nacionais interprofissionais neste

período: Congresso Operário Sindical e Cooperativista (Lisboa e Porto, 1909); 2º Congresso

Sindicalista/criação da União Geral dos Trabalhadores (Lisboa, 1911); Congresso de Tomar/criação da

União Operária Nacional (1914); conferências da UON (Lisboa e Porto, 1917); Congresso de

Coimbra/fundação da CGT (1919); Congresso da Covillhã (1922); e Congresso de Santarém (1925).

Ainda de acordo com as estimativas deste autor, o número de efectivos sindicalizados terá atingido o

seu ponto alto em 1922, o período mais forte da CGT e talvez do movimento operário no seu conjunto,

com cerca de 90 mil filiados, em 162 sindicatos (Freire, 1992: 128 e 212).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

158

qual viria, já no tempo da ditadura, a transformar-se na Acção Católica113. Dirigidos

pelas elites clerical e aristocrática, os CCO procuraram disputar o controle do

operariado às forças rivais e acabaram por se confundir com o Partido Nacionalista,

embora formalmente se procurassem manter fora da dinâmica política desse partido

conservador e católico, criado em 1903 (Cruz, 1980: 148).

Quanto ao associativismo na indústria do calçado, ele teve um papel de grande

relevo na afirmação da corrente libertária e anarco-sindicalista, principalmente a partir

da acção desenvolvida por algumas associações deste sector sediadas no Porto.

Recorde-se que o nascimento do anarquismo operário tem sido apontado como

originário da onda de greves de 1903 nesta cidade, tendo no início a encabeçá-lo os

activistas oriundos do pequeno artesanato, nomeadamente do sector do calçado. Alguns

deles tornam-se conhecidos activistas (e legaram-nos importantes obras

autobiográficas), como foram os casos de Manuel Joaquim de Sousa, um prestigiado

líder operário, e José da Silva, um activista sindical do sector, que foi um dos primeiros

aderentes do Partido Comunista Português (Cabral, 1979: 215). Por altura do triunfo da

República, já era possível identificar diversas organizações de classe no sector da

sapataria: Associação de Classe dos Operários Fabricantes de Calçado (com 195 sócios

em 1909); Associação de Classe dos Operários Manufactures de Sapatos e Fancaria do

Porto (103 sócios); Associação de Classe dos Operários Tamanqueiros Portuenses (91

sócios); Associação União de Classe dos Operários Fabricantes de Calçado de Fancaria

113 A partir do momento em que as estruturas eclesiásticas se aperceberam das ameaças ideológicas a

emergir na sociedade – o liberalismo “materialista”; o perigo socialista e revolucionário; e o anti-

clericalismo republicano – que viriam a abalar profundamente o poder da Igreja sobre a sociedade,

puseram em marcha toda uma campanha de agitação, organização e acção doutrinária, mobilizando

recursos e influências em todos os terrenos da vida social. Momento decisivo dessa campanha, que viria

a inverter a acção persecutória cada vez mais violenta de que a Igreja vinha sendo alvo ao longo dos

vários governos republicanos, foram as aparições de Fátima em 1917. Vasco Pulido Valente comenta a

forma como o número de testemunhas das aparições evoluiu de escassas dezenas para largos milhares

de pessoas entre a primeira e a terceira aparição, afirmando que “não se conhece o mecanismo pelo qual

se passou de 60 para 100 mil pessoas, ainda que nele esteja o verdadeiro segredo de Fátima”. Também

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Entre a Fábrica e a Comunidade

159

do Porto. Assinale-se ainda a Associação de Classe dos Operários Sapateiros e Defesa

das Classes Trabalhadoras, que publicou em 1910 e 1911 o jornal O Sapateiro, dirigido

por Manuel Joaquim de Sousa. Em artigo de análise à situação na indústria, o autor

(Mário Franco) refere-se à crise no sector e ao problema mais preocupante do

operariado de então: a ameaça da máquina. Considera “o desarmamento alfandegário”

como “um verdadeiro descalabro para a indústria da sapataria”, pois que, segundo a sua

leitura, favoreceu o surgimento de fábricas de calçado mecanizadas em Lisboa e Porto,

“introduzindo bruscamente na indústria da sapataria a mecânica, que, se por nós,

operários, não deve ser condenada, não deixou contudo de fazer a paralização de muitos

braços e ao mesmo tempo baratear os preços da mão-de-obra”114. Eis algumas das

principais reivindicações das diferentes associações: a luta pelas 8 horas de trabalho por

dia e por um Diploma Profissional (Associação de Classe dos Operários Tamanqueiros

Portuenses); a criação de uma Instituição de Previdência centralizada, a redução do

horário de trabalho para 8 horas diárias e um salário mínimo para homens, mulheres e

aprendizes, de 800, 500 e 300 reis diários (Associação União de Classe dos Operários

Fabricantes de Calçado de Fancaria do Porto); e um horário de 9 horas por dia, com

uma hora para almoço e que os trabalhadores do sector fossem todos sindicalizados

(Associação de Classe da Indústria dos Cortumes do Porto) (Mesquita, 1988: 92-94).

3.1.4 - Movimento grevista e acção operária na chapelaria e no calçado

Segundo José Tengarrinha, as estruturas associativas dificilmente conseguiam

enquadrar os protestos operários, sendo estes em geral de carácter espontâneo. O

movimento organizado “só nos últimos cinco anos do século XIX começa a exercer

Filomena Mónica sustenta que Fátima foi, a partir de então, o pólo da reacção da Igreja (in Oliveira,

1994). 114 Aquele articulista regista, ainda, para o princípio da última década do século passado, as várias

associações de defesa da classe dos sapateiros espalhadas pelo país, as quais, além das atrás indicadas

no Porto e em Lisboa se distribuíam pelas localidades: Viana do Castelo, Braga, Guimarães, Porto,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

160

influência positiva, embora ainda débil, na movimentação grevista e só após 1915 se

pode afirmar com segurança que a influência da organização operária se faz sentir na

movimentação grevista com considerável grau de firmeza e amplitude” (Tengarrinha,

1981: 597). A estrutura sindical era, porém, usada como meio de enquadramento legal

dos processos reivindicativos e, ao mesmo tempo, como elemento de coordenação e

organização da acção colectiva. O despoletar de um conflito de trabalho, mesmo que o

seu surgimento derivasse de descontentamentos acumulados ou motins fortuitos, era

uma oportunidade para os sindicatos ampliarem a sua base de apoio com a criação de

novos núcleos associativos que nasciam na sequência do conflito (Freire, 1992: 143).

A nível global, o movimento operário foi, no caso do sector chapeleiro, bastante

activo neste período e de grande significado na formação da consciência operária em

Portugal. Mas, como se sabe, a orientação predominante assentava em valores pré-

industriais. Na raiz dos protestos esteve a defesa da tradição artesanal, a autonomia

sobre os processos de produção e a posse de um saber e de um status de ofício que se

viam ameaçados com a emergência do capitalismo. De acordo com o estudo de

Filomena Mónica (1979), foi o processo de mecanização e a organização capitalista do

trabalho que empurraram esta camada “aristocrática” do operariado para importantes

lutas contra o “maquinismo” e de resistência ao processo de proletarização. As

chamadas “greves gerais”115 de princípios do século – a da Covilhã em 1902, a de

Coimbra em Março de 1903 e, em Maio do mesmo ano, a chamada “greve dos

tecelões”, no Porto – adquiriram uma importância significativa, quer pelo exemplo que

espalhavam no meio operário de outras regiões, com os inevitáveis efeitos de

propagação, quer pela acção repressiva a que por vezes davam origem, quer ainda pelas

fracturas profundas que a instabilidade política daí resultante introduzia entre as forças

Coimbra, Setúbal, Beja, Faro; Olhão; Silves, Santarém, Évora e Borba, tendo esta última sido aprovada

apenas em 1913 (Mesquita, 1988: 89).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

161

instaladas no poder ou que acerrimamente o disputavam. José Tengarrinha registou a

nível do país – entre 1871 e 1920 – a ocorrência de inúmeras greves, que distribui por

três períodos temporais (correspondendo aos principais marcos na mudança entre

diferentes conjunturas políticas): na primeira fase, entre 1871 e 1886, 140 greves, que

equivalem a uma média anual de 8,8; na segunda fase, entre 1887 e 1908, 1428 greves,

com uma média anual de 64,9; na terceira fase, de 1909 a 1920, ocorreram 3068

greves116, o que perfaz uma média anual de 255,7. Mas, conforme o autor alerta, à

elevada frequência não correspondeu necessariamente o mesmo grau de sucesso no

resultado, isto é, só a partir dos últimos seis anos do século de oitocentos é que a curva

da luta sindical começa a inverter-se no sentido ofensivo, numa linha de vitórias com

tendência geral ascendente e que sobe bruscamente nos anos que antecedem a revolução

republicana, continuando depois a acentuar-se (Tengarrinha, 1981: 593).

Perante o agitado panorama do movimento operário deste período a nível

nacional, importa saber até que ponto ele se fez sentir em SJM. No que respeita aos

chapeleiros sanjoanenses, as repercussões locais do movimento grevista foram sempre

de carácter pontual. Os dados existentes dão conta de três iniciativas grevistas de

carácter local, neste sector, entre 1900 e 1920: a primeira ocorreu em Agosto de 1904

numa fábrica de chapelaria, cuja duração e resultados se desconhecem (Mónica, 1979:

945); o conflito em 1914 na fábrica “Oliveira, Palmares e Cª”; e finalmente, em Junho

de 1918, há notícia de uma greve de chapeleiros em SJM, por aumentos salariais

(Rodrigues, 1981a: 166).

115 Que, embora confinadas a uma região ou cidade, abrangiam vários sectores produtivos. 116 Segundo os dados de Edgar Rodrigues (1981a: 295), só em 1918 ocorreram 108 greves (27 das

quais bem sucedidas). No quadro apresentado por este autor verifica-se ainda que entre 1912 e 1922, os

anos de maior incidência grevista são, a seguir àquele e por ordem decrescente: 1919 (48 greves); 1920

(39); 1912 (35); 1917 (26); 1922 (22); 1913 (19); etc.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

162

O conflito de 1914 em S. João da Madeira

Não sendo possível separar a acção colectiva do operariado local da conjuntura

reivindicativa mais geral pretende-se, porém, dar especial atenção aos momentos mais

significativos de agitação social no contexto industrial de SJM. Merece destaque

especial, neste caso, o movimento de 1914 de contestação à instalação da nova fábrica

de chapelaria uma vez que as suas repercussões foram muito para além do âmbito

sectorial e local. A oposição à fundação da “Fábrica Nova”, como era conhecida na vila

a Empresa Industrial de Chapelaria (atrás refenciada) foi, aliás, um acontecimento com

importantes repercussões nacionais, dando lugar a vivas polémicas nos jornais e no

movimento sindical.

Na tarde do dia 3 de Novembro de 1914, uma comissão de operários dirige-se à

fábrica acompanhada por uma multidão de cerca de um milhar de pessoas, munidas de

varapaus, machados, caçadeiras e chuços. Em atitude ameaçadora, arrombam a porta

principal e um grupo penetra no escritório, pressionando o patrão a aceitar por escrito

todas as suas exigências (O Radical, de 4, 7 e 14/11/1914; O Chapeleiro 22/11 e

6/12/1914; Mónica, 1979 e 1986). Este foi o momento culminante de uma situação que

se vinha desenrolando com a introdução de nova maquinaria e a contratação pela

empresa117 de técnicos especializados vindos da Alemanha. A revolta dos trabalhadores

sanjoanenses vinha já sendo acicatada pelo principal jornal da classe, O Chapeleiro,

(ver nºs de 18/10 e 1/11/1914). As principais deliberações foram tomadas no comício

que antecedeu esta iniciativa:

“Entre as suas resoluções foi tomada a da nomeação de uma comissão para se

entender com a firma Oliveira, Palmares e Cª a fim de ela demitir uns operários

alemães e pedir-lhes a elaboração de uma tabela de preços. Houve muita atenção

por parte dos industriais; porém, tendo todos os assistentes acompanhado a

comissão, e como esta se demorasse, houveram comentários e até que é disparado

117 A qual continuava a ser conhecida pelo antigo nome, “Oliveira, Palmares e Cª.”

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Entre a Fábrica e a Comunidade

163

um tiro de dentro da fábrica para multidão. Esta, numa ânsia de defesa e

desagravo, invade a fábrica, até que nessa altura a comissão, fazendo conhecer as

atenções dos industriais, conseguiu a retirada dos manifestantes, visto as

reclamações terem sido atendidas com a palavra de honra dos industriais” (O

Chapeleiro, 3/11/1914).

A evolução do acontecimento foi detalhadamente relatada e debatida pelos órgãos

sindicais dos dias seguintes. Embora a leitura da situação fosse nuanceada como é

natural segundo o quadrante político-ideológico das diferentes fontes, através delas

podemos ver não só o sentimento de resistência ao maquinismo que dominava o

operariado “oficinal” – aqui como noutras regiões – mas também algumas das

contradições que penetravam no seio da classe. Uma vez mais, é notória a presença dos

laços de afinidade e lealdade entre operários e patronato, como as que sobressaem no

romance Unhas Negras, atrás citado. Para além disso, pode também observar-se que

estes acontecimentos revelam não apenas a força das identidades cimentadas no “ofício”

mas ao mesmo tempo como elas são atravessadas por múltiplas clivagens, que vão dos

antagonismos classistas aos processos de reestruturação da identidade local e

nomeadamente através do discurso de cariz bairrista, nesta altura já em emergência em

SJM.

Além do porta voz sindical já citado (O Chapeleiro), dois outros jornais da região,

registam os acontecimentos do dia 3 de Novembro: um de inspiração republicana, com

sede em Oliveira de Azeméis (O Radical) e outro que se reivindicava “bissemanário

democrático” (A Opinião) da mesma localidade. Também O Primeiro de Janeiro se fez

eco desta rebelião.

Para O Radical, “o sócio principal, sr. António José de Oliveira Júnior, ouvindo

as reclamações que lhe eram feitas e temendo um ataque à sua vida, responsabilizou-se

por escrito a ceder a essas reclamações (…). Não é legal, nem justo, nem racional que, à

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Entre a Fábrica e a Comunidade

164

força, se queira impedir o funcionamento do livre comércio (…). Tais actos são fora da

lei, são anárquicos e sendo assim, não podem, ter o aplauso do público (…) (O Radical,

7/11/1914). O Primeiro de Janeiro refere por sua vez que nos tumultos sobressaíam as

mulheres “que em altos brados pediam trabalho e pão para os seus filhos”, indicando em

crónica datada do próprio dia dos acontecimentos que se tratava de uma multidão de

“talvez umas quinhentas pessoas”, corrigindo dois dias depois este número para

“superior a 800”. Por último, A Opinião começa por se referir-se à “importantíssima

fábrica de chapéus” em que os maquinismos até então utilizados foram substituídos por

outros mais aperfeiçoados, sendo por isso “obrigados a dispensar grande número de

operários”, salientando as características luxuosas das novas instalações, os requisitos

de conforto e os “progressos modernos” que o novo e amplo edifício contemplava

“dotando assim o país com uma edificação que em todos os sentidos o honra!”

(8/11/1914). O mesmo jornal passa depois ao relato e análise dos acontecimentos:

“(…) Os operários, como é de prever, não acolheram benignamente tão arrojada

empresa. Há já alguns dias que a fábrica trabalhava em experiências, devendo

começar a funcionar de vez na quarta-feira passada. Na terça-feira, porém,

começaram a aparecer nas imediações da fábrica, diversos grupos de operários, os

quais conseguiram a adesão de outras classes ao movimento que iam iniciar e,

depois de terem reunido na Associação de Classe, dirigiram-se ao edifício da

fábrica a apresentar as suas reclamações.

A direcção mandou subir ao escritório uma comissão de entre eles, ficando de

fronte do edifício multidão considerável de homens e mulheres. Enquanto, porém,

a comissão parlamentava com a direcção da fábrica, de dentro foi disparado um

tiro, que, diz-se, veio furar o guarda-chuva de um operário. Presume-se, e no meu

entender é verdade, que este exaltado procedeu por conta própria (…)

A multidão rompeu então em vaias, protestos, apupos, etc., manifestação que se

prolongou por algum tempo, ao fim do qual e à ordem do sr. regedor debandaram

todos. É para lastimar tanta demora da parte do sr. regedor em comparecer ali,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

165

pois forçosamente que uma alteração da ordem pública, prolongada durante uma

hora e meia, devia ter-lhe chegado ao conhecimento…

No dia seguinte e ao cabo de „demarches‟ entre as duas partes, chegou-se a um

acordo (…)” (A Opinião, 5/11/1914).

Ainda segundo o mesmo articulista, a principal responsabilidade destes

acontecimentos deveria atribuir-se à acção ludibriosa de “alguns ambiciosos” que se

teriam servido dos operários, ao verem na nova fábrica uma fonte de concorrência e os

seus interesses ameaçados: “(…) os operários estão sendo manejo de alguém que não se

conforma com o avanço do progresso (…) alguém que aconselha uma multidão de

desgraçados a praticar uma acção revoltante e indigna (…)”.

Um dia depois desta revolta, trocou-se uma intensa correspondência entre o

patronato e a Associação de Classe dos operários chapeleiros local. Esta, é, para

Filomena Mónica, “reveladora das ambições operárias, quer quanto às relações laborais,

quer no que respeita à mecanização (discriminando entre as máquinas que poderiam ser

utilizadas sem grande prejuízo para os operários e as que, pelo contrário, provocariam

desemprego)” (Mónica, 1979: 927). Cerca de 24 horas decorridas, a comissão de

operários recebia da direcção da empresa uma missiva onde se afirmava que “satisfazia

por completo as aspirações da classe e daquele povo”, anunciando-se que os dois

técnicos alemães tinham deixado SJM “ontem às 10 horas da noite”. Manifestando a

intenção de suspender o trabalho mecânico, o “ofício” terminava, conciliador e

aparentemente até submisso, enfatizando que “(…) desejamos que essa Associação, de

acordo com a classe, nos diga as condições em que devemos trabalhar, sem ficarmos

sujeitos a novos tumultos” (O Chapeleiro, citado por L. Costa, 1987: 46).

Nessa altura parecia, de facto, existir uma total concordância entre ambas as

partes, com a associação operária a mostrar, em resposta imediata, “o seu mais profundo

reconhecimento pelo modo altruísta como V. Exas. resolveram pôr termo ao conflito” e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

166

adiantando – entre os cinco pontos da proposta, onde se indicavam as máquinas que

poderiam funcionar e as que deveriam ser desactivadas – o reconhecimento pelo “acto

solene” que os patrões acabavam de praticar, atitude “digna de registo e por tal cumpre

a todos os chapeleiros desta florescente terra, fervorosamente aplaudir os seus autores,

que são V. Ex.as.” (L. Costa, 1987: 47).

A dissensão e o clima de “desassossego” iriam, contudo, regressar com a chegada,

dias depois, de uma força militar vinda de Ovar e polícia cívica de Aveiro, declarando-

se então o “estado de sítio” em SJM, com recolher obrigatório às 20 horas. Foi nesta

situação que a vila foi encontrada quando, a 8 de Novembro chegava do Porto uma

comissão de 8 chapeleiros a fim de participar nas negociações entre a classe e os

industriais. À excepção da empresa que despoletou o conflito, os proprietários das

fábricas locais estiveram ao lado dos operários, negociando com a “Oliveira, Palmares e

Cª.” um acordo de aquisição de artigos (feltros) àquela firma por forma a que pudesse

“comprometer-se a dar trabalho aos seus operários”. Por entre boatos e intimidações, os

dias seguintes foram decorrendo “sentindo-se instalar entre os chapeleiros a divisão,

com alguns a propor que a firma (…) fosse desobrigada do compromisso tomado com a

classe” (L. Costa, 1987: 48), compromisso esse que, entretanto, começara a ser posto

em causa pelos seus responsáveis, afirmando que o haviam assinado sob coacção.

Sectores da opinião local que o jornal A Opinião parecia corroborar, incentivavam os

responsáveis da dita fábrica a repor as máquinas em funcionamento e a recomeçar o

trabalho. Foi, com efeito, o bissemanário oliveirense que “com muito prazer” divulgou

o acordo final entre as duas partes:

“Admitir todos os operários, com um salário (mínimo) de 500 réis diários e 200

réis para as mulheres;

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167

Beneficiar com a quantia de 400$000 réis anuais o cofre de uma associação

beneficente, que se fundará e para a qual todos os operários serão obrigados a

contribuir com uma quota convencionada;

Cumprir à risca a lei sobre acidentes de trabalho” (A Opinião, 19/11/1914).

Passados dias, a 24 de Novembro, O Primeiro de Janeiro dava conta de que o

movimento operário estava normalizado em SJM: “A polícia retirou hoje, ficando ainda

a força militar. O digno administrador também se encontra ainda cá. A fábrica mecânica

começou hoje a trabalhar (…)”. Em Janeiro do ano seguinte (O Chapeleiro, 22/1/1915),

ainda o jornal da classe manifestava esperanças de retrocesso: “na Oliveira e Palmares,

lá vão botando mão do material antigo (…)”. Mas era mais uma ilusão reveladora da

ingenuidade operária da época e talvez da força e confiança que os industriais pioneiros

desta vila continuavam a inspirar nos operários e na população. O prestígio de António

de Oliveira Júnior (o proprietário da empresa) não parece, de facto, ter sido abalado. O

romance local a que atrás fiz referência presta-lhe homenagem e de certo reflecte a aura

de filantropo que as populações locais foram construindo em torno deste personagem

que, como outros industriais da época, se tornou um “notável” de referência na

sedimentação do orgulho local. Silva Correia enaltece-lhe as qualidades pessoais

referindo que “era ele quem acalmava o fervor mais exaltado dos outros sócios (…).

Viera do meio dos operários; amava-os como irmãos; e porque os amava, sabia

compreender as suas mortificações e anseios pela conquista da triste côdea” (Correia,

1953: 68).

A luta dos sapateiros

A acção colectiva dos trabalhadores do calçado, tal como a dos chapeleiros terá,

portanto, de ser enquadrada neste contexto de instabilidade social, sem esquecer,

contudo, que a par das situações de maior radicalismo, permanecia o dia-a-dia de

trabalho em que as dificuldades e a miséria das condições de vida não se traduziam em

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Entre a Fábrica e a Comunidade

168

revolta organizada, mas sim em aceitação e conformismo. Com isto não pretendo

minimizar o facto de o sector do calçado e cortumes (embora constituindo um exemplo

típico do trabalho de cariz artesanal e domiciliário) estar já nesta fase a integrar-se

progressivamente na lógica industrial, pois as tarefas ao domicílio ou à empreitada

enquadravam-se já na lógica capitalista. O próprio movimento sindical chamava a

atenção para o poder dos empresários de maior dimensão, a demonstrar a força da lei

lucrativa sobre o trabalho à tarefa. Como refere Villaverde Cabral, “são raras as

associações que não precisam o facto de que, mesmo quando o trabalho era efectuado

em casa do operário, era trabalho feito para um patrão e, muitas vezes, para uma fábrica

equipada com maquinaria moderna. O calçado era, mais uma vez, típico deste tipo de

organização do trabalho” (Cabral, 1979: 295). Neste sentido, adianta o mesmo autor, o

artesanato propriamente dito não detinha um significativo peso “na produção de cada

ramo, a não ser nos casos das zonas rurais onde a grande indústria não tinha ainda

penetrado”. Estas são algumas das razões aduzidas por Cabral para se poder considerar

que, apesar da pequena dimensão e da dispersão das unidades produtivas, o calçado se

situava (ao lado de indústrias como as do vestuário, construção, cortiça, madeiras e

também a chapelaria) no núcleo do proletariado português desta altura que, “fornecia a

principal fonte de recrutamento da maioria dos dirigentes e militantes, e é ele que

assegura a nível colectivo – nomeadamente no âmbito das palavras de ordem de „greve

geral‟ e da luta pelas 8 horas – a ligação entre os trabalhadores qualificados e

indiferenciados (…). Apesar da sua fraca concentração e da sua relação artesanal com o

processo de trabalho, ou talvez por isso, é esta fracção que parece conferir ao

movimento reivindicativo o carácter de massa e o carácter insurreccional, mais do que

revolucionário no sentido político preciso, que tomaram as lutas operárias por

objectivos materiais entre 1910 e 1920, e posteriormente” (Cabral, 1979: 294-296).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

169

Os documentos autobiográficos do dirigente sapateiro José Silva (1971)

exemplificam alguns casos de luta sindical no sector do calçado neste período. A

propósito de uma greve de sapateiros ocorrida em 1920 no Porto, refere aquele

sindicalista que “as „brigadas de vigilância‟ tiveram de entrar em acção contra os

industriais que queriam manter as oficinas em laboração e contra os „amarelos‟ que não

acataram desde logo a ordem de greve do sindicato, àqueles obrigando-os a encerrar as

oficinas e a estes arrebatando-lhes a obra recebida para a executarem nos seus

domicílios: as „brigadas‟ cortavam-na em tiras com as suas próprias facas do ofício,

inutilizando-as por completo” (Silva, 1971,vol.1: 67).

As reivindicações das Associações de Classe do sector do calçado giravam neste

período em torno das duas questões desde sempre consideradas as principais bandeiras

de luta do movimento operário: o salário e o horário de trabalho118 (Freire, 1992: 141).

Apesar de não fazer parte das justificações explícitas da acção reivindicativa do

movimento sindical, o desejo de uma maior racionalidade da vida económica que

unificasse o mercado nacional em termos de preços, salários e custos (que variavam ao

sabor dos particularismos de cada região), estava subjacente nos processos de luta pela

justiça nas remunerações salariais. Nos congressos associativos era comum debaterem-

se as questões da “uniformização” e “nivelamento” de salários nos diferentes sectores

produtivos. A questão do horário de trabalho e, nomeadamente, a luta pelas 8 horas de

trabalho foi, desde os anos oitenta do século XIX, um dos mais gritados slogans nas

manifestações operárias do dia 1º de Maio, revelando que a ideia expressa na célebre

fórmula “3 x 8” – 8 horas para dormir; 8 horas para a vida familiar, social e actividades

fisiológicas; e 8 horas para trabalhar – estava já bastante enraizada nos sentimentos

colectivos da classe operária (Freire, 1992: 141).

118 Embora, evidentemente, surgissem atrás destas, toda uma série de outros motivos de protesto.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

170

Talvez mais do que os acontecimentos é o clima de dramatização dos processos

de luta e a própria produção discursiva por parte dos líderes sindicais o principal

elemento estruturador da identidade de classe do operariado. Para além de vividas

intensamente pelos intervenientes directos, o carácter apoteótico das acções de massas é

sempre marcado pelas figuras carismáticas que as lideram e foi, em boa medida, com

base na exaltação recorrente das lutas passadas que se escreveu a história do movimento

sindical. A própria cultura operária é em parte produto desses processos de construção

simbólico-discursiva que se inscrevem na memória das colectividades trabalhadoras.

Todavia, no contexto de SJM a cultura operária foi pouco mais do que embrionária (e,

nesta altura, largamente marcada pela influência da chamada “aristocracia operária” dos

chapeleiros). Muito embora nas primeiras décadas do século XX sectores significativos

dos trabalhadores do calçado tivessem estado envolvidos na luta sindical, o posterior

declínio e quase desaparecimento do sector chapeleiro contribuiu para a progressiva

dissipação dessas experiências enquanto símbolo de modelação de uma identidade,

digamos, genuinamente classista. Já no caso do calçado, essa memória, para além de

pouco enraizada, foi-se esbatendo à medida que o sector cresceu e as posteriores

gerações de trabalhadores foram transportando para as fábricas referências culturais que

continuavam impregnadas de ruralidade.

3.2 - Cultura, festa e tradição nas comunidades locais

As experiências do movimento operário a que acabo de fazer referência só

poderão ser cabalmente entendidas se enquadradas na lógica comunitária e rural que

subjaz às identidades culturais do semi-operiado fabril deste período. A importância da

vertente festiva e de lazer é aqui abordada em dois sentidos complementares: primeiro,

enquanto expressão identitária onde se revela a adesão das populações à tradição local;

segundo, enquanto dimensão estreitamente vinculada aos efeitos da regulação social e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

171

socioeconómica mais geral. Quer o impacto da industrialização e do mercado de

trabalho, quer a acção de enquadramento “civilizacional” dirigida às comunidades por

parte do Estado e apoiada nas elites locais, são aspectos que interferem na modelação

da “cultura popular”. Como foi assinalado no primeiro capítulo, esta noção é aqui

entendida num sentido dialéctico e dinâmico onde se combinam paradoxalmente

elementos de „acomodação‟ com elementos de „resistência‟. Ou seja, a cultura popular

resulta de uma espécie de „resposta‟ ao impacto da normalização imposta às

comunidades, uma resposta simultaneamente adaptativa e transgressiva face à cultura

hegemónica e à lógica dominante (Gramsci, 1985; de Certeau, 1984; Burke, 1992).

Pode dizer-se que se assiste neste período à emergência de uma “cultura popular” que

se vai modelando perante os efeitos cruzados de diferentes factores: a força da tradição

comunitária local; a lógica de “modernização” desencadeada pela burguesia industrial

apesar de sustentada numa moral paternalista; a acção dos diversos mecanismos de

mercado; e a acção institucional do Estado e da Igreja (desde o enquadramento

administrativo à acção deliberada de manipulação que se vai impor a partir dos anos 20,

com o triunfo do salazarismo).

É no quadro dessa acção de modelação que as formas de cultura tradicional se

tornaram objecto de atracção e manipulação e ao mesmo tempo se afirmaram como um

factor decisivo na fertilização das novas formas culturais de raiz popular que ganham

consistência à medida que o mercado, o Estado e o capital penetram na região. Nas

últimas décadas do século XIX a dimensão lúdica e festiva do quotidiano popular

pautava-se, por um lado, pelo ritmo dos ciclos agrícolas – onde prevalecia uma

concepção de tempo cíclico e a demarcação entre trabalho e lazer era vagamente

perceptível – e, por outro, pelo calendário religioso. A festa, a brincadeira e a

celebração colectiva desenrolavam-se segundo uma lógica de sacralização da dimensão

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Entre a Fábrica e a Comunidade

172

profana da vida social, em que a crença religiosa e o paganismo popular se misturavam,

por vezes contrariando a própria acção institucional da Igreja.

Não seria ajustado conceber a transformação dos costumes populares num sentido

evolucionista e, menos ainda, pressupor a existência prévia de qualquer espécie de

“cultura popular no estado puro” ou “tradição genuína” sobre a qual viriam a sobrepor-

se as instâncias estatais ou “civilizacionais”. Os processos de recomposição cultural são

muito mais complexos e contêm sempre no seu seio diversos “arranjos” e sincretismos,

mesmo no âmbito estritamente local. Qualquer identidade se estrutura por referência a

algo que lhe é estranho e, logo, é necessário posicioná-la face a esse Outro. Nesse

sentido, a reestruturação da cultura popular resulta de um conjunto variado de forças e

interferências estruturais que colocam as colectividades tradicionais perante diversos

dilemas e ambiguidades: a religiosidade católica face à ancestralidade de certas crenças

populares com toda a sua carga de paganismo; a identidade comunitária tradicional face

às novas contradições de classe que resultam da implantação industrial; o impulso para

a reprodução cultural face à necessidade de adesão a novas rotinas e de obediência a

novas regras resultantes dos apelos da economia capitalista e da atracção pela fábrica119.

Alguns dos registos documentais120 a que recorri ilustram bem essa duplicidade

ao colocarem o próprio observador e articulista – geralmente um padre, um professor ou

um autodidacta local – na dupla posição de “cronista” e agente “moralizador” dos

costumes. Merece a pena, no entanto, apresentar alguns cenários populares dessa época,

dada a riqueza descritiva dessas práticas populares de celebração festiva. Não cabe aqui

destrinçar as formas culturais da tradição local daquelas que emigraram a partir de

outras comunidades já que muitos rituais de semelhante recorte ganharam raízes em

119 Um outro campo de características ambíguas (que irei referir no último ponto deste capítulo e que se

situa num contexto de mais acelerada pulverização das comunidades tradicionais) refere-se à articulação

entre a construção da identidade local (de cariz “bairrista”) da então vila de SJM e o discurso

nacionalista.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

173

diversas regiões portuguesas, os quais terão porventura surgido indepen-dentemente uns

dos outros (Coelho, 1993: 375).

Das modalidades deste tipo mais enraizados nesta região destacam-se: a dança

dos ditos, que se inseria nos chamados “grupos carnavalescos” e que incluía danças,

diversos instrumentos musicais e elementos teatrais de natureza satírica, entre os quais a

figura do “bobo da festa”; o jogo do pau, um simulacro de combate guerreiro disputado

entre grupos rivais, acompanhado com grande entusiasmo pela assistência que se

dividia em apoio de cada uma das equipas envolvidas na contenda; as festas das

colheitas, como as desfolhadas, que tinham lugar nas casas dos lavradores, finda a

debulha do milho, realizando-se o baile na própria eira, onde pontificava a figura do

cirandeiro; as vistas, que antecediam o casamento e ocorriam na casa da família da

noiva (incluindo jantar, cantares à desgarrada, baile, etc.) e em que os convidados

levavam consigo “diversas dádivas ou oferendas” para os noivos (Pereira,1982); as

tombalhadas, que consistiam em rituais que simulavam lutas entre rapazes e raparigas,

carregadas de erotismo e alguma violência; as contradanças, que eram actuações em

grupo, de danças e cantares (Mota, 1991: 245).

O fim do ciclo produtivo agrícola foi desde sempre uma ocasião de celebração e

de comunhão entre o Homem e a Natureza, de cuja fertilidade depende a subsistência.

A exuberância que estes festejos por vezes adquiriam traduz a homenagem ao poder

divino e espiritual pelo culminar de mais um ano fértil. Um acto de consagração pleno

de simbolismo em que o povo celebra o fruto recolhido da terra enquanto “dádiva” de

Deus. A religiosidade e o misticismo populares acompanharam de perto as actividades

festivas do povo e essa conjugação contribuiu decisivamente para a divulgação de

práticas recreativas que, com o avanço da modernização (da produção, bem como dos

modelos de consumo), foram progressivamente perdendo o seu lado místico em favor

120 Monografias locais e artigos publicados nos jornais da região.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

174

do hedonismo e do consumo massificado. Contudo, algumas destas festividades

agrícolas continuaram a ocupar o seu lugar no Portugal rural – pelo menos até aos anos

sessenta do século XX – apesar de terem perdido muito do seu ancestral vigor. Nos

anos vinte e trinta a sua prática nesta região era generalizada. As músicas tradicionais

eram animadas com instrumentos como a viola, violão, o cavaquinho e tambores

atraindo a presença da juventude. Em muitos casos a classe trabalhadora misturava-se

com as classes remediadas nessas ocasiões. As famílias dos lavradores mais ricos

rivalizavam entre si no aparato festivo e na ostentação da fertilidade produtiva através

dos actos “beneméritos” aos seus assalariados. No caso das desfolhadas, uma figura

central era a dos cirandeiros, rapazes que ainda não tinham ido à inspecção militar e

que, segundo a tradição, não eram autorizados a participar em igualdade de

circunstâncias naquelas festas, estando sujeitos a ser apanhados pelos mais velhos que

podiam aplicar-lhes os mais diversos castigos. Usavam, por isso, uma capa com um

capuz cobrindo a cara, só com os olhos a descoberto e geralmente andavam armados

com uma racha (pau de madeira), a fim de não serem identificados e de se prevenirem

contra os mais velhos, seus adversários. Na época apropriada, estes rapazes mais jovens

percorriam todas as noites os serões das redondezas onde decorriam as desfolhadas a

fim de darem o alecrim a cheirar às raparigas.

“(…) Homens e mulheres, rapazes e raparigas e até as crianças aninham-se onde

podem e onde calha ou onde convém à roda da pilha das espigas. Na parede, a

clássica candeia de azeite ou petróleo. E as raparigas cantam. Cantam vinte, trinta

modas diferentes, todas as que sabem. Geralmente a duas vozes: – um grupo

encarrega-se de começar; o outro de botar. Botar, é cantar uma terceira menor

acima das que começam.

(…) Os cirandeiros aproveitam para se fazerem notar, entram, fazem piruetas,

dizem chucarrices, esforçam-se por ter graça, o que raras vezes conseguem. Ou

melhor: – há sempre no grupo das cantadeiras uma certa pessoa que acha sempre

muita graça a tudo o que certo cirandeiro disser ou fizer. É claro que é ali que o

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Entre a Fábrica e a Comunidade

175

cirandeiro vai desfolhar, depois de se dar a conhecer. E é igualmente claro que

essa fica dispensada de cantar no resto do serão. Para o fim já se canta pouco.

Porque estejam fatigadas as cantadeiras? Simplesmente porque já estão todas

ocupadas em objecto que lhes adita mais.

De repente, um do grupo ergue-se de um salto, triunfante de gozo. – Um rei! Um

rei! O felizardo teve a sorte de encontrar uma espiga de milho vermelho. E isto

confere-lhe um direito que se não discute. Sem perda de um instante, o bafejado

da fortuna aproxima-se dos assistentes, um por um, enlaça-lhes os braços ao

pescoço, aperta quanto pode, face contra face e estala um chi (beijo). Há chis de

todas as cambiantes afectivas: há-os ensonsos, há-os respeitosos, há-os de pura

pragmática para não fazer desfeita, e há-os quentes, efusivos, denunciadores (…)”

(Sousa, 1958: 537-538).

O jogo e a sedução sexual ocupavam, como sempre acontece na festa popular, um

lugar de destaque, como se pode ver. Em certos casos, o lado sensual e brejeiro é a parte

mais importante da brincadeira, como por exemplo, no caso das tombalhadas (um ritual

ligado à produção do linho). Tal como acontecia noutros jogos, a forma como se

procedia à escolha dos parceiros directos deixa transparecer que as etapas de

aproximação amorosa entre rapazes e raparigas passavam muitas vezes pela

participação em brincadeiras como esta. Nas tombalhadas tratava-se simplesmente de o

rapaz agarrar repentinamente uma rapariga, “fingindo-se esta muito surpreendida e

enervada face a tal atrevimento”. A reacção imediata traduzia-se num esboço de luta em

que a rapariga estava obviamente condenada a ser “vencida”. De facto, ela acabava,

regra geral, por ceder e ambos caíam por terra com os braços e as pernas enlaçados.

“Não se sabe bem com que artes, davam um jeito conjugado de rolar pelo chão,

rolavam – ou seja, tombalhavam – sobre o campo do linhar sem se descomporem, sem

que ninguém pudesse perceber que é que eles firmavam na terra para poderem operar o

rolamento. O divertimento era porém fresco de mais para que pudesse persistir (…)”

(Sousa, 1958: 342).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

176

3.2.1 - Expressividade popular, religiosidade e mercado

À medida que se foi adensando a actividade económica na região, nas primeiras

décadas do século que agora termina, acentuou-se como é natural a complexificação e

fluidez de diversos tipos de troca, quer material quer simbólica. As feiras e mercados de

base regional adquiriram nesta altura grande dinamismo. Além de espaços de troca,

esses contextos constituíam lugares de prazer que, embora ainda ligados à atmosfera

comunal, não se limitavam a ser meros guardiões da tradição local. O processo de

transformação da tradição popular passou pela germinação destes ambientes,

transformados de certa maneira em palcos de intersecção de culturas.

Os sinais mais evidentes da crescente aceleração da mudança nos costumes

tradicionais revelam-se não só no impacto da industrialização e do mercado em geral,

mas no próprio facto de a cultura dominante passar a dedicar maior atenção à

necessidade de “civilizar” os hábitos populares, empregando meios de pressão mais

poderosos. O próprio surgimento de algumas obras etnográficas sobre a tradição

popular – as quais procuravam encontrar os vestígios mais ou menos característicos ou

“típicos” do povo português – é, em si mesmo, ilustrativo do processo de domesticação

ou de reinvenção da tradição rural comunitária (fenómeno que, de resto, se ligou

estreitamente ao discurso nacionalista). A enorme riqueza documental desses trabalhos

e o inquestionável mérito de alguns dos clássicos da etnografia portuguesa – J. Leite de

Vasconcelos (1882) e Adolfo Coelho (1993 [1ª ed. 1898]), entre outros – não altera o

facto de esta produção científica se integrar na orientação mais geral de

institucionalização dos hábitos populares, transformando-os em objectos mais ou menos

“pitorescos” e “folclóricos” capazes de ser exibidos enquanto património da cultura

nacional. Um processo que, dir-se-ia, corresponde ao que Michel de Certeau designou a

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Entre a Fábrica e a Comunidade

177

propósito da reinvenção da cultura popular como uma tentativa de retratar “a beleza do

morto” (de Certeau, 1984).

Nesta estratégia de moralização dos costumes populares, a Igreja católica

desempenhou, como se sabe, um papel decisivo. A ambiguidade da relação da Igreja

face à emergência de cultos de raiz local e comunitária revela-se por vezes numa atitude

hesitante entre a acção de oposição aberta e a estratégia de apropriação, sendo esta a

opção possível nos casos em que tais práticas persistiam em fazer parte dos hábitos de

vida das comunidades. Em tais situações a instituição recorria a processos de depuração

tendentes a retirar àqueles rituais os elementos que escapavam ou questionavam os

poderes constituídos (Silva, 1994: 156 e 158).

Algumas expressões da “alegria popular” podem ilustrar o carácter ambíguo da

relação do povo com a religião oficial e, paralelamente, a importância da acção

institucional na adaptação da tradição popular às grandes transformações sociais que

estavam em curso. O peso da Igreja Católica e a influência que detinha junto das

comunidades não impediu, pois, a existência de inúmeras situações em que a

espontaneidade popular subvertia a sua acção normativa. Como referia uma das

monografias consultadas, “(…) hoje a maioria das festas têm mais de pagãs que de

cristãs. Bem se esforçaram os padres por proibir arraiais, danças, espectáculos, bandas

de música, rifas por ocasião das festas religiosas. O resultado tem sido pequeno, ao

menos por agora. (...)” (Sousa,1958: 531). O esforço da Igreja no sentido de separar as

águas entre a fé e a festividade secular parecia na verdade ter pouco êxito. A

religiosidade popular celebra a sua fé juntando aos ritos religiosos o paganismo

incrustrado nos hábitos de vida do povo. Ao contrário, o combate do catolicismo oficial

a essa mistura “promíscua” parece mostrar que a devoção e a postura moral propagada

pela estrutura eclesiástica entravam muitas vezes em choque com a expressividade

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178

festiva e “carnavalesca” da cultura popular (Bakhtin, 1984; Featherstone, 1992). Os

arraiais, as danças e os foguetes deixam transparecer uma euforia que não está disposta

a sujeitar-se totalmente aos mandamentos do prior. A grande adesão das populações às

actividades paroquiais não significava que o povo estivesse disposto a abdicar das suas

ancestrais formas de exuberância festiva. Nas monografias desta região são recorrentes

as referências às manifestações de alegria, à adesão ao espírito de festa por parte das

camadas populares:

“ (…) sempre que se aproximava mais uma festança nas redondezas, é vê-los

(…), os rapazes de casaco ao ombro e cacete na mão, as raparigas de saia

ensacada e trouxa à cabeça, aí vão eles para a festa mesmo com o sol a prumo e

suor a cair em bica, nestas ocasiões a fadiga desaparece por completo.

(…) É uma alegria! (…) Seguem-se os grupos uns aos outros – uma viola, uma

harmónica, uma pandeireta e o indispensável bombo, e estão os ingredientes

reunidos para animar a „tropa‟ – e se a caminhada é longa e a sede e a fome

apertam, farejam-se os farnéis e molha-se a garganta na taberna mais próxima.

–Vamos p‟rá Festa! Não vem daí?

–Estão prontos? Então vamos lá com Deus.

E a caravana de novo se põe em marcha. E isto para S. Lázaro, em 2ª feira de

Páscoa, e isto para o Senhor dos Aflitos, no 1º domingo de Maio, e isto para a

Rainha Santa, a 20 de Agosto, e isto para S. Domingos da Serra, a 8 de Setembro,

e isto para a Santa Eufêmea, a 16 de Setembro, e isto para o S. Cosme, no

primeiro domingo de Outubro, para não falar já no Senhor da Pedra, na Senhora

da Ajuda e em La Salette.

Chegam a casa moídos, arrasados.

– Ai! Santa Eufêmea bendita, que se não fossem os vossos milagres... Tão longe e

então uns caminhos... Só quem dever.

Mas no ano seguinte lá estão todos caídos. Já devem outra vez (...).”

(Monografia de Romariz. Sousa,1958: 532).

Segundo o mesmo documento, o popular lema pão e circo assumiria nesta zona a

versão “meia canada de verde e o naco de regueifa saboreados num arraial” – os meios

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Entre a Fábrica e a Comunidade

179

fundamentais para lubrificar a alegria do “Zé povinho” (a conhecida figura que Bordalo

popularizou, como caricatura do modo de ser do povo português). Em ocasiões de festa,

o espírito de reinação colectiva parecia transcender por completo a lógica de contenção

que os tempos difíceis daquela época aparentemente aconselhariam.

Para além de geralmente acompanharem as datas de celebração religiosa, as festas

comunitárias podiam ainda ter lugar a propósito de qualquer outro motivo merecedor

das atenções locais. A visita de um conterrâneo bem sucedido nos negócios, o regresso

de um emigrante enriquecido no Brasil, por exemplo, era motivo suficiente para a

preparação de uma festa de recepção, com toda a “pompa e circunstância”. Mesmo a

habitual festa local em honra de um venerado santo era geralmente acompanhada do

habitual “foguetório”, seguido do respectivo baile ou “arraial” na aldeia (Pereira, 1982).

Os emigrantes oriundos da região, e que desde o último quartel do século XIX se

vinham fixando no Brasil, desempenharam um papel importante durante este período. E

isto, tanto no que se refere ao impacto económico gerado pelos investimentos realizados

na terra por parte de alguns que entretanto regressaram – ou os que mantiveram a sua

ligação às origens –, como na vertente simbólica e cultural, dada a influência que

tiveram na redefinição de papéis e estilos de vida nas aldeias e na introdução de novos

padrões de referência culturais junto das populações121.

Nos anos vinte começam a proliferar na região as tunas e bandas filarmónicas. Na

monografia de Oiã salienta-se a grande importância da tuna local:

Para a festa inaugural foi contactado um animador “já com experiência”, que

dinamizou a sessão que teve lugar numa eira. Em coreto improvisado, “feito de

121 Muitos emigrantes recém enriquecidos ou que reforçaram a sua riqueza nos negócios que

desenvolveram no Brasil regressaram à terra neste período e outros, mesmo enquanto estiveram ausentes,

participaram activamente em iniciativas locais de grande significados social e económico. No caso de S.

João da Madeira a acção filantrópica de algumas dessas figuras foi marcante em muitos aspectos e

tiveram um notável impacto no desenvolvimento do sentimento bairrista apoiado na adesão aos novos

valores do progresso e da modernidade. Voltarei a esta questão no final deste capítulo.

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troncos de pinheiro e tábuas, com os costumados adornos de verduras, incluindo

folhas de nespereira, deu novo alento a este agrupamento, que chegou a competir

em concursos e certames fora da sua freguesia, apesar de o meio de deslocação

utilizado ser a bicicleta. Com os instrumentos às costas, os mais leves, porque os

outros eram transportados à cabeça por mulher apalavrada para o efeito”

(Monografia de Oiã. Mota,1991: 245).

Alguns destes agrupamentos, embora de precária existência, revelam não só a

grande iniciativa popular no campo das diversões como a rivalidade latente entre as

comunidades vizinhas. A fonte acima citada refere dois agrupamentos de jazz – Os

Teimosos e Os Vencedores de cujos repertórios faziam parte cantigas como: “O

Cochicho”, “Ó Rosa Arredonda a Saia”, “Sebastião Come Tudo”, etc. – nascidos da

extinção de tunas e que actuavam em arraiais e bailes da região, onde regularmente se

confrontavam “numa rivalidade sã” (Mota, 1991). Estes ambientes mostram como as

festas e os arraiais constituíam importantes elos de contacto entre as comunidades da

região e favoreceram o surgimento de novas formas de identificação fundadas na

assimilação de estilos de vida diversificados.

3.2.2 - Alguns contrastes de classe: a vida quotidiana no início do século XX

Na viragem do século as diferenças classistas – nesta região como noutras –

continham ainda muitos dos traços de uma sociedade predominantemente rural, a viver

a lenta transição entre os vestígios do regime senhorial e o capitalismo emergente. As

classes dominantes cingiam-se à aristocracia decadente que, com a queda da

Monarquia, foi cedendo parte dos seus privilégios de status aos sectores da burguesia –

agrária, comercial, industrial e financeira – economicamente dominantes. Nas diferentes

regiões do interior, as elites locais reuniam-se em torno da burguesia agrária, de alguma

aristocracia em reconversão, dos pequenos industriais em emergência e em alguns casos

da hierarquia da Igreja. As frágeis classes médias alimentavam-se sobretudo da pequena

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Entre a Fábrica e a Comunidade

181

burguesia comercial e industrial, do frágil funcionalismo administrativo e alguns

poucos “intelectuais” de extracção burguesa ou aristocrática. A força das lealdades

locais permitia o desenvolvimento do caciquismo e, em regiões como esta, o

proteccionismo caritativo de alguns notáveis ajudava a preservar o conformismo e a

relativa passividade das classes trabalhadoras.

Entre os hábitos de vida tradicionais e camponeses e as novas tendências da

sociedade moderna em germinação, a experiência operária e sindical jogou – também

no terreno cultural – um papel de relevo. Mas, nesta altura, a luta colectiva do

operariado sanjoanense era ainda um elemento pouco relevante na estruturação das

identidades de classe e tinha pouca tradução no campo dos estilos de vida. Não obstante

poder afirmar-se que em Portugal, como noutros países europeus, o povo é em geral

mais identificado com as classes pobres do que com a nação, nesta fase da vida

portuguesa a correspondência entre as colectividades populares e a cultura operária

apenas terá tido algum significado nos maiores núcleos de concentração industrial –

como Lisboa, Porto, Braga, Setúbal, Marinha Grande –, mas não tanto em contextos

como este, onde a ruralidade era mais vincada.

Faria por isso pouco sentido aplicar a esta região a ideia de Thompson segundo a

qual, perante os assomos de modernidade que a industrialização introduziu, a classe

trabalhadora terá passado a sentir “uma identidade de interesses colectivos em oposição

aos interesses dos dirigentes e industriais da época” (Thompson, 1963: 12). Pode até

concluir-se que os factores de resistência e sedimentação da identidade classista que se

viveram neste período da história local foram, em termos políticos, extremamente

frágeis e precários122.

122 Como se verá no capítulo seguinte, apesar dos momentos de luta e resistência durante o salazarismo,

as actividades de lazer dirigidas pelo Estado Novo às classes trabalhadoras neutralizaram a sua escassa

politização e ajudaram a desenvolver uma cultura de classe de características defensivas e politicamente

amorfa. Embora tais processos se prendam neste caso com a natureza autoritária e corporativa do regime

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Entre a Fábrica e a Comunidade

182

Alguns elementos recolhidos nos documentos consultados para este período

permitem-nos ter uma noção, ainda que parcial, dos modos de vida dos principais

grupos sociais na viragem do século a partir da observação dos comportamentos nos

tempos livres. Atente-se no modo como o narrador descreve certos aspectos do

quotidiano, a ilustrar o contraste entre as atmosferas agitadas do povo e a postura sóbria

ou pretensiosa dos ambientes elitistas.

“(…) Quem viaja em caminho de ferro, observa todos os dias este contraste: se

entra numa carruagem de primeira ou mesmo de segunda classe encontra uns

excelentíssimos senhores encasacados, meio enterrados nas almofadas, sempre

sisudos e calados, tão absorvidos na leitura dum livro ou dum jornal que mal se

dignam levantar os olhos para o novo companheiro de viagem que, bota de

elástico, os saúda ao entrar. Em terceira classe, em que só viaja gente pobre, a

atmosfera é outra – tudo fala, tudo gesticula, tudo canta, tudo ri. Ao fim de cinco

minutos todos são conhecidos e amigos.

O pior são as pulgas. As pulgas e os protestos da pituitária. Se não fora isto, a

viagem em terceira classe seria a viagem ideal. Pobretes mas alegretes.

(…) Um pobre nem quieto nem calado. E se o prolóquio, só porque o é, é um

dogma que se não discute, referido a um pobre – chega a ser um axioma de

intuição imediata, tratando-se de uma pobre e particularmente de uma pobre

solteira (…). Estas poderão suportar tudo. Estar caladas é que não. E se andam em

grupos, palestram, murmuram, ralham, jogam-se remoques, cantam, dão

gargalhadas, contam novidades ou devaneios. Se trabalham sem companhia,

porque seria um mau sintoma andarem a falar ou rir-se sozinhas, cantam a solo.

Caladas é que não. (Sousa,1958: 531-532).

Equacionando a própria posição de classe do observador pode perceber-se a

ambiguidade dos status de classe média e do seu sentido estético, por um lado, perante

os segmentos elitistas e, por outro, perante o povo. A irrequietude e “extravagância”

atribuídas às camadas populares deixa perceber a proliferação dos contrastes de

de Salazar, os resultados terão sido semelhantes ao que Stedman Jones aponta ao papel desempenhado

pelo „pub‟ e o „music hall‟ ingleses, fazendo com que o lazer se tenha tornado uma esfera de consumo

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Entre a Fábrica e a Comunidade

183

natureza estética nos sectores sociais mais desfavorecidos. Tratava-se, afinal, do

habitual quadro colorido e policromático que define as culturas populares quando estas

extravasam o âmbito da comunidade tradicional. É a condição social dos “pobres” que

surge como o referente em relação ao qual o observador se demarca. Na sua atitude

transparece a condenação moral dos modos “rudes” e da “falta de civismo” desta

categoria social. Mas, por outro lado, surgem referências em que subjaz alguma crítica

social em relação à “rigidez” das classes superiores, personificadas nos “senhores

sisudos e sempre calados” que viajam nas carruagens de primeira classe do comboio da

linha do Vouga (inaugurada em 1908).

O ambiente de agitação, de comunicabilidade e alegria aparecem em claro

contraste com os modos “educados” e formais. Embora se detecte um certo efeito de

sedução – que parece espelhar a capacidade de afirmação da cultura popular –, o que

sobressai é o conteúdo moralista e a demarcação do narrador face ao ambiente de

“alvoroço”, de “barulho” e de falta de higiene de uma condição de classe considerada

“mal comportada”. Esta dimensão das relações quotidianas da vida extra-trabalho

revela-se, assim, ilustrativa de uma praxis cultural em que as classes médias em

emergência já se distanciavam abertamente das formas de diversão mais “grotescas”

das classes baixas. Era este o sentido exclusivo, da cultura do “povo pobre”, onde se

podiam agrupar o artesão, o operário, o pequeno camponês, os vendedores de feira e de

um modo geral, os pobres, cujos modos de vida denunciavam a sua condição de

subordinados. Neste contexto, as características sociais e culturais obedeciam a

dinâmicas distintas dos ambientes apontados por Thompson como tendo fornecido as

bases de estruturação da cultura operária: a importância da concentração industrial em

torno da cidade que levou o proletariado industrial de primeira geração a ser

massificado e de despolitização da classe operária (Jones, 1989: 236).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

184

progressivamente empurrado para os guetos e periferias urbanas com todo o rol de

condições de precaridade e de miséria a eles associados.

Na região do calçado a “pequena tradição” comunitária continuou a afirmar o seu

papel estruturante da cultura popular e a incutir-lhe abundantes elementos dos modos de

vida pré-modernos. A identidade de classe do operariado mantinha-se, pois, numa

situação de grande debilidade, uma vez que os trabalhadores da indústria permaneciam

fortemente vinculados às identidades tradicionais123, o que lhes conferia, como atrás se

disse, contornos típicos de um semi-proletariado de características rurais.

Recorrendo aos relatos acerca dos usos do vestuário podem ilustrar-se algumas

formas de demarcação entre as classes superiores e populares, ao mesmo tempo que se

podem observar novos e interessantes elementos sobre os espaços quotidianos de

sociabilidade. São bem visíveis as distâncias sociais entre esses dois mundos. Para além

da ostentação de uns e da precaridade de outros – a oposição entre a ociosidade da

“classe de lazer” e a escassez das classes produtivas (Veblen, 1970) –, os usos do traje

por parte dos diferentes grupos sociais espelham também linhas de diferenciação social

muito significativas. Constituem, por exemplo, uma indicação fundamental de como as

formas de monitorização do corpo evocam o sentido estético e o poder simbólico que

nele se inscreve.

Enquanto nos estratos sociais superiores se tende a esbater a demarcação entre o

traje de passeio e o do dia-a-dia – de resto, uma redundância, tratando-se de uma classe

“ociosa” –, nos segmentos populares o vestuário domingueiro oscila por vezes entre os

usos tradicionais e a imitação das modalidades que se vão expandindo às classes

médias, muito embora esta última tendência fosse nesta altura ainda imperceptível, em

especial fora dos meios urbanos. De acordo com as fontes consultadas, as mulheres e

123 No caso em estudo, como veremos adiante, a desestruturação das identidades tradicionais serviu em

parte de alimento ao bairrismo que durante a 1ª República se foi desenvolvendo em SJM.

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raparigas – por exemplo as trabalhadoras do campo ou “lavradeiras” – usavam, aos

domingos e sobretudo em dias de festa, saia preta com barra de veludo, blusa

normalmente de cor lisa e enfeitada com rendas e avental igualmente de renda, lenço de

lã estampada ou em cachené, chapéu preto de veludo, sem aba. Muitas vezes colocavam

um “lencinho bordado” ou iam sem avental. Em dias de trabalho usavam blusas com

flores estampadas, miudinhas, aventais de riscado e também de chita, tamancos e

chapéu velho de veludo preto. Por sua vez, o homem comum (o trabalhador) usava, em

dias de festa e ao domingo, fato de lã com jaqueta, colete e calça, cinta geralmente

preta, sempre de botas e chapéu de aba revirada para cima. Se havia romaria, os mais

novos usavam pompons (borla esférica de fios de lã tosquiados), coletes garridos em

seda ou tecido adamascado. Se o rapaz era solteiro a cinta era, em princípio, muito mais

garrida. Nos dias de trabalho, os homens usavam camisas de riscado com “carcela” até

ao meio do peito, calças e coletes normalmente de tecidos rústicos, como os cotins em

tons de cinzento, com padrões às riscas, enquanto as costas eram de tecidos de riscado e

calçavam tamancos. Como agasalho o gabão, de “sorrudo” castanho, solto, ou atado

com tira do mesmo pano, ou cordão. Assim vestiam os trabalhadores do campo – a

maioria do povo da região (Mota, 1991: 289).

No caso das classes dominantes, os ricos proprietários de terras, por exemplo,

usavam nos passeios domingueiros ou em dias de festa, os chapéus de coco, o casaco

cintado, calça justa de riscas e calçavam botas de meio cano. No inverno era comum em

finais do século XIX o uso do “gabão” que começou por ser apanágio dos lavradores

ricos. Também conhecido por “varino”, o gabão consistia de uma peça de pano forte

(em estamenha ou burel) de cor castanha ou negra, comprido até aos tornozelos, com

mangas largas e um capuz para cobrir a cabeça.

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186

Na época balnear era possível contemplar a postura desta categoria social nos

passeios familiares de fim de tarde. A monografia do Furadouro retrata estes senhores,

em “passada firme”, com uma das mãos a agarrar a “fina bengala de bambú”, enquanto

a corrente de prata prende o “cebolão” (relógio) ao bolso do colete. Por vezes

“retorciam com deslevo as longas pontas da bigodaça ou acariciavam com esmerado

cuidado o pequeno „cavanhaque‟ [pêra] que, na maior parte das vezes, emoldurava o

rosto. Fumavam um paivante [cigarro ou cigarrilha] com todos os vagares e trocavam

impressões sobre as últimas ocorrências municipais (…)” (Laranjeira,1984: 527-533).

Quanto às “damas” das classes superiores, apenas foi possível recolher uma referência

ao vestuário apropriado aos banhos de mar: “uma larga baeta solta, de flanela ou

estamenha azul ou castanha, aconchegada ao pescoço, de manga comprida e rematada

na parte inferior por uma fita branca de nastro. Geralmente a fatiota de banho

compunha-se de duas peças: blusa e calça comprida, a roçar o peito do pé, seguras estas

duas partes do vestuário por fortes e largos botões. Uma ou outra banhista calçava

chinelos de pano, seguros com cordões, enquanto a cabeça era defendida por uma

folhuda touca, apertada a toda a roda pela clássica fita branca, considerada “elemento

de reforço e segurança além de dar uma certa elegância”. (Laranjeira, 1984).

A utilização da praia (neste caso a praia do Furadouro)124 para fins de repouso ou

“retemperamento” era privilégio exclusivo das camadas sociais mais abastadas da

região. Muitas das famílias desses estratos aí despendiam uma parte do mês de

Setembro. A população trabalhadora – o pequeno camponês, o artesão ou o assalariado

–, além de não possuírem os meios económicos para poderem despender semanas em

124 Este espaço foi, desde que tais actividades se começaram a expandir às classes médias e baixas, o

lugar privilegiado pela população desta zona nas suas deslocações de férias ou nos fins-de-semana. Aí se

viria a instalar, já nos anos 70, o “Parque de Campismo do Furadouro” que pertence ao Clube de

Campismo de S. João da Madeira, fundado em 1953.

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banhos de mar (ou em terapia termal), essa não era sequer uma aspiração. O contacto

com a praia obedecia a outros fundamentos.

O sentido espiritual e regenerador do banho era sobretudo justificado pelo

misticismo e religiosidade populares. A relação com o mar e a dimensão ritualista e

festiva evidenciada em acontecimentos como o “banho de S. João” parece marcada pelo

sentido de catarse colectiva que passava pela autoflagelação do corpo no contacto

nocturno com as águas. Quer as classes superiores quer as populares, fundamentavam as

idas à praia por razões de saúde fossem ou não acompanhadas por prescrição médica125,

visto que, ao povo bastava-lhe a crença místico-religiosa para justificar a necessidade e

a eficácia “terapêutica” do contacto com o mar (beatificado que estava pela influência

do santo nas datas ajustadas).

As famílias das classes superiores tomavam os seus banhos diários “de

manhãzinha cedo e em jejum” (entre a 7 e as 9 horas da manhã), com as temperaturas

da água bastante baixas. Nos relatos que consultei, referem-se as meninas e senhoras a

serem transportadas numa cadeira com o auxílio de dois banheiros que seguravam “a

paciente” e a mergulhavam nas águas logo que chegava a onda sem areias (chamada

“onda macha”). Faziam-no uma, duas ou três vezes conforme a resistência ou a

gravidade da doença a debelar. Algumas raparigas iam em correria de grupo ao

encontro das vagas, “com muitos gritinhos estridentes” e após o trémulo mergulho

“sorviam em largos haustos o ar fresco da manhã. Noutros casos, o banheiro

arremessava a celha a transbordar de água sobre o corpo da infeliz banhista que, quase

desfalecida, estremunhada de frio (…) mal conseguia esboçar um ai!” (Laranjeira,

1984).

125 No caso das estâncias termais, como assinala Claudino Ferreira, a sua ocupação pelas classes

populares fundava-se sobretudo na prescrição medicinal, enquanto as classes superiores se orientavam

mais para o lazer e o ócio (Ferreira, 1995).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

188

Quanto às “classes populares”, os “banhos de S. João” constituíam nessa época,

uma das poucas ocasiões em que o mergulho nas águas salgadas se generalizava e era

colectivamente partilhado pelas populações. A popularidade e fama deste ritual festivo,

de acordo com a fonte consultada, “pedia meças a qualquer festarola das redondezas”.

Recorrendo aos mais diversos meios de transporte, as populações afluíam à praia em

grandes grupos e tomavam o banho colectivo à meia-noite, num ambiente de “grande

euforia” colectiva. Segundo a crença popular, o “banho santo” destinava-se a expurgar

ou prevenir os vários tipos de febres, mazelas, ataques das viroses e outros males

demoníacos (Laranjeira, 1984: 527-533).

Estes registos não esgotam, obviamente, a enorme heterogeneidade e

complexidade de práticas culturais e recreativas das comunidades desta região – num

período em que as grandes transformações socioeconómicas operadas na sociedade

portuguesa penetravam cada vez mais os diferentes campos da vida social –, mas

ilustram o significado social das actividades lúdicas das populações desta zona. Embora

o núcleo de concentração industrial de SJM não constituísse um espaço urbano de

grande dimensão, era já inegável o crescente impacto da actividade fabril. A aceleração

dos fluxos de mobilidade entre os diversos lugares e vilas da região, a interconexão

entre estilos de vida tradicionais e a difusão mercantil e comercial para a orla das

comunidades rurais, etc., foram modelando as práticas e referências identitárias do

semi-operariado cujos modelos culturais de enquadramento se tornavam, assim, cada

vez mais amplos, maleáveis e diversificados, muito embora o impacto da cultura

operária e da luta sindical estivesse longe de se assemelhar aos contextos de grande

concentração industrial e urbana. Como já referi, as experiências desse tipo surgiram

pontualmente em SJM, mas foram em larga medida disseminadas pelos ambientes

rurais pré-existentes. A emergência do discurso bairrista em torno da vila nos princípios

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Entre a Fábrica e a Comunidade

189

do século XX é apenas mais um elemento de complexidade que deve ser considerado a

este propósito.

3.2.3 - O discurso bairrista e o novo estatuto de vila e de concelho

Entre as circunstâncias históricas que levaram SJM a constituir um exemplo bem

sucedido de industrialização destaca-se o facto de estar situada junto das principais vias

de comunicação que ligavam as cidades mais importantes da faixa litoral (Lisboa,

Coimbra, Aveiro, Porto)126. Essa localização privilegiada terá permitido aos

sanjoanenses desenvolver canais de comercialização bastante eficazes, nomeadamente

de produtos agro-pecuários produzidos na zona, como por exemplo, o caso da manteiga

(L. Costa, 1987) e, a partir de finais do século, também do calçado e da chapelaria.

Apesar dos limites acanhados do concelho (e única freguesia), SJM apresentou um

grande crescimento demográfico ao longo deste século XX127, em grande parte

resultante dessa actividade comercial e do desenvolvimento industrial assinalado. O

forte efeito de atracção que estas actividades exerceram sobre as populações vizinhas

deu lugar a significativos fluxos de migração pendular, fazendo aumentar largamente a

população flutuante da localidade. Este dinamismo económico e a conquista da

autonomia concelhia – subtraíndo-se, assim, ao concelho da vizinha Oliveira de

Azeméis – contribuíram para acirrar a rivalidade relativamente àquela localidade128.

Efectivamente, o crescimento demográfico de SJM desde cedo reflectiu a sua

capacidade de atracção das populações rurais da região e a vila rapidamente cresceu até

126 Não só as estradas como a via férrea que chegou aí nos princípios do século (1908). 127 A sua população presente evoluiu da seguinte forma: 4.400 habitantes (números aproximados) em

1920, para 5.400 (1930); 7.400 (1940); 9.200 (1950); 11.900 (1960); 14.000 (1970); 16.200 (1981);

18.452 (1991) (Fonte: Caetano, 1986, vol. II; e INE, Censos de 1991) (ver Capítulo 3). 128 Mais recentemente voltou a verificar-se uma situação semlhante por ocasião da obtenção do estatuto

de cidade, atribuído em simultâneo a ambas as povoações (aprovado na Assembleia da República em

Maio de 1984).

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aos limites do concelho (de apenas 6,5 km2), que hoje coincidem com os da cidade129.

O discurso localista ou “bairrista” foi largamente justificado por efectivos acréscimos de

bem-estar material da população no seu conjunto e daí o importante significado desse

discurso no sentir do povo sanjoanense.

Desde que surgiram em SJM os primeiros empresários, os seus propósitos

modernizantes sempre se afirmaram em nome de valores de cariz filantrópico, apelando

à lealdade e ao “espírito empreendedor” dos trabalhadores locais, louvando a iniciativa

e abnegação das “gentes sanjoanenses” em prol do “progresso” da sua terra, o que

permitiu que o desenvolvimento económico se revestisse cada vez mais de uma retórica

paternalista e “bairrista”. Nos primeiros anos do regime republicano os grupos de

“notáveis” conseguiram mobilizar largos sectores da população trabalhadora para

reivindicarem junto dos poderes públicos o estatuto de vila e de concelho. A capacidade

unificadora desse discurso, quer dizer, a sua força ideológica, impôs-se sobre a bandeira

do trabalho e em nome dos objectivos do progresso e da modernização. Os próprios

períodos de crise em que os problemas sociais e as clivagens de classe se tornaram mais

visíveis foram incorporados por essa linguagem bairrista e paternalista – sem dúvida, o

melhor lenitivo contra a linguagem classista e sindical – e sempre secundada pela

actividade de beneficência dos endinheirados “notáveis” locais. A promoção a concelho

surge, assim, em 1926, como o resultado “natural” do desenvolvimento industrial da

vila. No preâmbulo do decreto-lei que consumou essa decisão (Dec. Lei de 11 de

Outubro de 1926), pode notar-se o reconhecimento oficial do significado económico da

vila:

“Considerando que a Vila e freguesia de S. João da Madeira, do concelho de

Oliveira de Azeméis, com as suas numerosas fábricas e oficinas, que empregam

alguns milhares de operários, constitui hoje o centro industrial mais importante do

129 Além de S. João da Madeira, esta situação só acontece com as cidades de Lisboa, Porto e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

191

distrito de Aveiro e sustenta activas e grandes transacções com o país e as

colónias, para o que dispõe de meios de comunicação, mantendo também muito

notáveis e benéficas instituições de carácter social, criadas pela iniciativa

particular;

Considerando que o desenvolvimento económico e social de S. João da Madeira

está sendo prejudicado, pela sua inferior categoria administrativa a qual não

permite a criação dos estabelecimentos de crédito indispensáveis ao seu

movimento industrial, à realização de medidas de carácter higiénico e social em

benefício da população, como o abastecimento e canalização de águas, a

construção de casas económicas para operários e o desenvolvimento de outras

instituições já existentes; (…)” (Revista Aveiro e o seu Distrito, edição da Junta

Distrital de Aveiro, 1973).

Esta importante vitória era o culminar da adesão da população trabalhadora a um

discurso que parecia adequar-se bem às características rurais e artesanais do semi-

proletariado emergente. Ao conseguir canalizar grande parte das representações e

expectativas colectivas das populações para o reforço da identidade local e do

sentimento “bairrista”, tal orientação teve como correlato o progressivo definhar da já

débil identificação popular com a cultura operária e sindical. Mesmo nos momentos de

maior agitação reivindicativa dos princípios do século, a fragilidade do sindicalismo

autónomo levou a que, como vimos atrás, a conflitualidade social fosse mais animada

pela oposição entre “grandes” e “pequenos” patrões, do que, de um modo genérico, pela

luta de classes entre patrões e operários. Este aspecto foi-se acentuando à medida que se

assistiu ao crescimento do sector do calçado, um ramo onde, como sabemos,

predominam os pequenos patrões. Deste modo, o discurso favorável à identificação com

a terra converteu-se em ideologia bairrista ao serviço da burguesia local e apoiada no

pequeno patronato e nos sectores da classe média em desenvolvimento.

Entroncamento (cf. Salgueiro, 1992).

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192

É importante referir o papel que tiveram algumas das já mencionadas figuras de

“notáveis” em SJM nas primeiras décadas do século XX – no contexto de conquista da

autonomia municipal – e que, por isso mesmo, são hoje celebradas como os grandes

beneméritos e arautos do desenvolvimento local. Isto, tanto no campo económico como

no que diz respeito à fundação de algumas das principais instituições locais de

protecção social. Esta vertente é reveladora de como a sociedade local se movimentou

numa direcção que, partindo das iniciativas das elites privilegiadas e aparentemente

orientada por valores de carácter assistencial, parecia ir ao encontro das necessidades

económicas dos grupos mais desapossados. Tais iniciativas, ao intervirem na protecção

social da população trabalhadora, desempenharam ao mesmo tempo um papel

civilizacional de relevo, no sentido em que se afirmaram como elementos apaziguadores

das potenciais clivagens e conflitos de classe, contribuindo dessa forma para o

aperfeiçoamento dos instrumentos locais de enquadramento.

Como se pode verificar consultando a lista de “beneméritos” (ver Anexo 2), uma

parte da riqueza económica destes sanjoanenses foi conseguida através da emigração

para o Brasil na segunda metade do século oitocentista. A sua ligação cultural à região

trouxe muitos de volta e/ou manteve-os em permanente contacto com a terra. No apoio

às instituições de assistência parece por vezes residir uma disputa pelo prestígio em

concorrência com o sector nobiliárquico dos herdeiros das casas senhoriais da freguesia,

através dos títulos – “Conde”, “Visconde”, “Comendador” – conseguidos à custa do

sucesso económico com o qual puderam afirmar o seu “altruísmo” em favor do povo e

dos seus sectores mais desfavorecidos.

Porém, as iniciativas locais não se limitaram aos auxílios pecuniários dos

“notáveis” que fizeram fortuna no Brasil. Da documentação consultada sobressai uma

longa lista de personalidades que se destacaram pela sua iniciativa, quer na capacidade

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Entre a Fábrica e a Comunidade

193

de coordenar esforços para fazer face às dificuldades com base nos próprios recursos da

população, quer na sua força reivindicativa, pressionando as instituições governativas e

o Estado no sentido de obter benefícios para a localidade.

Várias foram as comissões que se constituíram e as iniciativas de carácter social

levadas a cabo desde os princípios do século: a Comissão de Construção do Hospital,

criada por delegação do benemérito Francisco José Luís Ribeiro, por vontade

testamental e após a sua morte (em 1913), tendo o hospital sido concluído em 1915; a

fundação da Santa Casa da Misericórdia (1921), na qual se integrou o anterior hospital e

que permitiu a sua ampliação130; a Associação Desportiva Sanjoanense (1924); o Grupo

Patriótico Sanjoanense131 que lutou pela elevação ao estatuto de Vila (1924) e de

Concelho (1926); no âmbito da Santa Casa da Misericórdia e funcionando nas

instalações do hospital, foi criado o Asilo-Creche Santo António (1926), dedicado ao

abrigo de órfãos; a Maternidade de Santa Maria, também integrada na Santa Casa

(1928), destinada ao auxílio das parturientes pobres; a criação do Banco Hospitalar

(1928); a comissão que fundou a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários

de SJM (1928); a fundação do Colégio Castilho, onde se leccionaram os vários níveis de

130 A criação do Asilo-Creche, por iniciativa de António José de Oliveira Júnior (1926); a Maternidade

de Santa Maria, financiada pelo Conde de Dias Garcia (1926); a criação do Banco Hospitalar, com

consultas e serviços de urgência destinados aos pobres (1928); e o Recolhimento de Velhos Inválidos,

também apoiado pelo Conde Dias Garcia (1930). O Hospital e sua ampliação foram edificados com os

fundos fornecidos pela colónia de sanjoanenses no Brasil (além de Dias Garcia): Viscondessa de SJM;

Albino Bordalo Garcia; Manuel Ferreira Azevedo Garcia; Manuel e Joaquim Dias Garcia; Albino e

Manuel F. Dias Garcia; António e Manuel Leite da Silva Garcia; e Manuel Gomes da Costa (Martins e

Sousa, 1944). Apesar destes melhoramentos, o velho hospital rapidamente se revelaria insuficiente

perante as necessidades da população. Por isso no início dos anos 50 consolida-se a ideia de construir

um novo hospital. Uma vez mais o esforço de alguns beneméritos foi decisivo para que esta inciativa

pudesse ter êxito, a qual teve também o apoio da Santa Casa e do Estado. Os industriais António Pinto

de Oliveira, Benjamim Valentim da Silva e António Espírito Santo Diamantino doaram o terreno para o

efeito, a Santa Casa da Misericórdia coordenou o processo através do seu Provedor local (António José

Pinto de Oliveira primeiro, e Benjamim Valente da Silva depois) e o Estado, através dos Ministérios das

Obras Públicas e da Saúde e Assistência, teve a maior comparticipação fianceira. O Hospital Novo foi

oficialmente inaugurado no dia 25 de Outubro de 1966. 131 Do qual fizeram parte: Dr. Renato Araújo; António Henriques; Genuíno Silva; Dr. Joaquim

Milheiro; Manuel Luís da Costa; Inocêncio Leal; José Correia; Padre Almeida e Pinho; Augusto

Palmares. Este último, industrial de chapelaria, foi quem, juntamente com o Dr. Renato Araújo

constituiu a comissão que, em reunião com representantes do governo, apresentou os argumentos para a

realização daquele “acto de justiça” (Revista Vida Portuguesa, Out., Nov., Dez./1985).

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ensino, desde o primário ao secundário e comercial (1929); a “Comissão Pró-Parque”

que promoveu o arranjo da mata e logradouros (por iniciativa de Serafim Leite e da

Junta de Freguesia) e ainda a construção da capela de Nossa Senhora dos Milagres,

situada no parque com o mesmo nome (1930); a Comissão da Conferência de S. Vicente

de Paulo que nos anos 40 viria a promover uma nova creche para as crianças pobres,

com o apoio de emigrantes do Rio de Janeiro. A estas iniciativas, outras se seguiram ao

longo dos anos. Em tais acções estava presente uma orientação marcadamente

paternalista e caritativa, em particular dirigida à sublinhada precaridade da “situação

material dos operários”. Uma das monografias que consultei refere-se ao período dos

anos 20 e 30 como uma época em que se procuraram conjugar esforços visando

desenvolver alguns mecanismos de protecção, como a “fixação de salários mínimos,

contratos colectivos de trabalho, higiene e segurança nas fábricas, prevenção dos

acidentes de trabalho e doenças profissionais e elevação do padrão de vida geral”

(Martins e Sousa, 1944). Curioso é também o facto de ter sido um clérico – o padre

jesuíta Serafim Leite – a revelar em primeiro lugar uma atenção aos aspectos lúdicos e

de repouso como factor a considerar no campo da intervenção social, ao alertar, em

1926, para as “vantagens da construção dum parque que servisse para distracção e

retemperar as forças do operariado e de toda a pessoa que trabalha” (Revista Vida

Portuguesa, 1985).

Ao longo deste capítulo procurei ilustrar algumas das dinâmicas culturais e

socioeconómicas que tiveram lugar nesta região desde finais do século XIX até finais da

década de vinte do século findo. Tais dinâmicas traduziram-se, por um lado, na

estruturação de novas clivagens classistas induzidas pela penetração industrial e pela

emergência das estruturas sindicais e da linguagem de classe, embora as principais lutas

operárias aí despoletadas continuassem a ser animadas por uma lógica pré-moderna e de

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195

resistência à mecanização. Por outro lado, os impactos da actividade mercantil e

industrial sobre as identidades tradicionais foi visível na esfera das práticas culturais e

das actividades festivas e traduziu-se em novos e mais complexos padrões de

enquadramento sociocultural. Apesar desse processo não deixar de revelar o apego

popular aos costumes do passado e até aspectos ilustrativos do novo sentido de rebeldia

associado à experiência fabril, o discurso moralista e bairrista promovido pelas novas

elites locais, bem como as velhas afinidades de cariz paternalista vigentes nas

comunidades e na produção artesanal, contribuíram para neutralizar a identidade de

classe emergente e fragilizar a sua capacidade mobilizadora, mantendo-se as

subjectividades do semi-operariado em larga medida subordinadas à lógica local e aos

interesses patronais personificados pelas proeminentes figuras de “beneméritos”.

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196

Capítulo 4

SOB A TUTELA DO ESTADO NOVO: ACÇÃO COLECTIVA E PRÁTICAS DE

LAZER, ENTRE A REGULAÇÃO E A RESISTÊNCIA

Continuando a centrar-me nos processos de articulação entre a indústria e a

comunidade, passarei agora a dar maior atenção ao papel do Estado durante o regime

salazarista, e à forma como ele se conjugou com certas forças de base local para levar a

cabo a sua acção reguladora e disciplinar junto dos trabalhadores e das populações da

região. Na primeira parte deste capítulo refiro-me à reorganização industrial levada a

cabo a partir de finais dos anos 20, destacando o caso da chapelaria e do calçado, bem

como a empresa de máquinas de costura “Oliva”, dada a sua estreita vinculação à

política do “condicionamento industrial” e o seu significado a nível local. A partir das

biografias de activistas sindicais procurarei ilustrar alguns momentos da resistência

político-sindical face à acção repressiva do Estado Novo, utilizando fragmentos dessa

actividade, desenvolvida em condições de clandestinidade, incluindo passagens pela

prisão. Na parte final do capítulo pretende-se retratar certos cenários do quotidiano local

em SJM, em especial nos anos quarenta e cinquenta e no que se refere ao campo do

lazer e tempos livres. A forma como o salazarismo – através da sua doutrina

conservadora e da acção disciplinar – procurou modelar as práticas culturais das

populações é abordada a partir do discurso moralista e da postura “civilizada” das elites

locais em relação a certos hábitos populares, aspectos estes que serão observados a

partir de extractos de artigos da imprensa local.

4.1 - Impactos locais do condicionamento industrial

Em termos económicos, a sociedade portuguesa encontrava-se em finais dos anos

20 numa situação de grande debilidade, arrastando ainda os mesmos problemas que

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197

remontavam ao último quartel do século XIX. Apesar do desenvolvimento verificado

em alguns sectores produtivos (têxtil, químico, moagens, curtumes, conservas, etc.),

quer a ausência de uma política de modernização da agricultura, quer o não incentivo ao

desenvolvimento de certos sectores básicos da indústria durante as primeiras décadas do

século XX (como a siderurgia e o ramo energético, por exemplo), contribuíram para o

carácter desequilibrado e até especulativo do capitalismo português neste período

(Silveira, 1982: 344)132. Alguns analistas (Rosas, 1992) consideram que as medidas de

política económica seguidas durante a primeira fase do Estado Novo foram, acima de

tudo, respostas de carácter conjuntural: umas dirigidas às contradições e indefinições

estruturais a nível interno, e outras à crise internacional pós-1929, a nível externo. Levar

por diante um programa coerente com as bases ideológico-doutrinárias do novo regime

e ao mesmo tempo pôr em ordem as inúmeras contradições socioeconómicas que

atravessavam o país, não era tarefa fácil: liberalismo económico e intervencionismo

estatal, interesses da burguesia agrária e das fracções ligadas à indústria, problemas da

produção e do comércio, interesses do capital e do trabalho, interesse nacional e

interesse privado, progresso técnico e ordem moral, etc., constituem alguns dos

antagonismos que mais contribuíram para protelar a definição de uma verdadeira

“política industrial” do Estado Novo. Segundo Fernando Rosas, só a partir do pós-

guerra essa estratégia se tornou relativamente clara.

Em S. João da Madeira, as consequências mais notórias do novo regime fizeram-

se sentir no desmantelamento do sindicalismo autónomo e na reorganização dos

132 Como é sabido, a doutrina salazarista rejeitou e combateu o liberalismo por recear que este expandisse

na sociedade o chamava de “interesses imediatos e particularistas”, isto é, quer os interesses dos sectores

mais dinâmicos da burguesia industrial, quer os interesses do movimento operário e do sindicalismo

autónomo, isto em nome dos superiores interesses do Estado e da nação. Mas, apesar da propaganda

nacionalista e da recusa do regime em proceder a uma industrialização moderna, a defesa dos interesses da

classe capitalista é bem visível em diversas passagens dos discursos de Salazar a referência a seres

“superiores”, como os detentores da riqueza: o “homem rico” e o “produtor rico”, é considerado como

“uma espécie de administrador dos bens dos incapazes, tornando fecunda a riqueza pela sua acção, pela

sua iniciativa, pelas suas qualidades de dirigente e de chefe” (in Marques, 1980: 37).

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sectores industriais mais influentes a nível local, tais como as indústrias de chapelaria,

de cortadoria e do pêlo, do calçado e ainda do ramo metalúrgico, através da empresa

“Oliva”. A tutela estatal e a sua tentativa de proteger os sectores mais viáveis da

economia – para além das contradições no terreno burocrático e administrativo133 –

passou pelo incremento da política de favores e de “compadrio” com que uma pequena

fracção da burguesia industrial foi contemplada pelo salazarismo134. A política de

reordenamento industrial foi desenvolvida em conjugação com representantes dos

proprietários, os quais não deixaram em certas ocasiões de levantar dúvidas e até

timidamente insinuar desacordos perante a metodologia seguida pelos representantes

estatais.

O sector da chapelaria

É só nos finais dos anos 30 que surgem os programas de reestruturação, a cargo de

Comissões de Reorganização nomeadas oficialmente, por decreto governamental. Para a

indústria de chapelaria foi criada em 1938 uma destas comissões, já que o referido

sector se vinha progressivamente concentrando em S. João da Madeira, em particular

desde o início dos anos 30. Segundo Ferreira dos Santos (1948: 17), no princípio da

década de 40 estavam aí sediadas 75% das unidades fabris e 80% da produção nacional

de chapéus (por exemplo no ano de 1945 produziram-se 891.916 peças no distrito de

Aveiro para um total nacional de 1.128.385), empregando 1212 operários (num total de

1775 trabalhadores a nível nacional). A crise da chapelaria estava directamente ligada

133 Como procurou mostrar Rui Ramos (1986), ao estudar as relações entre o Governo central e o

Governador Civil de Vila Real, apesar da natureza autocrática do Estado Novo, não deixaram de existir

elementos contraditórios e de negociação entre diferentes sensibilidades políticas ou interesses privados.

“A complexa rede de Administração territorial, a multiplicidade de instituições oficiais de vária natureza e

a babel burocrática acabavam por tornar esse Estado, aparentemente centralizado e reduzido a um

comando único, um espaço muito fluído, poroso, em cujas múltiplas cavidades e articulações os interesses

privados e regionais encontravam meios de cultura própria para funcionarem como poderes” (Ramos,

1986: 13). 134 A empresa metalomecânica Oliva tem sido apontada como um dos casos de atenção e de

favorecimento do Governo de Salazar. A íntima ligação que foi estabelecida entre a acção da FNAT e o

Organismo Recreativo da Oliva, confirma esta simbiose. Ao lado dela surgem nomes como a Companhia

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199

ao problema da escassez e da qualidade das matérias-primas, como era o caso das peles

cujo processo de preparação, secagem e tratamento químico constituíam um campo

específico que exigia recursos técnicos próprios. A partir de 1941, a referida comissão

viria a encarregar-se também da reorganização da Indústria do pêlo e da cortadoria, uma

vez que os problemas do sector chapeleiro estavam estreitamente ligados àquele

sector135. Na sequência do trabalho da referida comissão, foi decidida a fusão das

pequenas e dispersas unidades numa única empresa que ficou sediada naquela vila: a

Cortadoria Nacional do Pêlo, L.da.136

Apesar do enquadramento legal e dos moldes autoritários em que tais processos

assentavam, nem sempre a acção das delegações oficiais de reorganização obtinha o

total acordo dos industriais da terra. Ao secundarizarem por completo o poder e a

iniciativa de muitos proprietários locais, algumas intervenções e comentários públicos

de condenação chegaram a surgir como uma forma de resistência dos interesses locais

face à arrogância do Estado. Um leitor “anónimo” citado no jornal O Regional,

socorria-se de passagens dos discursos de Salazar para contestar – embora com a

timidez e o “respeito” que convinha acautelar – o modo centralista com que os

representantes governamentais actuavam: “ninguém hoje se lembra de, numa economia

nacional que se pretende ordenada, estabelecer como princípio fundamental a

Portuguesa de Celulose, a Fábrica Têxtil de Vizela, a Fábrica de Cerâmica de Valadares, a Fábrica de

Loiças de Sacavém, etc. (Loureiro, 1991). 135 Em particular ao problema das importações de matéria-prima, agravado pelo clima de guerra na

Europa, pondo a claro a situação caótica que se vivia na indústria de peles. 136 Em 15 de Setembro de 1943 foi publicada em Diário do Governo (Dec. nº 33.049) a autorização para a

concentração das indústrias de cortadoria, mas só em Maio de 1944 foi efectivamente criada a nova

companhia, com um capital de três mil contos. Refira-se ainda que esta reestruturação redundou na

absorção das antigas unidades existentes não só em S. João da Madeira mas também em Braga, na altura o

segundo maior pólo da indústria (bem como da chapelaria). Por isso, a Cortadoria Nacional do Pêlo

manteve também em funcionamento uma secção naquela cidade até à altura da sua falência e

encerramento, em 1964. Em 1960 seria inaugurado um novo edifício na sede de S. João da Madeira o que

reflecte a evolução que ao longo desses anos a indústria foi alcançando, evolução essa que ficou a dever-

se não só ao esforço de aperfeiçoamento técnico verificado a partir dos anos 40, mas também ao

crescimento da produção de pêlo destinada à indústria de lanifícios, durante a década seguinte e a uma

penetração no mercado internacional (França, Inglaterra, Turquia, Canadá, Bélgica) que no início dos anos

60 começou a ser significativa (cf. Amaral, 1967; e F. dos Santos, 1948).

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200

concorrência sem limites. Por outro lado, o monopólio assusta – assusta porque tende

para o abuso, como toda a força descontrolada, porque tende para a estagnação, como

toda a actividade sem estímulo, porque, como disse Poincaré, onde está o monopólio, aí

começa o socialismo (…)”. Ao citar estas palavras de Salazar, o referido proprietário

chapeleiro não deixou de sublinhar que os industriais “aceitam a reorganização, mas

querem-na mais humana e mais justa. Querem que os deixem administrar aquilo que é

seu e que estranhos nunca o poderiam fazer melhor” (Jornal O Regional, 31/10/1948).

Não obstante os resultados conseguidos na exportação, cujo aumento maior se

verificou entre os anos 1943-46 (alcançando números anuais superiores a 350 mil peças

exportadas), a produção chapeleira desceu depois para níveis muito mais baixos na

década de 50137. O consumo interno, que, nos anos 30, se situou em torno dos 800 mil

chapéus por ano, baixou bastante a partir de meados do século, agravando as

dificuldades desta indústria devido, entre outros factores, ao fenómeno da moda. Os

industriais do sector falavam então da “moda dos descarapuçados”. Uma “moda” que,

apesar dos esforços em contrário, se tornou avassaladora para a chapelaria, visto que o

uso generalizado do chapéu foi desaparecendo de modo irreversível.

O crescimento do sector do calçado

Ao longo deste período, e principalmente a partir da década de 30, outros sectores

industriais vinham a ganhar peso e significado em S. João da Madeira, entre os quais as

indústrias do calçado e da metalurgia138 que cada vez mais disputavam à chapelaria a

posição hegemónica no que toca à absorção de mão-de-obra e ao peso económico que

foram conquistando no tecido industrial da região. Como referi antes, a indústria do

137 Situando-se as exportações em valores que rondavam as 25 mil unidades e a produção global na ordem

dos 500 mil, para voltar a subir nos anos 60, com a exportação a estacionar em valores próximos dos 130

mil, a partir da entrada de Portugal na EFTA. 138 Além destas actividades podem destacar-se outras indústrias neste período existentes em S. João da

Madeira: indústria têxtil; madeiras; fabrico de lápis de escrever; brinquedos (em madeira e chapa); velas

de cera; fabrico de chapéus de chuva; papelão e cartonagem; e outras ligadas ao calçado como é o caso das

borrachas, tintas e vernizes, tratamento de peles, etc..

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Entre a Fábrica e a Comunidade

201

calçado começou a crescer significativamente em S. João da Madeira nos princípios dos

anos 20. As características artesanais deste sector e a sua enorme mobilidade, tornam

praticamente impossível uma quantificação rigorosa do número de unidades e de

trabalhadores139. Umas fontes referem que nos princípios dos anos 30 existiam nesta

vila 22 fábricas de calçado, número que foi aumentando para 70 em 1940, e 110 em

1949 (O Regional de 31/7/85), outras indicam números bastante inferiores, registando

uma evolução de 4 para 16 empresas ao longo da década de 20, crescendo para 39

unidades em 1940, 61 em 1945, 106 em 1950 e 116 em 1959 (Graça, 1960)140. Segundo

os dados de 1940, o número total de trabalhadores do calçado para esse ano, era de

2.000 pessoas, sensivelmente o dobro da quantidade ocupada na chapelaria. Isto numa

altura em que a população activa do concelho era de 2.810 pessoas, a comprovar que a

capacidade de absorção de mão-de-obra deste pequeno núcleo industrial transcendia os

limites do concelho141 (Martins e Sousa, 1944: 118).

A capacidade atractiva da indústria de S. João da Madeira sobre as populações

vizinhas era, de facto, notável já neste período, ocupando as actividades produtivas que

aqui tenho procurado destacar os principais focos de atracção da força de trabalho

arrancada às suas raízes rurais. Um inquérito municipal realizado em 1953 registou que

2.657 trabalhadores se deslocavam diariamente dos lugares mais variados dos concelhos

circundantes para trabalhar nas fábricas da vila142.

139 Por isso se compreende que diferentes fontes revelem, por vezes, discrepâncias enormes. 140 Quanto à evolução da produção, segundo a monografia de S. João da Madeira, ela foi de 160 mil pares

em 1934, 170 mil em 1935, 200 mil em 1938 e 210 mil em 1939 (Martins e Sousa, 1944). 141 Segundo os dados oficiais, citados pela monografia local, a população total de S. João da Madeira era,

em 1940 de 7.398 habitantes, dos quais 2.583 tinham menos de 14 anos. Recorde-se que o concelho,

criado em 1926 possui uma única freguesia circunscrita a uma área de apenas 6,48 km2 (coincidente com

os limites urbanos da povoação) o que o tornava, já nessa altura, um dos concelhos de maior densidade

populacional, com 1.141,7 h/km2. 142 Segundo Graça (1960), os principais lugares de proveniência dos trabalhadores são os seguintes: Ul,

Oliveira de Azeméis, Santiago de Riba-Ul, S. Martinho da Gândara, Cucujães, Vila Chã de S. Roque,

Pindelo, Carregosa, Nogueira do Cravo, Cesar, Fajões, Macieira de Sarnes (do concelho de Oliveira de

Azeméis); Arrifana, Escapães, Sanfins, Fornos, Mosteirô, Vila da Feira, Milheirós de Poiares, Espargo,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

202

Apesar da conhecida política de contenção do desenvolvimento industrial, a

actividade económica destes sectores permitiu que a localidade continuasse a ser

apontada como exemplar a esse nível. Vejamos uma imagem emblemática que os

relatores locais gostam de referir, por ela retratar, a seus olhos, a caminhada dos

sanjoanenses no sentido do progresso e da modernização.

“Pelas 7,30 horas da manhã ou a partir das 5h da tarde, é um espectáculo

impressionante ver o buliço das ruas e largos, numa avalanche de operários

que enche as estradas e caminhos da freguesia em direcção às fábricas ou de

regresso a casa. À hora de almoço a animação é dominada pelo desfile de

mulheres, com os cestos à cabeça, transportando o almoço para os seus

„homens‟, pais ou irmãos. É na verdade um panorama cheio de cor, de vida e

„pitoresco‟. Depois, é um espalhar alegre por todos os locais que possam

servir para merendar, pois os refeitórios quase não existem! (…)” (Martins e

Sousa, 1944).

Para além do retrato social que sobressai neste tipo de descrições, é importante

reparar na carga valorativa – e por vezes abertamente moralista – destes

observadores143, um elemento fundamental com que a doutrina oficial procedeu à

pintura do regime, num quadro de exaltação das virtudes do trabalho destinado a

obscurecer os seus efeitos mais dramáticos. Mas, apesar do viés apologético destes

testemunhos, o observador local não deixa de evidenciar algum paternalismo face à

realidade do mundo operário, o que se liga também ao fenómeno do bairrismo, já

assinalado. O caso do calçado, pelas características particulares já referidas, foi-se

tornando um poderoso factor de mobilidade profissional, nomeadamente das

comunidades agrícolas para o sector industrial. Além de, numa primeira fase, ter

absorvido volumes significativos de força de trabalho recrutada nos meios rurais,

Pigeiros, Romariz, Souto (do concelho de Vila da Feira); Codal, Vila Cova do Parrinho, Vale de Cambra

(concelho de Vale de Cambra); Escariz (concelho de Arouca); S. Vicente de Pereira (concelho de Ovar).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

203

começou ele próprio a expandir-se para as comunidades envolventes, numa segunda

fase. A partir de finais dos anos trinta e ao longo das décadas seguintes, as pequenas

unidades de fabrico de calçado – as chamadas “sapatarias” ou “fabriquetas” –

estendiam-se cada vez mais às diferentes aldeias e freguesias vizinhas: Arrifana, S.

Tiago de Riba-Ul, Fiães, Escapães, Nogueira do Cravo, etc. Espaços de reduzidas

dimensões, com recursos técnicos insipientes e em geral de carácter doméstico, como as

que ainda hoje proliferam na região, mas que em alguns casos deram lugar a verdadeiras

fábricas. Alguns documentos da década de 40 relatam que nessa época era frequente

“ver-se um operário guindado à categoria de patrão, graças às suas aptidões para o

trabalho e iniciativa” (Martins e Sousa, 1944: 102). Daí a concorrência que se

desencadeou no seio do sector – principalmente nesta parcela das minúsculas

“fabriquetas” que se instalam em condições mais rudimentares – o que, aliado à falta de

preparação e espírito empresarial e ao desejo obsessivo de lucro fácil de muitos dos

pequenos patrões levava a que, com a mesma facilidade com que surgiam,

desaparecessem sem deixar rasto. Este aspecto prende-se também com as situações de

abuso, a total ausência de regalias para os operários, as condições desumanas em que

funcionavam estas unidades, a exploração de mão-de-obra infantil, etc., fenómenos que,

como se sabe, continuam presentes na região.

Todavia, apesar do crescimento do número de fábricas não ter abrandado no pós-

guerra (de 1945 até ao final da década houve um aumento de 45 fábricas e o número de

operários no sector do calçado atingiu os 7.000), no final dos anos 40 a crise económica

e a falta de escoamento dos produtos ameaçou o sector e trouxe o desemprego, a miséria

e a fome a SJM. Os empresários locais mais influentes organizaram-se, criando a

“Comissão de Defesa da Indústria do Calçado” que se propunha tomar em mãos o papel

143 Retomarei esta questão na segunda parte deste capítulo (ponto 5.2), a propósito da dimensão

recreativa.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

204

de coordenação e dinamização que o “Grémio dos Industriais de Calçado” não estava a

cumprir. Segundo as queixas de alguns industriais, aquele órgão corporativo estava

praticamente inactivo. Aquela Comissão chegou a dirigir-se a Salazar, numa exposição

(em 24/3/49) que apelava à intervenção estatal a fim de ser encontrada solução para os

problemas que o sector atravessava: começava por fazer os convenientes elogios ao

Presidente do Conselho, considerando-o “o Homem que dumas terras abandonadas

levantou um dos Impérios mais florescentes e respeitados do mundo inteiro”, e a seguir

acrescentavam: “(…) no momento em que estão prestes a empalidecer e a murchar

alguns frutos desse formidável trabalho de ressurgimento nacional e [por essa razão

pediam] a atenção do Mestre para os graves problemas que afligem a indústria”.

Realçando os avanços conseguidos antes da II Guerra Mundial na afirmação dos seus

produtos no estrangeiro e sem deixar de recordar que “já há quatro anos” esperavam

pela concretização de um ofício onde se prometia que “o assunto da exportação está

sendo estudado”, expunham a situação do sector, em seis pontos:

“1 - A fome, a verdadeira crise, já entrou nos lares de sete mil operários que

trabalham na indústria do calçado.

2 - Os patrões mantiveram até agora as oficinas em laboração durante 2 ou 3 dias

por semana.

3 - Fechadas definitivamente as portas do crédito, os industriais não podem pagar

salários, nem solver os compromissos comerciais com outros sectores.

4 - A tuberculose, provocada por deficiente alimentação, já atingiu cerca de 80%

da população operária.

5 - Para o rendimento líquido de 8.000 contos que o Estado colhe anualmente, S.

João da Madeira concorre com 45%.

6 - S. João da Madeira tem actualmente em stock mais de cem mil pares de

calçado, cuja venda urgente é o único remédio capaz de evitar a falência de 63 dos

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Entre a Fábrica e a Comunidade

205

110 estabelecimentos industriais que ali se dedicam ao fabrico do calçado” (Jornal

O Regional, 14/8/1949, p. 2).

Estas iniciativas não obtiveram, evidentemente, a resposta desejada por parte de

Salazar. Só a entreajuda e a caridade das instituições locais de assistência e de alguns

dos mais influentes notáveis atenuaram a miséria e a doença que a classe trabalhadora

da região atravessou neste período. Já no início dos anos 60, o governo interveio

(Portaria nº 17.880 de 4/8/1960) através do Ministério da Economia, no sentido de “pôr

em ordem” o sector do calçado, para o que se propunha suprimir algumas fábricas sem

viabilidade e incrementar a componente mecânica das mais viáveis.

O maior esforço de modernização do sector está, porém, relacionado com a

criação da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA, fundada em Janeiro de

1959) a que Portugal aderiu. A abertura da economia ao comércio internacional veio

permitir a introdução de tecnologias mais avançadas e concorrenciais, em particular nos

sectores virados para a exportação, como era o caso do calçado. É no seguimento desta

tentativa de modernização que, em 1965, o governo organiza em S. João da Madeira a

“III Exposição Técnica de Calçado”, subordinada ao tema genérico “A Normalização”.

Ainda na mesma altura, foi instalado o Centro de Formação Profissional da Indústria do

Calçado (resultado de um protocolo entre o Grémio dos Industriais de Calçado e o

Fundo de Desenvolvimento de Mão-de-Obra), dedicado ao ensino das áreas do design,

da costura e do corte e orientado para auxiliar com meios técnicos e humanos as

empresas mais competitivas.

A indústria metalúrgica e o caso da “Oliva”

A breve referência a esta empresa deve-se fundamentalmente ao facto de ela ter

representado um papel peculiar no contexto do operariado sanjoanense no período do

Estado Novo. A “Oliva” não só se enquadra num sector industrial que tradicionalmente

tem gerado uma força de trabalho qualificada e bastante combativa no terreno sindical e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

206

político, como a nível local terá sido a primeira unidade a introduzir um tipo de relação

salarial que, por razões diversas, se aproximou do regime fordista144 que neste período

vigorava na Europa desenvolvida. Para além da importância económica que adquiriu,

esta grande empresa assumiu-se como uma fonte de emprego estável de grande

significado na vida das populações desta zona. Propriedade de um ex-industrial de

chapelaria, António José Pinto de Oliveira145, esta firma teve a sua origem numa outra

empresa local – “A. J. Oliveira, Filhos & Cª. L.da” –, fundada em 1925. A sua principal

actividade foi, desde essa altura, a fundição de banheiras para esmaltar, radiadores e

caldeiras de aquecimento central. Empregando inicialmente 20 homens, em 1934

absorvia já 200 trabalhadores. O seu maior impulso verificou-se durante os anos 30 e

40, tendo beneficiado da protecção estatal o que contribuiu decisivamente para o

posterior processo de reestruturação e ampliação146. A inauguração oficial da nova

144 Talvez mais correctamente pudéssemos falar de um espécie de “ilha de fordismo”. Como assinala

José Reis (1992), dado o carácter datado e em certo sentido conjuntural do sistema fordista que se

afirmou na Europa do pós-guerra, não faz sentido falar-se de um fordismo periférico. Efectivamente, esta

referência serve apenas para designar um sistema que em Portugal teve pouca correspondência, em

especial neste período, mas que pontualmente teve algum significado em certos sectores e em algumas

grandes empresas, nomeadamente nos anos sessenta. 145 Este proprietário era natural de S. João da Madeira e gozava já de algum prestígio local devido à sua

anterior actividade, estando também envolvidos nesse processo alguns familiares seus (dois cunhados)

com negócios em África e no Brasil que, no entanto, nunca desempenharam na empresa qualquer função

executiva. 146 No âmbito do Condicionamento Industrial foi aprovada alguma legislação dedicada directamente a

esta empresa, que lhe concedia o direito exclusivo ao fabrico de máquinas de costura (Alvará nº 4 de 16 de

Dezembro de 1942). As suas actividades desenvolveram-se a um ritmo assinalável, incluindo, além das

máquinas de costura, tubos de aço para canalizações (Alvará nº 7 de 10 de Setembro de 1943), motores de

pequena potência e outras actividades de fundição. As diferentes fases de ampliação coincidiram com a

introdução de novas secções de fabrico que não pararam de crescer ao longo do período que vai dos anos

30 até finais dos anos 50: material de aquecimento central (em 1934); secção de esmaltagem de banheiras

e materiais de ferro fundido (1938); fabrico de máquinas de costura (1948); fundição de ferro maleável

(1950); galvanização de acessórios (1953); produção de tubos de canalização (1954); nova secção de

esmaltagem (1955). Em relação a cada um destes produtos, era garantida a isenção de direitos de

importação para o material destinado à construção e montagem das instalações das respectivas secções. A

legislação previa ainda que tais empreendimentos seriam objecto de protecção contra o “dumping”, o que

resguardava a empresa face à concorrência, quer interna, quer externa. Um estudo económico que analisa

o caso da “Oliva”, considera que a prosperidade inicial não teve a continuidade pretendida dado ter

começado a escassear a visão do fundador e a envelhecer o quadro de pessoal técnico e de engenheiros

que ele desenvolvera ao longo das décadas de 40, 50 e 60. Efectivamente, “os herdeiros do Sr. Oliveira [os

filhos], não transportando consigo o carisma empresarial do pai, limitaram-se a usufruir dos dividendos

que a empresa pôde distribuir até finais da década de 50. (…) À medida que a idade do Sr. Oliveira

avança, a função empresarial desloca-se para aqueles que fazem parte da tecno-estrutura”. Neste caso foi

decisivo o papel de Gil da Silva (um dos engenheiros que integrou a Direcção), que, de acordo com alguns

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Entre a Fábrica e a Comunidade

207

firma, após a referida “refundação”, com a introdução da secção de máquinas de

costura, teve lugar no dia 8 de Julho de 1948, altura em que a empresa integrava 540

trabalhadores, dos quais cerca de metade foram admitidos durante este processo de

ampliação. Nos anos 50 e 60 a empresa chegou a funcionar em regime contínuo, com 3

turnos, e a população fabril atingiu, em 1966 o seu apogeu, integrando então cerca de

2000 pessoas ao seu serviço.

Mais do que a esmagadora maioria dos proprietários de calçado (dada a dispersão

do sector e a debilidade económica dos pequenos industriais em geral), o exemplo da

Oliva serve-nos sobretudo para mostrar que a protecção legislativa e estatal dedicada a

alguns industriais por parte do Estado corporativo passava principalmente pela rede

clientelar que vinha sendo promovida nas diferentes regiões do país, em especial

naquelas em que a expansão industrial, dado o seu impacto crescente na

consciencialização dos trabalhadores, poderia dar lugar a novos focos de subversão

operária. Para além do estreito vínculo entre o patrão da “Oliva” e as estruturas do

regime, a grande concentração operária da empresa e o volume de trabalhadores que

absorvia justificaram que a mesma se tornasse um campo privilegiado de atenções por

parte das instituições corporativas, quer com os vários tipos de incentivos e regalias

salariais aos seus trabalhadores, quer ainda através das políticas sociais e culturais do

regime, coordenadas pela Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). Mais

adiante (no ponto 5.3) esta dimensão será referida com maior detalhe.

A grande maioria da força de trabalho desta unidade industrial (cerca de 70% nos

anos sessenta) era proveniente de aldeias e lugares dos concelhos vizinhos. Um dos

antigos responsáveis “projectou na expansão da empresa em mercados mais amplos a sua própria

projecção social e económica. Só que o capital continuou concentrado nas mãos de uma família e não de

uma infinidade de accionistas que, se quisessem, se poderiam desfazer dos títulos de propriedade na Bolsa

da Valores. E, naturalmente, a família Oliveira nem estava disposta a caucionar com o seu património o

recurso a capitais alheios, nem a prescindir da sua posição maioritária no capital da empresa, para que esta

pudesse proceder a significativos aumentos do seu capital social com a entrada de novos sócios

capitalistas” (Loureiro, 1991: 280).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

208

meus entrevistados, que foi admitido na “Oliva” com 14 anos, em 1947, comentava que,

naquele tempo, ser trabalhador desta empresa era em si mesmo um factor de prestígio:

“até havia rapazes que nesse tempo, quando conheciam alguma rapariga que lhes

perguntasse onde é que trabalhavam diziam que trabalhavam na Oliva, mesmo quando

não era verdade…”. A entrada deste trabalhador para a empresa coincidiu com a sua

expansão e o início da produção de máquinas de costura. No processo de admissão terá

sido decisiva a influência de um primo, trabalhador mais antigo e bastante conceituado,

que terá feito o respectivo “pedido” aos responsáveis. Conquistar um emprego na

“Oliva” significava obter não só mais estabilidade laboral, mas sobretudo regalias

sociais e salariais mais elevadas. Como referiu aquele entrevistado “nós nessa altura

ganhávamos na Oliva bastante mais do que o contrato e os salários eram muito mais

elevados que os dos trabalhadores nos outros sectores” (Entrevista no Outeiro, Leiras -

Pindelo, 8/1/94).

4.2 - Exemplos de resistência operária local: militância sindical e política

durante o salazarismo

Quer a imagem disciplinada, ordeira e “alegre” com que a propaganda do Estado

Novo nos apresentava o trabalhador industrial, quer aquela que nos apresentava o

“proletariado” inserido num quadro de permanente revolta e luta colectiva, constituem

estereótipos fortemente impregnados de ideologia. Além de caricaturais, estes exemplos

são ilustrativos da forma como a ideologia salazarista e fascista, por um lado, e a

ortodoxia comunista, por outro, pretenderam conotar a classe operária. Como é sabido,

tais encenações tiveram, qualquer delas, um impacto notório nas subjectividades e nas

práticas dos trabalhadores, contribuindo para produzir formas de identificação – por

exemplo com a nação ou com a classe – socialmente significativas e, por isso mesmo,

merecem ser incorporadas na análise.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

209

Porém, ao lado dos efeitos concretos destas construções doutrinárias, é sabido que

o operariado desde sempre transportou uma variedade de situações sociais onde se

misturam a aceitação e a luta colectiva, a pobreza e o sucesso económico, a

solidariedade e o individualismo. Uma das ideias-chave da presente pesquisa é

justamente a de que, nesta região, a oscilação entre essas duas tendências foi

particularmente nítida desde finais do século XIX. Neste ponto darei maior atenção às

experiências de resistência organizada do operariado ao longo do período salazarista,

utilizando, como já disse, extractos de entrevistas e histórias de vida de dois activistas

sindicais de S. João da Madeira, ambos ligados ao sector do calçado.

Comecemos por referir um pouco da biografia dos dois trabalhadores a que me

refiro: António Ribeiro Lima, trabalhador do calçado e militante comunista (Entrevista

em S. João da Madeira, em 14/9/93, na sua residência); António da Costa Santos –

conhecido por “Carreirinha” – operário do calçado, fundador do Sindicato dos

Manufactores de Calçado do distrito de Aveiro (Documento autobiográfico).

António Lima nasceu em 1916 e começou a trabalhar com 8 anos. De manhã

estava na escola e à tarde trabalhava no calçado, como aprendiz. Começou por preparar

as “cerdas” para pontear o calçado, na fábrica “Airosa” (nos anos 20 era uma das mais

importantes em S. João da Madeira), onde esteve 2 meses e ao fim desse tempo

começou a trabalhar em casa de um sapateiro que exercia a actividade em regime

domiciliário. Esteve lá cerca de 3 anos, aprendeu a pontear e pouco depois, já com

alguma experiência, começou a palmilhar.

“Em 1932 comecei a trabalhar por minha conta, em minha casa (…), eu nessa

altura já começava a fazer um calçadito jeitoso (...). Mas nessa fábrica

trabalhavam lá uns sete ou oito (mais uns 28 a 30 que iam já buscar o material

e trabalhavam em casa, como eu). Esse patrão da fábrica “Airosa” e quase

todos, nessa altura, usavam umas senhas, onde assentavam os erros dos

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Entre a Fábrica e a Comunidade

210

operários, e quando recebiam no fim da semana era-lhes descontado (...).

Éramos nós que tínhamos de comprar os fios, os pregos, a cera (...), que na

altura chamávamos as miudezas. Acontece que, como os operários se sentiam

prejudicados com os descontos que ele lhes fazia, umas vezes com razão, mas

muitas delas só porque ele achava que o sapato não estava lá muito ao seu

gosto (…), muitos de nós, quase todos, em vez de palmilhar com 4 fios, como

o patrão queria, palmilhávamos com três.

Uma ocasião, isto aconteceu por volta do ano de 1939, houve lá um problema

(...) o patrão chegou-se a mim e perguntou-me: „com quantos fios estás tu a

palmilhar?‟ Eu como sabia que ele era torto tive que dizer a verdade: – digo,

olhe estou a três. Responde logo ele: – desmancha já isso e faz a 4 fios! Ora

eu, como não queria deitar por terra todo aquele trabalho e sentindo que o que

ele pagava não chegava a nada, comecei a pensar em meter o outro fio por

cima da sola mas sem despregar e descoser o que já estava feito. Passado um

bocado ele vem outra vez ao pé de mim e pergunta: – então já desamanhaste o

sapato? Eu disse – ainda não…

– Desmancha isso já! Ordenou ele. Eu, que então já tinha uns vinte e tal anos,

estava cada vez estava mais revoltado, disse – não desmancho ! Ele insistiu:

desmancha isso já! Começámos ali a teimar até que eu agarrei no sapato e bati

com ele com toda a força em cima da mesa, peguei numa faca – ha! seu filha

da puta que eu mato-te já! – e o gajo fugiu, desapareceu e foi-se esconder lá

para dentro. Mas eu tinha consciência que estava a fazer aquilo só para o

assustar, que eu já queria era vir-me embora dali. Passado um bocado, estava

eu lá ao pé da banca, que dava, assim, para o corredor que ia até à porta da rua

e vi-o a chegar-se ao pé da porta (mas ainda estava com medo) [... risos] e

gritou para mim: vai-te embora meu malandrito que em minha casa não entras

mais ! Eu fui-me embora. Mas passado tempo ele foi-se queixar ao Governador

Civil, que ainda se dava com a minha família. Ele chamou-me lá e admoestou-

me. Como ele me conhecia e também não gostava lá muito do patrão, não

passou daí. Só me disse – „ameaçaste o Sr. Santos Silva (que era o patrão) e

agora se ele aparecesse morto tu eras o culpado perante a lei‟…” (Entrevista a

A. Lima, SJM, 14/9/93).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

211

António “Carreirinha” nasceu a 21 de Maio de 1908, filho de um operário

sapateiro e mãe doméstica. Foi o quarto filho de 12 irmãos (seis rapazes e seis

raparigas). Aos seis anos entrou na escola e aos nove fez a terceira classe. No ano

seguinte, porém, a doença do sarampo deteve-o durante três meses, o que o impediu de

ir às aulas, não tendo concluído a quarta classe. Foi então, com 10 anos, trabalhar como

aprendiz do pai. Vejamos algumas passagens do detalhado documento autobiográfico

que deixou:

“(...) Esquecido de tudo o que tinha aprendido na escola, sentia-me por vezes

inferiorizado em relação aos meus companheiros de mocidade. Foi, creio bem, aos

18 anos que, sentindo-me penalizado por esta situação, comecei a ficar consciente

e a pensar na vida e no futuro. (…) Há muito tempo que a situação das massas

trabalhadoras me preocupava, mas eu trabalhava em casa e, como eu, muitos

outros. O trabalho ao domicílio não propiciava encontros e uma defesa comum

dos nossos interesses pois, mesmo nas oficinas, embora houvesse legislação, não

se cumpria o horário de trabalho. (…) Mas, a falta de procura, originada pela crise

económica, levou os industriais a deixarem de dar trabalho para casa e a

preferirem os poucos operários que tinham nas oficinas. (…) Numa quarta-feira

do ano de 29 consegui, porém, trabalho na firma Aliança Industrial de Calçado

Lda. Familiarizei-me de imediato com os companheiros, ao mesmo tempo que

consegui a confiança dos três patrões (…)” (Documento Autobiográfico de A.

Carreirinha).

Perante as humilhações sofridas no trabalho, tanto mais tratando-se de uma

personalidade irreverente, seria previsível que a atitude de revolta começasse a tomar

forma e a percepção da injustiça se desenvolvesse. Parece-me interessante registar as

circunstâncias que levaram estes trabalhadores, já minimamente despertos para a

importância da luta colectiva, a estabelecer os primeiros contactos com a mensagem do

movimento comunista que, como se sabe, estava nesta altura a ganhar terreno no seio do

operariado português. Estes aspectos são importantes, não só para que se percebam as

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Entre a Fábrica e a Comunidade

212

dificuldades de organização e de mobilização nestas condições, mas também para que, a

partir da descrição destes breves episódios, possamos a pouco e pouco ir clarificando

alguns dos traços da vida quotidiana do operariado desta zona e dos diferentes

obstáculos que se levantavam à luta colectiva.

“Um dia, creio que numa manhã de domingo do ano de 1929, ao passar em frente

da Capela de Stº. António, deparei com um grupo de homens. Qual não foi o meu

espanto, vi um dos homens desligar-se dos outros, encarrapitar-se no muro que

ladeava a Capela e começar a falar! Aproximei-me e escutei o que o homem dizia.

O tema da palestra era a Internacional Anarquista e ele pretendia angariar fundos

destinados ao Socorro Vermelho. Acabado o comício, o homem prometeu voltar

um mês depois, se os presentes arranjassem um local de reunião. Foi a primeira

vez que ouvi falar de política. Intrigado com tudo aquilo que tão familiar pareceu

ao homem, quando eu não conseguia compreender o que era o sindicalismo e

muito menos o que significava o “Socorro Vermelho”. Fiquei, assim, ansiando

pela vinda do homem, mas este acontecimento fez-me dar a volta à cabeça (…).”

(Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).

Na sequência deste episódio, viria a ser fundada, ainda em 1929, uma Associação

dos Manufactores de Calçado. Esta teve, contudo, uma vida curta. Foi extinta com a

publicação do Estatuto do Trabalho Nacional e substituída pelo sindicato corporativo,

do qual este sindicalista viria a ser o fundador, a convite do Presidente da Câmara.

Embora formalmente enquadrado nas estruturas corporativas, o Sindicato Nacional dos

Operários Sapateiros do Distrito de Aveiro manteve alguma margem de autonomia e em

certos períodos conseguiu algumas vitórias para a classe, em grande parte devido à

liderança deste trabalhador e mais tarde também à influência do Partido Comunista

Português que, entretanto, ele próprio ajudou a criar.

Como era normal neste período, as células locais do partido sofreram a

perseguição da polícia política e mais tarde a maioria dos seus militantes foi presa e os

precários embriões organizativos foram desmembrados. Mas, nos anos que antecederam

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Entre a Fábrica e a Comunidade

213

a greve do sector do calçado de 1943 tiveram um papel decisivo, nomeadamente no

próprio decurso desse processo, como adiante se verá.

Quanto a António Lima, as primeiras experiências laborais vividas desde a

infância, levaram-no também a agudizar o sentido da solidariedade e desde cedo tomou

consciência de que a contestação do operariado era o único meio de resistência e de luta

contra as injustiças sociais e económicas. Circunstâncias diversas conduziram-no

igualmente a tomar contacto com o partido comunista, no início dos anos 40.

“Um dia estava eu com um amigo quando apareceu então esse tal rapaz que me

aliciou para o Partido (PCP). Mas não me aliciou logo: mostrou-me o Avante!

Esse rapaz era o Adelino, que depois falou comigo, me aliciou ao partido, disse-

me que eu não devia ter agido assim (…). Que o caminho era lutar, mas

juntamente com os outros.

– Depois disso (já que tinha sido despedido), para onde foi trabalhar?

– Depois disso ainda estive numa outra fábrica (do Almeida e Santos que era da

Legião), trabalhando na fábrica. Pouco tempo passado, havia muito mal-estar,

salários muito baixos, ele só pagava quando queria, havia crise no calçado e então

fui já eu que comecei a convencer os outros que era melhor ir para as minas do

que estar ali (nessa altura havia umas minas de volfrâmio ali para a zona de

Arouca) e como os outros ninguém gostava do patrão, todos se queixavam, até

que um dia fomos todos embora, deixámos a fábrica, só lá ficou um que era primo

e também era da Legião. Fomos para a mina, mas aquilo era também muito difícil,

e pagavam mal (…).

Depois disso, fomos alcunhados de comunistas e foi difícil voltar a arranjar

trabalho, mas ainda fui para um outro patrão do calçado onde me aguentei mais de

um ano porque me dava bem com o patrão, ele era boa pessoa, até jogava às vezes

uma sueca connosco. E eu também já sabia bastante do ofício e como ele me

respeitava, comecei a entusiasmar-me com aquilo e estive lá até à altura da greve

(1943). Aí eu já sabia melhor como me orientar, já lia o Avante, estava melhor

informado e então comecei a conversar com os companheiros, a reivindicar, etc.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

214

Aí já me sentia um todo poderoso, era o melhor operário, o patrão gostava de mim

porque eu fazia a obra melhor (…)” (Entrevista a António Lima, SJM, 14/9/93).

Quaisquer destes activistas estiveram, portanto, ligados ao PCP, mas foi

Carreirinha quem primeiro integrou a organização partidária. Foi também através deste

que A. Lima se aproximou do partido, juntamente com outros, durante a fundação das

primeiras células comunistas em S. João da Madeira. É preciso, pois, voltar um pouco

atrás para referir o processo de aproximação daquele operário às fileiras do comunismo.

Em 1936, a guerra civil espanhola servia de barómetro à temperatura política

europeia e mesmo mundial. Apesar da situação de miséria que se vivia no país, Salazar

organizava recolha de géneros que depois eram enviados, como dádivas, para a Espanha

de Franco, em comboios especiais. Esta situação não agradava a muitos simpatizantes

portugueses do exército republicano que se ofereciam para combater o franquismo,

como foi o caso de Carreirinha. Razões diversas impediram-no de realizar esse

objectivo e por isso, em finais dos anos 30, como ele recorda no citado documento,

sentia-se “cada vez mais apreensivo com a sorte da humanidade”.

“Há algum tempo atrás ouvira um sindicalista meu amigo, Manuel Alves da

Costa, falar de comunismo. Não me abri com ele, mas isso obrigou-me a pensar e

a encontrar o caminho: a revolução do proletariado. (…)

Numa manhã de domingo de 1938, um homem de estatura regular, tez morena,

com uma cicatriz num dos lados da cara, simpático e atraente, bateu-me à porta.

Estava sozinho em casa, a trabalhar e não me podia alongar muito em conversas.

Mesmo assim falámos bastante sobre diversos assuntos. Por fim ele disse-me: –

Amigo, preciso de falar contigo em pormenor e pelo que estou a ver só poderá ser

da parte da tarde.

Acertado o encontro, o homem retirou-se e à tarde foi um longo encontro, uma

longa conversa… O mais importante foi termos combinado nova reunião para daí

a quinze dias, em que eu lhe apresentaria algumas pessoas. Assim, voltámos a

conversar, com mais dezasseis amigos, sobre a política nacional e outros temas.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

215

Ao dispersar, cada um foi para seu lado e eu fiquei só com o visitante, que me

disse o que queria de mim. Identificou-se como o Pinto da Carris, funcionário do

Partido Comunista Português que via em mim a pessoa indicada para organizar o

Partido em S. João da Madeira. Foi o dia mais feliz da minha vida! (…)

Foi com oito camaradas que iniciei o partido em S. João da Madeira. A

organização foi-se estendendo pelas freguesias circunvizinhas e alargou-se o

Comité Local. Formaram-se células em várias unidades fabris; as mais

importantes na indústria de sapataria, as mais débeis nas de chapelaria e guarda-

sóis. Também aos sindicatos dos sapateiros, chapeleiros e vidreiros, o partido

chegou.

Em Oliveira de Azeméis havia três intelectuais que eram responsáveis pelo

organismo local. Na Vila da Feira foi organizada uma célula, composta por três

operários e um antigo marinheiro. Em Arrifana os camaradas estavam isolados e o

mesmo acontecia em Couto de Cucujães. Todos eles viriam a ser controlados por

mim. Em S. Tiago de Riba-Ul havia dois elementos ligados a Oliveira de

Azeméis, e em Bustelo, a organização, orientada pela célula do Sindicato

Vidreiro, tinha camaradas com muita experiência e era bastante boa. Em Nogueira

do Cravo a célula era orientada por elementos da Direcção do Sindicato dos

Sapateiros e, como a sede era em S. João da Madeira, estava em contacto

permanente comigo (…)” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).

Veja-se ainda o relato do mesmo trabalhador a propósito de um episódio que

ocorreu em Dezembro de 1939, relacionado com a tentativa de celebração do dia da

Restauração da Independência, celebração essa cuja organização foi disputada entre o

PCP e a delegação local da Legião Portuguesa:

“No dia 15 de Novembro de 1939 reuniu o Comité Local, com um único ponto na

ordem de trabalhos: „A análise dos locais onde se faria a distribuição dos panfletos

em relação ao 1º de Dezembro‟. Claro que esta distribuição era à escala nacional e

era a orientação do Comité Central que, dias antes, nos tinha enviado a respectiva

propaganda e as indicações para as organizações que controlávamos. (…)

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Entre a Fábrica e a Comunidade

216

A Legião Portuguesa também tinha decidido comemorar o 1º de Dezembro em

todo o país. Em S. João da Madeira o Núcleo Legionário era o mais numeroso do

Distrito de Aveiro e decidiu fazer exercícios de campanha, desfile e discursatas no

Parque de Nossa Senhora dos Milagres.

Depois de termos percorrido todo o perímetro de S. João da Madeira, terminámos

o nosso trabalho no Parque de Nossa Senhora dos Milagres. Espalhámos por todo

o parque centenas de panfletos e cada um com uma pedrinha em cima para que se

mantivesse no mesmo lugar. Até nos ramos das árvores se penduraram panfletos!

Na manhã do 1º de Dezembro a fanfarra e as autoridades locais desfilaram, em

farda de gala, para o Parque, para assistirem à missa na Capela. Foi um

espectáculo impressionante! O comandante dos legionários, Sr. Joaquim de

Almeida, empregado superior do escritório do Sr. A. Henriques [o Presidente da

Câmara], ficou tão desorientado que mandou toda a sua tropelha, em debandada,

para o Quartel. A mesma atitude tiveram os outros.

Foi assim que acabou a manifestação fascista no dia 1º de Dezembro de 1939.

Desse dia em diante, o Comité Local começou a notar que “bufos” e legionários

de tudo faziam para localizar a organização, obrigando-nos a constante vigilância

para a defender (…)

Retomei, de imediato, o trabalho partidário, fazendo com outro camarada a

distribuição, a pé, num raio de 8 km, de propaganda em relação à situação política

interna e externa. (…)” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).

Como atrás se disse, em 1929 havia sido criada a Associação dos Manufactores de

Calçado, de cuja direcção fez parte Carreirinha. Inicialmente, a acção desta estrutura

limitou-se a uma débil tentativa de obter do Governo Civil do distrito o cumprimento do

horário de trabalho de 8 horas nas oficinas do calçado, o qual continuou, porém, a ser

boicotado pela maioria dos patrões.

Extintas todas as estruturas associativas autónomas ao abrigo do novo Estatuto

Nacional do Trabalho, seguiu-se a edificação dos Sindicatos Nacionais que, no caso de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

217

S. João da Madeira, foi activada pelo Presidente da Câmara147, o qual convidou

Carreirinha para encabeçar a Direcção do novo sindicato do calçado. Aparentemente,

parece contraditório o convite ter sido dirigido a alguém com ideais tão radicais como

os deste sindicalista, por parte de uma figura que, apesar de identificada com a sua terra

e ter no passado dirigido a luta pela conquista do estatuto concelhio, não deixava de ser

um homem do regime. Talvez devido ao facto de ser conhecida a anterior experiência

organizativa de Carreirinha, por, também ele, ser uma figura respeitada em termos

profissionais, trabalhando nesta altura por conta própria na sua oficina doméstica, mas

certamente, porque as suas ideias políticas e filiação partidária só mais tarde viriam a

definir-se e a ser conhecidas.

Todavia, a dimensão comunitária e a presença das redes familiares148 estão

constantemente presentes neste contexto. Repetem-se os exemplos de afinidades

“transversais” que subvertem os habituais antagonismos da luta de classes. Por outro

lado, o facto de este dirigente ter sido, ele próprio, um pequeno proprietário (embora em

alguns períodos da sua vida profissional tenha sido assalariado, como atrás se viu)

mostra bem a natureza instável e a grande mobilidade deste tecido produtivo149. Mas

isso não parece ter diminuído a importância do seu papel de líder sindical local e a sua

adesão à causa comunista que, mais tarde, lhe viriam a custar vários anos passados na

prisão e repetidas torturas da PIDE150. Vejamos um extracto do diálogo entre o referido

presidente da câmara e este trabalhador:

147 Prestigiada figura local que, além de ser um conhecido industrial de chapelaria e também de calçado,

vinha desempenhando esse cargo desde a criação do Município, em 1926. 148 Refira-se que este proprietário e Presidente da Câmara (António Henriques) se dirigiu a Carreirinha

por intermédio da esposa deste que o conhecia pessoalmente, uma vez que trabalhava na chapelaria e

comercializava chapéus fabricados na firma daquele industrial. 149 Já no período pós-25 de Abril, também alguns dirigentes sindicais se tornariam pequenos patrões no

sector do calçado. 150 Embora esta designação tenha surgido apenas em 1946, em substituição da então Polícia de Vigilância

e Defesa do Estado (PVDE), por facilidade de identificação, preferi usar a fórmula actualmente mais

conhecida da polícia política do Estado Novo.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

218

“– Sabe Sr. Santos, eu também fabrico calçado, mas a indústria de sapataria está

bastante desorganizada e dispersa. É necessário organizá-la e concentrá-la. Por

isso me lembrei de si e o chamei.”

– Mas que posso eu fazer?

– Pode organizar o Sindicato dos Sapateiros, que abranja todo o distrito de Aveiro

(…).

Enganava-se, porém, o Sr. A. Henriques ao pensar que com esta astuta manobra

me atrelava ao seu carro e teria um sindicato a tratar de problemas do patronato e

frontalmente oposto aos interesses dos trabalhadores! De facto, apesar do meu

bem-estar de então, nada me faria esquecer a situação de miséria dos meus

companheiros de classe. (…)

Tentei escolher o melhor elenco possível para a direcção do sindicato, aquele que

defendesse coerentemente os direitos da sua própria classe. Consegui uma

direcção alargada, isto é, com elementos de S. João da Madeira, S. Roque e

Nogueira do Cravo. Andávamos de porta em porta e, no espaço de um mês,

fizemos quatrocentos e cinquenta associados! (…)

(Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).

Do estudo atento do depoimento deste sindicalista pode retirar-se o carácter

ambíguo com que se pautou a actuação do sindicato por ele liderado. Por um lado,

tratava-se, como já referi, de um organismo corporativo obrigado a funcionar segundo o

quadro legal vigente, mas, por outro lado, procurava orientar-se com suficiente subtileza

para não trair a consciência revolucionária dos seus dirigentes mais influentes. As

principais acções desenvolvidas pela estrutura sindical, e sempre segundo a leitura deste

activista, só teriam lugar em finais da década de 30. Aí, destacam-se a luta pelo

cumprimento das 8 horas de trabalho diário, o fim do pagamento de alguns materiais de

fabricação, a tentativa de atenuar o forte peso do trabalho domiciliário no sector e,

ainda, algumas medidas de carácter assistencial e de protecção dos associados. O auge

da actividade deste sindicato seria a greve de 1943, após a qual foi desmantelado.

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219

“A direcção obteve em 1940 uma grande vitória sobre o patronato com a garantia

do período de 8 horas de trabalho, a semana inglesa e a abolição dos pagamentos,

por parte dos operários, das “miudezas” (fio, lixa, pregos, tinta, cera, etc.) que

passaram a ser custeadas pelos industriais. (…)

No segundo ano de exercício, a direcção do Sindicato contratou um médico que

prestava assistência aos associados e familiares, uma vez por semana na Rede

Social. Aos operários que trabalhavam em casa, o sindicato, em caso de sinistro

de trabalho, atribuía um subsídio semanal de 25$00 (um terço do seu ordenado).

(…)

Foi uma luta titânica a que consignou a prática do período de 8 horas de trabalho

diário. Os operários que até aí trabalhavam em casa, com toda a liberdade de

gerirem o seu tempo, não estavam dispostos a ir para a fábrica sem que o salário

fosse aumentado, pois recebiam à peça. Pela nossa parte, fizemos, em vão,

inúmeras tentativas junto do Ministério das Corporações, do Ministério do

Comércio e Indústrias e da Presidência do Concelho. A última foi em Lisboa, em

casa do Ministro do Comércio e Indústria, Dr. Pedro Teotónio Pereira, que nos

encaminhou para o Delegado do Tribunal Nacional do Trabalho, em Aveiro, Dr.

Afonso de Aragão. (…)

(…) Tendo, antes de partir para Lisboa, convocado uma Assembleia Geral para as

6 horas de segunda-feira, encontrávamo-nos, porém, a essa hora no Porto e sem

grandes novidades. Às 8 horas chegámos à sede do sindicato, o ambiente era

escaldante. Os associados estavam excitadíssimos, faziam perguntas e mesmo

exigências, sobre o aumento a dar pelo patronato, no caso das 8 horas de trabalho

nas oficinas. Consegui, com dificuldade, que se acalmassem e me escutassem,

mas passei um mau bocado quando anunciei que o aumento era impossível, pois o

Governo estava na disposição de intervir no assunto e os industriais negavam

também tal aumento.

Aproveitando o momento mais tranquilo, disse:

– Camaradas, a solução está nas nossas mãos.

– Mas como? – perguntavam uns.

– Não é impossível, não é impossível – repeti – em casa tendes todo o tempo à

vossa disposição. Tendes pombas e perdeis todos os dias bastante tempo à volta

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220

delas. Precisais, assim, de 16 ou mesmo 17 horas para dar por pronto um par de

sapatos, com a agravante de estardes isolados de tudo o que vos rodeia, com a

agravante dos patrões fazerem de nós tudo o que lhes dá na real gana. Ao

contrário, na fábrica, se a produção baixa bastante, isso obriga o patrão a não

satisfazer as encomendas a tempo e horas. Como resultado, o patronato terá

necessidade de procurar mão-de-obra e, forçado a adquiri-la, terá de melhorar a

remuneração do operário. Fixem bem: a procura de mão-de-obra encarregar-se-á

de dar força às nossas reivindicações. Temos ainda pelo nosso lado a certeza de

que, com o tempo, o operário acabará por fazer um par de sapatos em 8 horas, ou

até menos. Eu próprio já o consegui, e não sou diferente de vocês”.

Assim acabou, com saldo positivo, esta agitada reunião. (…)

A Direcção do Sindicato dos Manufactores de Calçado do Distrito de Aveiro

nunca se submeteu ao sistema Corporativo de Salazar. Sempre primou em

combatê-lo.(…)

Eu, na qualidade de Presidente da Direcção do sindicato, cheguei a Vereador da

Câmara Municipal de S. João da Madeira, cujo Presidente era o Sr. A. Henriques.

É certo que aquilo era uma fantochada: quando se reunia, o Presidente trazia no

bolso os assuntos resolvidos, era só fazer a acta, assiná-la e nada mais”

(Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).

Antes de me referir à greve dos “sapateiros” de Agosto de 1943 em S. João da

Madeira, é conveniente recordar que estes acontecimentos não estão de todo desligados

do clima de descontentamento geral que se vivia no país. Enquanto a Europa e o mundo

se debatiam contra a ameaça nazi-fascista, em plena guerra mundial, em Portugal

imperava a generalização da miséria no seio do operariado, o aumento da repressão e a

lei da censura.

No início da guerra, a situação da classe operária era particularmente difícil (veja-

se Rosas, 1990). A escassez de géneros alimentares e consequente tentação

especuladora traduziam-se na subida da inflação e diminuição do poder de compra dos

trabalhadores (que o governo tentaria mais tarde minimizar com a instauração do

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Entre a Fábrica e a Comunidade

221

sistema de racionamento através da distribuição de senhas). A criação do “abono de

família” (em Agosto de 1942) e a introdução do correspondente desconto no já tão

magro salário do operário veio a ter consequências opostas ao efeito pretendido,

ajudando a precipitar a onda de greves de finais desse ano, acicatando ainda mais a

contestação e ajudando a politizar o movimento na seguinte reedição do surto grevista,

em Julho de 43. Entretanto, a falta de higiene e de salubridade nas habitações operárias

dos meios urbanos, as doenças e epidemias (as doenças infantis como a diarreia e a

enterite; a tuberculose; a sífilis; o tifo; etc.) que alastravam por todo o país, agravavam

as condições de miséria do povo para níveis insuportáveis. Além da contenção geral dos

salários, o governo de Salazar aumentava as medidas repressivas visando obrigar os

trabalhadores a suportar a crise, nomeadamente ao instituir o trabalho extraordinário

obrigatório (sendo as horas pagas a 50%) e a imposição de níveis salariais mínimo e

máximo.

Também em S. João da Madeira a situação de carência se fez sentir de forma

dramática na vida das famílias operárias, e isso não foi certamente alheio à grande

adesão que obteve a greve de 1943. Porém, ao contrário das zonas industriais de Lisboa,

por exemplo, aqui persiste a presença da pequena agricultura familiar e, talvez mais

importante do que isso, o “factor local” foi – como tenho defendido ao longo do

presente estudo – um importante elo de aproximação entre o operário e o patrão o que,

nos períodos de crise mais profunda, se traduziu na promoção de formas locais de

protecção e solidariedade social as quais se tornaram um factor de suporte e de

regulação não menosprezável, mesmo quando efectuadas à margem das instituições

corporativas do Estado.

Por esta altura (1940), existiam em S. João da Madeira alguns bairros operários

cuja construção foi subsidiada por empresas locais em articulação com o município e

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222

com apoio governativo. Houve fábricas que desenvolveram formas de assistência aos

trabalhadores mais carenciados, chegando algumas delas a assinar acordos em que era

dada “preferência e melhores honorários aos que tenham maiores encargos de família e

criando para esta um subsídio durante a invalidez do seu chefe”. Apesar das evidentes

clivagens classistas a nível local, vários indícios mostram que nesta pequena vila – que

se pretendia identificar com o “amor ao trabalho” e a união em prol do “progresso” – as

injustiças sociais mais flagrantes pareciam ferir o orgulho “bairrista” dos notáveis e

ricos industriais da terra. A vertente filantrópica em que se fundava o paternalismo de

base local parecia, pois, acentuar-se nos períodos de crise social e económica mais

agudos. Através da leitura dos jornais locais da época – e não obstante a sua vinculação

ideológica ao regime –, encontrei diversos artigos de denúncia da situação de penúria

em que vivia a classe trabalhadora local. O conteúdo de alguns deles parece até ir para

além da mera atitude piedosa.

“Está-se acentuando em S. João da Madeira a falta de géneros de primeira

necessidade e de tal modo que assume um aspecto grave se considerarmos que

esta terra é um meio operário, em razão das muitas indústrias aqui existentes,

tendo por isso muita população. O Sindicato Nacional dos Operários Chapeleiros

já pediu às instâncias superiores que fosse feito em S. João da Madeira o

racionamento dos géneros, tal como já se pratica nos vizinhos concelhos de Vila

da Feira e, ao que parece, também em Oliveira de Azeméis. É que, por meio das

senhas, todos participarão numa distribuição de géneros, sem elas, nada feito.

Quaisquer pessoas, até mesmo de fora da terra são servidas e cada qual apanha o

que pode, e como pode… O milho está caríssimo. O que há, produzido nesta vila

e concelho, não chega para o consumo da terra. Há outros concelhos onde talvez o

milho abunde por serem regiões produtivas deste cereal e de menor consumo.

Sermos abastecidos desses concelhos, eis o que seria de desejar (…)” (Jornal O

Regional, 11/11/42).

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223

A agudização da crise e a precária situação de muitas empresas, com a restrição

salarial, a acumulação de stocks devido à falta de escoamento e de matérias-primas,

estavam a lançar muitas famílias operárias para situações extremamente dramáticas.

Com a fome e a miséria a alastrar, a preocupação maior dos trabalhadores era defender

o emprego e o salário. Por isso a greve dos operários do calçado em S. João da Madeira,

constituiu uma luta dirigida mais contra o Estado do que contra o patronato. Para além

da abolição dos descontos, e da exigência do pagamento das horas extraordinárias ao

preço justo, os operários pretendiam que o Estado garantisse o fornecimento de

matérias-primas para a indústria poder funcionar. Esta greve foi a mais importante deste

período na região, tendo surgido já no rescaldo das movimentações desencadeadas em

Lisboa nos princípios da década de 40. Os surtos grevistas de 42 e 43 tinham criado no

país um clima de agitação laboral, com particular incidência na cintura industrial de

Lisboa – envolvendo no seu ponto máximo 50.000 trabalhadores –, o qual chegou a

fazer estremecer o governo, conforme se retira dos alertas lançados a Salazar por um

conhecido discípulo seu: “(…) está-se a criar um ambiente favorável a qualquer coisa

que já se anuncia em voz alta (…). Por toda a parte só se houve dizer: „isto está na

última, é o fim!‟ (…)” (M. Caetano citado por Rosas, 1990: 380). Para além dos

diversos motins que neste período tiveram lugar – nomeadamente as inúmeras revoltas

de assalariados rurais e pequenos camponeses –, embora se baseassem em

reivindicações de carácter laboral e económico foram, segundo Fernando Rosas,

adquirindo um peso político cada vez maior, à medida que crescia a influência do PCP

no movimento operário e iam sendo conhecidos os avanços das tropas aliadas, no

cenário de guerra. A notícia da queda de Mussolini em Itália levou os sectores mais

politizados a aumentar as expectativas em relação a um possível fim do próprio

salazarismo. É neste quadro político-social que o papel das estruturas organizativas do

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224

PCP se tornou decisivo na acção mobilizadora dos trabalhadores do calçado em Agosto

de 1943, nesta vila. A. Carreirinha dá-nos conta das movimentações partidárias que

estiveram na base da sua preparação.

“Desde o 1º de Maio de 1943 que fazia parte do Comité Regional do Norte. Na

primeira reunião que tive neste orgão, estiveram presentes os seguintes

camaradas: Alberto (José Gregório), Aurélio (José Martins), Gomes (Pires Jorge),

Rosa (Cândida Ventura) e Pedro (António da Costa Santos).

Nesta reunião foi deliberada a greve em S. João da Madeira, para anunciar que o

Partido Comunista Português se forja e tempera no combate, nos grandes

movimentos das massas operárias e camponesas, para o derrube da ditadura

fascista de Salazar.

(…) Era com impaciência que aguardávamos a chegada do dia 5 de Agosto de

1943. Na noite que o antecedeu, espalhámos milhares de manifestos a convidar os

trabalhadores à greve.

Pelas 8 horas da manhã, muitos operários não se apresentaram ao trabalho,

concentrando-se em lugar previamente combinado. Dividiram-se em grupos e, de

fábrica em fábrica, foram incitar os outros trabalhadores à greve. Antes do meio

dia estavam na rua os operários de todas as fábricas. De tarde, aderiram à greve os

operários de Cucujães, S. Roque, Nogueira do Cravo, Milheirós de Poiares,

Arrifana, Escapães e outras localidades.

Pelas 15 horas encontravam-se na rua 2500 operários que, de fábrica em fábrica

iam dialogando com a Gerência de várias firmas, esclarecendo os objectivos da

greve – dado o malogro do entendimento entre os industriais e a Direcção do

Sindicato, por melhor salário e melhores condições de vida, melhor racionamento

e distribuição dos géneros alimentares e o não pagamento, por parte dos operários,

das chamadas “miudezas” que deveriam ser consideradas matéria-prima na

fabricação do calçado e, portanto, estar a cargo dos patrões” (Documento

Autobiográfico de A. Carreirinha).

Na organização da greve participou igualmente o seu camarada António Lima:

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“Comecei a dar-me com os Carreirinhas, participava nas reuniões de preparação

da greve, distribuíamos o Avante, quando ele vinha. Aproveitávamos a falta de

materiais que nessa altura havia, para reivindicarmos, por vezes até com o apoio

de alguns patrões (…)

Lembro-me que [no dia da greve] lá na minha fábrica praticamente todos os

trabalhadores pararam e saímos de lá juntos, descemos a uma outra fábrica ao lado

onde os trabalhadores se juntaram a nós e então seguimos para a “Pinto de

Oliveira”. Lá não havia organização (do partido) mas havia outra coisa, uma

grande parte das raparigas que lá trabalhavam eram muito minhas amigas, chamei

uma que eu conhecia e disse – vamos todos lá para cima (junto à Câmara), vamos

à greve! e elas vieram.

Fomos também à antiga fábrica de onde eu fui despedido e eles também vieram!

No fim já éramos umas boas centenas de trabalhadores que íamos pelas ruas e já

era uma força muito grande. A GNR, que era cá de S. João e alguns guardas eram

conhecidos dos operários, demoraram a actuar e isso também ajudou a ganhar

tempo (…). Mas depois já ao fim da tarde, veio o exército que chamaram de

Aveiro e ali fomos surpreendidos, e acabou aí a greve!” (Entrevista a António

Lima, SJM, 14/9/93).

Carreirinha descreve ainda como terminou esta manifestação operária, com a

repressão da guarda e do exército, as prisões de dezenas de grevistas e a perseguição aos

militantes comunistas que se seguiu, com o “estado de sítio” declarado na vila e a forte

presença da PIDE a seguir os passos dos que conseguiam identificar como “cabecilhas”

do movimento o que, evidentemente, para a polícia e para o regime, era sinónimo de

liderança comunista, fosse-o de facto, ou não.

“(…) Por volta das 17 horas, os manifestantes foram surpreendidos por uma força

da GNR de S. João da Madeira, que formou em quatro grupos, tentando encostar

toda a gente às casas.

Eu, que ia na cauda da manifestação a lançar palavras de ordem, logo que me

apercebi do que estava a suceder, avancei pelo meio dos manifestantes até

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226

encontrar os responsáveis do local e aconselhei-os a, na esquina seguinte,

tentarem a fuga. Um soldado da GNR tentou impedi-los ameaçando-os com a

arma, mas em vão.

Quanto a mim, continuei na cauda. Foi então que se aproximou um guarda e me

deu voz de prisão fazendo questão, contudo, de saber a razão porque estava ali.

– O senhor também é grevista!

– Está enganado. Eu sou o Presidente da Direcção do Sindicato – e identifiquei-

me com o cartão de membro da Direcção – estou a aconselhar ordem e nada mais.

Pediu desculpa e mandou-me em paz. Porém, foram presos 150 grevistas. Às 18

horas chegou ao centro da Vila uma Brigada da PIDE, chefiada pelo subdirector

da Corporação do Porto, capitão Cardoso dos Santos. Às 21 horas chegou uma

companhia de Infantaria do quartel de Aveiro e, no dia seguinte, todos os postos

da GNR do distrito vieram reforçar o dispositivo militar que manteve o estado de

sítio em S. João da Madeira, durante trinta dias. (…)

A PIDE agira com muita perícia no dia da greve. Embora entre os 150 presos não

se encontrasse nenhum camarada, o capitão Cardoso dos Santos começou a

seleccionar os que lhe pareciam mais ingénuos. Um dos operários, de Cucujães,

conhecido por Chico da Vira, ao ser interrogado pelo capitão, disse quem o tinha

convidado para a greve. Era o camarada Alberto Lopes da Silva que a polícia não

encontrou em casa. Prenderam então um irmão dele, o Jorginho. Através deste,

souberam várias coisas do Partido e chegaram ao Cocheiro que, como militava há

muito tempo, sabia bastante da Organização. Foi ele que, através dos dados que

forneceu, levou à prisão de um grande número dos melhores quadros do Partido

(…)” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).

Perante o clima de repressão que se seguiu à greve de 1943 e face ao total

desmembramento das débeis estruturas locais do PCP, os dois activistas que prestaram

estes depoimentos passaram a uma situação de semi-clandestinidade, trabalhando como

funcionários do partido. A. Lima conseguiu escapar à prisão nessa altura e andou muitos

anos pelo norte do país, sempre ligado ao trabalho partidário, nas indústrias têxtil e do

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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calçado, em Guimarães, Famalicão, Vila do Conde, Vizela. Acabou por ser preso no

Porto em 1958. Nessa altura já Carreirinha tinha sofrido as agruras da prisão, o que

aconteceu pouco depois da greve de 43. No mesmo documento descreve-nos

detalhadamente os episódios que levaram à sua detenção, quando se encontrava

escondido em casa dum camarada, médico, em Oliveira de Azeméis:

“(…) Instalei-me em casa dele e de dia não saía, estudando os problemas do

sector. Todo o trabalho era feito de noite e fora de casa.

No dia 11, pelas 2 horas da tarde, preparava-se o camarada para ir visitar um

doente e eu para tomar o caminho de Ovar, quando bateram à porta. Eu que estava

no fundo da sala de jantar, apercebi-me da discussão entre o doutor e o visitante.

Passados alguns momentos, o camarada voltou muito irritado e de intestinos

transtornados pelo que se meteu na casa de banho por uns vinte minutos.

Eis quando, com grande rompante, entrou um homem e gritou:

– Polícia!

Depois de dar uma volta por toda a casa, perguntou à criada:

– O Sr. doutor?

– O Sr. doutor está na casa de banho!

Eu não perdi a serenidade. Tinha comigo uns apontamentos e, num abrir e fechar

de olhos, introduzi-os debaixo da toalha de mesa, colocando a taça de fruta por

cima. Em cima do sofá estava ainda o meu chapéu e vária propaganda do Partido.

O PIDE, depois de se certificar que o outro estava na casa de banho, voltou-se

para mim:

– Faça o favor de se identificar.

Não respondi, dei-lhe o meu cartão de identidade. O camelo deu um salto de

contentamento e gritou em alta voz:

– Isto é, como se costuma dizer, com uma cajadada matar dois coelhos! Está

preso!

Deixou o doutor. Agarrou-me fortemente e tirou-me o cinto.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

228

– Aviso-te! Ao mais pequeno gesto mato-te como quem mata um cão danado!

E assim me conduziu para a GNR. Sabia já há alguns dias – por um bilhete que o

meu irmão Alberto (camarada Oscar), me deixou num esconderijo de um velho

muro em torno de uma tapada de meu pai – que em S. João da Madeira a PIDE

desmantelava a Organização, todos os dias se faziam prisões e que ele próprio

esperava ser preso a qualquer momento (…)” (Documento Autobiográfico de A.

Carreirinha).

Foi brutalmente espancado nos calabouços da GNR de Oliveira de Azeméis e no

mesmo dia foi transferido para a Penitenciária do Porto, juntamente com outros

camaradas seus, igualmente feitos prisioneiros na sequência da greve. Nessa mesma

noite conseguiu que o levassem às urgências do Hospital de Stº António devido aos

graves ferimentos resultantes das agressões, tendo o médico de serviço sugerido o

internamento, logo recusado pela polícia. No regresso do hospital foi conduzido à

presença do médico de Oliveira de Azeméis que o acolhera, também ele preso. Foram

ambos interrogados e novamente agredidos, na presença um do outro.

Carreirinha foi libertado em Agosto de 45, na conjuntura política do pós-guerra em que

Salazar parecia mostrar alguns indícios de “abertura” – permitindo às oposições uma

importante reunião, donde resultou a fundação do Movimento de Unidade Democrática

(MUD), que congregou as diferentes tendências oposicionistas e seria, por algum

tempo, tolerado pelo Governo – prometendo eleições “tão livres como em Inglaterra”

(Rosas, 1992: 57). Contudo, é sabido que estes períodos duravam pouco e eram mais

comuns nas fases que antecediam actos eleitorais, após os quais se seguiam as

perseguições e a repressão voltava a mostrar a sua face mais violenta. A segunda

experiência na prisão que Carreirinha voltaria a sofrer surgiu, precisamente, na

sequência do movimento pró-candidatura do general Norton de Matos para as eleições

presidenciais que, em S. João da Madeira, proporcionou novas expressões de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

229

descontentamento popular, em 1948, em apoio àquele candidato (que, como se sabe,

viria a desistir, em Fevereiro do ano seguinte).

A organização de um comício do candidato do regime, no Porto, levou à

passagem por esta vila de inúmeros autocarros, provenientes de diversas regiões,

transportando o povo aliciado pelos partidários da União Nacional em manifestação de

apoio ao Marechal Carmona.

“ (…) Em S. João da Madeira começaram a passar por volta das 9 horas da

manhã. No largo central, como de costume e em especial ao domingo,

estacionavam centenas de pessoas. As camionetas vinham ornamentadas com

várias bandeiras: a Nacional, a da Legião Portuguesa e a da Mocidade Portuguesa.

Os seus ocupantes traziam no chapéu e na lapela do casaco as insígnias do regime,

dando vivas ao Carmona. Esta cantilena exasperou a multidão que engrossava

cada vez mais e começou a gritar: Norton de Matos! Norton de Matos! Norton de

Matos! A estrada foi atravessada por duas grandes faixas dizendo: Avante com a

candidatura de Norton de Matos à Presidência da República! Nesse dia houve

futebol e no final do desafio os adeptos vieram para a manifestação. Eram já

milhares de pessoas. A meio da tarde os responsáveis pelo organismo local [do

PCP] decidiram ir de passeio até Cucujães para terem alibi em caso de prisões e

apuramento de responsabilidades por parte da polícia.

Quando a noite chegou, os manifestantes estavam ainda mais entusiasmados.

Alguns traziam bandeiras. Entretanto, os „carmonistas‟ começaram a passar de

regresso. Não passou camioneta nem automóvel que não fosse forçado a parar. Os

sopapos eram fortes e bastantes. Os carros dos ministros, escarrámo-lhes nas

trombas. Quando a GNR entrou em acção, viu-se impotente para dispersar a

multidão. Chegaram a fazer fogo, mas o resultado foi enfurecer as massas, pois

um manifestante foi ferido e teve de ser conduzido ao Hospital de Stº António, no

Porto. Só às 2 horas da manhã, reforçados pelas corporações de Oliveira de

Azeméis e Espinho conseguiram acabar e desmantelar a manifestação”

(Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

230

Este acontecimento foi repetidamente assinalado por diversos entrevistados como

tendo contribuído para reforçar uma certa imagem de rebeldia com que SJM chegou a

ser conotada nesta fase. Experiências desta natureza tornaram-se marcantes para

despertar a consciência social e política de alguns activistas sindicais da zona. Um

sindicalista que entrevistei – operário metalúrgico na “Oliva” –, refere que quando

frequentava a escola primária (precisamente no início dos anos 40), “era elogiado pela

professora pelas redacções que fazia em apoio da ideologia do regime” (Entrevista no

Pindelo/SJM, a António Augusto Silva, 8/1/94). Porém, a pouco e pouco, este operário

metalúrgico foi tomando consciência da situação política do país. Por altura do

movimento em torno da candidatura de Norton de Matos (então já adolescente),

começou a sentir que tinha sido “utilizado” durante os seus tempos de escola. Na

campanha eleitoral de 1948, A. Silva apercebeu-se que alguns dos notáveis da terra

faziam uma grande pressão sobre as pessoas para que votassem em Carmona o que o

terá levado a simpatizar mais com Norton de Matos. Mais tarde, com as candidaturas de

Quintão Meireles e Ruy Luís Gomes (na sequência da morte de Carmona, em 1951)

mas, sobretudo, com a campanha de apoio à candidatura de Humberto Delgado – que

em SJM obteve grande adesão e onde o “General sem medo” ganhou oficialmente as

eleições (em 1958) – assumiu conscientemente uma atitude mais activa e crítica.

Um outro campo associativo que teve também alguma influência no despertar da

consciência democrática foi a actividade local da Juventude Operária Católica. A ela

esteve ligado o activista da “Oliva” que atrás referi. Segundo este trabalhador (A.

Silva), além dos operários metalúrgicos também os do calçado e da chapelaria

integravam o organismo local da JOC nos anos 50. Nessas reuniões discutiam-se muitos

dos problemas sociais da época, num ambiente de grande liberdade, uma vez que o

padre (que coordenava aquela estrutura) nem sempre estava presente e assim tinham

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Entre a Fábrica e a Comunidade

231

lugar “discussões de nível mais alargado e bastante avançadas para altura (…)” (A.

Silva, Entrevista citada, 8/1/94).

Os anos 50 foram, no entanto, caracterizados pela estagnação ou mesmo declínio

das iniciativas das oposições contra o Estado Novo. A isso não será alheio o facto de

terem sido presos os principais dirigentes do PCP (Militão Ribeiro e Álvaro Cunhal, em

1949), bem como o facto de o regime ter então conseguido algum apoio tácito das

democracias ocidentais, no contexto da “guerra fria” e com a criação da NATO a que

Portugal também acabara de aderir. Além disso, o surto de crescimento económico

parecia proporcionar alguma “melhoria relativa” das condições de vida dos

trabalhadores (Rosas, 1992: 74). Todavia, esta precária evolução positiva continuou a

apoiar-se numa estrutura industrial em grande parte de cariz “oficinal” e artesanal.

Apesar de alguma concentração industrial e crescimento urbano, a lenta recomposição

operária que nasceu dos sucessivos planos de fomento tutelados pelo Estado Novo só na

década de sessenta se traduziria em alguma movimentação reivindicativa. Nos anos

cinquenta, para além da referida animação propiciada pela candidatura de Delgado, a

acção contestatária foi insignificante.

Em SJM apenas merecem referência algumas movimentações que visaram a

obtenção da “semana inglesa”. Neste período, o horário de trabalho em vigor na

indústria era de 48 horas por semana (8 horas por dia de segunda a sábado) mas, como

já foi referido, nos sectores artesanais como o do calçado, onde proliferava o trabalho ao

domicílio, o período laboral era muito superior ao que os horários formais estabeleciam

(como ainda hoje acontece). Porém, alguns industriais adoptaram esse sistema, por

iniciativa própria, como afirmava um jornal local da época, advogando a generalização

do descanso ao sábado de tarde:

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Entre a Fábrica e a Comunidade

232

“Não nos parece necessário procurar argumentos para provar como é benéfico e

agradável este horário de “semana inglesa”. A experiência de algumas empresas

da nossa terra que adoptam este horário há já alguns anos é suficiente, por si só,

para mostrar que o regime de semana inglesa, não trazendo inconvenientes aos

patrões, beneficia largamente o operário, dando-lhe tempo para tratar dos seus

assuntos particulares com os cuidados que eles exigem. Os operários que

trabalham já sob este regime não escondem a sua satisfação e são invejados, neste

particular, por aqueles que ainda o não têm” (Jornal O Regional, 16/4/53).

Na empresa metalúrgica “Oliva” o regime de semana inglesa foi conseguido nos

finais da década de cinquenta, mas inicialmente o tempo correspondente às tardes de

sábado era distribuído pelos restantes dias úteis. Muito embora as regalias sociais

fossem maiores do que noutras empresas e as estruturas de organização e controle dos

tempos livres desempenhassem aí um papel de relevo (como mostrarei mais adiante),

aquela empresa viria a conhecer alguns movimentos de luta a partir de finais dos anos

sessenta. Em 1968 teve lugar uma greve por aumentos salariais e em 1971 pela

alteração do horário de trabalho e pelo 13º mês, lutas essas que tiveram resultados

favoráveis aos trabalhadores. A chapelaria já tinha entrado em declínio irreversível e

não se conhecem quaisquer acções de protesto operário do sector, neste período.

Quanto ao movimento sindical do calçado – e recordando que a capacidade

reivindicativa do sindicato corporativo terminou na sequência da greve de 1943 –, só no

período posterior ao 25 de Abril de 1974 seria criada a nova estrutura sindical da classe

(o Sindicato dos Operários da Indústria do Calçado, Malas e Afins dos Distritos de

Aveiro e Coimbra), o qual tem vindo, desde então, a desenvolver uma intensa

actividade organizativa junto do operariado do sector151.

4.3 - Controle Recreativo e Práticas Culturais no Estado Novo

151 A questão da acção sindical na indústria do calçado, e sua articulação com as estruturas de poder no

seio das empresas, nos tempos mais recentes, será analisada no Capítulo 7.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

233

No campo do lazer, tal como na esfera produtiva, a acção legislativa e o controle

por parte do Estado fizeram-se sentir de forma sistemática na região. Através dos

poderosos mecanismos de enquadramento de que dispunha o aparelho de Estado –

especialmente tendo em conta a sua natureza autoritária –, as actividades lúdicas e de

lazer tornaram-se objecto de uma intervenção moral e doutrinária imposta de forma

suprema e que atingiu praticamente todas as esferas da vida social. Como foi referido no

Capítulo 1, as políticas culturais do Estado Novo não deixaram de sofrer uma clara

influência das experiências italiana e alemã, onde as doutrinas de docilização dos

tempos livres tinham sido desenvolvidas anteriormente. Todavia, o nacionalismo de

Salazar procurou fundamentar-se naquilo que considerava ser o “sentimento profundo

da realidade objectiva da Nação portuguesa”. Na senda do seu projecto de erradicação

da conflitualidade social, o ditador excluía a sociedade civil de toda a participação na

vida política. A apologia da Nação152 baseava-se nas instâncias definidas como as

“células-base” do corpo do Estado – a família, a freguesia e o município – procurando

orientá-las num sentido integrativo e orgânico, por forma a exercitarem, no plano

individual, a hierarquia, a disciplina e a obediência, enquanto valores “naturais” que não

careciam de justificação.

Não obstante o nacionalismo de recorte católico tentar desde cedo afirmar-se

como genuinamente apoiado na essência da portugalidade, algumas ambiguidades se

insinuaram nos primeiros anos do regime. Resultado das múltiplas pressões oriundas de

diversos sectores – desde o movimento nacional-sindicalista aos grupos de activistas

sociais católicos –, a ideia de incentivar um movimento de massas de características

fascistas e totalitárias, à semelhança dos sistemas congéneres de Itália e Alemanha,

chegou a ser perfilhada por alguns apoiantes da Nova Ordem. Tais propostas acabaram,

152 Vista como “uma entidade moral” fruto do trabalho de “sucessivas gerações, ligadas por afinidades de

sangue e de espírito, e a que nada repugna crer esteja atribuída no plano providencial uma missão

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Entre a Fábrica e a Comunidade

234

no entanto, por ser afastadas tanto pelos sectores católicos como pelo próprio Salazar.

As celebrações da festa do trabalhador no 1º de Maio, que foram reatadas no início dos

anos 30 (após terem sido interrompidas em 1914) deixam transparecer algumas dessas

ambiguidades. Organizadas por associações patronais, pelos sindicatos nacionais, pela

Acção Católica e outros organismos corporativos, as festas do Trabalho Nacional – cujo

momento culminante deste período terá sido a celebração de Braga, em 1934 – não

tiveram nem a continuidade nem o impacto desejável nas grandes cidades e, nos anos

posteriores, apesar de se manterem os desfiles, os cortejos de carros alegóricos em

algumas cidades (Viana do Castelo, Torres Vedras, Cartaxo, Tramagal) e as entradas

gratuitas para os operários e suas famílias, a festa da “concórdia corporativa” em que se

tinha procurado transmutar o 1º de Maio, perdeu progressivamente fôlego e no início

dos anos 40, de 1º de Maio, restou, no âmbito oficial, o nome do jornal da FNAT

entretanto criado (1939) e uns quantos rituais dispersos, sem impacto social de relevo. A

Festa do Trabalho deixa de realizar-se oficialmente (Valente, 1997).

4.3.1 - Instituições estatais e festividades locais

Como atrás se viu, a industrialização de SJM vinha sendo apoiada num discurso

de “progresso” e de “modernidade” promovido pela burguesia industrial local,

principalmente desde o início dos anos 20. Os efeitos dessa dinâmica económica e desse

discurso, tiveram uma incidência notável sobre as comunidades da zona, ao mesmo

tempo que, com o avanço do projecto salazarista, o paternalismo local e o sentimento

bairrista emergente ganharam novo fôlego. A acção disciplinadora da fábrica e a

pressão normativa da ideologia produtivista estenderam-se às mais diversas actividades

da esfera comunitária, nomeadamente ao domínio das práticas culturais e de lazer.

específica no conjunto humano” (Oliveira Salazar, in Ramos do Ó, 1992:392).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

235

Algumas instituições estatais do aparelho corporativo vão-se instalando em SJM a

partir dos anos 30. À repressão política e ao desmantelamento do associativismo

operário seguiram-se a difusão doutrinária e a imposição de modalidades de tempo livre

ordeiras e disciplinadas. A Legião Portuguesa (1937), a Mocidade Portuguesa (1938) e

a FNAT (1951) participaram zelosamente na implementação desse projecto. As

iniciativas de assistência e a actividade filantrópica dos notáveis locais – que haviam

liderado a recente conquista do estatuto concelhio para a vila de SJM – ajudaram a criar

um clima particularmente favorável à dissuasão da luta colectiva do operariado. A

conciliação de classes era promovida em nome do “progresso da terra” e dos

“superiores interesses da Nação”.

A imprensa periódica local é aqui uma das fontes privilegiadas, não só por

constituir um campo de observação da vida quotidiana, mas também por se tratar de um

poderoso veículo de difusão da ideologia oficial e de defesa dos interesses da burguesia

local. Iniciativas institucionais, como por exemplo uma Festa da Mocidade Portuguesa,

eram objecto de um tratamento cuidadoso pelos jornais locais e tornaram-se palcos

privilegiados de exposição das “ilustres figuras”, fossem elas representantes estatais ou

personalidades proeminentes da terra (da autarquia ou da indústria). Os artigos na

imprensa não se poupavam aos mais rasgados elogios: “(…) No teatro Progresso de

Cucujães, foi levado a efeito um Sarau Literário e Musical, pelos filiados no Centro nº 4

da Mocidade Portuguesa de S. João da Madeira, com a gentil colaboração das alunas do

Colégio Castilho, em benefício da „Casa da Mocidade‟ da Ala de Aveiro (…)”. A acção

da Mocidade Portuguesa é constantemente enaltecida pelo seu papel na defesa dos

valores da “(…) fé patriótica, renascimento católico, culto da tradição e realismo

político” (O Regional, 31/10/1948).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

236

O campo dos lazeres constitui, assim, uma dimensão indissociável da afirmação

do bairrismo local. Tal processo exprimiu a reestruturação da cultura local em torno

desse discurso e sob os efeitos cruzados da industrialização, das experiências do

trabalho na fábrica e das políticas institucionais do Estado. O campo do lazer e dos

tempos livres teve, a este propósito, um papel fundamental enquanto espaço de

conflitualidade cultural entre as raízes tradicionais e populares e a lógica institucional.

De um lado, as celebrações religiosas misturadas com o paganismo popular

continuaram a suceder-se, mas, à medida que a vila de SJM se desenvolve e reforça o

seu estatuto na região, as instâncias da administração local e o reforço da acção

institucional do Estado, com o apoio da Igreja e da burguesia local, foram

progressivamente instrumentalizando as festividades tradicionais em prole dos

objectivos doutrinários do regime. De outro lado, a acção do aparelho repressivo

conferiu maior eficácia ao controle normativo sobre a classe trabalhadora local,

incentivando a construção de padrões de conduta fundados na ordem, na submissão e na

reverência face ao poder. No plano dos tempos livres, a promoção de formas culturais

dirigidas sobretudo para a distracção e a “alegria” popular obedeceu a uma estratégia

calculada de afastamento dos trabalhadores da acção sindical e política, bem como de

tudo aquilo que, de um modo ou de outro, pudesse pôr em causa os fundamentos

fascizantes do regime.

Uma das celebrações populares com maior tradição e impacto junto das

populações eram as “Festas Sebastianinas”. Estas, já vinham sendo realizadas desde

1919, mas sofreram uma significativa evolução nas primeiras décadas do período

salazarista. Organizadas em honra do mártir S. Sebastião, foram inicialmente

dinamizadas por um grupo de ex-combatentes da I Grande Guerra que, deste modo,

“quiseram homenagear o santo da sua fé”, após o seu regresso dos campos de combate.

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237

Muito embora desde sempre estivesse ligada à Igreja, a simplicidade inicial destes

festejos populares foi evoluindo à medida que, com a implantação do novo regime, se

sujeitavam a um controle institucional mais apertado. Originalmente, estas festas

duravam dois dias, o sábado e o domingo. “No sábado, arraial nocturno, no domingo as

habituais festas religiosas na Igreja Matriz, a procissão e o arraial até altas horas da

madrugada” (O Regional, 28/7/1942). Mais tarde, prolongaram-se por mais um dia,

passando a procissão a ter lugar na manhã de segunda-feira, seguindo-se uma missa,

após a qual tinha lugar a “Tarde das Merendas”, em que o povo se reunia em convívio

colectivo no Parque de Nossa Senhora dos Milagres. Esta celebração, transformada no

acontecimento festivo mais representativo da vila de SJM, repetiu-se, ano após ano, até

que em 1943 passaram a ter como patrono o santo protector dos chapeleiros – S. Tiago

–, o que levou a que passassem a ser designadas por “Festas da Vila”. Além destas,

tinham também lugar nesta altura outras festas de menor impacto, mas de grande

tradição como eram os casos da “Festa do S. João da Ponte” (em finais de Junho), da

“Festa dos Passos”, que também incluía procissão e tinha lugar no fim da Primavera, e

ainda da “Festa de Nossa Senhora dos Milagres”, cujo palco era a capela com o mesmo

nome, situada no parque. Todas elas têm um carácter religioso mas, evidentemente,

nelas se misturavam variados aspectos lúdicos de conteúdo secular e pagão. Em torno

destas iniciativas procurou-se projectar o nome da terra e reforçar a sua influência

económica e cultural na região, ou seja, a crescente sujeição à lógica institucional

procurou sempre combinar a dimensão tradicional com a implementação de um discurso

bairrista e localista que se afirmava em nome do progresso e da modernidade.

Por outro lado, a atitude paternalista em relação às dificuldades económicas dos

trabalhadores continuava a ser visível em alguns sectores da elite local. Nas fases de

crise económica mais aguda, como aconteceu no período da guerra, as festas locais

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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deixaram de se realizar com a regularidade habitual. Em 1950, perante o agravamento

da crise nas indústrias locais da chapelaria e de calçado, “um grupo de senhoras”

dirigiu-se ao jornal O Regional, a fim de protestar contra a intenção de se realizarem as

Festas da Vila nesse ano. O jornal foi sensível a tais protestos, fazendo-se eco das

razões das ditas senhoras sob o título de primeira página: “Festas e Mais Festas”.

“(…) têm muita razão essas senhoras. Basta de festas. (…) As chamadas festas

do concelho são pobres de tudo. Junta-se aqui dinheiro, dezenas de contos, que

vai todo para fora em pagamento de foguetes, embandeiramentos, músicas e

coisas da mesma insignificância (…).

O povo, dizem alguns, precisa de festas e de aqui a vantagem em realizá-las.

Dá vontade de chorar quando se ouvem barbaridades destas. O povo pode

gostar de se divertir mas só se divertem aqueles trabalhadores que sintam cheia

a sua barriga e a dos seus filhos (…)” (O Regional, 18/6/1950).

Este apelo à protecção dos mais carenciados enquadrava-se na mesma lógica de

“contenção” promovida pelo Estado salazarista. Os volumosos gastos investidos nestas

iniciativas pareciam ser vistos como uma ostentação perante a situação miserável de

muitas famílias, o que, aparentemente, perturbava a moral paternalista dos industriais

locais.

4.3.2 - As formas locais de lazer e a moral dominante

Já vimos que nos estados autoritários, como o português, as políticas recreativas

dirigidas às classes trabalhadoras tinham como objectivo principal conter o acesso ao

consumo e, ao mesmo tempo, assegurar a reprodução de comportamentos dóceis e

disciplinados. Seja o lazer visto como uma fuga aos constrangimentos do trabalho

(Parker, 1983) ou como um campo de acção através do qual a dominação estatal procura

estender-se da fábrica para fora da fábrica (de Grazia, 1981), a interacção entre o lazer e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

239

o trabalho dificilmente pode ser ignorada, mesmo quando a análise se dirige a

populações operárias.

Quando nos anos 50 algumas vozes se faziam ouvir em SJM a reivindicar as

vantagens da “semana inglesa”, elas apareceram como uma continuação do

associativismo católico herdado de finais do século XIX (personificado nos anos 30

pela “Acção Católica”), virado para a defesa da família e da sua devoção religiosa,

muito embora sempre enaltecendo a pretensa vocação produtivista dos sanjoanenses. A

ideia da “laboriosidade” pretendia veicular o espírito de sacrifício, de dedicação e de

entrega “disciplinada”, “cumpridora” e “leal” da população trabalhadora, o que, como

se sabe, vai ao encontro da postura ordeira que o regime procurava impor ao operariado.

Ao longo dos anos 30 e 40, os jornais locais sempre retomaram o lema do trabalho e o

discurso “moralizador” em prole do progresso, mas ignorando sistematicamente a

opressão e a pobreza em que o país se achava mergulhado. Efectivamente, nos contactos

que estabeleci com diversos membros da comunidade local ficou clara a ideia de que

sectores significativos da força de trabalho comungam deste orgulho colectivo quando o

nome da terra é apontado como um exemplo para o país (cf. O Regional, 1/1/1944).

Nota-se, porém, que o controle moralista não conseguiu anular por completo as

orientações de afastamento e transgressão face à acção das instâncias oficiais e dos seus

intermediários locais. Daí o seu esforço, constante e repetido, para docilizar e modelar

os hábitos populares, quer dirigindo-se directamente às classes baixas e ao operariado,

quer procurando expurgar das classes médias os elementos culturais mais insubmissos e

“inadequados”. Veículos privilegiados desse esforço de enquadramento foram os

principais jornais locais: O Regional e O Sanjoanense. Estreitamente ligados aos

maiores industriais da terra, foram em boa medida sustentados pela publicidade das

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Entre a Fábrica e a Comunidade

240

empresas da região e protegidos pelo poder autárquico, dando voz às figuras mais

influentes da vila.

Através dos diversos escritos e comentários aí publicados pode, por um lado, detectar-se

o tipo de pressão moralista a que determinadas práticas e costumes sociais eram sujeitos

por parte destes veículos de inculcação cultural e, por outro lado, é possível registar a

orientação de resistência que tais comportamentos transportavam face à acção

normativa da moral dominante e dos seus intermediários locais. As camadas jovens e os

trabalhadores da indústria foram, por razões diversas, alvos privilegiados dos referidos

comentaristas. Ao mesmo tempo, a crítica a certos hábitos da “mocidade” deixa

perceber o sentido da mudança nos costumes locais e a diferença de mentalidades das

gerações mais jovens. Nos anos 40, os cafés, o cinema, o teatro e a dança começavam a

atrair os filhos da burguesia e da classe média local para práticas que pareciam perturbar

a códigos convencionais.

“(…) Cedendo com irreflexão ao poder atractivo das mil diabólicas invenções

preparadas com os olhos fechados à prevenção, os rapazes que já não são

crianças mas que ainda não são homens, malbaratam o mais precioso capital que

é o tempo e a saúde em ocupações impróprias de si, desde as mais fúteis às mais

deprimentes ocupações que não os honram, que não os edificam, que não os

melhoram e das quais menos ainda resulta a sombra de um benefício para a

comunidade. Os cafés, os prostíbulos, os teatros, os jogos, formam a urdidura

grosseira da sua vida. Companhias suspeitas abastardam-lhes o falar, que é

pesado e grosseiro, e os modos que são sacudidos e despidos de todo o cunho

amável e se uma cousa e outra derivam do pensamento que os gera, portas

adentro do cérebro, pode qualquer um avaliar como será esse pensar, que na

posse de um analfabeto já não encontraria fortes motivos que o justificassem.

Entrementes, as raparigas (…), que fazem elas? Nada, absoluta e redondamente

nada. Lançam o seu tempo e sua habilidade pela janela, a que permanecem horas

esquecidas, dias inteiros, a ver não se sabe o quê, a sorrir para quem passa,

pessoas que ao afastar-se vão pensando coisas tristes delas, se são criaturas

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Entre a Fábrica e a Comunidade

241

ajuizadas ou crivando-se de epítetos afrontosos, de suspeições atrevidamente

infundadas, se são pessoas igualmente de cérebro semi-oco.

De noite realizam soirés, dançam, excitam-se em loucuras que, por serem

consideradas honestas pelos crédulos papás, nem por isso, no fundo, são menos

para temer, tanto sob o ponto de vista material como sob o ponto de vista moral

(…)” (O Regional, 19/4/42).

Os “conselhos” dirigidos a estas categorias de classe média eram, contudo,

relativamente condescendentes e moderados. A atenção dedicada às actividades da vida

mundana transportava uma dupla preocupação: uma de ordem material, que pretendia

acautelar o esbanjamento de tempo e de meios económicos em actividades ociosas, as

quais supostamente se afastavam da lógica produtivista que era apanágio de uma terra

de industriais e trabalhadores; outra de ordem moral, que pretendia assegurar as regras e

a postura adequada aos estilos de vida da elite local, procurando impor às novas

fracções em ascensão padrões de comportamento ajustados àquele estatuto. Por outro

lado, as ideias, então em voga, da “mente sã em corpo são”, que no quadro das políticas

recreativas do regime se traduziam na celebração de uma moral disciplinada e de um

físico sadio, estavam igualmente presentes no discurso público local.

Vejamos uma pequena peça do citado periódico onde a dança surge como tema de

reflexão. Neste caso pretende-se encontrar justificação, se possível com argumentos

“científicos”, para a prática da dança, questionando-se o autor sobre as suas vantagens e

desvantagens, o que é bom ou o que é condenável, quer do ponto de vista moral, quer

no que se afirmava serem as exigências do bem-estar físico.

“Faz bem dançar? Faz mal dançar? Senhores pesados, de digestão difícil,

exageram-lhe os defeitos, como as raparigas namoradeiras lhe exageram as

virtudes; médicos cautelosos aconselham ir aos bailes mas não dançar, a meninas

cloróticas, desbotadas. Se incluirmos, porém, as perturbações emocionais que dela

podem advir, tanto como de outros espectáculos bem inocentes, a „dança

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Entre a Fábrica e a Comunidade

242

fisiologicamente muito aproximada da marcha‟, como afirmava Arnould – afasta-

se notavelmente dela pelo seu fim. Ela procura mais a leveza e a graça dos

movimentos do que a energia. Ora, estas qualidades da graciosidade têm o seu

valor e não há dúvida que a prática das boas atitudes contribui para a regularidade

do desenvolvimento cultural.

Eis ainda o que diz o Dr. Virgílio Manúcio: „a dança é salutar. Ela impõe-se

porque não reclama esforço mas graça e leveza, elegância, predicados próprios da

mulher. Além disso, suas evoluções, seus passos, seu ritmo, estimulam os

músculos e a sensibilidade de maneira que além de ser um passatempo agradável é

saudável e útil ao organismo‟.

A pessoa que dança põe em acção, sucessivamente, todos os músculos, e é

obrigada a conservar-se em uma posição perpendicular e airosa, movendo os

membros com graça e harmonia de que resulta certo grau de vigor em todo o

corpo. Muito convém, pois, à mocidade este saudável exercício, que não só lhe

fortifica a constituição mas também lhe apruma o corpo e a cabeça, abaixa os

ombros e tira atrás as espáduas, ampliando assim a caixa toráxica” (O Regional,

1944/45).

A invocação da ciência surge aqui como meio de legitimação da tese favorável à

prática da dança. Mas esse argumento de inspiração médica não deixa de servir de apoio

à defesa da “graça, beleza e elegância”, atributos que se juntam à desejável “posição

airosa” da mulher. O mesmo moralismo dirigia-se à estética do corpo no sentido de

adequá-la às exigências de “aprumo” na esfera pública. Este tipo de preocupações

indicia que as classes médias locais continuavam a denunciar comportamentos

próximos das expressões populares mais grotescas. A condenação de certas posturas da

mulher, por exemplo, parece revelar que não era fácil a incorporação das poses contidas

e civilizadas da “delicadeza feminina” adequadas a um estatuto social elevado. No

comentário que se segue, os comportamentos criticados referem algumas poses das

mulheres, consideradas impróprias por não corresponderem aos critérios da sociedade

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Entre a Fábrica e a Comunidade

243

“bem comportada”, o que, uma vez mais, nos permite perceber como certas práticas

resistiam a adoptar as formas padronizadas que a moral burguesa lhes pretendia

imprimir. Embora a atitude conservadora que estes articulistas evidenciam os faça

invocar formas e hábitos de um passado mítico (supostamente mais disciplinado), é de

crer que em SJM a força simbólica do discurso convencional em defesa dos “bons

costumes” terá sido particularmente marcante durante esta fase do Estado Novo.

“A delicadeza antiga, de há 40 anos, faz um contraste flagrante com a libérrima

desenvoltura de agora. As crenças de então, que ouviam proclamar dogmas

absolutos como o que afirmava não dever uma senhora, em público, dar sequer

mostras de sentir a necessidade imperiosa de se coçar, verificam hoje, seja onde

for, mesmo numa loja, num carro de passageiros ou à beira dum passeio, que

muitas delas se coçam francamente, seja qual for o sítio do corpo, mesmo nas

barrigas das pernas, com o ruído próprio das unhas sobre as meias de seda. Há

homens que notam silenciosos o contraste e admirados tiram naturalmente daí as

conclusões mais depreciativas para as sobreditas damas. Convenho em que os

recatos de então fossem excessivos, mas como classificar as iniciativas de agora?

(…)

Alguém, cujo nome se ignora, definiu o pudor afirmando ser ele a graça mais

tocante que pode embelezar uma pessoa. Inversamente, a falta de pudor, ainda

mesmo que não seja exibida com premeditação, por acinte, etc., é o maior ultraje

que se pode infligir à dignidade colectiva.

Mulher que faça gala, como tantas fazem, da sua falta de sentimentos e portanto

alheia ao recato vem a tornar-se mais fastidiosa, mais incomodativa se é que não

mais repugnante que a outra que não pode ser senão como é, infelizmente para

ela. Não há palavras tão expressivas na sua antinomia como pudor e impudor.

Nem todas as damas, infelizmente, se dão conta desta verdade” (O Regional,

11/7/1948).

Neste caso fica claro que a imagem de feminilidade em construção neste período

não só assentava na postura recatada e dócil da mulher, como veiculava a lógica de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

244

demarcação dos papéis sexuais assente no modelo patriarcal de sociedade que o

projecto da modernidade vinha promovendo. Os processos de mudança socioeconómica

e cultural do capitalismo aparecem nesta região como que condensados num período de

tempo historicamente curto e, portanto, dão lugar a transformações mais intensas e

rápidas fazendo emergir contradições – opondo diferentes classes sociais e estilos de

vida, espacialidades rurais e urbanas, subjectividades modernas e pré-modernas –

ancorados em modelos culturais e temporalidades bastante distintas. Quer se tratasse

das jovens descendentes da classe média a procurar assimilar modos de vida burgueses,

quer dos trabalhadores de origem rural que começavam a adoptar padrões de conduta

mais próximos dos lazeres massificados, estamos perante processos em que se fazia

sentir a mesma pressão moralista que pretendia compaginar modelos aceitáveis pela

elite local e em conformidade com as exigências do corporativismo salazarista.

Por exemplo, o hábito dos trabalhadores tomarem a sua refeição ao ar livre

suscitava também chamadas de atenção para a defesa da higiene, mas denunciava

simultaneamente a preocupação com a exposição “pública” de costumes considerados

pouco civilizados. Estes comentários denunciam, por um lado, a preocupação com a

limpeza e a imagem dos espaços urbanos da vila de SJM, mas, por outro lado,

constituem retratos ilustrativos da precaridade da classe operária, dos seus modos de

vida semi-rurais e da falta de estruturas das empresas.

“Achando adorável uma bela merenda sob uma relva fofa, um repasto sob os

braços frondosos de um carvalho secular; todavia, encontrando-se um operário

atirado sobre uma pedra, seja num degrau ou numa calçada, mas geralmente à

beira das estradas, ingerindo a sua refeição do meio-dia, é contra o nosso hábito e

por demais penoso para o nosso espírito.

É muito triste ver esse homem misturando ao seu alimento, micróbios de toda

espécie, que além de degradante aos olhos daqueles que passam, ainda é uma

desumanidade que se contribua para aumentar o número dos tuberculosos.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

245

Como obreiro do nosso progresso deve ter esse operário merecimentos, fazendo

juz a uns momentos de tranquilidade para a conservação do seu físico e, por

conseguinte, ter direito a um local adequado às suas refeições.

A nós sanjoanenses de tradição essencialmente cristã, não nos fica bem continuar

a permitir esses espectáculos tão prejudiciais à saúde e aos foros de civilidade de

que se ufana a nossa vila.

Até o adro da nossa Matriz, cuja grama e jardim tão prejudicados já pela falta de

trato, de chuva e de água, serve para o repasto de numerosas pessoas que, numa

falta de respeito à Igreja, ali deitam papéis, ossos, espinhas e cabeças de carapaus.

Não desconhecemos que alguns dos senhores industriais de São João têm em seus

estabelecimentos refeitórios e até cantinas. Mas falta-nos uma lei exigindo

rigorosamente o seu uso em geral, proibindo a que esses repastos continuem à

beira das sarjetas (…) (O Regional, 17/8/58).

A taberna

A taberna constitui um espaço tradicionalmente conotado com a proliferação de

costumes desregrados das classes baixas. A afinidade que desde sempre manteve com o

operariado pôs em evidência o seu papel na estruturação do lazer popular e na

modelação da cultura da classe operária (Davies, 1992: 168). Em diversos períodos

históricos foi palco de muitos excessos e por vezes foco de atracção de intelectuais e

artistas em ruptura com as convenções e o elitismo das classes dominantes, situações

que, sem dúvida, exemplificam o poder atractivo dos ambientes boémios de

expressividade popular153. A importância social e política da taberna liga-se

153 Nos meios urbanos das grandes cidades, a taberna foi também um campo de mistura classista que no

século passado chegou a acolher artistas, músicos, “intelectuais” que, atraídos pela vida “boémia”,

mostravam o seu desprezo pelos valores da classe dominante, aderindo às formas “insubmissas” e

“carnavalescas” da cultura popular (Stallybrass e White, 1986). Quer no divertimento e na boémia, quer

na germinação da revolta popular e da contestação colectiva, as tabernas foram durante séculos vistas com

desconfiança e tornaram-se alvo de perseguição e de controle legislativo, juntamente com as “casas de

passe” e a prática da prostituição. Mas, ao mesmo tempo, a sua actividade e influência não pararam de

crescer, surgindo em diversos períodos da história das monarquias europeias (França, Espanha, Portugal)

como lugar de refúgio e de “perversão” de figuras gradas da corte e de parlamentares durante o

constitucionalismo monárquico na procura do anonimato, na fuga ao stress que a vida pública lhes

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Entre a Fábrica e a Comunidade

246

directamente às situações de precaridade e pobreza que sempre acompanharam as

classes baixas, muito embora seja discutível, como assinalou Stedman Jones, se o seu

significado favoreceu a rebeldia popular ou o conformismo do operariado (Jones, 1989).

Em Portugal, apesar de Lisboa e Porto ocuparem os lugares centrais de germinação

deste tipo de estabelecimentos, eles foram crescendo um pouco por todas as zonas de

concentração operária, em especial a partir dos finais do século de oitocentos. No caso

de S. João da Madeira, o facto de este ser um tema que, ao longo das décadas de 40 e

50, ocupou repetidamente as atenções dos jornais locais é, por si só, revelador do

significado social e cultural da taberna, como espaço privilegiado da classe

trabalhadora.

“A taberna é, de um modo geral, um estabelecimento fatídico para as classes

baixas da sociedade. Apesar disso, o número de tabernas cresce constantemente,

sem que ninguém até agora tenha procurado por termo a semelhante

multiplicação! Estas baiúcas escuras e nauseabundas, pululam igualmente por

vilas e aldeias de todo o país! Há regiões, onde qualquer indivíduo que junte uns

patacos ou traga alguns contos de réis do Brasil, logo monta uma tasca onde os

operários, mendigos e viciosos da localidade e redondezas vão deixar o melhor

dos seus parcos lucros ou salários. As pessoas que se dedicam a este género de

comércio muitas vezes se julgam „beneméritas‟ quando é certo que melhor

empregariam os seus capitais em empresas frutuosas e mais decentes. Mesmo na

melhor das hipóteses, a taberna é um centro de má língua, de conflitos e

desordens, onde o carácter se rebaixa e onde se adquirem os piores vícios. Mas

quando o dono da locanda não tem escrúpulos, então a taberna torna-se um coito

de imoralidade e degradação. Com efeito é nestas lojas que se reúnem os

indivíduos da mais baixa condição social, bebericando e jogando, desperdiçando

em poucos momentos o que lhes custou muito a ganhar e certamente lhes faz falta

em casa” (O Sanjoanense, 30/9/42).

impunha. Muito embora a conotação com o ambiente “promíscuo” dos estratos mais baixos da sociedade

seja inegável, a taberna constituiu também, em diversos períodos da história e em particular desde o

século passado, um campo de mistura classista.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

247

Apesar de se viver nessa altura uma fase de crise económica profunda – em plena

II Guerra Mundial –, inclusive com grande escassez de bens alimentares, tal facto não

parece ter feito diminuir a frequência das tabernas. Continuemos a atentar nos artigos

destes agentes locais, observando a moralidade paternalista que lhes subjaz, mas sem

deixar de notar que tais ambientes pareciam representar simultaneamente um choque

cultural e uma ameaça política latente para a burguesia e os restantes estratos

estabelecidos da sociedade local.

“(…) Aqueles que mais se queixam da mesquinhez dos salários são muitas vezes

os que mais frequentam a taberna, embriagando-se miseravelmente, arruinando a

saúde, a bolsa e comprometendo a normalidade da sua descendência. (…)

É na taberna que o homem começa muitas vezes a odiar a sociedade e a ordem

pública. Os dementadores vapores do álcool são propícios a todas as loucuras.

Uma grande parte dos crimes registados no país têm a sua origem na taberna.

Quando não são perpetrados dentro dela, nasceram, pelo menos, de discussões

nela travadas. Porque a verdade é esta: se há indivíduos de vinho bom, há outros a

quem o vinho torna maus e perigosos.

Quantos cidadãos a taberna perde? Quantos lares desfaz? Há homens tão

insensatos que chegam a levar as próprias esposas na sua companhia, para as

tabernas a fim de nelas se embriagarem em conjunto! Ora se um homem bêbado é

desprezível, uma mulher etilizada é repugnante!

Mas há gente tão inconsciente que acha graça em viciar os outros no alcoolismo,

pagando do seu bolso, vinho e aguardente a crianças e mendigos, para ver e gozar

as tropelias que eles, porventura, façam!

O homem que se habitua à taberna vai progressivamente perdendo o amor ao

trabalho e à economia. Emborcando copos atrás de copos, gasta quanto dinheiro

leva e, ao regressar a casa, cambaleante e grotesco, encontra sempre pretexto para

insultos e pancadas. Há indivíduos que passam todo o tempo disponível do

trabalho, não em casa ou no seu quintalório, mas na taberna, gesticulando,

vociferando e praguejando. Gritam contra a sua condição, contra a sua miséria,

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contra os seus farrapos. Mas que fazem eles senão agravar a pobreza em que

vivem? (…)

Por isso o ressurgimento moral e físico da Nação depende, em grande parte, do

combate a essas baiúcas onde o homem se deseduca e animaliza. Como medida de

saneamento recomendava-se a proibição da abertura de novas tabernas, autênticas

ou disfarçadas, pois há muitos estabelecimentos que, embora com um aspecto

mais decente, são tão perigosos como tabernas tradicionais (O Sanjoanense,

30/9/42).

Este período foi particularmente difícil para os sectores mais pobres da população

sanjoanense. Os surtos de fome e de doença – a tuberculose, nomeadamente –

forneceram razões acrescidas para que o espaço da taberna continuasse a ser alvo de

crítica. As carências com que se debatia o operariado, embora merecendo alguma

atenção e caridade dos mais abastados, não deixavam de ser em parte justificadas pelos

caminhos de perdição e de vício em que se deixavam enredar muitos chefes de família.

Chegou-se mesmo a apelar à restrição do número de tabernas por via legal e a denunciar

de forma violenta o “egoísmo” dos comerciantes que viviam “à custa da desgraça

alheia”. Mas tais intentos eram geralmente de nulo efeito. A profusão de tabernas em S.

João da Madeira não parece ter diminuído. No mesmo periódico repetiam-se as crónicas

a denunciar o elevado número desses estabelecimentos onde muitos operários

despendiam parte significativa do seu magro salário: “para uma população de oito mil

almas há cerca de cinquenta tabernas, onde o operário deixa grande parte da sua féria

semanal, reservando para a sua própria alimentação e para a da família uma parte

insignificante para prover, sequer, às mais elementares necessidades” (O Sanjoanense,

30/9/1945).

Chegaram até a ter lugar acaloradas polémicas sobre se o espalhar da tuberculose

residia na violência dos trabalhos fabris ou antes no alcoolismo e na deficiente

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alimentação. Vozes de duvidosa imparcialidade interrogavam-se, desde logo induzindo

a resposta: “porquê, se o clima é bom e o operário ganha, por via de regra, o suficiente

para ter uma alimentação razoável?”154 (O Sanjoanense, 30/9/1945). O apertado

controle político, num contexto de perseguição aos dirigentes sindicais que haviam

preparado a greve do calçado em 1943, deixava pouco espaço para que uma opinião de

denúncia da violência fabril pudesse ser divulgada. Por isso, a tese do “vício” e da

“irresponsabilidade” do “chefe de família” teria de vingar. Todavia, a referida polémica

não deixa de mostrar uma vez mais a importância simbólica, cultural e política que a

taberna ocupou enquanto atmosfera cultural do mundo operário.

Cinemas e cafés

Ao contrário da taberna, a divulgação do cinema e do teatro de revista atraíram

clientelas dissemelhantes e aí se reflectia também alguma conflitualidade cultural. Ao

longo dos anos 30 e 40, o cinema e o café tornaram-se em SJM importantes espaços de

ampliação da esfera pública e a sua frequência rapidamente se estendeu da burguesia

local a outras camadas sociais, em especial os sectores mais jovens. O cinema ou o

teatro emergiram como campos de sociabilidade que se vinham juntar ao café e a outras

espacialidades festivas de carácter público. A primeira metade da década de 40, em

especial, constituiu a época de ouro do então prestigiado Cine-Teatro Avenida155,

154 Esta foi a frase que esteve na origem da referida polémica. Apenas tive acesso a posteriores respostas

do mesmo autor, que procurou justificar-se argumentando que não afirmou que todos “os operários

ganham bem”, pois, certamente existem muitos casos que negam essa afirmação, mas tais casos seriam

apenas excepções. O certo é que a precaridade das condições de vida dos trabalhadores, em especial neste

período, terá provocado alguma indignação face àqueles argumentos. 155 Inaugurado em S. João da Madeira em 1925, sob o impulso de um emigrante no Brasil, Avelino da

Silva Martins, este cinema-teatro viria a perder o seu fulgor inicial a partir dos anos 50, vindo mais tarde a

ser demolido. A título de exemplo, eis algumas das fitas em exibição neste espaço ao longo de um mês: No domingo dia 9 de Maio de 1943, era apresentado com uma matiné às 15h e soiré às 21,30h, O Gato e

o Canário, interpretado pelos “conhecidos e excelentes artistas Bob Hope e Paulette Goddard”, conforme

referia a notícia que acrescentava tratar-se de um filme com qualidades infalíveis para conquistar o

público e onde “as cenas divertidíssimas, o mistério e a emoção, andam de mãos dadas”. No domingo

seguinte, dia 16/5/43, era exibido O que o Tempo Não Levou – “um filme emotivo e humano, que faz rir e

chorar (…), duma realidade assombrosa, que revela a vida de sacrifício duma mulher que amou

loucamente”. No dia 30 do mesmo mês surgia, apresentado como “uma notável alta comédia, romântica e

apaixonante”, Os Homens que a Amaram, com Loretta Young e Conrad Veidt – onde uma mulher

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situado no coração da vila, que estabelecera contrato com a companhia de teatro de

Chaby Ribeiro, de Lisboa.

A adesão crescente por parte do público à frequência regular do cinema chegou a

provocar protestos de algumas famílias de prestígio local, que alertavam contra a “falta

de civismo” e a “má educação” de alguns sectores do público. Esta preocupação com os

“maus hábitos” revela bem o esforço de acomodação e de imposição de condutas

condizentes com os hábitos da “boa sociedade” burguesa, em franca expansão na

localidade. A pressão para disciplinar a “rudeza” de costumes dos populares “sem

maneiras” deu, a dada altura, lugar a um folheto divulgado num jornal local, no qual se

anunciavam os “12 defeitos” que o público cinéfilo deveria evitar:

1º- Ler em voz alta as legendas do filme que se está a exibir.

2º- Entrar na sala de projecção 10 minutos depois de principiada a sessão.

3º- Não querer gratificar o empregado que em poucos segundos vos indica

atenciosamente o lugar.

4º- Levar lanches para o cinema, comer desalmadamente durante o espectáculo

e deitar os papeis para o chão.

5º- Durante os intervalos percorrer a sala de lés-a-lés olhando o público

insistentemente para tentar descobrir alguma cara conhecida.

6º- Cantarolar em surdina a canção que nesse momento se ouve no écran.

7º- Não estar quieto na cadeira, dando a impressão de que tem qualquer coisa a

incomodá-lo.

8º- Ir ao cinema com o namoro... e aproveitar discretamente a escuridão do

ambiente.

9º- Contar ao parceiro do lado, calma e distraidamente, o desfecho da película.

10º- Levar ao cinema (as senhoras, claro) chapéus parecidos com a torre Eiffel.

11º- Fumar junto das portas que dão entrada para a sala de projecção.

12º- Dizer inconveniências ou assobiar quando no écran se exibe uma cena de

amor (O Regional, 14/7/46).

sacrifica o seu amor e a sua felicidade à arte a que se consagrou mas, sendo esposa e mãe, “porque preço

vai pagar esse sacrifício?” (O Regional, vários números, Maio de 1943).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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A profusão deste tipo de discurso é reveladora da expansão da classe média local e

de que muitos destes espaços de convívio se foram tornando acessíveis à classe

trabalhadora. O Pavilhão Gimno-Desportivo do clube local, inaugurado com a devida

solenidade em 1952, permitiu não só a expansão do desporto (nomeadamente o hóquei-

patins e o basquete), como a realização de várias celebrações e cerimónias oficiais nas

quais o povo trabalhador era chamado a estar presente. Em 1958 era inaugurada uma

nova sala de espectáculos, o “Cine-Teatro Imperador” (que ainda hoje se mantém), num

período em que se assistia ao declínio do Cine-Teatro Avenida. Apesar de às cerimónias

públicas de maior impacto afluírem todas as categorias sociais – permitindo que as

figuras públicas colhessem aí um importante capital de simpatias –, a estratificação

social estava desde logo instituída através da diferença de preços dos bilhetes de acesso

(plateia, camarotes, 1º balcão, 2º balcão). No entanto, alguma mistura interclassista era

inevitável e daí os repetidos apelos à contenção e à “postura cívica” acima assinalados.

Alguns cafés locais disputavam nesta altura as atenções da burguesia sanjoanense:

o Café S. João, inaugurado em 1951, com secções de salão de chá e outras mais

restritas, incluindo a sala de “Reservados”, e o “Restaurante - Retiro Regional”,

destinado a “satisfazer os mais exigentes frequentadores”, localizado na Praça Luís

Ribeiro (o centro da vila); o Café Império (que até finais dos anos 30 era conhecido por

“Casa Natal”), situado no mesmo largo, mas no lado oposto, igualmente dotado de

várias secções, entre as quais uma sala de jogos e um salão de chá.

O campismo

Em finais dos anos 40, o desenvolvimento do campismo e a criação de várias

colónias balneares no quadro da política estatal dos tempos livres, contribuíram

enormemente para a popularização da praia enquanto espaço de lazer. A imprensa

sanjoanense começava a publicitar a abertura de restaurantes na praia do Furadouro que

se vinha tornando o local de veraneio preferido das populações da região. Embora a

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actividade campista em Portugal já estivesse em evolução desde os princípios do século

XX (sob influência da maçonaria), é só a partir dos anos 40 que a sua estrutura

organizativa começa a tomar corpo à escala nacional e surgem as primeiras iniciativas

legislativas nesse campo. Desde o primeiro acampamento organizado que se conhece,

realizado em 1908 – em Chã das Abrotegas, na serra do Gerês, por iniciativa da revista

Ilustração Portuguesa – até às tentativas de movimentos da oposição ao salazarismo (o

MUD juvenil, em particular) que nos anos 40 penetraram nos clubes e estruturas

organizativas em disputa com a Mocidade Portuguesa, houve algumas etapas

importantes no percurso que levou esta actividade a ocupar um papel fundamental na

expansão do turismo de massas156.

“Por esse Portugal fora, em praias ou serras, junto de rios, à sombra de velhas

árvores, por terrenos escalvados ou aprazíveis courelas verdes, já ninguém

estranha ver, com a sua indumentária por vezes exótica, em que há um pouco de

tudo, o campista, alegre pelo contacto da natureza, comungando a sua paz,

esquecendo o bulício dos grandes centros.

Desporto salutar, o campismo é, pelos múltiplos aspectos de que pode revestir-se

– a pesca, a caça, o alpinismo, etc. – aquele que mais benéficos efeitos traz a

quem queira retemperar forças gastas. Isto justifica o incremento que tem tomado

e o grande número de adeptos que cruzam, hoje, em todas as direcções, Portugal.

E é consolador ver esses grupos que se revigoram ao mesmo tempo que tomam

contacto com os hábitos da gente do povo, ouvem suas expressões e ficam por

isso mais próximos dos problemas do ruralismo.

De resto, vai já longe o tempo em que o „globe trotter‟ era olhado com a

superstição da dúvida, e, hoje, todo o campista compreende que uma saudação

franca a quem por ele passe em qualquer aldeia é motivo de confiança e de júbilo

156 Refira-se, por exemplo, o I Congresso de Campismo Desportivo (em Belas, 1940), a criação da Carta

Campista Nacional (1942), a portaria que criou a Federação Portuguesa de Campismo (1945), a fundação

do primeiro parque de campismo instalado no país (na Quinta de São Gonçalo em Carcavelos, 1949). Mas

é só no início dos anos 60 que o campismo é oficialmente instituído como actividade turística (Decretos-

Lei nºs 43.305 e 43.306 de 14/2/61) e passa então a ser directamente controlado pelo Secretariado

Nacional de Informação (SNI) (cf. Campino, 1983).

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para o povo. E não há, da parte deste, senão aquele mínimo de curiosidade que as

inovações trazem sempre aos espíritos simples.

Compreendendo a salutar prática deste desporto e as vantagens da sua divulgação,

acaba o SPN [Secretariado de Propaganda Nacional] de editar o „Roteiro

Campista de Portugal‟, em que se enumeram muitos dos locais apropriados para o

praticar, ao mesmo tempo que se descreve, para cada um, certa faceta mais

apropriada, e onde não faltam, felizmente, nem os conselhos úteis a quem

jornadeia, nem o afoutoso incitamento para que se pratique o campismo” (O

Regional, 6/9/42).

No que se refere a SJM, sugiram no início dos anos 50 as primeiras estruturas

organizativas do campismo, quando foram criadas em simultâneo duas associações

locais dedicadas ao campismo: o “Clube de Campismo de S. João da Madeira”; e o

“Núcleo Campista Labor” (fundadas no mesmo mês, respectivamente a 8 e a 29 de

Agosto de 1953). O Clube de Campismo é a entidade responsável pelo Parque de

Campismo do Furadouro, construído nos anos 70 e situado junto àquela praia. O Núcleo

Campista Labor, evidencia a sua vinculação à Igreja e a orientação espiritualista que

adoptou:

“É na natureza, observando os sublimes espectáculos que ela nos oferece, que

mais se sente o criador. Quem não ficará enlevado ao contemplar a grandeza

incomparável de um céu estrelado, o espectáculo infinito do mar, revolto ou

espelhado, ao experimentar a calma profunda da mata silenciosa, ouvindo os seus

rumores, tenuíssimos se a natureza é serena, ou impetuosos quando os elementos

se desencadeiam? (…)” (Boletim Informativo nº. 1, Fevereiro de 1958).

Como assinalou um estudioso da evolução do turismo em Portugal, o campismo

foi durante muito tempo um campo onde as instâncias governativas e os movimentos

oposicionistas travaram “um longo braço de ferro” (Pina, 1988: 129). Não foi possível

provar a natureza destas diferentes concepções acerca do campismo em SJM. Tanto

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Entre a Fábrica e a Comunidade

254

pode pensar-se na maior ou menor ligação às estruturas da Igreja Católica, na orientação

mais ou menos autónoma face às instituições do regime (nomeadamente a FNAT e a

Mocidade Portuguesa), como até em eventuais divergências de natureza política,

enquanto factores capazes de explicar aquele divórcio associativo.

O desporto

A Associação Desportiva Sanjoanense (ADS) foi fundada em 1924, numa altura

em que se repetiam as iniciativas locais pelo desenvolvimento de infraestruturas em

diversos domínios, na sequência da conquista da autonomia concelhia157. A partir dos

anos trinta assistiu-se à popularização crescente de algumas modalidades desportivas

em SJM – o futebol, o hóquei-patins, o atletismo, etc. –, e tal facto não pode desligar-se

dos investimentos do Estado Novo nas políticas de regulação do lazer popular. Uma

das preocupações prioritárias da ADS foi a criação de um novo campo de jogos

destinado a substituir o “campo da Vista Alegre”, até então utilizado com carácter

provisório. Em 20 de Julho de 1924 era inaugurado o “Campo de Jogos de Além Rio”,

designação que em 1939, após vários melhoramentos então levados a cabo, seria

substituída pela de “Campo de Jogos Conde Dias Garcia”. Ao longo dos anos 20 e 30

sucederam-se as iniciativas organizativas e financeiras visando o melhoramento e a

modernização das estruturas da ADS. Angariação de donativos, alargamento do número

de associados, cedência de terrenos, empréstimos, etc., foram preocupações dos muitos

animadores da organização desportiva local. O nome do Conde Dias Garcia viria a ficar

registado no moderno estádio inaugurado em 6 de Setembro de 1964 – o “Campo

Desportivo Conde Dias Garcia”, o que se deve sobretudo ao facto de ter sido a mais

importante fonte de financiamento do clube. Além de uma avultada doação inicial,

financiou mais tarde a ampliação das instalações desportivas (incluindo a construção de

um moderno pavilhão) e perdoou diversas dívidas de que entretanto se tornara credor.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

255

As modalidades praticadas pelo clube estavam inicialmente limitadas ao futebol, mas

em 1928 eram abertas as secções de basquetebol e atletismo e, anos mais tarde, as de

andebol, voleibol e hóquei em patins.

O hóquei começou a ser praticado em 1948 em espaço improvisado e, inicialmente,

inseria-se na campanha de angariação de fundos para a construção do ringue de

patinagem, que viria a ser construído no início do anos 50, devido ao apoio decisivo de

Daniel Nicolau da Costa. No dia 22 de Julho de 1952 foi inaugurada a primeira fase do

pavilhão dos desportos, que incluía o novo ringue de patinagem, acontecimento que deu

lugar a grande manifestação de regozijo, com uma festa que teve a participação de mais

de 2.000 pessoas. Esta ocasião possibilitou também uma homenagem ao clube na qual

participaram associações desportivas como a Académica da Amadora, o Clube Atlético

Campo de Ourique, o Estrela e Vigorosa Sport e o Clube Infante de Sagres, tendo então

sido disputado um pequeno campeonato entre essas equipas.

Nesta altura, o desporto ocupava já um lugar de relevo na expansão dos lazeres,

com destaque para o futebol, mas, no âmbito local, o associativismo desportivo

misturava-se muitas vezes com outras actividades recreativas. Em termos de resultados

futebolísticos, a Sanjoanense (para além da participação do clube nalguns torneios

regionais, na sua fase inicial onde conquistou a Taça La-Salette, organizada em Oliveira

de Azeméis) teve a sua época áurea nos anos 60, quando a equipa foi campeã nacional

da II divisão de futebol em 1965/66, tendo disputado o Campeonato Nacional da I

divisão nas épocas de 1946/47 e 66/67 a 68/69. A melhor classificação no campeonato

principal foi um 10º lugar em 67/68 e esteve presente nos quartos de final da Taça de

Portugal nas épocas de 64/65 e 66/67. No hóquei em patins, a ADS foi campeã da II

divisão nacional em 1978/79 e disputou a final da Taça de Portugal com o Futebol

157 Todavia, o clube que lhe deu origem, o Sporting Club de S. João da Madeira, fora criado dois anos

antes (1922), dedicado apenas à prática do futebol.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

256

Clube do Porto na época de 1983/84. Também no basquetebol e no voleibol, o clube

obteve alguns sucessos desportivos, resultado da evolução que teve ao longo dos anos

60 e 70, instalando-se desde então nos escalões superiores destas modalidades

amadoras.

4.3.3 - A acção da FNAT em S. João da Madeira e o caso da “Oliva”

A FNAT merece aqui uma referência mais detalhada devido não só à importância

geral que teve na organização de significativas franjas dos trabalhadores portugueses,

mas em especial pela implantação que conseguiu em SJM através da empresa

“Oliva”158. Organismo fundamental do Estado Novo, esta instituição (fundada em

1935), desenvolveu inúmeras actividades no campo da acção social, cultural e

recreativa, tendo-se tornado um veículo muito poderoso em termos de inculcação

ideológica e de acção organizativa dos hábitos de recreio dos trabalhadores. Entre as

suas inúmeras actividades contam-se a criação de colónias de férias para trabalhadores,

passeios e excursões, desporto amador, ginástica, música, teatro, palestras, etc.159. Num

dos programas radiofónicos da época afirmava-se: “fazer algo de melhor do que fora

feito antes e proporcionar serviço diário que só dinheiro não possa recompensar. O

dinheiro, mais tarde ou mais cedo, enfada; (…) a única felicidade que vale a pena

158 Já me referi antes (ver atrás, o tópico 4.1) à ampla protecção de que esta empresa beneficiou do

regime, no quadro da política do Condicionamento Industrial. Trata-se agora de centrar as atenções no

impacto local desta actividade organizativa e da carga doutrinária de que se revestia. 159 Nos seus princípios programáticos, a FNAT afirmava-se contra as tendências universalizantes por

serem consideradas um risco para o Homem, levando-o a “perder o pé”. Por isso, propunha-se zelar pela

“conservação do tipo nacional de cada povo”, preservando as suas características essenciais, “o génio de

cada raça”, o seu “estilo próprio e a sua tradição”, em defesa do nacionalismo do regime, da coesão da

célula familiar, dos “bons costumes”, da “moral católica”, procurando enquadrar o povo no seio das

corporações do Estado, “com vista ao seu aperfeiçoamento físico, intelectual e moral”. (FNAT - Os

Princípios, as Realizações e as Perspectivas, edição do Gabinete de Divulgação, ano XX, 1935-1954). Os

filiados na FNAT eram obrigatoriamente sócios de um Sindicato Nacional (corporativo), de uma Casa do

Povo ou Casa de Pescadores. As estruturas de base eram, nas empresas, os Centros de Alegria no Trabalho

(CAT) e, na zona de residência, os Centros de Recreio Popular (CRP). As Casas do Povo e as Casas de

Pescadores eram, segundo os estatutos, considerados CRPs.

A partir de 1940, as actividades da FNAT sofreriam um novo impulso propagandístico, nomeadamente

com o recurso sistemático aos programas de rádio por si coordenados, como as palestras designadas por

“Meia Hora de Cultura Popular”, a propósito das quais os centros filiados neste organismo passaram a

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Entre a Fábrica e a Comunidade

257

conhecer é a alegria do dever cumprido” (programa radiofónico “Meia Hora de Cultura

Popular”, Dezembro de 1949, citado por S. Kuin, 1994).

Como atrás indiquei, a FNAT foi introduzida em S. João da Madeira através da

influente empresa de máquinas de costura “Oliva”. A relação privilegiada que esta firma

manteve com as estruturas do regime e a influência local do seu proprietário tornaram-

se elementos decisivos da acção do Estado corporativo junto da classe trabalhadora e

das comunidades da região. O aliciamento dos trabalhadores para hábitos como viajar,

fazer campismo, frequentar a praia, participar numa peça teatral da empresa, etc., foram

iniciativas fundamentais para reforçar a eficácia da propaganda oficial. Ao beneficiar de

particular protecção por parte do regime, a Oliva soube tirar proveito dos meios ao seu

dispor, tornando-se um modelo de referência na região. A notoriedade do seu

proprietário ajudava a consolidar as estruturas corporativas, ao mesmo tempo que

reforçava o seu estatuto e o seu poder devido a “tão elevados benefícios que dava aos

seus trabalhadores”. A imprensa local era incansável no permanente aplauso às

iniciativas directa ou indirectamente ligadas à empresa ou ao seu principal responsável.

Exemplo nacional e local, ao apoio estatal acrescentavam-se as sucessivas campanhas

que os periódicos da terra lhe dedicavam. O discurso patriótico e nacionalista veio,

assim, encaixar-se no sentimento bairrista que, como já referi (Capítulo 4), começou a

ganhar relevo pouco depois da queda da monarquia. O “grande exemplo” da “Oliva” e

do seu “benemérito proprietário” pretendia no fundo exaltar a laboriosidade dos

sanjoanenses, os passos dados pela vila “em direcção ao progresso” e as capacidades

empreendedoras dos seus industriais.

Em Julho de 1946 sob o título de primeira página do Regional, “A Operosidade

Industrial de António José Pinto de Oliveira”, afirmava-se:

organizar audições colectivas. Deste modo o discurso moralizador ampliava substancialmente as suas

audiências aos sectores não alfabetizados dos trabalhadores (Kuin, 1994).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

258

“As oficinas metalúrgicas Oliva – a Fundição, como vulgarmente se diz – são

qualquer coisa de formidável da nossa terra e até do nosso país. Os pavilhões

oficinais que num forte e impressionante agrupamento ocupam vasta área de

terreno e chamam a si atenção de quem, pela estrada ou pelo caminho de ferro,

atravessa a nossa vila, não dão uma ideia exacta, por maiores que sejam as

conjecturas que se tirem do seu aspecto exterior, do que é e do que vale este

notável e importantíssimo estabelecimento fabril. Uma vez lá dentro, em visita

às múltiplas secções, tudo quanto se vê excede a expectativa de quem quer que

seja” (O Regional, 14/7/1946).

A atenção que os cronistas locais dedicavam a iniciativas deste tipo e a presença

maciça das populações nas paradas oficiais que tinham lugar no centro da vila sempre

que havia motivo para mais uma visita ministerial (ver fotografias da época, no final

deste capítulo), mostram a importância política que tais acontecimentos adquiriam, quer

no contexto local, quer mesmo a nível nacional. Daí, o aparato propagandístico e o tom

bajulador deste discurso de autoglorificação (aliás, em perfeita sintonia com o que se

passava na imprensa nacional, cada vez mais sujeita à censura e ao controle directo por

parte do governo). Era parte da estratégia com que o Estado repressivo se enfeitava, de

modo a seduzir as populações para sentimentos bairristas e nacionalistas, e para

comportamentos resignados ou bajuladores do poder.

Dois anos mais tarde, nova cerimónia, desta vez a pretexto da inauguração da

nova unidade produtiva da mesma empresa (a secção de máquinas de costura),

oficialmente inaugurada em 8 de Julho de 1948. Como era hábito em situações

semelhantes, a presença do Senhor Ministro, do Senhor Presidente da Câmara e do

Senhor Governador Civil do distrito eram razões de peso para que a “apoteose” fosse

total. O citado jornal exuberava, titulando: “Conforme fora anunciado, inaugurou-se no

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Entre a Fábrica e a Comunidade

259

passado dia 8, com a presença do Sr. Ministro da Economia, a Fábrica de Máquinas de

Costura Oliva”160.

“À porta do imponente edifício fabril, prestavam a guarda de honra, o corpo

activo dos Bombeiros Voluntários de S. João da Madeira e um grupo de filiados

da Mocidade Portuguesa. Quando o Sr. Ministro da Economia (Dr. Daniel

Barbosa) desceu do seu automóvel, a banda de música daquela progressiva terra

tocou o „Hino Nacional‟, ouvindo-se depois vivas que foram uma apoteose a

quem, sem demonstrar fadiga, aparece a todos os acontecimentos que merecem a

sua presença a fim de lhes dar, como representante do Governo, carácter oficial.

(…) A vedar a entrada, a bandeira dos „Castelos e Quinas‟ e a bandeira da

Fábrica. E o simbólico acto inaugural, que foi sublinhado com bastantes ovações,

consistiu no afastamento dessas bandeiras que, no entanto ficaram ali, como ex-

libris de patriotismo e de trabalho a imporem-se à admiração de centenas de

convidados. Nos seus postos, para que a visita fosse elucidativa, os operários

faziam demonstrações (…).

Mais adiante, o articulista destaca o discurso comovido do Sr. Presidente do

Conselho de Administração – António José Pinto de Oliveira…

(…) O tema das concisas palavras do homenageado foi o das relações entre o

capital e o trabalho, a técnica e a mão-de-obra. Prestando justiça aos que servem a

sua obra e cujo esforço tão bem tem sabido avaliar e recompensar, disse, em

suma, que a principal razão do êxito dos seus empreendimentos, tem sido a

dedicação, a boa vontade, o zelo, o espírito de bem servir dos seus cooperadores,

desde os mais humildes operários e empregados até aos mais categorizados

colaboradores e sócios, a todos exortando a persistir, sem desalento, no comum

esforço criador, para bem da indústria daquela casa, de São João da Madeira e de

Portugal” (O Regional, 11/7/1948).

Em 2 de Fevereiro de 1951, é fundado o Centro de Cultura e Recreio Oliva (um

dos muitos Centros de Alegria no Trabalho – CATs – vinculado à FNAT). Tiveram

160 O artigo, reproduzido a partir do jornal O Comércio do Porto, assinalava que o ilustre membro do

Governo chegou à vila pelas16 horas, tendo antes disso sido recebido pelo “chefe do distrito de Aveiro” (o

Governador Civil), o vice-presidente da Câmara de S. João da Madeira e outras personalidades locais. “O

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Entre a Fábrica e a Comunidade

260

então início as actividades desportivas como a pesca, o atletismo, o ténis de mesa e o

jogo de damas. Mais tarde foi introduzida a ginástica, o futebol, e a natação. Exibiram-

se centenas de filmes (16 mm) em sessões semanais e promoveram-se “palestras” sobre

variados temas. O grupo de teatro foi um dos pólos de maior dinamismo no campo das

actividades recreativas e culturais dos trabalhadores da Oliva.

No seu período áureo (anos 60) o Centro de Recreio Oliva desenvolveu intensa

actividade, chegando a atingir mais de 1600 sócios, o que correspondia a mais 90% dos

trabalhadores da empresa. Além do grupo de teatro, foram também criados um Orfeão,

uma Banda de Música, um Conjunto Musical e um Grupo de Variedades, que animaram

variadíssimos espectáculos em diversos pontos do país, geralmente a convite de

associações congéneres. Quer os organismos para-militares do regime, como a Legião

Portuguesa e a Mocidade Portuguesa (ambas com delegações em SJM), quer entidades

locais como o “Cine-Teatro Avenida” colaboravam assiduamente com o CAT da Oliva

na realização de festas da empresa.

Eis algumas das principais iniciativas desportivas e recreativas que o CAT

desenvolveu ao longo dos anos 50 e 60:

– Em 1951, a Oliva participou pela primeira vez nos campeonatos nacionais de

atletismo organizados pela FNAT tendo a sua equipa conquistado o 1º lugar (contra

duas equipas de Lisboa: a Carris e a Papelaria Fernandes)161.

– Em Junho de 1955, o Centro promoveu um passeio fluvial pela Ria de Aveiro,

em lancha motorizada que transportou os participantes (120 pessoas) entre o Forte da

Barra e S. Jacinto; o programa incluía ainda uma visita ao miradouro de S. Jacinto e à

carro dos representantes do Governo foi seguido desde Lisboa, por cerca de vinte e cinco automóveis com

convidados da fábrica Oliva”. 161 A equipa era composta por um dos nossos entrevistados, o Sr. Silva (Tenente), Zeferino e Manuel

Pinho (Entrevista no Pindelo, 16/1/94).

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261

respectiva mata, “uma das regiões mais lindas da Ria de Aveiro” (carta da Empresa de

Transportes da Ria de Aveiro, de 2/6/1955).

– Em 1956, uma representação do CAT esteve presente com um atleta seu no

“Festival de Inauguração do Estádio Olímpico do Sporting Club de Portugal”, que teve

lugar em Lisboa, no dia 10 de Junho desse ano (cartas do Solar dos Leões-10/5/56 e do

Sporting Club de Portugal-26/5/56).

– Em 1957 (27 de Setembro), realizou-se uma excursão a Viseu, levada a cabo em

comboio de 3ª classe especialmente fretado à CP-Caminhos de Ferro Portugueses, cuja

locomotiva foi para o efeito minuciosamente engalanada, ostentando a sigla com o

nome da empresa na parte frontal.162

Para além destas actividades, a Oliva participou regularmente nos campeonatos

distritais e nacionais inseridos nos organismos da FNAT. Nessas competições, bem

como nos variados torneios a nível interno e inter-empresas, os operários-desportistas

eram levados a integrar essas competições163 através das estruturas coordenadas pelo

“Centro”, apesar das recompensas materiais serem praticamente inexistentes.

Nos anos 60 começaram a organizar-se férias na praia para os filhos dos

associados na recém inaugurada “Colónia Balnear Infantil Dr. Oliveira Salazar”, na

Gala, Figueira da Foz. Anualmente era organizada pelo Centro uma excursão de pais e

familiares àquela praia em visita aos seus filhos. Para além disso, a actividade

excursionista da Oliva era variada: Braga, Viseu, Figueira da Foz, Lisboa, Setúbal,

Algarve constituíam alguns dos destinos mais repetidos, mas também houve programas

162 Após um processo de negociação de preços, que não parece ter sido muito fácil, a proposta da CP

fixou-se num custo “muito especial” de 35$00 por passageiro, em comboio de 3ª classe e para um número

mínimo de 400 pessoas. Na primeira carta, datada de 31 de Julho, a data prevista para realização da

viagem era a 27 de Agosto e o preço que se propunha era de 58$00 por passageiro e um mínimo de

cobrança pelo comboio de 13.920$00. Na segunda, de 25 de Agosto, refere-se que a iniciativa “se prevê

para o mês de Setembro” e assinala-se que “foi resolvido aplicar ao referido comboio o preço muito

especial de 35$00 por passageiro”. 163 Segundo um antigo trabalhador da empresa, por mim entrevistado, dedicavam-se a elas com enorme

entusiasmo, o que é elucidativo da força deste programa.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

262

que incluíram a Espanha, embora excepcionalmente. A preocupação disciplinar é

visível na própria forma de organização dessas excursões. As directrizes a seguir e o

detalhe dos programas eram extremamente rigorosos, quer quanto ao cumprimento de

horários, quer quanto a outros pormenores: “manter todos os carros sempre em fila e

chegando todos à mesma hora nas respectivas paragens”. O “director da excursão”

deveria entregar antecipadamente o programa e o itinerário ao condutor e apresentar-lhe

“o guia” da excursão, a única pessoa que poderia dar ordens de paragem e arranque

(Boletim O Centro, nº 30, Fevereiro de 1968). Em 1969 foram visitadas as instalações

da empresa Efacec, em Braga: “ao som de algumas marchas da Oliva transmitidas pela

aparelhagem sonora instalada no carro nº 1, todos foram tomando conta dos seus lugares

dentro da melhor ordem e a partida foi rigorosamente cumprida (…)”, confirmando-se

mais uma vez “o espírito de disciplina, pontualidade e boa camaradagem” com que os

excursionistas tinham cumprido o plano de viagem (Boletim O Centro, nº 49, Setembro

de 1969).

Sem dúvida que estes programas, desenvolvidos pelo salazarismo no quadro das

políticas recreativas, tiveram grande impacto sobre os trabalhadores da região, não só

no adestramento das suas práticas produtivas e disciplinares, mas também na própria

modelação de hábitos de consumo e de lazer massificado que continuavam a ganhar

terreno junto das classes desfavorecidas. A diminuição do horário de trabalho, a

conquista da semana inglesa, o direito a férias pagas, juntamente com o

desenvolvimento das vias de comunicação e dos transportes, favoreceram a crescente

procura de novos passatempos e a emergência de estilos de vida cada vez mais

próximos dos padrões urbanos.

A generalização do uso da praia, o excursionismo, o desporto, o campismo, a

divulgação do romance radiofónico, dos “serões para trabalhadores”, do cinema e teatro

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263

e, de um modo geral, a política turística implementada por Salazar e António Ferro,

constituíram um poderoso conjunto de meios de aceleração da mudança nos costumes

populares. A expansão dos lazeres e a sua progressiva mercadorização caminharam de

par com a força crescente da indústria turística e a importância da acção institucional

que lhe foi dirigida pelo Estado Novo. Mas, ao lado das tendências massificadoras e no

seu próprio seio moveu-se sempre a influência das culturas subordinadas e o seu

carácter transgressivo e popular. Embora predominantemente circunscritas às periferias

suburbanas, as classes populares foram-se apropriando de alguns espaços e modalidades

recreativas num sentido que nem sempre obedecia aos padrões institucionais em vigor.

Na década de sessenta, actividades como o campismo, o passeio domingueiro, a

excursão e o piquenique assumiram-se, cada vez mais, como palcos onde floresceram as

atmosferas populares. Neles pontificavam as famílias alargadas, a agitação ruidosa das

redes multigeracionais, a negação de fronteiras entre o público e o privado. Cenários

sociais que se aproximam, por vezes, do sentido “carnavalesco” atribuído a algumas

formas de cultura popular na sua exuberância festiva. O Furadouro, como outros lugares

de veraneio, tornou-se um espaço de peregrinação de fim-de-semana absorvido quase

por completo pelas classes baixas, em que o sol e a praia se complementam com a feira,

o carrossel e a sardinhada no pinhal. Num período em que, a nível nacional, os estádios

de futebol atraíam cada vez mais as camadas populares e os adeptos d‟ “A Sanjoanense”

exultavam com a permanência do clube na 1ª divisão por três épocas consecutivas (entre

1964 e 1967). Paralelamente, o associativismo de bairro ou de aldeia continuou a

animar as comunidades locais com os seus arraiais, as suas bandas, as tunas, os clubes

desportivos e recreativos, etc., a sublinhar que o recreio popular se desenvolveu numa

estreita vinculação entre a tradição e a modernidade, entre a regulação e a resistência.

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264

Em suma, pode dizer-se que o impacto da acção do Estado Novo na modelação dos

modos de vida dos trabalhadores e das comunidades locais em SJM foi particularmente

marcante desde os anos trinta (como de resto aconteceu na sociedade portuguesa de um

modo geral). Mas, apesar dos poderosos efeitos da acção ideológica do regime e não

obstante, por outro lado, a fraca capacidade de luta do operariado local, a acção

repressiva não deixou de se assumir em toda a sua plenitude nas (raras) ocasiões em que

a revolta e o protesto colectivos assumiram proporções mais radicais (como no Verão de

1943). Embora pontuais, essas acções de resistência político-sindical deram expressão a

contradições de natureza socioeconómica e a óbvias clivagens classistas dalgum

alcance. Mas as disputas no terreno sociocultural manifestaram-se em geral de forma

mais subtil. Na verdade, a actividade organizativa e de enquadramento ideológico

dirigida à esfera recreativa, principalmente quando observada à luz das políticas

turística e cultural do regime, tiveram um significativo impacto na estruturação das

modalidades de consumo e dos hábitos de lazer dos trabalhadores, mas ao mesmo

tempo não deixaram de se deparar com abundantes expressões de rebeldia e de

resistência por parte das classes populares.

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265

Capítulo 5

A ESTRUTURA DE CLASSES NA REGIÃO DO CALÇADO:

MOBILIDADE SOCIAL, CONSCIÊNCIA DE CLASSE, ATITUDES E PRÁTICAS

Este capítulo centra-se na análise da estrutura de classes desta região164, fazendo

uso do modelo teórico de Erik Olin Wright. Trata-se, como referi na introdução, de uma

abordagem idêntica – quer quanto à metodologia utilizada, quer quanto ao modelo de

análise – à utilizada na pesquisa sobre as classes sociais em Portugal (Estanque e

Mendes, 1998), mas aplicada a uma amostra representativa da população activa desta

região, tendo em vista a comparação entre os níveis regional e nacional.

Muito embora o conceito de estrutura de classes se dirija geralmente para a escala

nacional (Wright, 1997a: 378), se tivermos em conta as características próprias do

sector industrial do calçado, se aceitarmos a coerência sistémica dos processos de

produção em que se apoia e os seus efeitos estruturantes sobre o tecido socioeconómico

e cultural desta zona, fará todo o sentido pressupor a existência de uma estrutura de

classes de base regional. Tal pressuposição vai, de resto, ao encontro da formulação de

Erik Wright, ao considerar que qualquer sistema de relações sociais estruturado na base

de factores como as relações de produção, as credenciais escolares e qualificações

técnicas, e os recursos organizacionais ou de autoridade, pode ser considerado como

uma estrutura de classes concreta165. Estamos, assim, perante um nível intermédio que

164 Recorde-se que o inquérito utilizado foi o mesmo da pesquisa de base nacional, embora a amostra

tenha sido especificamente dirigida para esta região. Como já foi referido, a mesma circunscreve-se aos

concelhos de S. João da Madeira, Santa Maria da Feira e Oliveira de Azeméis. Muito embora se presuma

que a presença esmagadora da indústria do calçado neste espaço territorial contribui para lhe conferir

coerência sistémica, é evidente que uma tal lógica não coincide totalmente com a divisão administrativa.

Por isso, recordo, recorre-se ao termo “região” apenas por uma questão de facilidade linguística. Para uma

discussão teórica do conceito de região, ver Giddens (1989: 89-118). 165 Com este procedimento será possível captar alguns dos particularismos sectoriais e regionais que, de

outro modo, ficariam omissos no conjunto dos resultados globais do país. Wright procura contrariar a

rigidez que tem conotado o conceito com uma base territorial nacional. Afirma que o mesmo pode apontar

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pode ser visto em articulação com a estrutura de classes nacional e interpretado à luz

dos factores históricos e socioculturais inscritos no contexto local. Foi esse o

procedimento que aqui adoptei.

Além de caracterizar a estrutura das localizações de classe a nível regional

(abrangendo os três concelhos já referidos), serão abordados aspectos como: a

mobilidade social intergeracional, as subjectividades e atitudes dos indivíduos quanto à

sua auto-identificação de classe, a consciência de classe, as opiniões em relação ao

Estado, as experiências associativas e de participação em protestos e ainda a questão

dos consumos e actividades de lazer. Os resultados serão cruzados com as diferentes

categorias de classe identificadas a partir do modelo de Wright. Além de permitir captar

a estrutura de classes da região, o recurso ao inquérito por amostragem166 permite ao

mesmo tempo conferir um outro tipo de sistematicidade ao estudo das práticas e

atitudes, já que a análise se situa, agora, num âmbito mais abrangente.

6.1 - Caracterização da estrutura de classes da região

De acordo com os resultados do estudo sobre as classes sociais em Portugal

(Estanque e Mendes, 1998), a sociedade portuguesa revelou-nos uma estrutura de

classes substancialmente dissemelhante da das sociedades mais desenvolvidas com as

quais os dados portugueses foram comparados, nomeadamente a Suécia e os EUA. Os

maiores contrastes situam-se no elevado peso da pequena burguesia (22,6% em que

mais de metade pertence ao sector rural), e da categoria “proletária” (com 46,5%)167.

Enquanto a pequena burguesia tradicional, apesar de estar em declínio é ainda muito

para uma variedade de níveis, admitindo que se fale, por exemplo, da estrutura de classes de uma região,

de uma empresa X ou da estrutura de classes mundial (Wright, 1997a: 378). 166 Para os critérios de construção da amostra e operacionalização da tipologia das classes, ver Anexo 2

(Tabelas 6.1 e 6.2). 167 Recorde-se que os dados correspondentes revelam, no caso da Suécia, 5,4% para a “pequena

burguesia” e 43,5% para os “proletários”, e nos EUA os valores não são muito distantes destes, com 6,9%

para a “pequena burguesia” e 39,9% para os “proletários” (cf. Wright, 1985: 195).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

267

significativa, a “classe média”, pelo contrário, não obstante o seu notório

crescimento168 (quer quando comparada com , continua a ter um peso estatístico pouco

relevante no conjunto da população activa portuguesa. O proletariado, por sua vez, além

do elevado peso percentual assinalado é em boa medida constituído por camadas

relativamente jovens da força de trabalho e, nessa medida, está longe de se apresentar

como uma categoria em declínio.

TABELA 6.1 - Distribuição da força de trabalho pela matriz das localizações de classe

(%s totais das amostras nacional e regional)

Recursos em meios de produção

Proprietários Não proprietários (assalariados)

1.Capitalistas/

Burguesia

Portugal 0,8%

Região 2,3%

4.Gestores Qualifi-

-cados

Portugal 2,6%

Região 0,7%

7.Gestores Semi-

qualificados

Portugal 1,2%

Região 0,3%

10.Gestores Não

Qualificados

Portugal 2,6%

Região 2,7%

+

2.Pequenos

Empresários

Portugal 7,1%

Região 7,0%

5. Supervisores

Qualificados

Portugal 1,0%

Região 0,3%

8.Supervisores

Semiqualificados

Portugal 0,8%

Região 0,0%

11. Supervisores

Não Qualificados

Portugal 5,3%

Região 2,7%

Recursos

> 0 Organi-

zacionais

3.Pequena

Burguesia

Portugal 22,6% a)

Região 19,1% b)

6.Técnicos Não

Gestores

Portugal 3,6%

Região 0,7%

9.Trabalhadores

Semiqualificados

Portugal 5,8%

Região 4,0%

12. Proletários

Portugal 46,5%

Região 60,2%

_

+ > 0 –

a) PBagric 12,4%

b) PBagric 6,4%

Credenciais/Qualificações

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

Portugal: N = 1101; Região (SJM, VF, OA): N = 299.

Mas, se o estudo nacional comprovou a importância que continuam a ocupar os

sectores mais desapossados dos assalariados portugueses (46,5%), no caso da

subamostra desta região a categoria “proletária” é, sem dúvida, uma localização de

classe com um peso morfológico quase esmagador (60,2%). Efectivamente, a estrutura

de classes da região – desenhada a partir do modelo de análise de Wright – apresenta-se

168 Como é evidente, os dados obtidos para a estrutura de classes actual não permitem qualquer

comparação. Por isso, quando digo que há crescimento da “classe média” estou não só a ter presentes

estudos anteriores, nomeadamente, os de Marques e Bairrada (1982) e Ferreira de Almeida et al. (1994),

mas também a informação relativa à classe do pai a que mais adiante farei referência (ver à frente Quadro

6.4).

Page 260: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

268

bastante mais polarizada do que a estrutura de classes do país. Tal resultado prende-se,

certamente, com o facto de se tratar de uma zona de forte implantação industrial e onde

proliferam sectores de mão-de-obra intensiva, como o do calçado. Como podemos

observar na tabela acima, as localizações de classe média quase desaparecem, enquanto

a pequena burguesia apresenta um valor próximo do valor correspondente para país

(19,1 para 22,6%). A categoria dos “pequenos empresários” (aqueles que empregam de

1 a 9 assalariados) acompanha igualmente o resultado nacional (7,0 para 7,1%),

enquanto a localização dos capitalistas tem um peso que quase triplica o da mesma

categoria à escala nacional (2,3 para 0,8%).

O maior impacto regional da localização dos “capitalistas” surge em coerência

com a já assinalada importância das pequenas empresas nesta zona industrial, uma vez

que, como sabemos, os critérios de construção desta tipologia estabelecem o número de

dez ou mais assalariados na delimitação entre os “pequenos empresários” e os

“capitalistas”. Por isso, tal como no caso da amostra nacional, os “capitalistas” são de

facto pequenos empregadores que, na sua grande maioria, têm menos de 50

trabalhadores (na amostra da região cerca de 90% dos inquiridos trabalham em

empresas com menos de 50 assalariados). Em todo o caso, a maior fragmentação da

propriedade não faz atenuar a concentração de trabalhadores assalariados em empregos

onde os recursos em qualificações e credenciais estão ausentes e, portanto, a

proletarização da força de trabalho constitui um traço marcante da estrutura de classes

da região. Recorde-se que os concelhos em análise têm vindo a crescer em população

activa ao longo das últimas décadas ao mesmo tempo que os sectores secundário e

terciário também aumentaram significativamente, ao contrário do sector primário que na

década de oitenta diminuiu quase 50% em termos de absorção de população activa

(INE, Censos 1991). O dinamismo industrial da região e o declínio da actividade

Page 261: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

269

agrícola leva a que o peso relativamente elevado da pequena burguesia (19,1%) não se

deva tanto ao peso do sector rural como acontece no país genericamente considerado.

Enquanto na amostra nacional a actividade agrícola ocupa metade da pequena burguesia

(12,4% num total de 22,6%), nesta região o seu peso não vai além dos 6,4%, isto é,

representa apenas cerca de um terço do valor da pequena burguesia. Ainda no que diz

respeito às categorias intermédias dos assalariados, ou seja, aquelas que incorporam

recursos significativos em credenciais escolares ou qualificações, é notório o seu

reduzido peso na subamostra da região comparativamente com os resultados nacionais.

Efectivamente, o quadro de resultados obtido vai ao encontro do que já se conhecia

para o sector do calçado quanto à escassez de quadros e chefias intermédias e

qualificadas na gestão das empresas. Apenas os gestores não-qualificados possuem um

peso percentual idêntico ao resultado nacional. Para além dos supervisores não-

qualificados, cujo número corresponde, em termos relativos, a cerca de metade do peso

da mesma categoria a nível nacional (2,7 para 5,3%), todas as restantes categorias mais

qualificadas estão claramente subrepresentadas na matriz geral. Desde as que mais se

aproximam do operariado qualificado (célula 9 da matriz, com 4%) até à dos gestores

qualificados (célula 4 com apenas 0,7%), as restantes localizações que poderemos

incluir na classe média, todas elas possuem um peso relativo nitidamente inferior às

mesmas categorias da amostra nacional. Dada a já assinalada fraca representação das

categorias intermédias na amostra da região e tendo em vista atenuar a excessiva

dispersão dos resultados, procedeu-se aqui a agregações entre diversas categorias, pelo

que a matriz de análise é baseada numa estrutura reduzida das localizações de classe.

Deste modo, consideram-se ao todo cinco categorias de classe169: 1. Patrões; 2.

169 Os critérios de operacionalização são os seguidos no modelo de Wright, quer na matriz geral das doze

localizações de classe, quer no modelo simplificado, neste caso com apenas cinco categorias. As razões

desta condensação devem-se sobretudo à pequena dimensão da amostra o que fez com que algumas das

categorias integrassem um número extremamente reduzido de indivíduos. Se tal já acontecia na amostra

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Entre a Fábrica e a Comunidade

270

Pequena Burguesia; 3. Gestores e Supervisores; 4. Técnicos e Trabalhadores

Qualificados; e 5. Proletários.

No quadro seguinte (Quadro 6.1) pode observar-se a distribuição sexual entre as

diferentes categorias de classe. Desde logo, é visível que as mulheres estão mais

representadas nas posições mais desapossadas de recursos e menos nas categorias

detentoras de propriedade ou de autoridade. No caso dos proletários, o sector feminino

ocupa na região um peso relativo superior ao dos homens em mais de dez pontos

percentuais (66,4 das mulheres para 56,4% dos homens), ao contrário do que acontece

no país, onde os proletários são uma categoria em que o peso relativo das mulheres é

inferior ao dos homens. Esta diferença substancial é um importante indicador da

discriminação da mão de obra feminina no tecido industrial da região, principalmente

no que se refere à sua evidente exclusão dos postos de trabalho investidos de autoridade.

Esta situação é particularmente nítida no sector do calçado onde, apesar da maioria da

força de trabalho ser feminina, os lugares de chefia e supervisão são quase

exclusivamente ocupados por homens (ver atrás, dados para o sector no Capítulo 3). No

que se refere aos patrões (empregadores), pelo contrário, persiste na região uma menor

representação de mulheres, sendo neste caso a diferença ainda mais vincadamente

favorável aos homens do que no país, como se pode observar no Quadro 6.1, abaixo.

Em relação à pequena burguesia, a tendência geral mostra que se mantém na região a

maior presença de mulheres nesta categoria de classe, embora com valores ligeiramente

atenuados em face dos resultados do país. No entanto é importante notar os resultados

do desdobramento efectuado quando se destaca o sector agrícola dentro desta

nacional, por maioria de razão, na subamostra regional, algumas das localizações intermédias – dado o

fraco peso das posições qualificadas e semiqualificadas da força de trabalho – tornavam-se

estatisticamente irrelevantes. Assim, além dos “patrões”, que correspondem ao somatório das células 1 e 2

(capitalistas e pequenos empresários), juntámos o conjunto dos gestores e supervisores (células 4, 7, 10 e

5, 8 e 11 da matriz geral) e ainda os técnicos não gestores com os trabalhadores semiqualificados (células

6 e 9). Apenas a pequena burguesia e os proletários se mantiveram iguais, dado o seu significativo peso

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Entre a Fábrica e a Comunidade

271

localização. Quer na amostra nacional quer na regional a diferença favorável ao sexo

feminino torna-se bastante mais notória na subcategoria rural, ou seja, as mulheres na

condição de pequeno-burguesas superam os homens em termos relativos, mas tal

tendência fica a dever-se principalmente ao seu maior peso relativo na vertente rural

dessa condição.

O contraste a este respeito é bem mais visível na amostra regional, pois, ao nível do

país, também na pequena burguesia não-agrícola o género feminino está mais presente

do que o masculino, embora de forma menos marcante. Isto parece dizer-nos que entre

as famílias com pequena propriedade agrícola, quando um dos membros do casal se

torna assalariado é preferencialmente o homem que o faz, ficando a mulher a trabalhar

na exploração rural, o mesmo fenómeno já identificado por outros estudos de caso

(Lourenço, 1991).

QUADRO 6.1 - Distribuição das localizações de classe, segundo o sexo dos

inquiridos. Comparação entre a amostra nacional e a da região (%s relativas e totais)

Distribuição segundo o sexo

Categorias de classe PORTUGAL REGIÃO

Hs Ms TOTAIS Hs Ms TOTAIS

1.Patrões 10,0 5,3 7,9 13,8 1,8 9,4

2.Pequena Burguesia 20,4 25,4 22,6 18,6 19,8 19,1

PB Não-Agrícola 9,6 11,1 10,2 15,4 8,1 12,7

PB Agrícola

10,8 14,3 12,4 3,2 11,7 6,4

3.Gestores e Supervisores 14,4 12,5 13,5 9,0 2,7 6,7

4.Técn e Trab. Qualificados 7,5 11,9 9,4 2,1 9,0 4,7

5.Proletários 47,7 45,0 46,5 56,4 66,7 60,2

TOTAIS 100,0

(55,6%)

100,0

(44,4%)

100,0

(N=1101)

100,0

(62,9%)

100,0

(37,1%)

100,0

(N=299)

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal.

Essa lógica parece de facto prevalecer na região em estudo onde, como se vê no

quadro acima, na pequena burguesia não-agrícola, os homens estão claramente mais

percentual. Para mais detalhes quanto aos critérios de operacionalização da matriz geral da estrutura das

localizações de classe ver no final deste capítulo o Anexo Metodológico - Tabelas 6.1 e 6.2.

Page 264: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

272

representados do que as mulheres, o que não acontece no caso da amostra nacional

(onde as mulheres têm maior peso, com 11,1% para 9,6% de homens).

Em relação às categorias assalariadas intermédias (que nesta tipologia reduzida

são apenas duas), pode dizer-se, em primeiro lugar, que os resultados da região mostram

valores claramente inferiores aos das mesmas categorias a nível da sociedade

portuguesa, a sublinhar o que atrás foi referido a propósito do reduzido peso da classe

média nesta região. Na verdade, como se pode ver, as diferenças são nítidas, com 6,7%

para a categoria dos gestores e supervisores (contra 13,5% a nível nacional) e 4,7% para

os técnicos e trabalhadores qualificados (contra 9,4% a nível nacional). As

desigualdades sexuais agravam-se bastante em desfavor das mulheres já que, como se

observa no quadro acima, nas posições de poder (gestores e supervisores) a força de

trabalho feminina está muito menos representada do que a masculina, com uma

diferença de 2,7 para 9%, enquanto nos resultados nacionais tal diferença é bem mais

pequena (12,5 para 14,4%). Já no que se refere às categorias com mais recursos em

qualificações ou credenciais escolares (técnicos e trabalhadores qualificados), a amostra

regional parece acompanhar os resultados apurados para o país ao mostrar uma

diferença bem visível, não obstante o frágil peso relativo da referida localização de

classe (com 2,1% dos homens contra 9% das mulheres). Deste modo, poder-se-á dizer

que na amostra regional surgem tendências no mesmo sentido da amostra do país mas,

no que se refere às diferenças sexuais, as discrepâncias aparecem relativamente mais

nítidas. Em suma, a força de trabalho feminina tende a apresentar-se em posição

vantajosa nas situações em que estão em jogo recursos intermédios ou elevados em

qualificações mas sem o controle de recursos organizacionais, ou, dito de outro modo,

possuem credenciais mas não autoridade (o caso dos técnicos e trabalhadores

semiqualificados), enquanto nas posições de supervisão e de gestão – com ou sem

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Entre a Fábrica e a Comunidade

273

credenciais mas sempre com recursos de poder – são em geral os homens que aparecem

favorecidos. Isto acontece quer na amostra nacional quer na regional, sendo neste

último caso a diferença ainda mais visível.

A partir do cruzamento da tipologia das categorias de classe pelos níveis de

escolaridade e camadas etárias poderemos obter um conhecimento mais detalhado da

população desta região. Nos dois quadros seguintes observa-se uma predominância dos

baixos níveis de instrução em todas as categorias – excepto no caso dos “técnicos e

trabalhadores semiqualificados” – e sobressai o contraste entre os níveis etários mais

elevados dos proprietários e a maior juventude dos assalariados. Tendencialmente, os

resultados acompanham os da amostra nacional, mas, por vezes, deparamo-nos com

situações particulares nas categorias intermédias. Isto é, tanto nos “gestores e

supervisores”, como nos “técnicos e trabalhadores semiqualificados”, as diferenças são

notórias. Em parte, isso deve-se ao facto de ser nessas categorias que a amostra regional

revela menor peso percentual de assalariados.

QUADRO 6.2 - Níveis de instrução por categorias de classe. Comparação entre a

amostra da região e a nacional (% categoria de classe)

Níveis de instrução para a região e o país (*)

Categorias de classe até 4ª

Classe

Preparat

5º-8º

Secund

9º-11º

Complem

12º

Sup ou

Freq

TOTAIS

Patrões 53,6 (54,7)

10,7 (17,4)

21,4 (15,1)

3,6 (3,5)

10,7 (9,3)

9,4 (7,9)

Peq. Burguesia 66,7 (70,6)

21,1 (18,0)

7,0 (5,3)

1,8 (2,0)

3,5 (4,1)

19,1 (22,6)

Gestores/Superv 55,0 (19,9)

20,0 (15,1)

15,0 (17,1)

10,0 (13,0)

0,0 (34,9)

6,7 (13,4)

Técnicos/Trab SQ 14,3 (2,0)

7,1 (5,0)

7,1 (11,9)

7,1 (17,8)

64,3 (63,4)

4,7 (9,3)

Proletários 43,3 (40,7)

31,1 (28,7)

18,3 (19,5)

3,9 (7,9)

3,3 (3,1)

60,2 (46,8)

TOTAIS 48,2 (42,2)

25,4 (21,4)

15,7 (14,9)

4,0 (7,8)

6,7 (13,7)

100,0 (100,0)

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal. Região: N=299; País: N=1086.

(*) Os números entre parêntesis são as percentagens da amostra nacional.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

274

Os técnicos e trabalhadores semiqualificados possuem um peso percentual muito

reduzido na região (apenas 4,7%, como se lê na coluna da direita do quadro). Os níveis

de instrução desta categoria acompanham parcialmente a distribuição nacional, mas

verifica-se que as maiores percentagens relativas se concentram nos níveis extremos

(onde os valores são superiores aos da amostra nacional), enquanto nos níveis

intermédios (preparatório, secundário e complementar) possuem menor significado na

amostra regional. Os baixos níveis de instrução nesta categoria técnica são muito mais

notórios na região do que no país (14,3% para 2%). Também os gestores e supervisores

têm menor significado na região do que no país (6,7% contra 13,4%) e revelam níveis

de instrução igualmente muito baixos. Em termos globais verifica-se que há na região

um maior peso de força de trabalho com baixos níveis de instrução e,

consequentemente, menores percentagens de activos com escolaridade elevada. Pode

ainda confirmar-se que, quer na amostra regional, quer na nacional, os mais baixos

volumes de credenciais escolares se situam nas categorias proprietárias (patrões e

pequena burguesia). A localização dos proletários revela também, como seria de

esperar, baixos índices de escolarização em ambas as amostras mas, ainda assim, não

tão baixos como os daquelas categorias. Uma situação aparentemente anómala é a dos

gestores e supervisores que na região são muito menos escolarizados do que na escala

nacional. Isto prende-se, em parte, com as agregações efectuadas, mas é também um

reflexo do tipo de estrutura industrial desta zona, como atrás foi referido.

Para concluir esta caracterização genérica da amostra, vale a pena fazer referência à

distribuição dos níveis etários pelas categorias de classe (Quadro 6.3, abaixo). Em

primeiro lugar, é notório o contraste entre a juventude do sector assalariado contra a

maturidade da categoria patronal e um ainda maior envelhecimento da pequena

burguesia. Os patrões, embora com maior peso na camada mais idosa do que na mais

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Entre a Fábrica e a Comunidade

275

jovem (não existem patrões com menos de 26 anos na amostra da região), os valores

percentuais mais elevados distribuem-se pelas camadas intermédias, ou seja, na dos 36

aos 45 e na dos 46 aos 55 anos. No caso da pequena burguesia a tendência estende-se

mais para as camadas mais idosas, o que obviamente, vem secundar o conhecido

processo de envelhecimento dos sectores tradicionais desta classe, nomeadamente o

caso da pequena agricultura e do pequeno comércio de base familiar.

QUADRO 6.3 - Níveis etários para a amostra da região, segundo a categoria de classe

(% categoria de classe)

Níveis etários

Categorias de classe < de 26

anos

26-35 36-45 46-55 > de 55

anos

TOTAIS

(N)*

Patrões 0,0 14,3 39,3 28,6 17,9 9,4(28)

Peq. Burguesia 3,5 10,5 21,1 36,8 28,1 19,1(57)

Gestores/Superv 0,0 50,0 40,0 10,0 0,0 6,7(20)

Técnicos/Trab SQ 21,4 14,3 28,6 35,7 0,0 4,7(14)

Proletários 25,6 36,1 18,9 13,9 5,6 60,2(180)

TOTAIS (N)* 17,1(51) 29,1(87) 23,1(69) 20,4(61) 10,4(31) 100(299)

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

* Os números entre parêntesis são valores absolutos.

Porém, nota-se também alguma presença de jovens nesta localização de classe, a

mostrar simultaneamente alguma revitalização a que se vem assistindo noutros sectores

de trabalho autónomo, quer no ramo dos serviços, quer em actividades de carácter

artesanal ou industrial. Quanto aos gestores e supervisores, são a única excepção à

anterior afirmação de que os assalariados são jovens em comparação com os

proprietários. Efectivamente, os gestores e supervisores podem considerar-se uma

categoria jovem (principalmente atendendo a que ocupam cargos de autoridade) dado

que 90% se distribui pelas camadas etárias situadas entre os 26 e os 45 anos e 50%

possui menos de 36 anos. Este resultado parece, de facto ir de encontro de observações

fornecidas por outras fontes segundo as quais as chefias das pequenas empresas desta

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Entre a Fábrica e a Comunidade

276

região conquistaram as suas posições devido sobretudo a uma aprendizagem adquirida

através da experiência laboral e, desse modo, as posições de autoridade alcançadas

passam muito pelos laços de lealdade e vínculos informais que estabelecem com o

pequeno patronato. Com os técnicos e trabalhadores semiqualificados a distribuição

etária revela maior peso na camada mais jovem (21,4%) enquanto nos níveis

intermédios (entre os 46 e os 55 anos) se verifica uma maior concentração desta

categoria (35,7%). Finalmente, a localização proletária, e tal como acontece para o país,

revela ser uma categoria globalmente jovem (e feminizada, como se viu), com as

camadas etárias mais baixas a revelarem maior peso percentual: 25,6% situam-se na

camada entre os 18 e os 25 anos e 36,1% entre os 26 e os 35 anos.

Estas indicações devem, portanto, ser vistas no quadro de um contexto industrial

em expansão ao longo das últimas décadas, o que – em especial no caso do calçado – se

liga igualmente ao carácter instável das pequenas unidades produtivas, dada a facilidade

de instalação dos meios tecnológicos a que recorrem. Muito embora, como tenho vindo

a mostrar, o dinamismo da actividade industrial desta zona não deixe de se apoiar em

notórias desigualdades e contradições de classe, tal processo parece ser secundado por

diversos mecanismos que funcionam como factores de regulação social e têm um efeito

estabilizador, quer no terreno das práticas de classe, quer mesmo na reprodução de uma

estrutura de classes que objectivamente permanece idêntica ou tem evoluído muito

lentamente.

Uma das hipóteses colocadas no início da presente dissertação postulava que,

nesta zona, os processos sociais estruturados ao longo do tempo se traduziram numa

estreita articulação entre os factores de mercado e os factores culturais enraizados na

tradição local, fazendo emergir sistemas de práticas socioculturais em que a resistência

e a adaptação se encontram intimamente misturadas, o que se traduz em práticas e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

277

subjectividades de natureza dúctil e ambígua. Na análise que se segue sobre a

mobilidade social intergeracional, continuarei a ter presente essa hipótese, bem como a

importância das articulações entre a vertente estrutural e a subjectiva nos processos de

mudança (continuando a socorrer-me do modelo de Erik Olin Wright).

6.2 - Mobilidade social intergeracional

A partir dos dados da subamostra e com base em critérios ligeiramente adaptados,

foi possível construir uma tipologia das localizações de classe idêntica para inquiridos e

para os seus pais, a fim de interpretar os processos de mobilidade social que tiveram

lugar entre estas duas gerações (ver, Anexo 2 - Tabela 6.3)170. Considerou-se como

referência para a classe de origem a localização de classe do pai. Embora admitindo a

inevitável arbitrariedade desse critério, seguiu-se o pressuposto clássico de tomar o

“chefe de família” como o principal elemento definidor da condição de classe do grupo

doméstico. Como se pode observar no Quadro 6.4, a estrutura das localizações de classe

dos pais dos nossos inquiridos (ver os totais na linha de baixo) dá-nos, desde logo, uma

ideia da evolução da estrutura de classes ao longo do tempo. Uma primeira indicação

mostra-nos que a configuração da tipologia não é, grosso modo, muito dissemelhante da

que se refere à geração actual.

Os proletários são a categoria com maior peso percentual em relação ao conjunto

das restantes posições (59,1%), seguindo-se-lhe a pequena burguesia (26,5%) e a

categoria patronal (9,1%). De facto, comparando estes resultados com os da classe

actual verifica-se que os assalariados não-proletários (digamos, da “classe média”) se

170 Uma vez que a amostra apenas é representativa para a situação de classe actual (e não para a classe de

origem), a informação disponível para a situação profissional dos ascendentes é, obviamente, menos

detalhada do que a respeitante aos indicadores de classe dos inquiridos. Por esse motivo, os critérios

utilizados para a construção da tipologia da mobilidade social são necessariamente uma simplificação do

modelo geral das localizações de classe.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

278

mostram as categorias com menor peso e também aquelas em que as diferenças face às

da actual geração são mais significativas, em termos relativos.

QUADRO 6.4 - Mobilidade social intergeracional com base na classe do pai

(% categoria de classe actual)

Categoria de classe do pai

Categoria de classe

actual

Patrões Peq. Burg Gest/Sup Técn/TSQ Prolet TOTAIS* (N)

Patrões 28,0 24,0 0,0 4,0 44,0 10,9(25)

Peq. Burguesia 9,1 50,0 2,3 0,0 38,6 19,1(44)

Gestores/Superv 14,3 0,0 14,3 0,0 71,4 6,1(14)

Técnicos/Trab SQ 40,0 30,0 0,0 10,0 20,0 4,3(10)

Proletários 2,9 21,9 3,6 1,5 70,1 59,6(147)

TOTAIS (N) 9,1(21) 26,5(61) 3,5(8) 1,7(4) 59,1(136) 100(230)

* Como baixou o número de respostas válidas para a construção da classe do pai, as percentagens totais surgem

aqui ligeiramente diferentes.

N/S, N/R = 69

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

Os patrões revelam uma subida de 9,1 para 10,9%, a pequena burguesia uma

descida substancial de 26,5 para 19,1%, os gestores e supervisores (3,5% para 6,1%) e os

técnicos e trabalhadores semiqualificados (1,7% para 4,3%) aumentam significativamente

em termos relativos e os proletários mantêm-se estáveis, com uma subida pouco

perceptível, de 59,1% para 59,6%. A categoria proletária, que já era fortemente

maioritária na geração anterior, não diminui o seu peso, antes o reforça ligeiramente. Eis,

portanto, os dois traços mais marcantes da estrutura de classes desta região: primeiro, um

peso razoável da pequena burguesia, actualmente próximo do valor encontrado a nível

nacional (22,6%) e uma presença bastante superior da categoria mais desapossada de

recursos, o proletariado (que a nível nacional detém, como vimos 46,5%); segundo, uma

estrutura de classes que, globalmente, não mudou significativamente na passagem de uma

geração para outra. A referida quebra da pequena burguesia e o aumento (assinalável em

termos relativos mas diminuto em termos absolutos), das já mencionadas categorias de

classe média, aparecem sobretudo como tendências que acompanham a evolução da

Page 271: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

279

estrutura de classes nacional na sua recomposição ao longo das últimas décadas. O

mesmo poderá dizer-se quanto à subida ligeira dos empregadores (patrões), muito embora

neste caso, o próprio dinamismo e as características da indústria local contribuam

decisivamente para o crescimento do número de pequenos patrões.

Se globalmente a estrutura classista da região se mantém, como vimos,

relativamente estável, os mesmos resultados mostram-nos um quadro bastante dinâmico

no que se refere aos fluxos de mobilidade social intergeracional. Na verdade, através da

leitura do quadro anterior podem observar-se importantes transferências de indivíduos

entre diferentes categorias de classe à luz da localização de classe dos seus pais. Os

movimentos entre a pequena burguesia, o patronato e o proletariado são significativos, se

bem que – paradoxalmente ou talvez não – as mesmas categorias revelem

simultaneamente altos índices de “autoreprodução” dentro da mesma classe. Vejamos

como: na perspectiva da abertura de fronteiras intergeracionais temos o (pequeno)

patronato com 24% de origem pequeno burguesa e 44% proletária; a pequena burguesia

com 38% de origem proletária; e 21,9% dos proletários, por sua vez, com uma origem de

classe pequeno burguesa. Quanto ao fechamento/ reprodução, verificamos que a categoria

proletária é aquela em que as barreiras de classe parecem mais eficazes, isto é, na sua

grande maioria os proletários (70,1%) são filhos de pais igualmente proletários; a

pequena burguesia revela 50% de “autorecrutamento”; e em relação aos patrões, são 28%

os que se mantêm na classe de origem. Significa isto que, apesar da relativa abertura da

estrutura das localizações de classe, quando a mesma é vista numa perspectiva temporal,

ou seja, comparando o volume de transferências entre pais e filhos, a impermeabilidade

das fronteiras de classe é, em certas situações, um facto bem visível. O caso mais

evidente é o do proletariado, que se debate com importantes barreiras impeditivas da sua

descolagem para posições de maiores recursos. A única percentagem de indivíduos desta

Page 272: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

280

categoria oriunda de outra localização que merece realce é a de 21,9% dos proletários

cujos pais eram pequeno-burgueses. Os restantes números são pouco significativos. No

entanto, somando esses 21,9% com os outros valores chegamos a um total de 30% de

proletários com origem noutra classe, o que, numa formulação simples poderia ser visto

como um valor de mobilidade social descendente, já que esta é a categoria mais

desapossada na presente tipologia.

Porém, não deve esquecer-se que este é um modelo topológico e relacional e não

uma pirâmide de hierarquias. Nesse sentido, não só as mudanças ocorridas não podem

simplesmente ser vistas como o resultado do reconhecimento das aptidões individuais,

mas, mais do que isso, há que ter em atenção a mudança estrutural e a consequente

recomposição da estrutura das classes regional ao longo do tempo, o que se liga à

mudança mais geral da sociedade portuguesa e do mercado capitalista, nacional e

internacional.

Aparentemente, pode dizer-se que quanto à impermeabilidade das fronteiras são,

por ordem decrescente, os proletários, a pequena burguesia e os patrões que revelam mais

claramente uma lógica de autoreprodução. Como já se viu, a actual localização proletária

tem 70,1% de origens nessa mesma classe, a pequena burguesia 50% e os patrões 28%.

Todas as categorias de classe da geração actual têm uma origem de classe vincadamente

marcada pela categoria proletária. A única excepção a esse respeito é a categoria dos

“técnicos e trabalhadores semiqualificados”, maioritariamente oriunda da classe patronal

(40%) e da pequena burguesia (30%) e que revela menos ligação ao proletariado (apenas

20% tem aí a sua origem). Quer esta categoria, quer a dos gestores e supervisores estão,

como se sabe, pouco representadas na presente amostra e, portanto, são mais susceptíveis

de distorções. No entanto, vale a pena determo-nos brevemente na análise destes

Page 273: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

281

números, na medida em que eles poderão elucidar certos traços da estrutura de classes

desta região.

No caso dos gestores e supervisores é curioso verificar que a sua esmagadora

maioria tem uma origem proletária (71,4%). Um dado que sem dúvida está ligado ao

facto de a maioria desta localização possuir, como se viu atrás, níveis de instrução

bastante baixos, ou seja, trata-se quase exclusivamente de gestores e supervisores não-

qualificados, pessoas que, como referi antes, foram promovidos a posições de chefia a

partir da experiência e da sua dedicação à empresa e não com base em credenciais

conquistadas no sistema educativo. Ao contrário, no caso dos “técnicos e trabalhadores

semiqualificados”, a sua condição deve-se sobretudo à forte presença de níveis de

educação elevados (recorde-se que 64,3% desta categoria possui frequência ou curso de

ensino superior). Poder-se-ia pensar que estamos perante jovens recém licenciados ou

ainda a frequentar o ensino superior e ocupados em posições transitórias no mercado de

trabalho. No entanto, os valores da subamostra parecem ligeiramente diferentes dos

resultados do inquérito nacional a esse propósito (cf. Estanque e Mendes, 1998). Aqui,

esta categoria não é tão jovem como isso, distribuindo-se sobretudo pelas categorias

intermédias (cerca de 64% situa-se na camada etária entre os 36 e os 55 anos e cerca de

36% tem mais de 46 anos) o que me leva a pensar que as credenciais escolares são ainda

muito pouco reconhecidas como um critério importante no regime de contratações e/ou

de promoções nas empresas privadas da região. Refira-se que 64% desta categoria (a dos

técnicos e trabalhadores semiqualificados) trabalha para o Estado e apenas cerca de 35%

nas empresas privadas. No que se refere ao sector administrativo do Estado, as

credenciais escolares parecem ser importantes no acesso aos postos de trabalho mas, em

contrapartida, só muito lentamente e escassamente facilitam o acesso a posições dotadas

de autonomia e autoridade organizacional (isto tendo em conta os critérios deste modelo,

Page 274: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

282

em que as duas categorias aqui agregadas são despojadas de autoridade formal. Ver atrás

Tabela 6.1).

6.3 - Auto-identificação de classe e consciência de classe

Os resultados que acabei de apresentar reflectem, como se viu, uma estrutura

regional de classes bastante dinâmica, estreitamente dependente de um capitalismo que

nas últimas três décadas se tem vindo a revitalizar em boa medida com base na indústria

exportadora do calçado. Para compreender as modalidades de consentimento e rebeldia

dos trabalhadores desta região há que atender ao efeito dos processos de transformação

social mais amplos e à forma como os mesmos se articularam historicamente com os

sistemas culturais e simbólicos das comunidades tradicionais desta zona (aspectos

abordados nos dois capítulos anteriores). O ponto de vista em que me coloco para a

abordagem das atitudes subjectivas, pressupõe que as barreiras de classe – isto é, os

limites e condicionalismos introduzidos pela estrutura das classes – interferem sobre as

opiniões e as práticas individuais.

Já ficou claro no capítulo teórico que o presente estudo rejeita qualquer

determinação directa da estrutura de classes ou da dimensão económica sobre a

consciência dos trabalhadores. Na verdade, a estrutura de classes está sujeita a

permanentes alterações, não só devido à dinâmica económica geral (local, nacional e

global), mas também às práticas colectivas e organizativas dos trabalhadores (portanto, ao

efeito da sua luta), do patronato e do Estado, ou seja, à maior ou menor eficácia dos

mecanismos de negociação e concertação (Ferreira, 1996). As subjectividades dos

diferentes actores dependem, portanto, de variadíssimos factores. Ao lado dos recursos

directamente vinculados à localização de classe ocupada nas relações de produção,

persistem os factores sociais e culturais ligados à tradição comunitária, à lógica familiar e

às actividades complementares de diversos tipos, económicas e não-económicas. Assim,

Page 275: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

283

ao chamar a atenção para as subjectividades e atitudes individuais, pretendo não só ter

presente o efeito que uma estrutura de classes com estas características – aparentemente

aberta e indutora de oportunidades de mobilidade individual – poderá exercer sobre os

trabalhadores e as populações, mas, ao mesmo tempo, sublinhar a ideia de que tais

atitudes e subjectividades são simultaneamente marcadas por factores não classistas.

Tendo em vista comparar os resultados regionais e nacionais a este propósito, apresenta-

se o quadro abaixo (Quadro 6.5), onde se contrapõem os valores referentes à identificação

subjectiva dos inquiridos com a “classe trabalhadora” e com a “classe média”171.

A primeira constatação é a de que os resultados da amostra nacional são claramente

mais favoráveis a uma identificação com a classe trabalhadora, enquanto na região

prevalece a classe média como principal referência. A identificação subjectiva com a

classe média aplica-se a todas as categorias de classe ao nível desta região. Se nos

resultados para o país a preferência pela classe média já era maior no caso dos patrões e

dos assalariados das categorias intermédias (mas claramente inferior nos proletários e na

pequena burguesia), na subamostra regional a preferência é sempre no sentido da classe

média e de maneira inequívoca para todas as localizações.

QUADRO 6.5 - Auto-identificação de classe, comparação país - região

(%s por categorias de classe)

Auto-identificação com a «classe trabalhadora»

e com a «classe média»

PORTUGAL REGIÃO

Categorias de classe cl Trab cl Média cl Trab cl Média

Patrões 42 55 10 91

Pequena Burguesia 62 34 31 63

Gestores/ Superv 33 61 23 77

Trab/Técn Semiqualif 27 73 0,0 100

Proletários 62 33 34 65

TOTAIS 53 43 27 72

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

N/S, N/R: País - 48 (N=1053); Região - 165 (N=134).

171 Devido aos valores insignificantes das opções “classe média alta” e “classe alta”, os mesmos não são

incluídos neste quadro.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

284

No caso dos proletários, a identificação com a classe média praticamente duplica

(65% contra 34% que se identificam com a classe trabalhadora) e o mesmo acontece no

caso da pequena burguesia, com uma diferença de 63% para 31%. Estes resultados não

deixam de ser reveladores. Mas, mais do que uma atitude de fuga ao estatuto de

trabalhador eles espelham sobretudo uma atitude de fuga à identificação com a “classe

trabalhadora”. Tal orientação é coerente com aquilo que observei em múltiplas

entrevistas locais onde sobressaiu a importância das estratégias de mobilidade

ascendente e de acumulação por parte das famílias trabalhadoras. A origem operária de

uma parte significativa dos actuais patrões da indústria (nomeadamente do ramo do

calçado) ajuda, em parte, a explicar tal fenómeno. Mas ao mesmo tempo não deixa de

ser surpreendente a valorização de aspectos como o factor trabalho, a labuta familiar, o

esforço pessoal e espírito de sacrifício, etc., factores que parecem reflectir a sua

importância simbólica, ao espelharem o orgulho de se ter levado uma vida “digna”, uma

vida de trabalho que no final acaba por ser compensatória. Provavelmente tal

sentimento de orgulho só assume um significado positivo na medida em que na situação

concreta de cada família ou de cada trabalhador o acesso a um melhor padrão de vida

em termos económicos continue a apresentar-se como viável. Ainda que o

enquadramento objectivo na condição “proletária” seja inegável, enquanto as

expectativas de ascenção parecerem possíveis do ponto de vista subjectivo, a

correspondência entre a condição de classe e a consciência de classe muito dificilmente

poderá verificar-se. Mas essa é apenas uma vertente do problema. E isto porque ao lado

das questões socioeconómicas que se prendem directamente com a profunda imbricação

entre um mundo industrial e moderno e um mundo rural e pré-moderno há ainda a

dimensão temporal e a forma como as actuais subjectividades (estruturadas dentro e

fora da fábrica) lidam com o passado histórico e as experiências de luta do operariado

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Entre a Fábrica e a Comunidade

285

local. Esse passado traduz-se num registo selectivo e em boa medida ideologicamente

fabricado pelos poderes institucionais (locais e nacionais)172 e ao mesmo tempo num

processo de alheamento em relação às lutas operárias dos chapeleiros de princípios do

século. A opacidade a que essa experiência foi votada não deriva apenas da distância

temporal assim como não é apenas devido à maior proximidade histórica do período

agitado de 1974/75 que muitos trabalhadores continuam a recusar qualquer

identificação com a cultura sindical e revolucionária.

Vale a pena recordar que a concepção aqui proposta toma a consciência de classe

como um aspecto particular da subjectividade concreta dos indivíduos, e não no sentido

essencialista que a ortodoxia comunista atribuía à classe operária, a qual pressupunha a

existência de uma falsa consciência, por oposição a uma verdadeira consciência de

classe, no fundo, a consciência fundada no interesse pelo modelo socialista de

sociedade173. Ou seja, a consciência de classe refere-se sobretudo a conjuntos de

consciências individuais que, por via da sua partilha comum de condições de vida

marcadas pelo mesmo tipo de mecanismos de classe, tendem a favorecer a emergência

de certas subjectividades, práticas sociais e estratégias de acção. Para os efeitos da

análise empírica aqui em causa, trata-se principalmente de apurar a orientação

ideológica de diferentes categorias, a partir das opiniões manifestadas por conjuntos de

indivíduos analiticamente inseridos numa dada localização de classe.

Começo por referir alguns dos items utilizados no inquérito como indicadores da

consciência de classe. O critério que presidiu à selecção destes indicadores ficou a

dever-se, antes de mais, à necessidade de combinar analiticamente elementos

directamente ligados ao campo laboral (relações de produção) com elementos ligados à

172 Veja-se no Capítulo 4 a referência ao paternalismo e bairrismo locais, nos princípios deste século. 173 Sigo aqui a concepção de Wright (1989: 243) no seguimento, aliás, de formulações adiantadas noutro

local (cf. Estanque, 1997: 98-99; e Estanque e Mendes, 1998).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

286

vida social mais geral. Concretamente, temos: no primeiro caso, as questões da

democracia interna das empresas, da participação dos trabalhadores, a questão do lucro

e as representações alternativas ao actual sistema, a questão da colectivização das

empresas (autogestão) e o problema da greve; no segundo caso, estão algumas questões

que vão no sentido de clarificar as representações sociais e atitudes dos inquiridos

quanto às causas da pobreza e da criminalidade. As questões foram apresentadas sob a

forma de afirmações e os resultados correspondem às percentagens de respostas

concordantes com cada uma delas. Outro aspecto decisivo diz respeito à distinção

previamente estabelecida entre formulações abertamente críticas face ao actual sistema

– orientações de sentido emancipatório ou radical –, isto é, abertamente críticas em

relação ao modo de produção capitalista, à disciplina produtiva, à ausência de

democracia participativa e à lógica do lucro (estas são as questões directamente

orientadas para a esfera produtiva); e formulações claramente de índole individualista

ou que apelam aos valores tradicionalistas da lealdade ou da dependência face à

autoridade instituída – orientações de sentido liberal ou conservador –, e que vão ao

encontro da ideologia patronal (estas são as questões mais orientadas para a sociedade).

QUADRO 6.6 - Grau de concordância com opiniões de cariz radical/emancipatório

(%s de concordância para o país e a região )

Afirmações PAÍS REGIÃO

A) Se isso fosse possível, os empregados deveriam participar na

escolha dos directores e gestores

68,4 55,0

B) É possível uma sociedade moderna funcionar bem, sem que

haja a procura do lucro

41,4 10,8

C) Se lhes fosse dada uma oportunidade, os trabalhadores

poderiam gerir as empresas sem precisarem dos patrões

40,7 23,2

D) Os trabalhadores em greve têm razão em impedirem os

colegas não grevistas de irem trabalhar

43,3 19,1

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

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Entre a Fábrica e a Comunidade

287

Mais à frente irei cruzar estes items com as categorias de classe. Para já, vejamos

os resultados globais no que se refere às subjectividades de orientação radical (Quadro

6.6), comparando os dados da região com os do país. Em primeiro lugar, do conjunto

das quatro frases (afirmações) consideradas, o volume de respostas concordantes é

sempre bastante inferior para a região.

Numa primeira leitura, pode concluir-se que, em termos gerais, a população da

região se mostra pouco sensível a orientações de sentido emancipatório. Comparando os

resultados regionais com os da amostra nacional, em todas as questões formuladas o

volume de respostas é claramente inferior na amostra da região (recorde-se que as

percentagens se referem às respostas favoráveis para cada pergunta). Comparando os

índices de respostas favoráveis para as quatro formulações, verifica-se que, tal como

acontece para a amostra nacional é a primeira afirmação que merece maior

concordância, isto é, quer no caso da região, quer da população portuguesa, a maioria

concorda com a ideia de que os empregados deveriam, caso isso fosse possível,

participar na escolha dos directores e gestores das empresas ou instituições em que

trabalham. Há portanto aqui uma sensibilidade maioritariamente favorável à democracia

participativa na vida interna das organizações, sendo que, como referi atrás, essa

maioria é mais clara no caso da amostra nacional (68,4% para 55,0%). Já no que

concerne à possibilidade de uma sociedade funcionar bem sem ser na base da lógica

lucrativa, a força de trabalho desta região evidencia uma nítida rejeição perante um tal

cenário. Se a nível do país as respostas favoráveis continuam a ser significativas,

embora minoritárias (com 41,4%), no caso da região o valor baixa drasticamente para

apenas 10,8%. Esta referência à questão do lucro – que, ao lado da propriedade privada

dos meios de produção, é, como se sabe, a pedra angular da lógica capitalista –, pode,

pois, ser vista como um indicador ilustrativo da percepção subjectiva de modelos

Page 280: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

288

alternativos ao sistema socioeconómico vigente. Apesar de não haver qualquer

referência explícita ao “socialismo”, parece no entanto que tal cenário continua presente

no imaginário de muitos portugueses. Mas, em relação à subamostra desta região não

pode retirar-se a mesma conclusão. Estreitamente relacionada com essa questão surge a

formulação seguinte, que admite – embora sempre como hipótese abstracta – a

possibilidade de os trabalhadores poderem gerir as empresas sem precisarem dos

patrões. Neste caso, a percentagem de respostas afirmativas é claramente abaixo dos

50%, quer na região, quer no país, no primeiro caso com 23,2% de concordância e no

segundo com 40,7%. Esta afirmação é, porventura, aquela que mais claramente terá

levado os nossos inquiridos a recordar as experiências por que passou a sociedade

portuguesa no pós-25 de Abril de 1974. De facto, ao cruzar os resultados desta resposta

com os níveis etários na amostra regional, verificou-se que é nas camadas com mais de

35 anos que é mais evidente uma atitude discordante quanto à possibilidade de os

trabalhadores poderem gerir as empresas sem a presença dos patrões. Voltarei a este

tema no capítulo seguinte, a propósito da análise ao contexto político de S. João da

Madeira no período revolucionário. Por agora, é importante referir que estes resultados

poderão estar ligados à conotação de “bastião anticomunista”, que então foi atribuída à

vila de SJM, na sequência dos primeiros incêndios à sedes dos partidos de esquerda que

aí tiveram lugar no “verão quente” de 75. Tais episódios terão tido um impacto

significativo em amplos sectores populares, inclusivamente no seio dos trabalhadores

industriais. É, portanto, sintomático notar como são sobretudo as camadas mais jovens

que hoje se mostram menos marcadas pelo preconceito ideológico que recusa a

capacidade dos trabalhadores em gerirem as empresas. Quanto à última formulação, que

se refere à acção de piquetes de greve nas empresas, é uma das que mais tende a

evidenciar as clivagens de classe, como se verá. No conjunto das respostas verifica-se,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

289

também neste caso, uma fraca concordância na subamostra regional (19,1%), bastante

inferior ao resultado do país (43,3%), o que igualmente confirma a já assinalada

fragilidade da cultura operária e a desconfiança face ao activismo sindical.

Antes de passar à análise comparativa entre as diferentes localizações de classe,

comparemos os resultados precedentes com os do quadro seguinte (Quadro 6.7), onde se

apresenta um outro conjunto de items, estes assumidamente de valência liberal ou

conservadora. Obviamente, já era de esperar que a um baixo volume de respostas

concordantes com as questões anteriores correspondesse um elevado volume de respostas

de sentido “conservador”. Todavia, a partir dos items do quadro abaixo podemos verificar

a coerência dos anteriores resultados e ao mesmo tempo aprofundar a análise. Ao

contrário do que acontecia nas questões anteriormente mencionadas, neste conjunto de

formulações, os valores regionais estão mais equilibrados com os nacionais. Além disso,

apenas em duas das frases os volumes de concordância são inferiores na região. São elas

as correspondentes aos items C) e D).

QUADRO 6.7 - Grau de concordância com opiniões de cariz conservador/liberal

(%s de concordância para o país e a região)

Afirmações PAÍS REGIÃO

A) Uma das principais razões da pobreza é porque muitas

pessoas pobres não têm inteligência para competir

53,0 85,7

B) Uma das principais razões da pobreza é porque muitas

pessoas pobres não querem trabalhar

66,4 90,9

C) Para fazer baixar a criminalidade os tribunais deveriam dar

penas mais pesadas aos criminosos

84,9 81,9

D) Se os pais castigassem mais os filhos enquanto pequenos,

haveria menos crime e delinquência

49,0 28,7

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

Começando pela última, a afirmação de que “se os pais castigassem mais os filhos

enquanto pequenos haveria menos criminalidade”, a amostra regional revela-se menos

concordante (28,7%), do que a nacional (49%). Se, no caso da amostra nacional, essa

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Entre a Fábrica e a Comunidade

290

atitude é mais visível nos sectores mais idosos e menos escolarizados, já na amostra

regional, onde a população é mais jovem mas também menos escolarizada, torna-se

difícil saber-se com rigor qual desses efeitos estará aqui presente ou se os mesmos se

poderão neutralizar mutuamente. Pode apenas dizer-se que a população da região se

mostra menos conservadora do que a população portuguesa na defesa de uma educação

mais autoritária e tradicionalista. Quanto ao item C) – a ideia de que “para fazer

diminuir o crime devem aplicar-se penas mais pesadas aos criminosos” – os resultados

da região são menos concordantes do que no país, embora com uma diferença de apenas

3%. O importante a reter é que mais de 80% de ambas as amostras (regional e nacional)

concorda com essa opinião. Relativamente às outras duas formulações incluídas no

quadro acima – items A) e B) –, qualquer delas tem um conteúdo liberal, apontando

razões individuais como justificação para a existência de pobreza. É pobre quem não

tem inteligência para competir no mundo de hoje e/ou quem não quer ou não gosta de

trabalhar. Um discurso ideológico que objectivamente vai ao encontro dos interesses de

quem conquistou na vida “um lugar ao sol”, em coerência com a pura lógica de

mercado. Porém a consciência social das classes trabalhadoras é, como se sabe,

permeável a lógicas subtis e a força das ideologias é tão poderosa que leva muitas vezes

os mais oprimidos a justificar a opressão servindo-se dos argumentos dos próprios

opressores. Seja como for, cabe ao cientista social, mais do que enveredar por caminhos

moralistas, tentar encontrar a via adequada para interpretar tais fenómenos. Os

resultados são claros a este respeito, mostrando a concordância da maioria dos

portugueses com as duas afirmações, quer a nível nacional, quer de forma ainda mais

inequívoca no caso da subamostra da região: 85,7% para a primeira formulação e cerca

de 91% para a segunda.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

291

Passemos agora à análise dos mesmos resultados mas desta vez comparando-os

para as diferentes localizações de classe. Neste caso, embora continue a fazer referência

aos resultados nacionais, centrar-me-ei sobretudo na região. Genericamente já se viu

que, enquanto as atitudes mais radicais obtiveram pouca adesão ao nível da região, as

orientações de cariz conservador revelaram grande acolhimento.

Observemos então as principais clivagens de classe, a este propósito. Nota-se,

desde logo, que as categorias mais desapossadas de recursos partilham mais

abertamente orientações emancipatórias do que as categorias privilegiadas. Ou seja, se

compararmos as respostas da localização proletária com as dos patrões, vemos que, de

um modo geral, os primeiros são claramente mais radicais do que os segundos. Se o

grau de radicalismo aumentasse na mesma medida em que nos movemos ao longo da

tipologia das categorias mais dotadas de recursos para as mais desapossadas174, dir-se-

ia que se confirma a hipótese da determinação da estrutura de classes sobre a

consciência de classe. Porém, desde o início que procurei rejeitar pressupostos lineares

e unicausais, pois, só uma análise pluridimensional pode dar visibilidade a uma

realidade social tão complexa e multifacetada como esta.

Prossigamos, pois, o nosso caminho. Contrapondo proletários e patrões facilmente

se percebe – como atrás se viu – que os primeiros são genericamente mais radicais (ou

seja, mais críticos do sistema) do que os segundos. Todavia, ao considerar as cinco

localizações de classe aqui em causa, é necessário ponderar outros factores. Vejamos

como.

Começando pela análise das formulações de orientação radical, verifica-se

efectivamente que o grau de adesão às afirmações de valência emancipatória tende a

aumentar quando se percorrem as diferentes categorias no sentido vertical e na direcção

Page 284: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

292

de cima para baixo: patrões; pequena burguesia; gestores e supervisores; técnicos e

trabalhadores semiqualificados; e proletários. Dos primeiros para os últimos parece

notar-se uma crescente adesão a cada uma daquelas afirmações. Não pode, porém,

esquecer-se que as agregações efectuadas entre as diferentes categorias (resultado da

fraca representatividade de algumas delas na região), impedem a identificação de

diferenças significativas no campo das atitudes, nomeadamente entre categorias com

elevados recursos educacionais e as menos escolarizadas175.

QUADRO 6.8 - Comparação entre atitudes de valência radical/emancipatória, por

categorias de classe (%s de concordância para o país e a região)

Afirmações*

Categorias de

classe

A) Se isso fosse

possível, os

empregados

deveriam

participar na

escolha dos

directores e

gestores

B) É possível

uma sociedade

moderna

funcionar bem,

sem que haja a

procura do lucro

C) Se lhes fosse

dada uma

oportunidade,

os trabalhadores

poderiam gerir

as empresas

sem precisarem

dos patrões

D) Os

trabalhadores

em greve têm

razão em

impedirem os

colegas não

grevistas de

irem trabalhar

PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG

Patrões 47,1 33,3 27,3 7,2 21,5 3,4 19,7 0,3

Peq. Burguesia 66,7 39,5 43,4 2,4 29,7 1,9 45,1 17,8

Gestores/Superv 65,6 58,8 37,1 15,8 31,7 10,0 37,1 15,0

Técnicos/Trab SQ 78,1 72,7 41,2 20,0 40,4 36,4 29,0 21,4

Proletários 71,4 60,6 45,0 12,6 51,3 30,3 51,8 18,0

TOTAIS 68,4 55,0 41,4 10,8 40,7 23,2 43,3 19,1

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

* No caso da amostra regional as não-respostas e recusas (N/S; N/R) variam entre 2 e 30 e no caso da

amostra nacional entre 37 e 243, consoante os items (dado que se tratou de perguntas autónomas). Os

valores das células referem-se às percentagens de respostas concordantes para cada uma das

formulações.

174 Isto é, considerando a matriz geral das doze localizações, se percorrêssemos a grelha na diagonal, da

célula superior esquerda para a inferior direita. Ver no início deste capítulo, Tabela 6.1. 175 No presente modelo simplificado das localizações de classe as diferenças no critério das credenciais

apenas são visíveis entre os proletários e a categoria que aqui se designa como “técnicos e trabalhadores

semiqualificados”. É devido a estas agregações que fui forçado a fazer que os resultados da consciência de

classe são mais coerentes do que os detectados na abordagem que anteriormente efectuámos, com as doze

localizações de classe e onde se verificou uma configuração com maiores índices de consciência anti-

capitalista nos gestores qualificados, nos supervisores (semiqualificados e não-qualificados) e nos

técnicos não gestores (Estanque e Mendes, 1998).

Page 285: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

293

Na comparação entre os resultados da amostra nacional e os da região para cada

categoria de classe, o grau de concordância é – em todos os items e em todas as

categorias de classe – maior no primeiro caso, o que, aliás, está em coerência com o que

atrás se viu sobre os resultados globais. Para além da mais fraca adesão regional, nota-

se também uma maior divergência entre as diferentes localizações de classe (em

especial no caso das categorias proprietárias comparadas com as dos assalariados).

Deste modo, poder-se-á pensar que, ao nível da região, a propriedade de meios de

produção é um factor determinante na consciência subjectiva dos indivíduos (pelo

menos é-o de forma mais nítida do que a nível nacional, como revelam os números do

Quadro 6.8).

Quanto à possibilidade de a sociedade poder funcionar sem a procura do lucro e

das empresas serem geridas pelos trabalhadores, a diferença de atitudes é

particularmente nítida: enquanto os patrões e a pequena burguesia revelam percentagens

quase sempre abaixo dos cinco pontos, nas posições assalariadas as respostas sobem

para valores geralmente três ou quatro vezes superiores. É claro que se trata de

diferenças relativas e estamos a lidar com percentagens muito baixas, mas a

regularidade com que tais diferenças surgem não deixa de ser uma indicação que

merece ser levada em conta176. Geralmente, os empregadores tendem a mostrar-se

mais abertos perante questões colocadas de forma abstracta e vaga, como é o caso, por

exemplo do primeiro item (A), “se isso fosse possível…” – que teve a concordância de

47,1% dos patrões a nível nacional – mas, quando confrontados com problemas que

apontam directamente para as relações laborais como, por exemplo, as questões do

176 Deliberadamente, foi deixada de fora desta análise uma questão referente ao “demasiado poder das

grande empresas no país” e ainda uma outra que afirmava que “as grandes empresas beneficiam os seus

proprietários à custa dos trabalhadores e consumidores” (cf. Estanque e Mendes, 1998). Quer no país quer

na região essas questões revelaram um grau de concordância esmagador, sem contudo se detectarem

diferenças significativas entre as respostas dos assalariados e as dos empregadores, o que, obviamente se

Page 286: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

294

lucro ou da greve, a sua condescendência diminui ou desaparece, como os números

anteriores bem expressam (Quadro 6.8). Também de forma mais visível do que nos

resultados do país, a pequena burguesia da região distancia-se face às atitudes dos

assalariados. Por exemplo, relativamente à possibilidade de um modelo de sociedade

sem o princípio do lucro e à prática da autogestão, a pequena burguesia desta região

mostra-se vigorosamente contra do que o pequeno patronato.

A categoria de classe que dá mostras de uma maior adesão a essas atitudes é a dos

“técnicos e trabalhadores semiqualificados”, surgindo quase sempre os proletários em

segundo lugar. No entanto, apenas no que toca à ideia da participação dos trabalhadores

na escolha dos seus directores e gestores (item A) existe uma clara maioria favorável,

com 72,7% de respostas concordantes, seguindo-se os proletários, também em maioria

clara, com 60,6% de respostas afirmativas. Esta é, aliás, a única das quatro formulações

em que as três categorias assalariadas se mostraram maioritariamente concordantes. Em

todas as restantes questões, os assalariados de menores recursos (proletários e técnicos e

trabalhadores semiqualificados) são geralmente mais favoráveis do que as categorias

proprietárias mas, ainda assim, os números são quase sempre bastante abaixo dos

50%177. Não pode portanto dizer-se, a partir destes resultados, que se verifica uma

consciência anti-capitalista por parte da classe trabalhadora, mas apenas que,

comparativamente aos empregadores e à pequena burguesia (ou mesmo em relação à

localização intermédia dos gestores e supervisores), os mais desapossados são mais

críticos em relação ao sistema. Acresce que entre as duas categorias de classe sem

autoridade nas relações de produção (“proletários” e “técnicos e trabalhadores

semiqualificados”) há uma diferença substancial entre a amostra nacional e a regional.

prende com o elevado peso global do pequeno patronato e com o facto de estes se sentirem preteridos (em

apoios do Estado e da banca, nomeadamente) face à influência dos grandes empresários. 177 Excepções são, neste caso, a maioria dos proletários da amostra nacional que concordam com as

afirmações C e D.

Page 287: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

295

Enquanto a nível do país são os proletários que (à excepção do primeiro item) se

mostram mais concordantes com as afirmações críticas, no caso da região são em todas

as questões os “técnicos e trabalhadores semiqualificados” quem mais partilha essas

afirmações. Ou seja, a ausência de posições de autoridade combinada com a posse de

níveis elevados de credenciais escolares resulta em atitudes subjectivas mais

contestatárias.

Mas, ainda que estes indicadores sejam pertinentes para a análise da consciência

de classe, eles não permitem, como disse, tirar conclusões definitivas. Ao longo da

presente dissertação tenho evitado estabelecer uma separação rígida entre a esfera

laboral e a da comunidade, acentuando antes a forma como ambas as dimensões, vistas

na sua mútua permeabilidade, podem ajudar-nos a compreender os aspectos específicos

da classe trabalhadora do calçado. Embora as identidades colectivas do operariado

sejam em larga medida estruturadas no espaço da produção, são-no sempre na base de

referências, valores e habitus – considerem-se eles de classe, comunitários ou de

trajectórias pessoais – que os indivíduos incorporaram nas suas experiências de vida,

sempre multifacetadas. O impacto das culturas locais e dos mecanismos de inculcação

sobre as percepções subjectivas faz-se sentir no interior da produção e fora dela. Nesse

sentido, pode dizer-se que as práticas ou as subjectividades de classe não são de facto

exclusivamente “de classe”. A classe é, enquanto categoria analítica, um conceito em

reformulação e, enquanto fenómeno sociológico, uma dimensão da vida social

fortemente impregnada por elementos exteriores às relações de produção.

A apresentação dos resultados relativos a afirmações que considerei de sentido

conservador ou liberal, apesar de situadas num nível relativamente genérico, podem

igualmente ser analisados à luz da problemática da consciência de classe. Interpretando

os resultados do quadro seguinte (Quadro 6.9) o que sobressai é, antes de mais, a grande

Page 288: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

296

homogeneidade das respostas entre as diferentes categorias de classe. Além da

proximidade dos índices de concordância ser evidente, há mesmo situações em que as

localizações mais desapossadas, como os proletários, revelam índices de adesão às

atitudes conservadoras muito semelhantes aos do patronato (ao contrário do que

acontecia nas formulações de sentido emancipatório, anteriormente vistas). A opinião

quanto à falta de inteligência dos pobres como justificação da sua condição é ilustrativa

a esse respeito (mais claramente no caso da amostra nacional), assim como a afirmação

favorável a uma educação autoritária – com base no castigo dos filhos enquanto

pequenos – como forma de diminuir a criminalidade vai nesse sentido (principalmente

na amostra regional). Estas duas situações mostram que a localização proletária

evidencia por vezes índices de conservadorismo muito idênticos ou até mais acentuados

do que os do patronato, um resultado que difere bastante dos anteriores quanto às

orientações radicais. Apenas nos dois últimos items (C e D) as respostas concordantes

da amostra regional revelam valores inferiores aos resultados do país.

QUADRO 6.9 - Comparação entre atitudes de valência conservadora/ liberal, por

categorias de classe, para o país e a região (%s de concordância)

Afirmações

Categoria de

classe

A) Uma das

principais razões

da pobreza é

porque essas

pessoas não têm

inteligência para

competir

B) Uma das

principais razões

da pobreza é

porque muitas

pessoas pobres

não querem

trabalhar

C) Para fazer

baixar a

criminalidade os

tribunais

deveriam dar

penas mais

pesadas aos

criminosos

D) Se os pais

castigassem mais

os filhos enquanto

pequenos, haveria

menos crime e

delinquência

PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG

Patrões 51,9 92,3 75,6 100,0 88,6 83,3 49,3 21,5

Peq. Burguesia 66,1 85,4 79,6 91,3 92,9 90,8 73,5 34,6

Gestores/Superv 50,4 73,7 61,1 100,0 72,8 75,0 43,9 30,0

Técnicos/Trab SQ 30,3 71,4 44,9 71,4 72,2 61,5 29,4 7,1

Proletários 53,8 87,4 65,1 89,9 87,3 81,1 44,3 29,8

TOTAIS 53,0 85,7 66,4 90,9 84,9 81,9 49,0 28,7

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

Page 289: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

297

Ou seja, no que se refere a infligir castigos aos filhos como terapia para o crime, a

população da região mostra-se mais renitente do que a sociedade portuguesa no seu

conjunto. Dir-se-á que a adesão de categorias de classe como a dos proletários a atitudes

conservadoras parece sublinhar a força das ideologias, visto que, apesar das distâncias

sociais “objectivas”, os sistemas simbólicos e discursivos em que se movem as classes

mais exploradas se apresentam aqui bastante consonantes com os valores de uma

mentalidade burguesa e “novo-rica”.

6.4 - Opiniões sobre a sociedade e os problemas sociais

A questão da estatização de diversos serviços e empresas foi inserida no

questionário com a introdução de uma pergunta destinada a saber se os inquiridos eram a

favor ou contra uma gestão estatal ou privada em diferentes empresas ou serviços178. Os

resultados nacionais revelaram valores claramente mais favoráveis à gestão pelo Estado

por parte das diversas categorias de classe. Destacaram-se sobretudo a pequena burguesia

(em especial o sector agrícola) e os proletários como as categorias mais favoráveis à

estatização. Por outro lado, os técnicos não-gestores e os gestores qualificados

apresentaram-se como os menos favoráveis à estatização. Esses resultados foram

interpretados como reveladores de que os sectores populares – estando embora

geralmente mais alheados da vida política e institucional – constróem subjectividades

tendentes a ver no Estado o principal garante de segurança e de protecção, enquanto, por

outro lado , os segmentos das novas classes médias (técnicos não-gestores, gestores e

quadros da administração pública) se mostram mais sensíveis às deficiências e bloqueios

da máquina burocrática ao mesmo tempo que parecem acreditar mais nas virtudes do

capital privado (cf. Estanque e Mendes, 1998: 178).

178 Para cada um desses serviços ou sectores – como os correios, a EDP, os transportes ferroviários, as

universidades, as escolas secundárias, hospitais, banca, etc. –, pedia-se aos inquiridos para indicarem a sua

preferência relativamente a uma gestão estatal, privada ou mista.

Page 290: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

298

No caso da subamostra regional, a atitude pró-estatização é menos evidente.

Apenas quanto aos hospitais, escolas secundárias, bombeiros e transportes urbanos, os

valores obtidos confirmam a tendência estatizante. A distribuição dos resultados pelas

categorias de classe não permite, porém, estabelecer distinções significativas. Em

actividades como os correios, os transportes ferroviários, a EDP e a banca, por exemplo,

as respostas oscilaram entre os 20% e os 40% sem que se detectassem quaisquer

regularidades entre as categorias de classe. Deve, portanto, reter-se que ao nível desta

região a tendência favorável à gestão estatal da economia obtém pouca adesão, ou seja,

há uma maior atracção pela lógica de mercado e da privatização. Já se viu como a

economia concorrencial é, neste contexto, particularmente forte. Daí que, a referida

dependência simbólica e ideológica relativamente ao papel do Estado na economia seja

pouco significativa.

QUADRO 6.10 - Opinião sobre as desigualdades sociais

(%s por categorias de classe)

Opiniões comparadas País/ Região

Categorias de classe Mais

acentuadas

Menos

acentuadas

Iguais

PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG

Patrões 37,8 34,6 47,6 42,3 14,6 23,1

Peq. Burguesia 44,0 36,4 40,4 41,8 15,6 21,8

Gestores/Superv 60,6 60,0 28,4 30,0 11,0 10,0

Técn/ Trab SQ 61,0 66,7 26,2 25,0 12,8 8,3

Proletários 54,7 39,1 27,6 46,8 17,7 14,1

TOTAIS 52,5 40,9 31,9 43,1 15,6 16,0

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

Passemos agora à análise das opiniões sobre as desigualdades sociais na sociedade

portuguesa, continuando a comparar os resultados regionais com os nacionais. A pergunta

referia-se neste caso à situação do país, pedindo-se uma opinião sobre se, em comparação

Page 291: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

299

com o passado recente (desde há cerca de dez anos atrás), as desigualdades sociais são

hoje179 mais acentuadas ou menos acentuadas.

Vejamos o Quadro 6.10. Os resultados mostram que enquanto para a maioria da

população do país (52,5%) as desigualdades sociais estariam mais acentuadas, enquanto

para a amostra regional apenas 40,9% partilha essa opinião. Como se vê, os valores não

apresentam diferenças muito marcantes quando comparamos as diversas categorias de

classe de ambas as amostras. Apenas é de realçar o caso dos proletários, que revelam

resultados mais discrepantes na comparação entre as duas amostras. Para além disso, os

patrões e a pequena burguesia evidenciam também algumas discrepâncias, embora mais

débeis. Na amostra nacional é maior a percentagem dos patrões que concorda que as

desigualdades são mais acentuadas (37,8% contra 34,6% da amostra da região) mas,

paradoxalmente, é também maior o número dos que afirmam que as desigualdades são

menos acentuadas (47,6% contra 42,3 % da amostra da região). E isto porque na amostra

regional as categorias proprietárias indicaram um número mais elevado de respostas

neutras, afirmando que a situação se mantém idêntica, ou seja, que as desigualdades não

se agravaram nem diminuíram.

Nos proletários, parece sobressair a mesma tendência já referida a propósito da

consciência de classe. De facto, os resultados reforçam a ideia de que a classe operária

desta zona se mostra mais conformada ou mesmo parcialmente “satisfeita” com a sua

própria situação socioeconómica. Mais abaixo procurarei confrontar estes resultados

com a opinião sobre as expectativas em relação ao futuro. Como se pode ver no quadro

anterior, enquanto no país uma maioria de 54,7% de proletários é de opinião que as

desigualdades sociais estão mais acentuadas, na região apenas 39,1% da mesma

categoria partilha essa opinião. E os números invertem-se claramente quando se passa

179 Isto é, à data de aplicação do questionário, em meados de 1995.

Page 292: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

300

para a opinião contrária, com apenas 27,6% da categoria proletária do país a concordar

que as desigualdades estão menos acentuadas contra 46,8% ao nível da amostra

regional180. Se, quanto às desigualdades sociais do país, os trabalhadores desta região

denunciam um certo optimismo, ou pelo menos, um menor dramatismo do que a

população nacional, a opinião recolhida sobre as expectativas da família em relação ao

futuro próximo, vem reforçar essa mesma ideia. Veja-se a esse propósito o quadro

seguinte (Quadro 6.11). Os resultados confirmam aquele optimismo, já que a opinião

quanto ao futuro dos próximos anos é francamente animadora: 68,3% acredita que a

situação da família irá melhorar (contra apenas 50,7% da população do país).

QUADRO 6.11 - Opinião sobre a situação económica da família para os próximos

anos (%s por categorias de classe)

Opiniões comparadas País/ Região

Categorias de classe será melhor será pior ficará na mesma

PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG

Patrões 48,1 68,1 24,7 4,5 27,3 27,3

Peq. Burguesia 27,6 44,7 39,0 6,4 33,5 48,9

Gestores/Superv 62,2 77,8 11,9 11,1 25,9 11,1

Técn/ Trab SQ 57,1 66,7 15,3 0,0 27,6 33,3

Proletários 57,0 74,4 14,3 6,7 28,7 17,9

TOTAIS 50,7 68,3 20,2 7,1 29,1 24,7

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

N/S, N/R: país - 95; região - 44.

À excepção da pequena burguesia, uma classe cuja maioria não espera ver

melhorada a sua situação económica (principalmente no país, mas também nesta

região), todas as outras categorias de classe são muito optimistas a esse propósito, não

se verificando grandes diferenças entre si. Os proletários são ainda mais optimistas do

que os patrões (74,4% para 68,1%) e só são ultrapassados nessa expectativa positiva

pelos gestores e supervisores, com 77,8% de respostas nesse sentido. No caso da

180 Deve, porém, ter-se em conta que essa opinião optimista apenas o é em termos relativos, já que, os

39,1% de respostas negativas (de que as desigualdades se agravaram) somados aos 14,1% de respostas

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Entre a Fábrica e a Comunidade

301

amostra nacional, verifica-se igualmente um sentido positivo, principalmente nas

localizações dos assalariados. Logo, estes resultados – quer os da região quer os do país

–, contrariam claramente o estereótipo de que os portugueses são pessimistas.

Se, por um lado, as expectativas face ao futuro traduzem a forma como as pessoas

se posicionam em relação à sociedade, por outro lado, as representações em relação à

sociedade são também indicadores preciosos da forma como as pessoas encaram as suas

perspectivas de vida e os seus próprios problemas. Esta questão coloca-se na análise do

próximo quadro de resultados. Os valores que aí se apresentam (ver Quadro 6.12)

referem-se a uma pergunta colocada no questionário em que se pedia aos inquiridos

para seleccionarem, por ordem de prioridades, os três problemas sociais que na sua

opinião deveriam merecer maior atenção da parte do governo. A mesma questão foi

igualmente incluída no inquérito nacional, mas não se apresenta aqui o respectivo

quadro de resultados (cf. Estanque e Mendes, 1998: 183).

A partir da listagem de problemas sociais apresentada, os resultados mais

relevantes para a população activa portuguesa foram os seguintes, por ordem

decrescente de importância (enquanto 1º problema): os serviços de saúde (29,8%), o

desemprego (20,8%), e a pobreza (14,7%). Com algumas excepções, estes resultados

distribuem-se de forma relativamente uniforme pelas diferentes localizações de classe.

Além disso, é apenas de referir que o ensino mereceu também alguma preocupação,

principalmente por parte das categorias mais escolarizadas, assim como os baixos

salários e a falta de casas, principalmente por parte dos proletários. Vejamos então os

resultados do Quadro 6.12 relativos à subamostra da região. Em termos globais

sobressaem como problemas mais assinalados, na primeira opção (1º problema), os

serviços de saúde (21,7%), os baixos salários (21,4%) e o desemprego (14,9%). Como

segunda opção (2º problema) aparecem, por ordem decrescente, o desemprego (23,5%),

neutras constituem uma maioria de 53,2%.

Page 294: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

302

os serviços de saúde (17,3%) e o ensino (11,1%). Comparativamente com os resultados

nacionais acima referidos surge, antes de mais, a maior preocupação com os baixos

salários em detrimento do item referente à pobreza. Já se sabe que a pobreza se liga

directamente à questão do nível salarial, assim como ao desemprego. Mas, a atenção

dedicada aos baixos salários é sintomática da realidade da região onde os salários

praticados na indústria se situam efectivamente abaixo da média nacional. No que toca à

distribuição dos resultados pelas categorias de classe refira-se que, no caso do

proletariado, a preocupação com os baixos salários é maior do que em qualquer das

outras categorias, seguida de perto pela questão dos serviços de saúde, surgindo o

desemprego em terceiro lugar. Curiosamente, em relação ao desemprego, os proletários

parecem de facto menos preocupados do que as restantes localizações (exceptuando os

patrões). A pequena burguesia dá também uma atenção assinalável aos baixos salários

(23,2%) e também ao desemprego (17,9%).

QUADRO 6.12 - Principais problemas da sociedade (%s por categorias de classe)

Categorias de classe(problemas sociais assinalados em 1º e em 2º lugar)

Problemas

Patrões Pequena

Burguesia

Gest/

Superv

Técn/ Trab

SQ

Proletários TOTAIS

1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr

Serviços de Saúde 21,4 18,5 12,5 17,3 35,0 15,0 21,4 35,7 23,2 15,9 21,7 17,3

Ensino 10,7 14,8 3,6 5,8 - 15,0 21,4 28,6 6,8 10,2 6,8 11,1

Lentidão Tribunais 3,6 - 1,8 3,8 - - - - 0,6 1,1 1,0 1,4

Insegur nas Ruas 7,1 11,1 1,8 - - 5,0 - - 2,8 2,8 2,7 3,1

Falta prot Velhice - 3,7 3,6 13,5 - 5,0 - - 4,0 5,1 3,1 6,2

Pobreza 7,1 3,7 10,7 9,6 5,0 10,0 - - 5,1 8,5 6,1 8,0

Falta de Casas - 3,7 1,8 3,8 5,0 10,0 - - 4,5 4,5 3,4 4,5

Corrupção 17,9 18,5 12,5 3,8 5,0 5,0 - 7,1 3,4 2,3 6,4 4,5

Poluição - 3,7 1,8 - - - - - 1,1 3,4 1,0 2,4

Desemprego 3,6 7,4 17,9 23,1 25,0 20,0 28,6 7,1 13,6 27,8 14,9 23,5

Baixos Salários 10,7 11,1 23,2 5,8 10,0 5,0 14,3 14,3 24,3 11,9 21,4 10,4

Outros 17,9 3,7 8,9 13,5 15,0 10,0 14,3 7,1 10,7 6,3 11,5 7,6

N = 295 (1º problema) e N = 289 (2º problema)

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

Page 295: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

303

O patronato mostra-se mais interessado na resolução dos problemas ligados aos

serviços de saúde (21,4%), à corrupção (17,9%), aos problemas do ensino e aos baixos

salários (ambos com 10,7%). Não é possível identificar as respostas referentes a

“outros” problemas, que, no caso dos patrões atingem 17,9% de referências. É

sintomático que, mesmo os patrões, refiram os baixos salários como um dos problemas

de relevo. Na verdade, conforme pude comprovar através de entrevistas a alguns

empresários, perante essa questão apressam-se geralmente a reconhecer os baixos níveis

salariais praticados. Mas, de seguida justificam a situação com a “crise” e os problemas

da indústria. Uma afirmação que é recorrente no caso dos patrões do calçado.

Efectivamente – e como também se verá no Capítulo 8, centrado na observação

participante – é notório o esforço dos proprietários para se mostrarem sensíveis (em

termos de opinião) aos problemas sociais e preocupados com o bem-estar dos

trabalhadores. Esta questão, ao lado da preocupação com a corrupção (17,9%) é também

algo que nos deve fazer reflectir. Se, no primeiro caso, se trata do discurso paternalista

do pequeno e médio patronato (cuja prática se caracteriza sobretudo pelo autoritarismo

em relação aos trabalhadores), no segundo (a questão da corrupção) estamos perante

uma atitude patronal de descontentamento em relação às instituições políticas e à prática

governativa. Como os números indicam, essa é uma preocupação principalmente das

categorias de classe proprietárias (patrões e pequena burguesia).

Quanto às localizações intermédias, refira-se, primeiro, a atenção dedicada pelos

gestores e supervisores aos problemas de saúde, o que parece ligar-se ao facto de esta

ser uma categoria com uma média etária relativamente mais avançada. Em segundo

lugar, a maior preocupação com o desemprego é partilhada por aquela categoria e pelos

técnicos e trabalhadores semiqualificados. Este resultado não deixa de ser curioso, já

que normalmente são os mais desapossados de recursos as maiores vítimas da falta de

Page 296: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

304

empregos181. No caso desta região, além do desemprego ser globalmente pouco

significativo (como se viu no Capítulo 3), a oferta de emprego é menor para as

categorias mais qualificadas, o que se liga à natureza da estrutura industrial de um

sector fortemente apoiado na mão-de-obra intensiva. Acresce que, os técnicos e

trabalhadores semiqualificados são uma categoria jovem, com recursos escolares mais

elevados e com naturais expectativas de promoção. Quanto aos gestores e supervisores,

embora com posições relativamente estabilizadas no mercado de trabalho, sentem como

uma ameaça o discurso da crise e o espectro das falências, principalmente tendo em

conta a média etária relativamente avançada desta categoria.

Relativamente aos problemas indicados pelos inquiridos como segunda prioridade

(o segundo problema), continuam a surgir o desemprego e a saúde como factores de

maior preocupação, antes de outras questões como os baixos salários e o ensino, por

exemplo. Tal como já acontecia no caso da primeira prioridade, em relação ao ensino

são as categorias com mais elevados níveis de escolaridade que maior importância lhe

atribuem. Também os baixos salários, o desemprego e a pobreza continuam a assumir-

se como os temas a suscitar maiores preocupações.

6.5 - Atitudes políticas, práticas associativas e acções de protesto

As orientações políticas e o grau de envolvimento em estruturas organizativas,

bem como em acções de protesto público, poderão ajudar-nos a perceber a relação entre

as posições ocupadas na estrutura de classes e a maior ou menor participação dos

membros de cada categoria na intervenção social e política. Começarei com a análise

das orientações político-ideológicas no leque de posições de “esquerda”, de “centro” e

de “direita”. Esta tipologia resulta de uma escala colocada no questionário que oscilava

entre o valor 1 (posição totalmente de esquerda) e o valor 7 (posição totalmente de

181 O que é também comprovado pelos resultados da amostra nacional, onde são os proletários que mais

Page 297: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

305

direita); o valor 4 correspondia a uma posição neutra (de centro). Dada a concentração

das respostas em posições moderadas – uma vez que a grande maioria oscilava entre os

valores 4 e 6 –, decidiu-se agregar as diferentes tendências nestas três opções182.

QUADRO 6.13 - Distribuição das atitudes políticas segundo a categoria de classe,

comparação país - região (%s por categorias de classe)

PORTUGAL* REGIÃO**

Categorias

de classe

Esq C

e

n

t

r

o

Direita Esq Centro Direita

Patrões 24,6 40,7 34,6 46,1 23,1 30,8

Pequena Burguesia 26,1 27,6 46,3 52,2 23,9 23,9

Gestores/ Superv 32,9 27,1 40,0 35,3 41,2 23,5

Técn/ Trab Semiqualif 46,0 33,7 20,4 61,5 23,1 15,4

Proletários 43,4 33,6 22,9 50,3 27,2 22,4

TOTAIS 37,5 32,6 29,9 49,8 26,9 23,3

* País: N/S, N/R = 110 (N=991); **Região: N/S, N/R = 50 (N=249)

No quadro abaixo comparam-se os valores obtidos para a região e para o país.

Numa primeira leitura sobressai, desde logo, a maior tendência de esquerda na amostra

regional em comparação com os resultados do país (49,8% para 37,5%)183.

assinalaram o desemprego como a principal fonte de preocupações (cerca de 26%). 182 Considerei os valores de 1 a 3 como “de esquerda”, os valores de 5 a 7 como “de direita” e o valor 4

como “de centro”. Com base neste critério, agregaram-se as respostas e construiu-se o quadro a seguir

apresentado. Ver no final, Anexo 1, pergunta 191. 183 Na verdade, estes resultados têm uma correspondência bastante fiel em relação àquilo que se verificou

nas eleições legislativas de Outubro de 95, altura em que o PS reforçou a sua influência nos três

concelhos, tendo subido substancialmente em todos eles (cerca de 20 pontos percentuais), e assistiu-se a

uma descida muito acentuada do PSD em relação a 1991. Os resultados verificados nesta eleição foram de

facto particularmente favoráveis ao PS e foram-no ainda mais nesta região do que no país. Números

aproximados, em Stª. Maria da Feira o PS teve 49% dos votos, contra cerca de 38% para o PSD, em

Oliveira de Azeméis, o PS teve cerca de 42%, contra 40% do PSD, e em S. João da Madeira, o PS

aproximou-se dos 50%, enquanto o PSD desceu de 50 para pouco mais de 30% relativamente a 1991.

Quanto ao CDS-PP, também no mesmo período, subiu cerca de 4% em média, situando-se o seu peso

eleitoral (em eleições legislativas) nos cerca de 12%. Em relação às eleições autárquicas, o CDS-PP tem

em geral mais força eleitoral nesta região, à excepção do concelho de Stª. Maria da Feira, onde se situa na

ordem dos 6-7%. Nas autárquicas de 97 estabilizou nesse concelho, subiu substancialmente em Oliveira

de Azeméis (em relação a 1993, passou de 9 para 20% na Assembleia Municipal, de 7 para 14% nas

Assembleias de Freguesia, e de 10 para 15% na Câmara Municipal) e no caso de S. João da Madeira, onde

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Entre a Fábrica e a Comunidade

306

Aparentemente, o autoposicionamento político parece contradizer os resultados atrás

apresentados acerca das atitudes radicais e conservadoras. Dado que o inquérito foi

aplicado na região numa altura próxima do acto eleitoral de Outubro de 1995, é possível

que se tenha feito sentir o efeito do discurso eleitoral. Mas, apesar da identificação com

a esquerda ser superior na amostra regional do que na nacional em todas as categorias

de classe, as maiores discrepâncias referem-se às duas categorias proprietárias. No caso

dos patrões, a percentagem dos que se identificam com a esquerda é de 46,1% contra

apenas 24,6% na amostra do país e no que se refere à pequena burguesia o resultado é

de 52,2% na região contra 26,1% no país. Também em relação aos técnicos e

trabalhadores semiqualificados as respostas favoráveis a uma identificação com a

esquerda passam de 46% na amostra do país para 61,5% na amostra da região e no caso

dos proletários o resultado sobe de 43,4 para 50,3%. Os gestores e supervisores são a

única categoria que, apesar de subir em relação ao resultado do país, se mantém nos

35,3%, o que faz com que essa seja a única categoria de classe que, em termos relativos,

se situa maioritariamente ao “centro” (41,2%).

Os posicionamentos político-ideológicos podem ser uma indicação interessante

para equacionar as subjectividades de classe com as respectivas práticas. Nessa medida,

interessa dar atenção ao envolvimento e participação dos indivíduos em estruturas

organizadas ou em iniciativas colectivas a fim de se avaliar o significado sociológico

dessas práticas. Dito de outro modo, há que ter em conta as acções concretas em que os

sujeitos se inserem para que se possa aferir o seu significado sociológico. A questão do

associativismo é um campo importante para desenvolver uma análise dessa natureza. O

desde 1979 detém a presidência da Câmara com Manuel Cambra (que apesar dos problemas que teve com

a justiça em meados da década de 80, continuou a ter a confiança dos sanjoanenses, embora sem maioria

absoluta) a manter a presidência nas últimas eleições, apesar da significativa descida, ficando com uma

vantagem inferior a 2% em relação ao PS (33,17% para 31,32%). Entretanto o PCP-CDU, o máximo que

conseguiu em Outubro de 95 foi manter os cerca de 5% de votos em SJM, estabilizando a sua magríssima

implantação nos outros dois concelhos.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

307

tipo de práticas associativas pode indicar não apenas o sentido estratégico da acção

colectiva, mas também algo acerca das experiências socioculturais dos indivíduos e dos

seus modos de vida. Pode dizer-se – na linha do pensamento weberiano – que as classes

puramente económicas raramente dão lugar a acções colectivas e, portanto, quando tais

acções têm lugar é de esperar que os indivíduos nelas envolvidos, além de serem

detentores de recursos ou interesses económicos semelhantes, partilhem ainda certas

formas de identificação subjectivas baseadas na experiência quotidiana de um mesmo

contexto sociocultural. A acção colectiva nunca é totalmente racional e menos ainda

quando os trabalhadores partilham os mesmos modos de vida comunitários dos

ambientes habitacionais que rodeiam as fábricas. Importa então cruzar a divisão

classista com as práticas efectivas dos indivíduos para que se possa aferir a importância

do factor classe e, porventura, a sua articulação com outros factores na orientação

dessas práticas e das subjectividades colectivas que lhes são inerentes.

QUADRO 6.14 - Experiências de Associativismo (%s por categorias de classe)*

Tipos de associação

Categorias de classe Recreativa/

Cultural

Religiosa Profissional Partido

Político

Sindicato

Patrões 21,7 6,7 11,8 5,3 0,0

Peq. Burguesia 10,2 2,6 5,6 0,0 0,0

Gestores/Superv 40,0 20,0 22,2 30,8 30,0

Técnicos/Trab SQ 16,7 0,0 40,0 28,6 49,6

Proletários 14,0 4,4 0,0 2,4 32,7

TOTAIS (N) 15,7(242) 5,0(161) 6,8(148) 5,8(156) 23,4(295)

* Os valores das células correspondem às percentagens de respostas “sim”, ou seja, dos inquiridos que

afirmaram pertencer a cada associação, por categoria de classe. As opções não são exclusivas pelo que o

somatório pode ultrapassar os 100%. Os valores totais de cada coluna são as percentagens totais de respostas

„sim‟ para cada associação e os números absolutos (N) são o total de respostas („sim‟ e „não‟) para cada tipo de

associação.

No quadro seguinte podem observar-se os índices de participação associativa das

diferentes categorias de classe. São sobretudo os sindicatos e as associações recreativas

e culturais que revelam maiores índices de filiação. Os resultados destes dois tipos de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

308

associativismo reflectem as múltiplas articulações entre a classe e a comunidade.

Embora, evidentemente, não se possa captar a heterogeneidade de cada tipo de

associação, verifica-se, desde logo, que o associativismo recreativo é mais claramente

transclassista do que o sindicalismo. Poder-se-ia dizer que se trata de uma redundância.

Mas é importante notar como, ao lado de outras menos visíveis, essa é uma tendência

claramente comprovada nestes resultados.

Quanto à actividade recreativa e cultural, a categoria de classe mais representada

são os gestores e supervisores (40%) seguida dos patrões (com 21,7%), mas também os

técnicos e os proletários têm aí uma significativa presença, embora com menor grau de

adesão do que aquelas categorias. Quer isto dizer que o tradicional enraizamento

bairrista e localista do associativismo popular consegue agregar posições de classe

relativamente heterogéneas em torno das actividades de lazer. Por exemplo, o relativo

peso dos patrões nestas associações é revelador da já assinalada lógica paternalista. Para

além de muitos deles serem oriundos da classe trabalhadora, a sua condição de

proprietários não acarreta neste contexto (da actividade recreativa e associativa) um

reposicionamento social em oposição aos operários manuais como em geral acontece

nos meios populares mais marcados pela cultura sindical. Também os gestores e

supervisores parecem absorvidos na mesma lógica comunitarista. O “activismo”

associativo que tem lugar no bairro ou na aldeia é sem dúvida uma vertente que

favorece o adensar dos laços transclassistas e as relações de lealdade dentro e fora do

espaço produtivo.

A significativa participação dos gestores e supervisores na actividade partidária

(30,8%), tal como dos técnicos e trabalhadores qualificados (28,6%), deixa, por outro

lado, transparecer um mais elevado grau de conciencialização política por parte das

categorias mais dotadas de recursos educacionais. Em todo o caso, não é de excluir que

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Entre a Fábrica e a Comunidade

309

haja aqui objectivos estratégicos mais evidentes. Do meu ponto de vista, tais objectivos

assentam em lógicas distintas, tanto mais que a primeira categoria (gestores e

supervisores) é mais adulta e detém uma posição de poder, enquanto a segunda (a dos

técnicos e trabalhadores qualificados) é mais jovem e não a detém. Pode postular-se

que, enquanto para os primeiros a filiação partidária terá contribuído para assegurar as

posições vantajosas que detêm e portanto a actividade politico-partidária terá sido

sobretudo de natureza instrumental, no caso dos segundos – com capital educacional

mas sem poder nem uma carreira assegurada –, trata-se mais de um empenhamento

contestatário e activo, que visa pressionar as instituições no sentido de obterem do

sistema oportunidades de carreira adequadas aos recursos técnicos que possuem.

Vejamos se a filiação sindical e as experiências de participação em protestos

corroboram ou não esta hipótese.

O associativismo sindical revela maiores índices de filiação ao nível da região do

que na sociedade portuguesa, o que se prende sem dúvida com o papel mediador e

protector que os sindicatos têm vindo a assumir nesta zona industrial. São as categorias

mais desfavorecidas que fornecem a maioria efectiva dos trabalhadores sindicalizados,

mas em termos relativos (por categoria de classe) não são os proletários os mais

activistas. Como se sabe os mais explorados raramente são os mais contestatários e,

mesmo no que se refere ao sindicalismo operário, as estruturas dirigentes do movimento

sindical foram quase sempre dirigidas pelos sectores mais qualificados e escolarizados

do trabalho industrial. Essa realidade reflecte-se nos resultados regionais tal como já era

visível nos resultados da amostra nacional: com 49,6% de filiação sindical, a categoria

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Entre a Fábrica e a Comunidade

310

dos técnicos e trabalhadores semiqualificados é a mais representada, seguida dos

proletários, com 32,7% e dos gestores e supervisores, com 30%184.

A análise dos índices de participação em acções de protesto nos últimos anos

articula-se directamente com esta questão.

QUADRO 6.15 - Participação em acções de protesto nos últimos 2 anos

(%s por categorias de classe)

Acções de protesto

Categorias de classe Manif.

sindical

Manif.

política

Desfile de

protesto

Comício Greve *

Patrões 0,4 1,6 2,6 14,3 7,4

Pequena Burg 3,6 5,6 1,9 10,9 3,8

Gestores/Superv 10,0 10,5 10,5 13,5 20,0

Técnicos/Trab SQ 21,4 14,3 16,3 14,3 50,0

Proletários 16,7 4,5 2,8 11,3 20,2

TOTAIS (N) 9,5 (294) 5,5 (292) 3,8 (292) 11,6 (293) 17,4 (287)

* A pergunta sobre a greve não continha qualquer limite temporal, simplesmente se

perguntava: “já alguma vez participou numa greve?”. Os valores percentuais referem-se apenas

às respostas afirmativas („sim‟ = participou). Os números absolutos (N) são os totais de

respostas „sim‟ e „não‟.

Como mostra o Quadro 6.15, a greve parece ser a principal forma de protesto, mas

há que ter em atenção o facto de a pergunta sobre a greve, ao contrário das outras

formas de protesto, ter sido formulada sem se reportar a nenhum período específico de

tempo – perguntava-se apenas se “já alguma vez participou numa greve” –, enquanto a

referência às outras formas de intervenção se situava nos últimos dois anos. Pode,

portanto, concluir-se da leitura do quadro que o índice de participação em acções de

protesto colectivo é bastante baixo. Além da greve, são os comícios partidários e as

manifestações de carácter sindical as iniciativas que mais gente mobilizaram nos

últimos dois anos. Em termos comparativos por categoria de classe são os técnicos e

trabalhadores semiqualificados que revelam maior presença relativa em todas essas

184 É preciso notar que 84,2% dos gestores e supervisores da amostra regional trabalham em empresas

privadas ao contrário do que acontece na amostra nacional em que a maioria desta categoria (bem como

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Entre a Fábrica e a Comunidade

311

iniciativas. Globalmente surgem em segundo lugar os gestores e supervisores e a seguir

os proletários. Quanto aos patrões apenas se mostram relativamente participativos no

que se refere à presença em comícios185. Para além disso, a participação em comícios

distribui-se de forma mais ou menos uniforme pelas diferentes categorias, situando-se a

pequena burguesia e os proletários nos níveis mais baixos de participação e com uma

diferença pouco significativa. Esta é já uma indicação que pode ilustrar a tendência

geral em que o exercício da cidadania se restringe, na prática, ao cumprimento do

direito de voto. Os técnicos e trabalhadores semiqualificados dão mostras de maior

mobilização, com maior percentagem de filiação sindical e maior participação em

greves e em desfiles de protesto. Para além da clivagem entre assalariados e

proprietários dos meios de produção, repete-se aqui a oposição entre as fracções que

têm alguns recursos educacionais e as do operariado mais proletarizado: enquanto os

técnicos e trabalhadores semiqualificados se aproximam mais das posições de classe

média – principalmente por integrarem também a categoria dos “técnicos não-

gestores”186 –, e por isso aderem mais a formas de protesto não-sindicais e não-

políticas, os proletários apenas manifestam uma adesão significativa a formas de luta

como a manifestação sindical. Quanto à presença em manifestações políticas ou desfiles

de protesto são as duas categorias intermédias – isto é, os assalariados que possuem

mais recursos escolares ou posições de autoridade – as únicas que se afirmam de algum

modo sensíveis a tais formas de protesto. Nesta matéria, os proletários apresentam

valores semelhantes aos dos patrões e da pequena burguesia. A marca classista dos

dos técnicos e trabalhadores qualificados) são funcionários da administração pública. Na amostra regional

apenas os técnicos e trabalhadores semiqualificados estão na sua maioria vinculados ao Estado (64,3%). 185 Obviamente, os 7,4% de participação em greves por parte dos patrões seriam uma incongruência se

não fosse a questão se dirigir a um passado que pode ser relativamente longínquo e por isso remeter para

uma anterior condição social de trabalhadores assalariados. 186 Recorde-se que na tipologia reduzida que aqui se utiliza os técnicos não gestores e os trabalhadores

semiqualificados integraram a nova categoria dos “técnicos e trabalhadores semiqualificados” (ver atrás

Tabela 6.1).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

312

proletários apenas se reflecte em formas de protesto como a participação em

manifestações de carácter sindical (apesar de inferior à dos técnicos e trabalhadores

semiqualificados) e a relativa adesão a greves.

A escassez de participação popular nas diferentes modalidades de contestação

prende-se com algumas das contradições estruturais já identificadas na sociedade

portuguesa187, e que nesta região se fazem sentir de forma particularmente notória. As

intensas experiências dos movimentos populares do pós-25 de Abril não deixaram de

cavar clivagens ideológicas que ainda hoje se pressentem. A componente “nova” dos

movimentos sociais (a ecologia, o pacifismo, o feminismo, a democracia participativa,

etc.) foi sempre bastante débil e deixou-se contaminar pela lógica dos “velhos”

movimentos, sem conseguir criar suficiente implantação nos sectores mais conscientes

das novas classes médias, elas próprias ainda bastante frágeis na nossa sociedade. O

acentuado défice de cidadania numa sociedade semiperiférica, em que o próprio Estado

encerra lógicas discrepantes, e tendo em conta as formas “providenciais” que vêm sendo

desenvolvidas na última década (embora reveladoras da centralidade do Estado na

sociedade portuguesa), são aspectos que favorecem a persistência de uma atitude por

parte das classes baixas (sobretudo em meio rural) – cultural e historicamente enraizada

na sociedade e que o regime salazarista acentuou – caracterizada pela subserviência face

ao poder. O peso das solidariedades primárias e a acção da “sociedade providência”

(Nunes, 1995) continuam a fazer-se sentir, enquanto que, paradoxalmente, essa mesma

sociedade providência continua a projectar no Estado elevadas expectativas na

resolução de problemas sociais e económicos, ao mesmo tempo que se mantém

187 O facto de em Portugal a experiência democrática ter pouco mais de duas décadas; a já assinalada

articulação persistente entre lógicas modernas e pré-modernas, entre actividades industriais e agrícolas; as

características ambivalentes da acção estatal e das relações entre o Estado e sociedade (conforme

apontado por Santos, 1994); e, por fim, o facto de os movimentos sociais despoletados em 1974 terem

misturado lógicas de “velhos” e “novos” movimentos; são, todos eles, aspectos que se situam entre os

traços estruturais a que me refiro.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

313

relativamente afastada da intervenção político-social (Mozzicafreddo, 1997; Cabral,

1997; Santos, 1994 e 1998). Além disso, há que ter em conta os problemas do

desemprego, da pobreza, da criminalidade, da exclusão social, etc., o que, perante a

tendência geral de massificação dos consumos, se traduz no que Boaventura Sousa

Santos definiu como a colonização da comunidade pelo princípio do mercado, saindo

assim reforçado o pilar da regulação em desfavor do pilar da emancipação (Santos,

1994). Os efeitos perversos de um Estado-Providência ainda débil e repleto de

contradições conferem, no entanto, uma acentuada eficácia aos mecanismos sociais e

simbólicos produtores de conformismo e de indiferença no terreno da intervenção cívica

e, sobretudo, no terreno da cidadania social e política.

6.6 - Consumos e práticas de lazer

Quer os bens de consumo material, quer as actividades de lazer e tempo-livre, são

aspectos fundamentais a ter em conta. A expansão do acesso a muitos dos equipamentos

domésticos que hoje em dia são familiares às classes médias e trabalhadoras e a

normalização dos comportamentos e hábitos de lazer, constituem traços marcantes das

actuais tendências consumistas188.

Não obstante os particularismos que situam ainda a sociedade portuguesa numa

posição de relativo atraso face aos países mais desenvolvidos, os resultados recolhidos

neste capítulo comprovam que Portugal se integra nessa tendência geral de forma

notória. Através do tipo de consumos é possível observar tanto o poder económico

como o próprio estilo de vida e os recursos culturais de cada grupo social, ou seja, a

dimensão social e simbólica que se inscreve nas preferências, nas escolhas e nos gostos

188 Se a importância do consumo foi desde sempre um factor decisivo para a expansão do capitalismo à

escala universal, e se o impacto da ideologia consumista já estava presente no pensamento de Marx

quando se referiu ao fetichismo das mercadorias como factor de alienação, pode dizer-se que o próprio

Marx ficaria atónito se pudesse testemunhar a força e os contornos que o poder atractivo do consumo de

massas alcançou sobre as classes trabalhadoras nos finais do século XX.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

314

é igualmente reveladora de clivagens classistas. Como mostrou Bourdieu, as diferentes

componentes do capital (económico e simbólico-cultural) inserem-se em trajectórias e

habitus sociais e de classe cujo significado é simultaneamente incorporado e

objectivado, demarcando espaços, impondo distinções e lógicas exclusionárias,

produzindo e reproduzindo desigualdades e barreiras de classe (Boudieu, 1979).

QUADRO 6.16 - Bens e equipamentos domésticos segundo a categoria de classe

(% por categoria de classe)*

Categorias de classe

Bens materiais

equipamentos domésticos

Patrões

Peq

Burg

Gest/

Superv

Técn/

TraSQ

Prolet TOTAIS

Casa própria 92,9 91,2 50,0 78,6 63,8 71,6

Forno Micro-Ondas 21,4 15,8 10,0 28,6 10,0 13,0

Máquina de lavar roupa 92,9 86,0 95,0 92,9 80,6 84,3

Máquina de lavar louça 39,3 14,0 30,0 42,9 8,9 15,7

Aspirador 96,4 78,9 75,0 92,9 78,3 80,6

Televisão a cores 100,0 96,5 100,0 100,0 96,7 97,3

Vídeo gravador 78,6 56,1 60,0 85,7 52,2 57,5

Aparelhagem de som 67,9 50,9 75,0 92,9 60,6 61,9

Câmara de vídeo 35,7 8,8 20,0 28,6 10,0 13,7

Computador pessoal 28,6 10,5 5,0 50,0 5,6 10,7

Automóvel próprio 96,4 78,9 90,0 100,0 75,0 79,9

Casa de férias 21,4 1,8 10,0 11,4 1,7 5,1

N=299; Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal.

* Os valores das células correspondem às percentagens, para cada categoria de

classe, daqueles que mencionaram possuir (ou a família directa em que se

integram) o respectivo bem.

É a esta luz que a presença de certos bens consumo e de certas práticas recreativas

no questionário aplicado a esta região deve ser interpretada. Começo por me referir aos

equipamentos domésticos e bens de longa duração. Mais adiante abordarei a questão das

actividades de lazer. No Quadro 6.16 acima, as diferentes localizações de classe são

cruzadas com uma lista de items referentes à primeira questão. Verificamos desde logo

que, enquanto alguns dos items se apresentam comuns à generalidade das categorias de

classe, outros permitem-nos detectar claras diferenças. Não obstante a referência

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Entre a Fábrica e a Comunidade

315

genérica à massificação do consumo, atrás efectuada, qualquer análise mais detalhada

não podia deixar de detectar as demarcações classistas que os diferentes objectos de

consumo reflectem. Ou seja, ao lado de certos padrões uniformizantes são detectáveis

os efeitos de selecção, de exclusão e de desigualdade inerentes a qualquer sociedade de

classes. Neste caso é importante notar que a designação dos equipamentos é omissa

relativamente ao seu custo real. Por exemplo, ser proprietário de um automóvel Renault

5 ou de um Volvo poderá traduzir uma distância social tão grande como a diferença de

poder económico entre um proletário e um capitalista, apesar de ambos possuírem carro.

Esse é um tipo de problema que não foi possível evitar, dada a forma como esta questão

foi tratada no inquérito.

Apesar disso, os resultados obtidos não deixam de ser significativos. Pode dizer-

se que equipamentos como a máquina de lavar roupa, o aspirador, a televisão e o

automóvel surgem como altamente acessíveis a todas as categorias de classe (tal como

já acontecia na amostra nacional). Em relação à posse de habitação própria, embora

algumas categorias de classe revelem índices mais baixos do que outras, os valores são

em geral relativamente elevados, o que, sem dúvida, nos obriga a ter presente o sistema

de créditos para aquisição de casa própria e toda a política de habitação que vigora no

nosso país. Já quanto à posse de uma segunda habitação (a casa de férias) as diferenças

de classe são notórias, com a categoria patronal a mostrar ser a que possui maior poder

económico (21,4% possui uma segunda habitação). Gestores/supervisores e

técnicos/trabalhadores semiqualificados apresentem valores bastante mais baixos (10%

e 11,4%) e nos casos da pequena burguesia e do proletariado são insignificantes os que

têm acesso a casa de férias. Para além das diferenças de poder económico que os

diversos equipamentos revelam, há que atender, como referi atrás, ao significado

simbólico que alguns deles encerram para certos segmentos sociais. O equipamento de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

316

vídeo e a aparelhagem de som, por exemplo, apesar de se mostrarem acessíveis à

maioria dos membros de todas as categorias de classe, sugerem diferentes formas de

relacionamento pelas diferentes localizações de classe. A conotação marcadamente

urbana ou de classe média destes utensílios explica o facto de os sectores menos

alfabetizados os colocarem em plano secundário nas suas necessidades materiais. É o

que pode retirar-se das diferenças nos níveis de consumo por parte da pequena

burguesia e do proletariado (que se situa na casa dos 50% em relação ao video e à

aparelhagem), bastante mais baixos do que os patrões e a classe média. Um capital

económico elevado ou médio combinado com doses semelhantes de capital escolar/

cultural parece favorecer a aproximação a equipamentos mais conotados com as classes

médias urbanas. Interpretação semelhante poderá aplicar-se a equipamentos mais

“sofisticados” ou que entraram mais recentemente na lógica de consumo de massas, tais

como, o forno micro-ondas, a máquina de lavar louça, a câmara de vídeo e o

computador pessoal. As diferenças na propensão ao consumo são muitas vezes

reveladoras do grau de familiaridade com certas tecnologias porventura mais exigentes

em recursos escolares e em volume de capital cultural, os quais invocam, por isso

mesmo, estilos de vida de que as classes populares se mantêm arredadas. As distinções

entre as diferentes categorias de classe são, a este propósito, reveladoras. A demarcação

entre a localização de classe dos patrões, por um lado, e a dos técnicos e trabalhadores

semiqualificados, por outro, parece ir ao encontro de condições que incorporam

volumes significativos de capital económico e cultural, mas, enquanto no caso dos

patrões é o primeiro que é hegemónico, na categoria dos técnicos a situação é a inversa.

Os resultados são, apesar disso, relativamente próximos para estas duas categorias,

revelando consumos claramente mais elevados do que nas restantes situações. Em suma,

no que toca ao consumo de bens como computadores, câmaras de vídeo, máquinas de

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Entre a Fábrica e a Comunidade

317

lavar louça ou fornos micro-ondas, os proletários (e secundariamente a pequena

burguesia) estão bem distantes da classe patronal e dos técnicos/trabalhadores

semiqualificados.

Passemos agora à análise das actividades de lazer, com a qual terminarei este

capítulo. O quadro seguinte (Quadro 6.17) mostra-nos um conjunto de actividades de

tempo-livre praticadas pelas diversas categorias de classe, seja diariamente,

semanalmente ou mensalmente. Veja-se, numa primeira leitura, as actividades mais

praticadas e as menos praticadas. No primeiro caso estão, por ordem decrescente, o

consumo televisivo, as visitas a familiares, dar um passeio de carro, ir ao café e ir a

mercados ou a feiras locais. Em qualquer destas actividades, as categorias de classe no

seu conjunto mostram uma regularidade assinalável, com valores sempre acima dos

50%. Por seu lado, as práticas menos referidas são as visitas a museus e monumentos,

as idas a bailes e festas populares, a frequência do cinema ou teatro, praticar um

desporto, idas ao restaurante, leitura de livros e jornais, praticar jogos de mesa e idas a

bares e discotecas.

As diferenças de classe que mais sobressaem são: a categoria dos técnicos e

trabalhadores semiqualificados é a que mais parece entregar-se a actividades lúdicas,

enquanto os patrões e a pequena burguesia revelam uma mais escassa dedicação a

ocupações de tempo-livre. Os técnicos e trabalhadores semiqualificados revelam ser os

mais assíduos nos items de frequência diária como o consumo televisivo, as idas ao café

(84,6%), leitura de jornais ou revistas (53,8%) e ler livros (58,3%), assim como passeios

de carro e idas semanais ao restaurante com a família ou amigos (respectivamente 100%

e 41,7%). São também as actividades de lazer mais urbanas, tais como, a ida regular ao

cinema ou ao teatro (53,9% de frequência mensal), praticar um desporto (38,5%), ir à

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Entre a Fábrica e a Comunidade

318

discoteca ou a um bar (41,7%) e ver filmes em video (58,3%), as mais partilhadas pelos

técnicos e trabalhadores semiqualificados.

QUADRO 6.17 - Ocupações de lazer/ tempo livre, segundo a categoria de classe

(% por categoria de classe)

Categorias de classe

Ocupações de lazer/

tempos livres

(*)

Patrs

Peq

Burg

Gest/

Superv

Técn/

TraSQ

Prolet TOTAIS (N)

Ver televisão D 89,3 91,2 85,0 100,0 94,4 93,0(298)

Ir ao café/taberna D 75,0 40,7 70,0 84,6 63,3 61,6(292)

Ler jornal/revista D 39,3 25,9 50,0 53,8 25,1 29,7(190)

Ler um livro D 14,3 3,8 10,0 58,3 7,2 27,0(279)

Ir ao hipermercado S 25,9 39,6 55,0 61,5 44,3 43,2(289)

Visitar familiares S 92,9 94,7 95,0 84,6 88,3 90,1(296)

Trabalhos agrícolas S 30,7 54,9 47,3 28,6 32,9 37,8(270)

Dar um passeio de carro S 89,3 78,2 75,0 100,0 76,7 80,4(292)

Ir ao rest c/ fam/amigos S 35,7 16,3 25,0 41,7 15,6 19,4(288)

Ir ao cinema/teatro M 14,3 5,7 0,0 53,9 21,1 18,2(286)

Praticar desporto M 7,4 17,0 25,0 38,5 19,5 19,1(283)

Assistir espect. desportivo M 35,7 25,0 50,0 30,8 34,6 33,8(281)

Ir a feiras/mercados M 32,1 56,4 75,0 46,2 59,4 56,6(293)

Praticar jogos de mesa M 28,5 26,9 55,0 16,6 23,7 26,6(281)

Ir à discoteca/bar M 7,2 11,5 26,3 41,7 38,5 29,6(280)

Ir a bailes/festas popular M 10,7 15,1 10,0 8,3 14,2 13,5(189)

Visitar museus/monum M 7,4 2,0 5,0 7,7 3,0 3,6(279)

Ver filmes no vídeo M 57,1 45,3 45,0 58,3 44,7 46,6(283)

(*) D=diariamente; S=semanalmente; M=mensalmente.

Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal

Os patrões, por seu lado, são os menos frequentadores de discotecas, da prática

desportiva, das idas a feiras e mercados, da ida ao hipermercado e também os que

menos efectuam trabalhos agrícolas nos tempos livres. Além disso, revelam níveis

relativamente baixos no que toca a idas ao cinema ou teatro. Por sua vez a pequena

burguesia, uma classe também pouco dedicada ao lazer – principalmente tendo em

conta que em geral se dedica a um negócio de base familiar – manifesta os mais baixos

Page 311: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

319

índices de frequência de museus e monumentos, de leitura de livros, de idas ao café e

ainda de assistência a espectáculos desportivos. Os únicos casos em que a pequena

burguesia parece mais dedicada do que as outras categorias às actividades mencionadas

é, ironicamente, a sua entrega aos trabalhos agrícolas (também nos tempos livres) e a

participação em bailes e festas populares. Surge aqui claramente o efeito do universo

rural de uma parte da pequena burguesia189. No entanto, a elevada frequência de feiras

e mercados e os hábitos semanais do passeio de carro e visitas a familiares parecem

revelar a mistura de práticas e de referências urbano-rurais, os quais são partilhados

pelos diversos sectores (agrícola, industrial, comercial e artesanal) da pequena

burguesia. O consumo de programas televisivos, visitas a familiares, passeios de carro,

assistir a espectáculos desportivos e ver filmes no vídeo, são as actividades que se

distribuem de maneira mais uniforme pelas diferentes categorias de classe. Não surgem

clivagens de classe nestes domínios. Mas as demarcações nos padrões de consumo

recreativo entre as diferentes categorias de classe tornam-se claras em questões como: a

leitura (de jornais, revistas ou livros), onde sobressaem os técnicos e trabalhadores

semiqualificados como os maiores consumidores e os proletários e a pequena burguesia

como os que mais rejeitam esses hábitos; as idas semanais ao restaurante, em que

sucede uma situação idêntica embora, neste caso, também os patrões sejam dos clientes

mais assíduos; as idas ao cinema ou teatro, em que, uma vez mais, os técnicos são os

maiores consumidores (53,9%). Ainda quanto a essa actividade, os gestores e

supervisores situam-se ao lado da pequena burguesia como as categorias mais

indiferentes; no que respeita às idas a discotecas e bares, os técnicos são ainda os mais

189 Note-se que, o facto do sector agrícola ser minoritário na região não significa que o trabalho na terra e

as lides campesinas não estejam ainda bem presentes no dia-a-dia dos indivíduos incluídos em diversas

categorias de classe. Mesmo os proletários têm na pequena agricultura complementar um importante

suplemento salarial, como se sabe.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

320

assíduos, mas, neste caso, os proletários seguem-nos de perto, enquanto os patrões e a

pequena burguesia são as localizações que mais se afastam dessa actividade.

Como conclusão deste capítulo, pode dizer-se que o recurso ao modelo estrutural

de Wright me permitiu traçar uma visão mais sistemática da configuração da estrutura

das classes na região industrial do calçado, bem como das orientações subjectivas e

práticas sociais da força de trabalho. Os resultados obtidos revelaram uma estrutura das

localizações de classe bastante dicotomizada (em que o peso estatístico dos proletários e

dos capitalistas é nitidamente superior e o das categorias intermédias muito inferior em

comparação com a amostra nacional), enquanto as subjectividades e as práticas

evidenciadas pelas diferentes categorias de classe são relativamente discrepantes em

variados items, a comprovar a interferência de múltiplos factores culturais, históricos e

identitários na sua estruturação. Convirá sublinhar que só adoptando uma perspectiva

estrutural foi possível assinalar certas clivagens e barreiras de classe – que traduzem

fortes desigualdades de recursos estruturalmente interdependentes –, embora a mesma

não seja suficiente para explicar as percepções subjectivas e os comportamentos dos

actores. Penso, por isso, que a análise apresentada neste capítulo adquirirá maior

relevância se for tomada na sua conexão com a abordagem histórica já apresentada e

nos ajudará, nos próximos capítulos, a dirigir o olhar para esferas mais íntimas da vida

social dos trabalhadores da região do calçado.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

321

Capítulo 6/ (6-A, Diário de Campo, no final)

RESISTÊNCIA, CONSENTIMENTO E EVASÃO NUMA FÁBRICA

DE CALÇADO

Neste último capítulo apresentam-se os resultados do estudo de caso efectuado

numa fábrica de calçado em S. João da Madeira, com base no método de observação

participante (a empresa é aqui designada por Walky)190. A partir da observação das

práticas e atitudes dos trabalhadores no quotidiano da empresa, analisa-se a dinâmica de

interacção e os jogos de poder que têm lugar nas relações de trabalho – tendo em

atenção a sua dupla dimensão, adaptativa e transgressiva – à luz da permanente

interpenetração entre a esfera da produção e o contexto cultural mais vasto.

Começarei por referir-me à questão do ritmo produtivo e às formas de pressão que

daí derivam sobre os comportamentos dos operários; em segundo lugar, analisarei o

sistema de poder na sua dupla dimensão, por um lado, a hierarquia formal e os

mecanismos de controlo e, por outro lado, as reacções dos operários face a tal sistema;

na parte final procurarei interpretar o papel do humor, do jogo sexista e das múltiplas

formas de fuga que os trabalhadores põem em marcha face às exigências produtivas e à

disciplina fabril; serão ainda analisadas algumas das práticas de lazer dos operários,

quer fora da fábrica, na sua relação com as diversas formas de consumo, quer nos

momentos de intervalo, no período de almoço e à saída do trabalho, enquanto formas

miniaturizadas de lazer que transportam consigo um significado simbólico importante.

6.1 - A importância da linha de montagem no processo de fabrico

Como se sabe, o modelo taylorista de organização do trabalho, apesar das

inúmeras críticas a que foi sujeito a partir dos anos trinta, continuou a ser uma fonte de

inspiração importante para grande parte dos proprietários industriais do mundo inteiro.

Em Portugal, embora o taylorismo (como de resto toda a indústria moderna) tenha sido

débil e tenha entrado tardiamente no país, a adesão da classe empresarial a muitos

desses princípios é ainda hoje bem visível em certos sectores produtivos, e o do calçado

é, sem dúvida, um deles. Ao observarmos os movimentos dos trabalhadores na linha de

190 Para além do nome da empresa ser fictício, todos os nomes pessoais, referências a locais, modelos e

marcas de viaturas, etc., que pudessem identificar os indivíduos a que se faz referência neste capítulo,

foram alterados.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

322

montagem – e sobretudo se directamente sentirmos na pele a dureza das condições de

trabalho – podemos testemunhar a violência do ritmo produtivo e os seus efeitos

desgastantes e alienantes sobre os trabalhadores, inseridos num processo produtivo

bastante mecanizado e fragmentado, e onde a rígida demarcação entre concepção e

execução tende a remete-los a um papel de meras peças do sistema.

A estrutura funcional da firma Walky é bastante simples: o proprietário exerce as

funções de director e gere directamente a componente comercial, contacta clientes e

trabalha com dois ou três colaboradores mais próximos – a contabilista (que é a esposa

do proprietário), uma responsável de marketing e relações públicas e o responsável

geral da produção – a secção de design/modelagem funciona autonomamente com dois

trabalhadores qualificados, assim como a do armazém; há depois o gerente da produção

(também designado por encarregado geral), que tem a seu cargo todo o processo de

fabrico; a seguir (abaixo deste na hierarquia) posicionam-se os três encarregados

responsáveis por cada secção; estas dividem-se em “corte e costura”, “pré-fabricados”

(ou “palmilhados”) e “montagem” (que inclui os acabamentos). Há ainda a responsável

pelo trabalho ao domicílio, o mecânico e três empregados de escritório. O restante

pessoal é constituído pelos operários e operárias manuais (com categorias diversas) e

por algumas raparigas que são aprendizes. Ao todo, a empresa possuía nesta altura 55

empregados, dos quais 20 são homens e 35 são mulheres. Destas, apenas duas, a esposa

do patrão e a responsável pelo trabalho domiciliário, possuem alguma autonomia e

autoridade. Todas as chefias intermédias eram ocupadas por homens.

Vale a pena sublinhar a importância de certos postos de trabalho, pelas

consequências que daí advêm na estruturação das relações de poder informal. Há,

efectivamente, determinadas operações que pelas exigências técnicas que lhes são

inerentes permitem que os trabalhadores possam fazer uso do seu saber-fazer, com vista

a ampliar a escassa margem de autonomia que o sistema hierárquico formalmente lhes

atribui. Um dos postos onde tal situação se coloca de forma contundente é o dos

chamados “pregadores” (os “oficiais” da montagem), situados na zona imediatamente a

montante do posto onde eu próprio trabalhei durante a maior parte do tempo da minha

estadia na empresa. Trata-se propriamente da “montagem” do sapato, isto é, são os

ocupantes desse posto que efectuam as tarefas de esticar as componentes da parte

superior do calçado, fixá-las na posição adequada da palmilha (parte interior do sapato)

e, no caso de modelos mais sofisticados, executar cuidadosamente os “bicos” e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

323

“tacões”, (isto é, “pregá-los”, seja efectivamente com o auxílio de pregos, seja com

batimentos sobre as zonas que vêm revestidas de cola). É possível realizar este trabalho

manualmente ou com o auxílio das respectivas máquinas, dependendo do modelo em

causa. Trata-se das tarefas minuciosas que dão forma ao calçado e essa minúcia exige

habilidade manual e capacidade para lidar com equipamentos mecânicos de relativa

complexidade, os quais têm de ser adaptados à medida de cada modelo. Quer no caso da

execução manual, quer na execução mecânica, a habilidade, destreza, capacidade

pessoal e conhecimento da função são aspectos decisivos. Alcançá-los requer uma longa

preparação e em geral só com muita experiência se conseguem elevados níveis de

aperfeiçoamento e rapidez na execução destas tarefas. A importância nuclear dos postos

dos “pregadores” faz com que eles sejam melhor remunerados, e é também por isso que,

como mostrarei mais adiante, estes trabalhadores ocupam uma posição especial nas

relações de poder com as chefias.

Pode dizer-se que o caso do calçado é um daqueles sectores em que a automação é

assaz limitada. Mesmo nas tarefas mais mecanizadas, a componente manual tem um

peso significativo. Em todas as posições da linha de montagem essa componente está

presente, muito embora haja umas que são mais facilmente efectuadas do que outras.

Enquanto, por exemplo, arrancar pregos, dar cola nas palmilhas, desenformar, etc., são

tarefas em geral fáceis, nos postos em que se trabalha com máquinas semi-automáticas

ou apenas mecânicas, como o caso da cardagem, já oferecem mais dificuldade e exigem

mais preparação e formação. A experiência que eu próprio tive na cardagem e batimento

dos bicos (tarefas de execução mecânica) permitiu-me comprovar até que ponto o

esforço e a pressão prolongadas têm efeitos marcantes sobre o trabalhador, quer em

termos físicos, quer psíquicos. No entanto, devido às constantes mudanças nos

processos de fabrico, com a alteração de modelos e a necessidade das mesmas não

provocarem quebras significativas na produtividade, essas readaptações obrigam não só

a que os trabalhadores saibam lidar com diferentes procedimentos, como por vezes se

exige que tenham de mudar temporariamente de função. A produção de amostras –

modelos mais raros, fabricados em número reduzido e destinados a exposições em feiras

internacionais – não só pode permitir à empresa criar a sua própria linha estilística e,

desse modo, tentar impor a sua imagem em certos segmentos do mercado, mas, ao

mesmo tempo, é também uma forma de tirar partido da estrutura produtiva,

relativamente leve, e da qualidade dos seus trabalhadores. As amostras são introduzidas

Page 316: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

324

na produção nos momentos de transição entre duas encomendas, ou quando há atrasos

na chegada de componentes, o que contribui para preencher os tempos mortos que de

outro modo não seriam rentabilizados.

É neste quadro que a “flexibilidade” aparece como um conceito que pode favorecer

a óptica da produtividade. Efectivamente, ideias como a da flexibilidade ou da

polivalência traduzem-se aqui sobretudo numa maior margem de manobra para o

patronato, no sentido de pôr e dispor do trabalhador segundo as exigências produtivas

da empresa e sem que o operário ou as suas estruturas representativas sejam ouvidos.

Tratando-se de uma empresa de pequenas dimensões, como esta, obviamente que a

quantidade e o tamanho das encomendas estão condicionados pela sua capacidade de

resposta. Daí a necessidade de recorrer a esquemas de subcontratação, produzindo parte

das encomendas de empresas maiores e por vezes também subcontratando outras

empresas ou recorrendo ao trabalho em regime domiciliário.

A secção de montagem assume um estatuto central dentro da empresa, visto ser aí

que são realizadas as principais operações do processo produtivo. Nessa medida, o

encarregado da montagem, quer pela sua responsabilidade acrescida, quer pelos

recursos técnicos que em princípio deve controlar, detém também um estatuto

particular. A este aspecto se ligam, aliás, os problemas e dissensões em que o mesmo se

vê envolvido, seja com os seus subordinados, seja com os colegas (os outros

encarregados) ou até com o próprio patrão. Abordarei adiante essa questão, a propósito

das relações de poder.

O encarregado deve observar o andamento das diferentes operações da linha no

seu conjunto e, quando necessário, executa ele próprio algumas delas, ajudando o

operário que num dado momento esteja a ficar atrasado. Como responsável da

montagem, cabe-lhe controlar o trabalho de cada posto e exigir que cada trabalhador o

execute as suas tarefas com a necessária qualidade e rapidez. O encarregado personifica

perante os trabalhadores a figura do disciplinador. É ele que pressiona, é ele que exige

sempre mais, é ele que regula a velocidade da linha, é ele que manda fazer. Apesar

disso, e sendo formalmente investido de poder sobre os operários, a força ou a fraqueza

do seu poder é, na prática, fortemente aferida pelo seu próprio saber-fazer. Verifica-se

aqui o que os estudos da sociologia industrial há muito mostraram, o princípio de que a

“arte” ou a habilidade no trabalho é uma fonte de autoridade em si mesma. Ou seja, do

ponto de vista dos subordinados, quem manda deve saber executar tão bem, ou melhor,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

325

do que quem obedece. Segundo a maioria destes operários, não é esse o caso do seu

chefe directo. As suas atitudes selectivas, os seus “caprichos”, os gritos dirigidos

sempre com mais arrogância para o elo mais fraco da cadeia, etc., já chegaram a

provocar situações de extrema violência e descontrolo em algumas operárias. Casos em

que o cansaço físico e psicológico atingiram níveis insustentáveis, com as trabalhadoras

a largar repentinamente o posto de trabalho, rompendo em soluços e correndo para o

pátio traseiro da fábrica. Situações dessas são justificadas como “uma crise de nervos”

em relação à qual o próprio encarregado se vê forçado a ser condescendente, tal é o

dramatismo do problema e a força simbólica que ele suscita. Estes são casos

esporádicos, mas significativos. Momentos que normalmente têm lugar nas ocasiões em

que a necessidade de completar uma encomenda faz acelerar os ritmos de trabalho para

níveis anormalmente elevados. Tratando-se de situações que põem em risco a saúde de

um trabalhador, é compreensível a cautela dos responsáveis. Por outro lado, isto mostra

até onde pode ir a entrega e a aceitação dos operários, depositando na empresa níveis de

esforço que, regra geral, não são recompensados nem economicamente nem em termos

de reconhecimento. Esperar-se-ia que, nestas condições, os trabalhadores alimentassem

até ao extremo o sentimento de revolta. Mas, se é um facto que tanto a rebeldia como o

consentimento são condimentos que se insinuam no seio do colectivo operário, eles

estão bem doseados e por isso, em vez do estado efervescente, as coisas tendem a

manter-se, por assim dizer, “em lume brando”.

6.2 - Disciplina, poder, consentimento e resistência

Sendo a fábrica industrial o lugar por excelência das relações de produção

capitalistas, é nela que se estrutura o antagonismo fundamental entre o capital e o

trabalho. Mas, como assinalei no Capítulo 1, esse antagonismo não só se exprime em

regimes de acumulação distintos como em formas de poder que podem variar em função

de múltiplos factores, adquirindo em geral características específicas que têm que ver

com a própria estrutura da empresa, o seu estilo de liderança, a sua história e o contexto

em que está mergulhada. Neste caso, prevalece um sistema disciplinar onde as

dimensões autocrática e paternalista surgem intimamente ligadas, mas onde a primeira

tende a impôr-se à segunda. De facto, para além da pressão disciplinar e da intensidade

do ritmo produtivo, os mecanismos de negociação não estão instituídos, a actividade das

estruturas sindicais é fortemente restringida – ainda que de forma mais ou menos

disfarçada – e os poucos activistas que existiram na empresa foram alvo de perseguição,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

326

tendo alguns deles acabado por sair. Estamos perante um modelo semelhante ao já

referido sweating (Goss, 1991). O significado deste termo inglês – suando – ilustra bem

a lógica aqui em vigor, uma lógica apoiada na constante pressão sobre os trabalhadores,

colocados numa posição de falta de alternativas e nessa medida levados a sujeitar-se ao

poder arbitrário do patronato. A demarcação entre quem manda e quem obedece, o

carácter prescritivo com que as ordens são transmitidas, a tonalidade autoritária do

discurso, a total ausência de diálogo, etc., são as situações que mais sobressaem no dia-

a-dia da actividade da fábrica. Todavia, se é verdade que não existe uma resistência

explícita, visível e organizada, não é menos verdade que, observando mais de perto este

ambiente laboral, os sinais de rebeldia tácita, subtil e latente estão abundantemente

presentes e assumem as mais variadas formas.

6.2.1 - O patrão e os operários

A abordagem das relações de poder não tem que ser – nem deve ser – tomada

numa perspectiva unidimensional. O poder está presente em múltiplas situações e

assume variadíssimas formas. Mesmo no caso de uma fábrica, onde o poder patronal se

reflecte em todo o conjunto de interacções que ocorrem no seu seio, é necessário traçar

diferentes percursos interpretativos para captar com mais detalhe os contornos de que se

reveste. Deste modo, para além da relação de poder se assumir fundamentalmente

através do antagonismo de classes que liga o capital e o trabalho, analisar a interacção

directa entre um proprietário em concreto e os seus operários poderá permitir uma

compreensão mais profunda do modo como as dimensões estrutural e subjectiva se

entrecruzam, e verificar até que ponto a relação “pessoal” se adapta ou contraria a

lógica sistémica. Se no caso das micro-empresas de base doméstica faz sentido

adivinhar a força dos laços de lealdade, no caso de uma unidade com as características

desta (que adopta em pleno o modelo de gestão industrial), a lealdade entre os operários

e o patrão parece estar completamente ausente. É certo que, nas várias conversas que

mantive com o proprietário, a referência a esse elemento surgiu de forma recorrente.

Fosse para enaltecer as suas preocupações sociais com os trabalhadores, fosse para

recordar – com evidente nostalgia – as fases iniciais de desenvolvimento da empresa,

em que o ambiente interno era “mais familiar”. Nesse sentido, a referência à ideia de

lealdade assume-se, na linguagem patronal, mais como um ingrediente de retórica do

que como o reflexo de uma prática efectiva.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

327

A maneira como o proprietário (senhor NV) procura encontrar incentivos à

produtividade é ilustrativa da sua atitude face aos operários e aos direitos destes como

trabalhadores. Por exemplo, no que se refere à necessidade de disponibilizar maiores

incentivos salariais para promover a motivação e a produtividade, os seus argumentos

vão no sentido de que: não é possível proceder a aumentos salariais porque a situação

financeira da empresa não o permite; os aumentos, ou mesmo uma redefinição dos

prémios de produtividade, causariam problemas e rivalidades; com a actual situação, ter

um emprego já é bom; os operários são pagos acima da tabela e ainda há prémios de

assiduidade, o que mais ninguém faz; é necessário aguentar “este ano” (1996) e para o

ano dar-se-á um aumento maior e aproveita-se para acabar com esse prémio. Estas

justificações não são, como é óbvio, transmitidas directamente aos operários. Não

convém, porque não existe essa cultura de diálogo. Mas, como, de um modo ou de

outro, os argumentos do patrão chegam ao conhecimento dos empregados, assiste-se à

atitude comum em que o descontentamento se traduz em desabafos do género “essa

música já eu conheço…”. A “conversa” das eternas dificuldades não tem qualquer

credibilidade quando olham para os inúmeros sinais exteriores de riqueza. Os principais

motivos de descontentamento dos operários resumem-se a três: primeiro, os baixos

salários; segundo, os critérios de pagamento e de selecção de quem faz horas

extraordinárias; terceiro, a falta de reconhecimento pelo trabalho efectuado e o regime

de controlo autoritário promovido pela Direcção.

No discurso patronal é notória a ausência de referências aos operários. Na sua

linguagem, os trabalhadores parecem ser meros acessórios. Ou melhor, eles são

importantes, sim, mas enquanto peças necessárias a ter em conta na contabilização da

produtividade. São antes de tudo um referente quantitativo. Por outro lado, as atitudes

deste proprietário face ao sindicato do calçado não se afastam das posições mais gerais

do patronato já apontadas a este sector (cf. Estanque, 1992). O sindicato é acusado de

ser manipulador, esquerdista e de fazer tudo para “dar cabo das empresas”. Em conversa

comigo, o senhor NV recordava-me um acontecimento que teve lugar dois anos antes,

em que alguns dirigentes sindicais vieram à empresa falar com os trabalhadores para

que estes aderissem à greve que estava em curso: “queriam forçá-los a alinhar na greve

quando o pessoal não queria e até pedras atiraram cá para dentro”. Na versão do

sindicato, o que se passou foi que o patrão quis impedir uma reunião que era legal,

tentou recusar a entrada dos dirigentes e “escondeu uma parte dos trabalhadores na cave

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Entre a Fábrica e a Comunidade

328

para que não aderissem à greve” (fonte sindical). O resultado foi uma divisão entre os

trabalhadores, em que apenas cerca de metade fizeram greve.

A partir desse episódio, a Direcção deixou de proceder aos descontos para o

sindicato. Hoje são poucos os operários sindicalizados e menos ainda aqueles que

pagam regularmente as suas quotas. Os que o fazem vão directamente à sede do

sindicato. De acordo com a direcção do sindicato, esta prática tem vindo a generalizar-

se, em obediência a uma directiva da associação patronal. Assiste-se hoje uma acelerada

diminuição do número de trabalhadores sindicalizados e ao crescimento daqueles que,

continuando inscritos, há muito deixaram de pagar as suas quotas. Uma situação que, de

resto, se enquadra nas actuais tendências de fragmentação do mercado de trabalho e de

fragilização do sindicalismo em geral. Como acontece em muitas empresas da região, o

sindicato do calçado é acusado pelos patrões de estar ao serviço de partidos de esquerda

e de não contribuir para a defesa do sector, ao promover greves “por motivos políticos”,

além de reivindicar coisas “irrealistas” e de tentar obstruir a flexibilização e

modernização das empresas. A isto os sindicalistas respondem com a denuncia do

“autoritarismo patronal”, apontando a presença de partidos políticos na direcção da

associação industrial do calçado – a APICCAPS, que acusam de ser dominada pelo PSD

– “se há militantes partidários na associação porque é que não pode haver no

sindicato?”, perguntam os dirigentes sindicais.

Do ponto de vista das entidades patronais, o operário ideal será aquele que nunca

chega atrasado, que está sempre disponível fazer horas extraordinárias – aos dias de

semana ou aos fins-de-semana, mesmo quando só é avisado na própria hora –, que

trabalha dedicadamente sem nunca sair do seu posto, que não vai à casa de banho fora

dos intervalos, que raramente falta, que, se preciso for, abdica das férias familiares em

favor da empresa, que compreende as dificuldades económicas e se mostra reconhecido

perante o patrão. Em suma, o operário ideal seria aquele que, mais do que ser

competente, nunca reclamasse e que rejeitasse abertamente o sindicato. Assim, o pendor

paternalista do discurso patronal presente, por exemplo, em desabafos do género:

“muito eu gostaria de lhes poder pagar o dobro daquilo que eles ganham…” apenas no

plano individual pode adquirir efeitos práticos. O trabalhador que demonstre a sua

competência técnica e que dê provas de dedicação à empresa tem, obviamente, mais

condições de ver o seu salário aumentado. Mas, por outro lado, aquele que, sendo

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Entre a Fábrica e a Comunidade

329

competente, procure reivindicar direitos ou que se mostre empenhado nas actividades

sindicais, corre facilmente o risco de ser visto como inimigo da empresa.

Como é natural, qualquer proprietário procura observar os desempenhos dos seus

operários. Sendo SJM uma comunidade relativamente pequena, não é difícil imaginar

formas de “controle social” que, embora com a necessária discrição e revestidas das

melhores intenções, permitem que o patrão tome conhecimento de aspectos da vida

privada dos seus subordinados e descubra neles as causas de comportamentos tomados

como “estranhos” ou “anormais”. Por exemplo, quando a falta de dedicação ou de

pontualidade denunciam alguma instabilidade pessoal do trabalhador, é em nome do

interesse do próprio – e da empresa, claro –, que alguns empresários locais prestam

atenção a essas situações. Dir-se-á que são casos excepcionais. Em todo o caso são

significativos. Dir-se-á ainda que o processo inverso também pode acontecer, com os

trabalhadores sempre atentos aos “devaneios” ou à ostentação deste ou daquele

proprietário. Mas o poder desequilibra-se quase sempre para o mesmo lado. É claro que

esse papel pedagógico ou moralista não é efectuado na lógica de uma “cultura de

empresa” moderna e participativa, em que os empregados sejam vistos como membros

da mesma “família”. Neste contexto, é sobretudo a lógica autocrática que tende a

prevalecer. Nessa medida, a referência a este aspecto permite ilustrar a forma como o

paternalismo autoritário se reforça na base da constante procura de ajustamento entre o

poder instituído na fábrica e os seus prolongamentos no seio das comunidades

envolventes.

No caso desta empresa, em concreto, o argumento da “crise” e das dificuldades não

é nem partilhado nem compreendido pelos trabalhadores. Mesmo os encarregados se

mostram pouco ou nada sensíveis a tais justificações. Da parte dos operários, como já

referi, a observação atenta que prestam aos sinais exteriores de riqueza do patrão é para

eles a maior evidência do seu enriquecimento, o qual, do ponto de vista do trabalhador é

efectuado à custa do seu próprio esforço produtivo. Nem o mais apelativo discurso faria

demovê-los dessa certeza, muito embora a ausência de qualquer relação dialogante só

possa acentuar o seu descontentamento no trabalho. Este segmento do operariado pode

ser, e é, pouco politizado, pode ser, e é, desconfiado em relação ao sindicalismo, pode

ter, e tem, uma ténue e pouco politizada consciência de classe. Os seus comportamentos

e atitudes tendem a traduzir-se em práticas individualistas e de retraimento. Mas, tal não

significa que não saiba que é vítima de exploração e que os patrões enriquecem a

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Entre a Fábrica e a Comunidade

330

expensas do seu trabalho. Uma das frases que um operário me transmitiu nos primeiros

dias da minha presença na fábrica deu logo a ideia do que representam os

constrangimentos vividos na fábrica. Dizia ele, algo indignado e procurando clarificar a

sua posição: “nós quando vimos para aqui, não quer dizer que gostemos disto!”.

A ausência de luta aberta contra as condições precárias em que vivem e trabalham

parece ter o seu equivalente funcional na procura de soluções individuais, mas como tais

objectivos só excepcionalmente se traduzem em melhorias efectivas na situação pessoal

de cada um, prevalece a aspiração ávida de “esquecer” a fábrica sempre que se possa. A

ideia comum, assente no pressuposto de que em empresas pequenas como esta

prevalecem os laços de lealdade, a adesão dos operários aos objectivos patronais, cai

por terra quando se começa a penetrar mais profundamente neste ambiente laboral. Ela

não se verifica de modo nenhum. A situação do trabalhador manual é subjectivamente

sentida como uma necessidade, mas não como uma fatalidade. Muito embora a maioria

permaneça na fábrica durante décadas ou para o resto da sua vida activa (nesta, ou

noutra) a ambição de a abandonar se tal se vier a tornar viável, o desejo de compensar

os baixos salários com outras actividades, permanecem bem vincados na maioria dos

trabalhadores. O argumento patronal das dificuldades financeiras da empresa é, pois,

recebido pelos operários com gestos de insatisfação e indiferença ou com o sorriso

sarcástico de quem toma essa conversa por falaciosa.

Entre os operários e o patrão desta firma, os contactos directos praticamente não

existem. Não assisti a conversas informais ou sequer a uma breve troca de palavras

amistosas. Só raramente se esboça um bom dia quando o senhor NV se aproxima de

algum posto em particular. Além das situações em que um operário pode ser chamado

ao gabinete da Direcção – raras, e normalmente pelas piores razões –, os contactos

directos são quase imperceptíveis. O proprietário da Walky parece lamentar que se tenha

perdido alguma informalidade que terá existido anteriormente, por exemplo, quando se

refere, em tom saudosista, aos tempos em que se faziam convívios e festas na

empresa191. Mas a falta de “diálogo” de que o patrão se queixa e a falta de “diálogo” de

que se queixam os operários parecem constituir duas subjectividades que passam ao

191 Alguns anos antes, houve uma situação em que, dada a ausência de encomendas, alguns trabalhadores

se ocuparam de diversos arranjos nos terrenos do patrão. Alguns operários recordaram-me esses tempos,

também eles evidenciando alguma nostalgia, relatando situações hoje lembradas sobretudo pela sua

dimensão lúdica ou de “aventura”, dado o seu carácter extraordinário.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

331

lado uma da outra sem se tocarem. Representam a forma como a construção identitária é

efectuada a partir da oposição entre o Nós e o Outro (Bauman, 1996: 37-53).

A interdependência estrutural que liga o operário e o patrão adquire, no domínio

subjectivo, a forma de discursos rivais em que cada um deles se torna impossível de

traduzir pelo adversário. Embora no campo da consciência colectiva (ou, se quisermos,

da “consciência de classe”) se trate de um contexto bem diferente daqueles em que

predominou o velho discurso militante, da classe contra classe, a linguagem simbólica

que se inscreve nos gestos e comportamentos deste colectivo parece exprimir a mesma

forma de identidade fundada nas relações de poder inerentes à relações de classe. É uma

linguagem de classe (Jones, 1989) que se assume como um jogo de monólogos e de

silêncios, carregados de sentido e marcados por subjectividades antagónicas. É, pois,

um processo eminentemente social e cultural que decorre da própria natureza do poder

entre o capital e o trabalho e que, obviamente, transcende a vontade intencional dos

actores envolvidos. Por exemplo, quando o patrão invoca a importância do “diálogo”

espera dos subordinados uma atitude de aceitação, de “compreensão das dificuldades” e

de cooperação, isto é, o diálogo é invocado no pressuposto da adesão aos objectivos da

empresa ou às boas intenções do seu proprietário192. Por seu lado, os trabalhadores

referem-se à “falta de diálogo” por sentirem que as suas aspirações não são ouvidas e

por acharem que as suas competências não são reconhecidas193. Muito embora as

relações directas entre operários e encarregados se revistam de nuances variadas (como

iremos ver mais adiante), a demarcação entre os dois campos não oferece dúvidas: para

os trabalhadores, as acções do encarregado têm a sua principal sede nos interesses do

patrão.

192 Por um lado, o diálogo individualizado é sempre distorcido pela relação de subordinação em que

qualquer assalariado se encontra, por outro lado, não seria possível numa empresa discutir todos os

assuntos importantes em plenário ou em condições de absoluta democraticidade. Por isso, as condições de

diálogo requerem a existência de estruturas de representação eleitas pelo colectivo dos trabalhadores. Este

é um problema de fundo e difícil de ultrapassar, já que, como se verá, o único elemento formalmente

representativo (uma delegada sindical) não possui, de facto, uma real legitimidade dos seus colegas. Os

trabalhadores mais conscientes e “representativos” afastam-se da militância sindical e, por sua vez, a

Direcção da empresa vê o sindicato e os seus activistas como portadores de desígnios destrutivos, sendo

facilmente alvo de represálias patronais. Num clima de retraimento e de algum individualismo, os

trabalhadores mais competentes e reconhecidos pelo colectivo recusam-se a correr o risco de serem

“queimados” ao aceitarem o papel de delegados sindicais. Um ciclo vicioso de difícil solução num

contexto como este. 193 A pretexto de um pequeno inquérito que apliquei aos operários, e onde se incluíam questões

relacionadas com a sua atitude em relação à empresa e às chefias, um dos operários quis saber se os

resultados do inquérito eram para o patrão ficar a saber: “é bom que eles saibam para verem como os

trabalhadores se sentem”. Quanto à falta de diálogo, não tem dúvidas, “toda a gente sabe que não há

diálogo. Quem disser que há, está a mentir”, acrescentou o mesmo trabalhador.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

332

Episódios como o da afixação do calendário das férias em que os operários se

depararam com a decisão consumada de terem de utilizar uma das semanas de férias

logo a seguir à Páscoa (porque isso era necessário para responder às encomendas)

ilustram bem o descontentamento dos trabalhadores face a esta prática de “facto

consumado”, um prática que traduz efectivamente um comportamento autocrático194.

Foram muitos os comentários a que pude assistir na sequência deste episódio, em

especial durante os intervalos, embora sempre à boca pequena e sob a forma de

desabafo individual: “é só à vontade deles!”, “é tudo como eles querem!”, “tem algum

jeito irmos de férias agora, quando os maridos estão a trabalhar?”, “nunca somos

ouvidos nem achados…”. Outros faziam observações mais irónicas: “este ano vamos

todos para o Algarve pela Páscoa!”, “só espero que nos paguem logo o subsídio de

férias…”, “vamos ver se não haverá ainda alterações à última hora, como é

costume…”. Alguns trabalhadores faziam contas certificando-se se a totalidade dos

dias assinalados correspondia ao que tinham direito.

Pode ainda referir-se, a título de exemplo, o que se passou no Verão do ano

anterior (em 1995): o pessoal foi “convencido” a abdicar de uma semana de férias

devido a uma encomenda que foi devolvida por um cliente importante. Esse trabalho foi

pago aos operários pelo dobro (além do respectivo subsídio de férias), mas os

encarregados ainda hoje se queixam de não terem sido compensados, bem como do

facto de o próprio patrão não ter cancelado as suas férias. Um operário olhava um dia

para o recibo de ordenado onde se informava que a empresa tinha aumentado o seu

capital social em mais algumas dezenas de milhar de contos. Comentava sozinho

sacudindo o papel com as costas da mão: “pfff!… aumento do capital social!, quero que

se fff… o capital social!! Se nos dessem mais algum é que não faziam favor

nenhum!!…”. Em seguida referiu-se ao esbanjamento do patrão, nomeadamente quando

este patrocinou uma equipa de futebol da zona. Ouviram-se frase como: “para umas

194 No principio de Março, numa terça-feira às 8 horas da manhã, os trabalhadores depararam-se com o

calendário das férias afixado junto ao relógio de ponto. Das quatro semanas de férias a que têm direito (22

dias úteis), foram programadas duas para o mês de Agosto, uma no Natal e a outra, para surpresa de

todos, logo em Abril, na semana a seguir à Páscoa. Alguns dias de férias que restavam foram ainda

distribuídos, um a um, pelas alturas do ano em que, devido a feriados, se “faz a ponte” com o fim-de-

semana. De acordo com a lei em vigor, os patrões escolhem um período até duas semanas e os

trabalhadores o tempo que resta, mas a lei diz também que o período de férias deve ser gozado entre Maio

e Outubro de cada ano, a não ser que haja concordância de ambas as partes para um período diferente.

Neste caso, não tendo existido qualquer diálogo prévio, os operários mostraram a sua indignação –

embora apenas em termos de desabafo individualizado – por ninguém ter auscultado a sua opinião.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

333

coisas tem dinheiro, para outras nunca tem (...). Para essas tretas, quando é para se

armar, há dinheiro. Para os que deixam aqui o coiro é que não há!”.

6.2.2 - Os encarregados e as relações de poder: uma posição de fronteira

Sobre a relação entre o patrão e os encarregados, começo por recordar algumas

das posições patronais relativamente a um dos encarregados (CR), que é um dos mais

antigos colaboradores da empresa, mas acusado de incentivar os seus subordinados à

reivindicação. CR é considerado como um indivíduo “de esquerda”, o que, neste

contexto, não é certamente uma mera coincidência. Na verdade, aquele responsável deu

mostras de ser o único chefe de secção que parece identificar-se mais com os operários

do que com a estratégia da direcção. Nos seus comportamentos quotidianos permanece

em geral junto dos trabalhadores, conversando com eles nos intervalos; como vai

almoçar a casa, não acompanha os outros colegas nas idas ao restaurante; nas duas

reuniões que fiz com os encarregados – com o acordo do patrão e tendo em vista a

dinamização da participação e do diálogo – foi sempre o primeiro a sair e mostrou-se

pouco colaborante; das várias conversas que tive com ele, embora mostrando

cordialidade, sempre me pareceu um pouco desconfiado o que, sem dúvida, se prende

com as boas relações que eu próprio mantinha com o patrão; na visita que fiz à empresa

já depois de terminada a pesquisa, e após a dissensão que houve entre mim e o senhor

NV (o proprietário), a sua abertura e simpatia para comigo foram muito maiores. Vários

comentários comprovaram que este encarregado tem de facto a confiança da maioria

dos operários: “é o único que está do lado dos trabalhadores e é capaz de dizer que não

ao patrão. Os outros falam por trás, mas quando chegam ao pé dele [o patrão] já não

dizem nada, abanam com a cabeça e concordam com tudo o que ele diz”. Um dos

colegas de CR, demarcando-se, afirmava que se ele tem razão em certas coisas também

não é admissível que alguém com a posição de encarregado esteja sempre no contra.

“Ele refugia-se nos operários, dá-se bem com eles mas, apesar disso ser positivo, não se

pode perder o sentido do dever, dada a posição de responsabilidade que se detém”. Em

geral o posicionamento dos outros em relação a CR reflecte a posição de “pivot” que

este simbolicamente ocupa no delinear das contradições entre as chefias e o sector

operário. Um outro encarregado com quem conversei regularmente (AB), embora

manifestando uma posição de alguma simpatia pela actividade sindical, demarca-se

também do sindicato do calçado e afirma: “isto aqui, quando se é encarregado é-se logo

um lacaio do patrão (…), quanto a isso não há nada a fazer!”. Tudo isto nos mostra

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Entre a Fábrica e a Comunidade

334

como a relação entre o patrão e os encarregados é em grande medida aferida pelo

posicionamento destes face aos operários, uma indicação que, ao mesmo tempo,

comprova como o antagonismo de classes está presente na empresa e é subjectivamente

equacionado pela entidade patronal. Há, evidentemente, diferenças no relacionamento

entre o proprietário e os encarregados. A preferência do patrão vai sobretudo para o

“gerente da produção” (ou encarregado geral, M) e é com ele que têm lugar as

conversas mais detalhadas sobre os problemas da empresa. Em todo o caso, não

obstante essas diferenças, pareceu-me evidente que nenhum dos encarregados, incluindo

este, adere totalmente às posições da Direcção e, mais do que isso, o que é claro é que

eles embora preservando um discurso e uma atitude consonante com o cargo de

autoridade que ocupam não passam o seu tempo a pensar na empresa. Quando saem

dos portões da fábrica tentam esquecer o trabalho, como qualquer outro trabalhador. É,

aliás, um pouco por isso que o patrão se queixa de falta de diálogo.

Efectivamente, mesmo os mais próximos colaboradores de NV raramente dão

cobertura às suas posições ou, se a dão, é porque se sentem a isso obrigados e não por

convicção. Isso é visível em muitos dos seus desabafos e comentários. Um deles (AB),

logo no início da minha estadia na empresa, colocava-se numa posição critica face à

“conversa do patrão” e mostrava-se descrente das suas repetidas afirmações, como por

exemplo a de que “é preciso semear primeiro para colher mais tarde”. Afirmando que

podia concordar com a ideia, acrescentou: “só que nós andamos a semear, a semear, há

muitos anos e não colhemos nada (...), quando se semeia e a terra não dá nada, ao fim de

pouco tempo o agricultor tem de virar costas e dizer bar‟ da merda!...”. Na sua opinião,

o patrão tem por vezes “umas ideias um bocado esquisitas...” e sublinhava que ele é

muito contraditório e inconsequente nas suas posições. Deu o exemplo da situação das

férias do ano passado, atrás referida, assumindo que no início discordou, mas mais tarde

reconheceu que estava errado e que essa foi uma solução necessária. Mas o que mais o

preocupava era a incoerência do patrão ao não querer pagar aos encarregados por esse

trabalho. Uma reacção muito sintomática foi visível quando o interpelei a propósito do

desejo do proprietário em desenvolver a motivação dos trabalhadores. Primeiro riu-se.

Perante a meia resposta que já estava contida naquele gesto, perguntei-lhe: “é possível

mais motivação sem aumentos de salário?”. A resposta saiu de pronto: “isso? Nem

pensar (...) Motivação!?...” e fez um gesto escondendo o soluço sarcástico: “não se

esqueça que o pessoal não tem aumentos há dois anos (…). Evidentemente que, perante

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Entre a Fábrica e a Comunidade

335

isto, o pessoal tem razão para estar descontente! Faz o seu trabalho, cumpre com as suas

obrigações, mas é claro que a motivação não pode ser muita”.

A posição dos encarregados é, efectivamente, a mais ambígua no âmbito do

sistema de poder da empresa. É o lugar de fronteira que marca a clivagem classista entre

o operário e o capitalista. A subjectividade destas posições intermédias de chefia parece

dilacerar-se entre os antagonismos de classe e os laços de lealdade pessoal: de um lado,

a empresa e o patrão que lhes delega poder, mas ao mesmo tempo sobre eles impõe

constrangimentos e deles exige uma entrega e dedicação que colide por vezes com os

seus interesses e motivações pessoais; do outro lado, os operários seus subordinados, a

quem estão ligados no dia-a-dia, a quem reconhecem dificuldades económicas, que

tentam por vezes proteger, mas que têm ao mesmo tempo de controlar, sentido no seu

íntimo o desconforto de serem olhados como o “inimigo”. Um ponto em que todos

parecem de acordo é sobre o discurso pessimista do patrão. Acham que é um exagero.

Apesar das crises, dizem, “as coisas não estão tão negras como ele quer fazer crer”.

Além disso, para eles a atitude demasiado negativa do proprietário contribui para tornar

as coisas mais difíceis195.

Mais adiante irei centrar-me nos jogos de poder entre os encarregados e os seus

subordinados, dando uma atenção mais detalhada ao caso da linha de montagem. O

encarregado desse sector personifica, mais abertamente do que os outros, o sistema de

poder em vigor na empresa, que tenho vindo a designar como autocrático-paternalista.

Sublinhe-se, uma vez mais, que os comportamentos e gestos de autoritarismo que

repetidamente pude observar durante a minha presença na empresa, resultam da

natureza complexa e contraditória desse mesmo sistema e não devem, por isso, ser

interpretados com base em traços de carácter individuais, deste ou daquele actor social.

Além disso, as características e exigências que obrigatoriamente estão presentes na linha

de montagem traduzem-se em dificuldades acrescidas, quer na dimensão técnica, quer

na gestão do pessoal. Contudo, o estilo e a própria trajectória pessoal de FI conferem-

lhe uma postura muito própria e particularmente adequada à lógica subjacente a este

sistema de controlo. A sua atitude um tanto rígida, formalista e, acima de tudo, a

pretensão de querer mostrar-se conhecedor de todas as matérias, o tom paternalista que

imprime no seu discurso, etc., denunciam um estilo que corresponde um pouco à

195 O encarregado geral revela sempre uma posição mais conciliadora e dialogante, atitude essa que o

leva a ser acusado pelos operários e pelos próprios colegas de falta de coragem.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

336

imagem estereotipada do militar de formação. Estes atributos, somados à sua baixa

escolaridade – ao nível do ensino primário, apesar de ter frequentado vários cursos de

formação profissional –, fazem com que as “certezas” que manifesta espelhem

sobretudo uma grande insegurança. Mesmo aos olhos dos seus colegas mais directos, e

até do patrão, a sua imagem é a de um indivíduo teimoso e autoritário. Num jantar, em

que participei com os vários encarregados, chegou a ser alvo de chacota por parte dos

seus pares: em jeito de brincadeira imitavam os seus tiques e as frases que gosta de

repetir: “eu explico, eu explico…”; e riem-se nas suas costas. Todavia, mesmo no caso

de FI, o alinhamento com as posições patronais não é tão óbvio como possa parecer. É

uma posição ambivalente que adquire contornos muito próprios. Contrariando a fama

que tem junto dos operários, o encarregado da montagem, evita mostrar-se bajulador do

patrão. Pelo contrário. Algumas das suas atitudes parecem negar a ideia dos que o

acusam de ser “graxista”, de ter subido à custa disso e de estar sempre a querer

evidenciar-se junto do patrão. Nas conversas que manteve comigo, ou quando se

aproximava das operárias nos intervalos, referia-se por vezes aos “interesses do

patronato”(em geral) como a causa das carências dos operários, falando mesmo do

desejo de “enriquecimento fácil” como a razão dos baixos salários. Este discurso, que é

geralmente partilhado pelos trabalhadores e pelos restantes encarregados, parece,

contudo, ser parte da sua estratégia pessoal para atenuar o relativo isolamento em que se

encontra. Em relação a mim, para além da cordialidade da sua relação, essa tónica

parecia tornar-se mais ostensiva à medida que a minha proximidade com os

trabalhadores aumentava. Avaliando a sua prática e os seus comentários e tendo em

conta os vários pontos de vista de outros interlocutores (subordinados, colegas, etc.),

parece claro que este encarregado é particularmente vulnerável à posição ambivalente

em que se encontra. Não apenas àquela que deriva directamente do seu estatuto

ambíguo (enquanto chefe de secção e enquanto trabalhador assalariado que é), mas à de

quem precisa de gerir uma posição particularmente delicada, que se torna ainda mais

delicada devido à própria instabilidade resultante da disputa de saberes – e de poderes –

que se joga constantemente entre os responsáveis da supervisão e os operários mais

qualificados mas sem autoridade formal. Todo o encarregado tem necessidade de

mostrar eficácia produtiva e capacidade de comando, mas, em especial na linha de

montagem, é constantemente posto à prova um conhecimento técnico e polifacetado que

tem de responder a uma grande diversidade de tarefas. E a necessidade de mostrar que

se domina na perfeição o saber-fazer constitui uma fonte de autoridade fundamental na

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Entre a Fábrica e a Comunidade

337

relação com os operários. Para além da dedicação à empresa e ao seu proprietário, a

pressão que inevitavelmente o encarregado tem de exercer sobre os operários precisa de

ser compensada com gestos de aproximação e cumplicidade face às exigências e

descontentamento destes, nomeadamente na questão salarial. Como a seguir iremos ver,

estes problemas que envolvem a relação entre os encarregados e os subordinados

reveste-se sempre de tonalidades variadas, donde se pode retirar que, nesta lógica de

poderes, todos os actores tomam parte e contribuem de um modo ou de outro para

alimentá-la.

6.2.3 - Os jogos de poder do colectivo operário

Situar a forma como se configuram as relações de poder entre os operários e os

encarregados é reconhecer que os operários têm poder. Ou seja, é reconhecer que eles

estão longe de ser meras peças da máquina produtiva ou meros repositórios de um poder

unidireccional que sobre eles é exercido. Retomando aqui Burawoy, deve recordar-se

que o taylorismo nunca conseguiu, na prática, consumar por completo a separação entre

concepção e execução. Os responsáveis da gestão, embora tenham chamado a si o

controle do conhecimento técnico, não conseguiram nunca monopolizá-lo. Trata-se

assim de reconhecer uma nova oposição entre o conhecimento apropriado pela Direcção

e o conhecimento dos trabalhadores. É a parte que lhes cabe do seu saber-fazer que lhes

permite pôr em prática processos mais ou menos subtis que tendem a contrariar as

regras da hierarquia e, de certo modo, recriar “a unidade entre concepção e execução”.

O processo de produção capitalista não se limita, como já foi assinalado, a estruturar

objectivamente uma classe. Do mesmo passo, modela subjectivamente as identidades

colectivas e individuais através da experiência vivida pelos trabalhadores no processo

de produção. As relações na produção, além de não serem uniformemente determinadas

pelo modo de produção capitalista, traduzem-se em experiências específicas, em jogos

informais que podem assumir-se como formas ideológicas ou, digamos,

“micropolíticas”, cujo efeito pode ser o de conciliar as relações de produção, dando

lugar ao que Burawoy designou de “fabricação do consentimento”. Porém, neste caso,

tal consentimento não é totalmente conseguido. Assim, além de se olhar o espaço

produtivo como transcendendo o seu conteúdo económico, mesmo num contexto de tipo

despótico conseguem-se esculpir alguns espaços de liberdade (Crozier e Friedberg,

1977) com base no saber técnico, nas regras do jogo que se aprendem a dominar, na

subtileza da pequena sabotagem, etc., ou seja, há zonas de incerteza (Bernoux, 1985)

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Entre a Fábrica e a Comunidade

338

em que a relação de poder se inverte pontualmente. De algum modo, pode dizer-se que

a prática repetida do “jogo” informal transmuta a necessidade dos subordinados numa

certa forma de liberdade (Burawoy, 1985).

As formas que tal “jogo” adquire na empresa são visíveis sobretudo na relação

entre o grupo operário e as chefias directas. É nesta interacção que se desenha uma das

ambiguidades deste operariado, reveladora de que, apesar da sua “precária” consciência

de classe, apesar da sua identidade “fragmentada”, se trata não apenas de uma classe-

em-si, mas de uma classe que, nas suas atitudes e práticas no espaço produtivo, pode até

certo ponto ser considerada – e isto utilizando num sentido mais heterodoxo os

conceitos de Marx – uma classe-para-si. Uma classe que não apenas consente

passivamente a exploração, mas resiste a ela e participa na sua recriação. Porventura à

sua maneira, mas tenta preservar-se; porventura não de forma aberta e organizada, mas

através da “guerrilha”; porventura não politicamente, mas culturalmente, participa na

estruturação identitária que tem lugar no quadro das relações produtivas. Trata-se,

talvez, de uma forma que se aproxima do que Lenine designou como “instinto de

classe”. Uma forma que, além disso, nos deve levar a questionar, quer a excessiva

ênfase no conformismo e na passividade, quer a concepção idealista de um proletariado

como vanguarda redentora da emancipação social.

É precisamente porque o jogo das relações simbólicas de poder é carregado de

ambiguidades, é porque a colectividade operária parece transportar um poder que não

sabe que possui (mas que os seus adversários conhecem de perto), é por isso, digo, que

a estratégia dos encarregados é em geral muito cuidadosa na relação com os operários.

Digo cuidadosa, mas não necessariamente branda. O encarregado da montagem, ao

relatar-me aspectos da sua experiência inicial, ilustra situações dessas. Sublinha a sua

preocupação em que tudo saia bem feito, mas também as dificuldades em levar os

trabalhadores a fazer as coisas segundo “o método correcto”. Reconhece que o operário

que já está no seu posto há vários anos tem uma experiência muito grande, mas refere

também as dificuldades com que se deparou para combater os “vícios”. Sublinha, com

ênfase, que os operários tentam sempre fazer as coisas à maneira deles: “por vezes da

maneira mais difícil, até para eles”. E isto porque, acrescenta, “além de se cansarem

mais, rendem menos”.

Fala dos primeiros tempos como encarregado em que, afirma, alguns lhe tentaram

“fazer a vida negra (…). Estavam sempre a apalpar o pulso. Se sentiam que era mole

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Entre a Fábrica e a Comunidade

339

abusavam logo (…) Havia coisas em que ainda tinha pouca prática, mas sempre fui

procurando melhorar, até saber fazer bem, como hoje, qualquer operação na linha de

montagem. Quando é preciso mostrar, sento-me ao lado do operador e mostro-lho como

se deve fazer (…)”. Reconhece que, por vezes, embora as coisas não saíssem

exactamente como ele queria, deixava passar. Ainda hoje isso acontece. Mas, conlui:

“eu apercebo-me!, (…). Eles pensam que não, mas eu se fecho os olhos é porque quero

(…)”.

A propósito dos gritos que por vezes dá para chamar a atenção desta ou daquela

operária, tem uma explicação: “dantes eu costumava chegar ao pé delas e chamar a

atenção. Dava a volta pelos diferentes postos e controlava as coisas. Mas comecei a

perceber que elas me queriam trocar as voltas. Quando eu me ia dirigir a alguma que

estava a conversar ou a fazer asneira, elas percebiam e nessa altura mudavam de lugar.

Outras vezes eram as outras que ficavam atrás de mim que me chamavam quando eu me

encaminhava para um certo posto (…)”. Esta acção de resistência ou, nas suas palavras,

de “boicote” ao papel do “responsável”, levou-o nessa altura a fazer uma reunião com

todos os trabalhadores (dos acabamentos e montagem) em que anunciou as novas

regras: “a partir de agora ninguém sai do seu posto de trabalho sem minha autorização.

Se vejo alguém fora do posto sem motivo, vai imediatamente lá para fora”. Outras

afirmações suas – que me foram transmitidas durante uma reunião com todos os

encarregados – são bem reveladoras da visão que tem do seu próprio papel e dos

operários que chefia. Usando sempre um tom irrefutável e paternalista explicou: “é

preciso ter uma linguagem técnica para toda a gente dizer da mesma maneira”; “não se

pode dar a entender ao subordinado que ele tem razão porque se ele pensa que sabe

mais, perde o respeito”; “se ele é incorrecto é preciso ser firme e não dar parte de

fraco”; “eu sou um encarregado! E como encarregado ênfase, como profissional que

sou, ensino como se faz!, não se pode mostrar fraqueza, se apalpam e sentem que é

mole (...)”; “estão aqui para trabalhar e não para dar opiniões (...)!”

Segundo me foi relatado, outros encarregados que anteriormente foram

responsáveis pela secção de montagem tiveram dificuldades idênticas ou até superiores.

É, aliás, precisamente por haver consciência das funções decisivas que esta secção

ocupa no processo productivo e na gestão das tensões laborais que os trabalhadores no

seu conjunto procedem ao “estudo” minucioso do comportamento e da personalidade de

quem a chefia. É, portanto, natural que o processo de promoção deste encarregado,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

340

desde que entrou na empresa há cerca de 10 anos, seja objecto de crítica por parte de

muitos. No início trabalhou ainda como “montador” e também nos “palmilhados”, como

operário, mas uns meses depois tornou-se chefe da montagem. Dizem os seus críticos

que ele já veio destinado a ser encarregado, apenas esteve uns meses a “fazer rodagem”

em alguns postos. Alguns trabalhadores afirmam que há alguns anos, quando havia

reuniões gerais com mais assiduidade, enquanto os outros ficavam sentados junto dos

trabalhadores do seu sector, o FI “ia lá para cima, para ao pé do patrão (…). Queria-se

armar em bom, em importante...”. Alguns, à boca fechada, dizem que “é uma besta” e

que muitas vezes “não sabe o que anda a fazer”. Acusam-no de ser obcecado pela

produção, mas, ao mesmo tempo, de não tomar atenção às inevitáveis oscilações na

produtividade (em função de cada modelo de calçado), mantendo o ritmo elevado na

linha quando devia esperar e de ser demasiado exigente em certos momentos (por

exemplo no início de um novo modelo) enquanto, noutras alturas, “facilita” na

qualidade em favor da quantidade. É também contestado por ser parcial nas suas

relações com os subordinados, de dirigir as atitudes autoritárias sobretudo às mulheres,

sendo “tolerante” em relação a outros. Enfim, os comentários desfavoráveis repetiam-se

e o FI sem dúvida sabia disso ou, pelo menos, parecia adivinhá-lo. Desabafava por

vezes junto de mim, como que a justificar-se, afirmando que “as preocupações são

muitas” e reconhecia que em certas alturas “dizem-se coisas que não se deviam dizer”.

Refere a constante pressão do proprietário, que exige dele níveis de produtividade nem

sempre possíveis de alcançar.

De facto, o patrão parece observar e registar atentamente qualquer gesto que lhe

pareça sinal de facilitismo na linha de montagem. Se nota que em algum posto há

“tempos mortos”, não se esquece mais tarde de atirar ao chefe do sector que há pessoal

“a arranjar as unhas…”, forma curiosa de denunciar o trabalhador que aproveitou algum

subterfúgio momentâneo para abrandar o ritmo. Esta dependência dá algum crédito aos

que afirmam que os “berros” do encarregado se fazem sentir em especial quando o

patrão está por perto. Isto permite-nos ainda reforçar a ideia de que não se trata tanto

de um autoritarismo pessoal, mas de toda uma lógica disciplinar fundada num regime

de pendor autocrático onde o ritmo produtivo tem de se traduzir na constante

“transpiração” do operário.196

196 Em ocasiões de maior aperto, ou seja, quando é necessário apressar a entrega de qualquer encomenda,

“pede-se” a algumas trabalhadoras que fiquem a fazer horas extraordinárias até às 20 h ou mais tarde, se for

necessário. Ficar a cirandar, é o termo por que é conhecido o trabalho extraordinário. A decisão e selecção

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Entre a Fábrica e a Comunidade

341

Os métodos autoritários em vigor na linha de montagem foram repetidamente por

mim presenciados. As raparigas mais jovens são as vítimas preferenciais. Embora seja,

até certo ponto, compreensível que por serem mais inexperientes possam errar mais,

parece claro que há aí uma selectividade calculada. O poder masculino sobrepõe-se ou

articula-se com a dominação de classe, mantendo a mão-de-obra feminina como o

sector mais precarizado da força de trabalho. Nessa medida, o autoritarismo assume

sempre formas mais arrogantes quando é dirigido às mulheres, conforme pude

testemunhar durante a minha observação. Um dia, o chefe da montagem chamou uma

das operárias e pediu-lhe para desenformar umas botas (amostras) quando ela se

encontrava junto das embalagens. Como naquele momento estava a acabar outra tarefa

respondeu: “já vou”. Pouco depois, e como não visse a sua ordem seguida de

imediato, o encarregado foi junto dela e gritou-lhe: “mas o que é que eu estou aqui a

fazer?!”. Numa fúria crescente, que para mim era até então fora do comum, gritava:

“queres ir lá para fora? Queres?!”. “Ir lá para fora” é uma forma de punição que vigora

na empresa. Uma trabalhadora pode ser mandada para a rua durante um período de

tempo variável, sendo-lhe depois descontado esse tempo no ordenado. É inegável que as

atitudes mais autoritárias são sempre dirigidas aos mais vulneráveis, em particular às

raparigas mais jovens para quem o grito de longe é o método mais frequente: “vem cá

contar-me essa que eu também queria ouvir!”; “então o que é que eu sou aqui afinal?...

Aquilo que eu digo é para se fazer ou quê?!”. Tal como com estas raparigas jovens –

conhecidas na fábrica pelo “pessoal de Alvito” – assisti a outras situações de grande

violência, sempre dirigidas a trabalhadores de menores recursos. O tio António (o meu

companheiro de posto de trabalho) e a Rosa são exemplo disso. Em ambos os casos, o

encarregado mostra-se particularmente irritado com o facto de olharem para o chão

quando lhes dirige alguma reprimenda. Vi-o a gritar para o meu colega de posto: “Olhe

para mim! Olhe para mim carago! Porque é que não olha para mim?”. O caso da Rosa é

semelhante. São trabalhadores sem qualquer instrução escolar e cujas marcas de

ruralidade saltam à vista. A sua postura corporal perante a posição de poder com que

são confrontados imprime-lhes no rosto uma expressão semelhante à de crianças

do pessoal é, em geral, feita no próprio dia. O encarregado geral dirige-se individualmente aos

trabalhadores (as mulheres dos acabamentos são as mais requisitadas) com um papel na mão a fim de

anotar o nome das que ficam para o prolongamento. Quando lhes é pedido para ficarem até mais tarde, a

maioria aceita, mas nota-se que o fazem a contra-gosto. Algumas recusam, o que requer uma justificação

convincente, caso contrário podem ficar “queimadas”. As jovens de Alvito, quando ficam “a cirandar” são

transportadas até à zona de residência pela carrinha da empresa. Uma compensação acrescida. Mas isso não

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Entre a Fábrica e a Comunidade

342

desprotegidas e envergonhadas quando repreendidas em público. Estes casos são o

oposto da atitude dos jovens mais qualificados e instruídos que trabalham na linha de

montagem. Enquanto que estes evidenciam sinais de segurança, indiferença e até de

autoridade – inerentes ao capital educacional e às qualificações técnicas que possuem –,

os primeiros demonstram embaraço, retraimento e medo. Mas, apesar de disso, por

vezes também o tio António se mostra revoltado com o chefe. Quando o andamento da

linha era demasiado violento, explodia: “ele não vê que isto está atrasado?!”. Chateava-

se, ficava vermelho de irritação e protestava: “se não vem desligar a máquina e parar

isto, deixa-se seguir tudo pr‟á frente e pronto! (…)”. Noutras ocasiões, tanto o tio

António como os outros, adoptam uma atitude deliberada de “deixa andar”. Se vêem

que o encarregado não toma atenção à excessiva velocidade da linha, como sabem que

não ganham nada em protestar abertamente e também não querem ser cooperantes em

excesso, abrandam o ritmo de propósito e ficam “nas calmas”, como que a assobiar para

o ar, fingindo que não percebem o que se está a passar. Nota-se o prazer que sentem

quando vêem o encarregado em apuros. Esta é, evidentemente, uma forma de resistência

comum à generalidade do trabalho operário. Mas aqui assume traços muito próprios.

“Ele sabe a quem as faz!”, comentava o Paulo a propósito da lógica selectiva que

preside aos comportamentos despóticos do seu chefe. Com os homens, de um modo

geral, não existem atitudes ostensivamente arrogantes. As excepções que pude constatar

foram o tio António e o Pedro, sendo este acusado pelos seus colegas de “dar confiança

demais” ao encarregado. Da observação diária que efectuei ao longo deste periodo pude

confirmar que as reprimendas do encarregado se dirigem principalmente a quem se

mostra mais solícito e dele mais se aproxima. Pequenos desentendimentos e situações

de tensão com os meus colegas “pregadores” assumem em geral contornos bastante

mais subtis. Essas situações quase sempre se devem a problemas técnicos do fabrico.

Como já disse, o facto de os pregadores ocuparem um posto decisivo, o facto de serem

homens, ainda jovens, com alguma qualificação, e sem dúvida também por não

mostrarem medo na relação com o chefe (usando a sua linguagem, “não lhe dão

confiança”), são aspectos que contribuem decisivamente para que a relação com o

encarregado assuma de facto uma forma diferente. Vejamos alguns exemplos.

impede que se assista às recorrentes manifestações de contrariedade: sentem que o trabalho extraordinário é

mal pago e são por vezes obrigadas a alterar os seus planos familiares.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

343

Em dada altura detectou-se que as sandálias estavam a sair com as gáspeas

assimétricas e o FI mandou desmontar algumas delas, instruindo os operários para

manterem os “ponteados” da parte direita e esquerda do extremo das tiras da frente à

mesma distância da palmilha. Como é costume, ficaram a olhar para a “obra” que

tinham nas mãos, aceitando a solução proposta, mas pareciam desconfiados acerca da

sua eficácia. A aura de certeza que o chefe coloca quando dá a sua opinião contrasta

claramente com a falta de confiança que os outros apontam nas suas competências. No

caso dos homens da montagem é opinião unânime que ele entende pouco de cada

operação em particular. Com isso estão, evidentemente, a querer afirmar a sua própria

competência técnica, ou seja, o domínio em relação a um posto que é “o seu”, aquele

onde trabalham todos os dias. Um dos pregadores tentava executar as instruções

recebidas. Mais um pequeno retoque, com o encarregado ao lado, este disse: “está

bom”; enquanto o primeiro acenava com a cabeça num gesto concordante balbuciando,

pouco convicto: “está bom”. Após o outro virar costas, ao passar ao meu lado com a

sandália na mão para a colocar no carrinho, acrescentou: “está uma merda, mas

enfim…”. Minutos depois, os três operários comentavam entre si que aquilo assim

estava ainda pior, dizendo que o problema era do molde que estava mal feito, pois,

pregando as extremidades das tiras horizontais à mesma distância ficava a tira vertical

(do meio da gáspea) descentrada. O Pedro era o que falava mais alto com desabafos de

contrariedade e protesto e isso acabou por chamar novamente a atenção do encarregado,

desencadeando assim mais uma reprimenda: “quando se dá uma ordem é para se

cumprir! Não é para se ficar a discutir!”. Quando o FI se aproximou já os outros dois

pregadores (João e Paulo) estavam ao largo, sentados nos seus postos. Apercebi-me que

enquanto o chefe ralhava com o Pedro, estes dois trocavam sorrisos e olhares cúmplices

entre si. Explicou-me um deles mais tarde que quando querem “criar confusão”

arranjam uma forma de “atiçar” aquele colega contra o encarregado. “Nós começamos a

picá-lo, fazemos soltar as cachorras197 e pronto… quando as cachorras começam a

rosnar está a confusão armada!”

As cachorras rosnaram, o “domador” apareceu, deu dois berros e, pouco depois, já

se podia ver o Pedro a trabalhar sossegado. Minutos depois olhou para mim de longe e

esboçou um sorriso como que a dizer: “não há nada a fazer. Se ele diz que é assim,

assim se fará”. Mas não ficam convencidos. Mais tarde ainda voltaram a especular se

197 Significa isto, levá-lo a protestar e a irritar-se contra o encarregado.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

344

“amanhã ou depois” não os mandariam desfazer a “obra” e fazer tudo de novo. Muitos

detectam erros, mas não chamam a atenção porque acham que “não ganham para isso”.

Os desabafos repetem-se: “ele não liga nada”; “ele agora quer duma maneira mas daqui

a bocado se lhe der na cabeça já quer outra coisa (…). Às vezes por causa duma

cagadela de mosca faz para aí um barulho do carago! Agora aparecem as palmilhas

neste estado, com uma bela merda de trabalho e não dizem nada!!!...”. Esta revolta

surda, bem como as atitudes de boicote e de chacota expressam a convicção dos

operários de que o encarregado, apesar dos seus “ares de conhecedor” é de competência

duvidosa. É sintomático o prazer que sentem ao relatarem situações como esta: um

sapato não está bem, o chefe pede a um dos operários para dar um jeito e este diz:

“deixe ficar aí”. Passado algum tempo mostram-lhe novamente o mesmo sapato que

supostamente estaria arranjado mas que, em rigor, não alteraram absolutamente nada, e

ele responde: “está bem assim, mete na linha, manda p‟rá frente!”. E divertem-se com

isso.

Estes episódios são bem ilustrativos do significado simbólico das cumplicidades e

da rebeldia tácita dos trabalhadores face à lógica da empresa. O papel do trabalho na

contrução das identidades de grupo passa muito por situações deste tipo. Os momentos

de tensão, de resistência e de trangressão sublinham bem o carácter dinâmico das

relações de poder e mostram que não estamos perante uma atmosfera de total

passividade ou de mera aceitação por parte do trabalhador. Trata-se antes, de um jogo

em que os actores se fazem valer dos mais diversos meios para marcar pontos face ao

adversário, nomeadamente, no caso dos operários é visível uma atitude

aparentemente passiva, mas que é na verdade uma estratégia que passa por dissimular a

aceitação. É, no fundo, uma defesa face a possíveis represálias e uma forma de

“disfarce” tendente a enganar o adversário e a guardar para si próprios alguma margem

de manobra. Além disso, há mesmo situações em que a relação parece inverter-se, com

a posição dominante a surgir pontualmente como a dominada. Já se sabe que os

trabalhadores detêm um certo poder na medida em que a empresa e as chefias precisam

deles, não apenas para estarem presentes no posto de trabalho mas para que, em maior

ou menor grau, se dediquem efectivamente e apliquem de facto as suas capacidades no

processo produtivo. Tratando-se de um caso onde não existem instrumentos formais de

negociação, isto é, onde o trabalhador não tem nenhum meio de afirmar abertamente os

seus interesses, as suas respostas podem surgir como uma docilidade resignada ou

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345

assumir esta forma de “rebelião contida”. O carácter de jogo recobre-se de uma

simbologia e de uma expressividade muito subtis. O retraimento controlado ao longo do

tempo parece por vezes prestes a explodir, enquanto que noutras ocasiões assume

contornos mais corrosivos onde a transgressão é, como disse, marcada pela subtileza.

Um dos meus interlocutores referia-se à forma persuasiva de aproximação de um

dos encarregados quando um dia o chamou explicando-lhe que deveria começar a

aprender a trabalhar com uma nova máquina: “vens para aqui e vais começando a

praticar, vais aprendendo…”. O trabalhador ouviu em silêncio mas no seu íntimo, como

ele disse, “fiz-lhe um manguito!”, como que a dizer o que pensava, ou seja: “tu queres é

que eu me esfole aqui a fazer bicos, a fazer tacões, a fazer tudo...”. O encarregado

calou-se e ele, como se não percebesse que a ideia era começar nessa altura a

experimentar a referida máquina, voltou para o seu lugar de trabalho sem dizer nada. O

chefe também não insistiu e as coisas continuaram na mesma. O mesmo operário,

referindo-se a uma “obra fina” (calçado mais sofisticado) que, dias antes, tinha dado

vários problemas por causa das rugas que surgiram na gáspea, mostrava-se revoltado

com o facto de os responsáveis terem estado a ajudar no posto ao lado e ninguém ter

notado as dificuldades que estava a ter. Estava extenuado, a querer arranjar os tacões

num material dificílimo de montar: “empurrava daqui, puxava dali, a minha camisola já

toda encharcada” e ninguém dizia nada. “Depois saíram de lá, passado um bocado passa

o FI ao pé de mim a perguntar: então isso já está melhor agora? Eu que já estava cheio

reagi – está melhor como!? Porque é que havia de estar melhor?!”. A reacção foi, como

se diz na gíria local, “soltar as cadelas!...”. Outra fonte de descontentamento é a

prática da mudança inopinada da posição das máquinas (sempre decidida

unilateralmente pelo encarregado): “tem algum jeito estar a trabalhar de costas para a

linha?!… Nesse dia se ele me diz alguma coisa saltava logo!... Tem algum jeito

aquilo?...”; desabafava comigo aquele trabalhador.

Como se vê, a revolta acumulada pode pontualmente dar lugar ao protesto

descontrolado e assumir formas de conflito aberto. Mas trata-se sempre de reacções

individuais. É o carácter atomizado de uma classe que não actua enquanto tal. Prende-se

com isso a não politização dos conflitos e a lógica fragmentária das identidades laborais.

As situações de ruptura surgem normalmente quando as partes envolvidas têm alguma

proximidade, ou seja, quando a discrepância do poder formal é, de algum modo,

neutralizada pela informalidade das relações. Um outro trabalhador ainda jovem, mais

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Entre a Fábrica e a Comunidade

346

escolarizado do que a média e com bastante antiguidade na empresa, relatou-me um

problema com os “moldes” que o envolveu a ele e ao encarregado da montagem. Após

terem falado calmamente no armazém – que fica na cave e onde não há outros operários

–, e tendo-se esclarecido que o erro já vinha de trás, subiram ambos as escadas e quando

chegaram junto da secção de corte o conflito reacendeu-se: “à frente de toda a gente

começa a gritar comigo, a dizer que eu não tomei atenção. Mas com uns modos que me

fizeram perder a cabeça. Chego-me ao pé dele e gritei tão alto como ele. De cara a cara,

disse-lhe: „Olha, tu, vai-te fff…!‟ Ele ficou assim meio atarantado e perguntou: „O quê,

o quê? Isso é comigo?‟ – sim é contigo! E sai da minha frente! E virei-lhe as costas,

porque eu naquele momento se ele insistia ia-lhe à cara! Ele ficou a gaguejar para o ar e

eu virei-lhe as costas. Ficou a dizer, comigo ninguém fala assim...blá, blá!...”.

Pude comprovar que este incidente não teve outras consequências de maior e hoje

os dois contendores continuam a relacionar-se normalmente. Também testemunhei que

aquele operário, apesar de muito mais jovem, trata por tu o referido encarregado.

Isso

deve-se em parte ao facto de não estar na sua dependência directa e, por outro lado, à

atitude de uma certa tendência deste responsável de se aproximar dos que possuem uma

escolaridade mais avançada ou que, de algum modo, são detentores de um “saber-fazer”

potencialmente concorrente com o seu. Para além disso, a questão da “virilidade” deve

ser aqui equacionada. A força física, a coragem, a capacidade de enfrentar a dureza da

vida, o mostrar que se “tem tomates”, constituem ingredientes que fazem parte do

discurso e do imaginário masculinos, na base de uma lógica que simboliza a posição

dominante do homem tanto perante o trabalho como perante a mulher. Apesar da

presença maioritária de mulheres na indústria do calçado, as relações na produção são

manifestamente caracterizadas pela masculinidade. A hegemonia do discurso masculino,

a rudeza das relações entre os trabalhadores, o jogo sexual e a linguagem de índole

machista constituem características bem presentes nesta empresa. Existe uma

demarcação de espaços entre ambos os sexos e, em certa medida, as próprias mulheres

entram nesse mesmo jogo sem o alterarem substancialmente (veja-se no texto ao lado o

exemplo do “romance na fábrica”). Em todo o caso, estas reacções de “desrespeito”

podem ser toleradas não só por serem excepções, mas porque o esforço produtivo e a

capacidade dos seus diferentes intervenientes tende a sobrepor-se à disciplina formal,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

347

em particular porque situações como aquela anunciam a importância das relações

informais e a sua inevitável interferência na cadeia hierárquica.

A procura de afirmação de poder pelos encarregados e a luta tácita que travam

diariamente com os seus subordinados assume formas bem ilustrativas do carácter

dinâmico das relações de trabalho. Na fábrica, como noutros contextos, os actores em

posições de subordinação nunca são totalmente dependentes e por isso, como refere

Giddens, há uma dialéctica de controle que dá lugar a constantes desequilíbrios,

viragens e cedências que alteram continuamente a distribuição do poder (Giddens, 1982:

32). A observação desta empresa comprova bem a relativa fluidez do sistema e mostra

que os trabalhadores não são nem meros suportes do modo de produção nem

simplesmente lubrificantes de uma estrutura imutável. Os elementos de rigidez e de

maleabilidade do sistema de controle são duas faces da mesma moeda. Ou seja, muito

embora as relações de produção se preservem no tempo e reproduzam a lógica

capitalista, o que se passa no dia-a-dia do espaço fabril, as relações na produção numa

fábrica em concreto, espelham uma realidade social vulnerável à multiplicidade de

processos, de negociações, de estratégias de mercado, etc., em que a unidade produtiva

está mergulhada. Todas as partes participam activamente em todo esse jogo, quer

aceitando as suas regras ou fazendo-as cumprir, quer resistindo-lhes e contrariando-as.

A força ou a vulnerabilidade da empresa em termos económicos resulta desses

múltiplos efeitos. Quando, por exemplo, uma empresa é levada à falência ou expande as

suas capacidades produtivas, estamos perante o culminar de um conjunto de processos

desse tipo, nos quais participaram os diferentes actores directa ou indirectamente

ligados à empresa. As lutas diárias que aí são travadas, sejam elas conduzidas de forma

aberta (reivindicativa, política, sindical) ou apenas sob uma resistência latente e

continuada, têm consequências tanto económicas como na alteração das relações de

força e, portanto, no sistema de poder que lhes é inerente. Assim, se um olhar mais

superficial pode dar-nos a ilusão de uma absoluta estagnação, uma observação mais

atenta não deixa de revelar como os diferentes intervenientes participaram activamente

na estruturação das relações de trabalho num processo vivo e dinâmico composto de

múltiplas rupturas e continuidades. Essa dinâmica é bem visível na análise das relações

de poder entre as chefias intermédias e os trabalhadores desta fábrica.

Já atrás afirmei que os encarregados parecem evidenciar o desconforto de quem

caminha na fronteira. A clivagem incontornável entre quem pertence ao grupo operário,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

348

ou com ele é identificado, e quem está “do outro lado”, obriga a opções claras. E se

alguém, por força das coisas, tem de persistir na ambiguidade, vê-se na necessidade de

fazer uso de uma ginástica desgastante. O mesmo responsável (AB) que um dia me disse

que um chefe é sempre visto como “lacaio do patrão” revelou perceber bem a lógica

dominante e mostrou até o seu sentido crítico face aos mecanismos de exploração em

que está inserido. AB mantém relações de alguma proximidade com os operários, muito

embora tal não aconteça com os seus subordinados directos. Um dos trabalhadores que

lhe é mais próximo confidenciou-me que, quando está junto do seu sector a sua postura

se altera totalmente, procurando salvaguardar as distâncias perante os seus subordinados

(que são sobretudo mulheres). Outro aspecto curioso e sintomático é o facto de ele

almoçar no próprio balneário porque, segundo diz, não se sente bem a comer no

refeitório em frente às operárias. Na sua opinião, elas reparam em tudo e comentam

tudo: “se um tipo come com o garfo ou com a colher, se come sandes ou comida quente,

etc. (…). Não se pode dar muita confiança”. Prefere suportar o isolamento e o mau

cheiro – pois o balneário fica na mesma divisão das casas de banho – a ter de enfrentar

os olhares, ou seja, a partilha do espaço de informalidade e de descompressão que é o

refeitório.

Já no caso de CR, o encarregado dos “pré-fabricados” (que, como referi atrás,

assume uma atitude de ruptura, ou, pelo menos, de não cooperação com os interesses

patronais), a situação é muito diferente. Convive com os operários nos intervalos e estes,

sejam ou não seus subordinados directos, parecem nutrir para com ele uma relação de

forte lealdade. Reflexo decisivo dessa relação de proximidade é sem dúvida o seu

afastamento em relação aos seus pares. Uma vez mais, é a ruptura entre o “eles” e o

“nós” que está aqui presente. Uma identificação com os operários é sinónimo de uma

animosidade com o patronato e um alinhamento com o patrão é sinónimo de

desconfiança dos operários. Eu próprio senti na pele essa contradição (ver Capítulo 6-A,

ao lado). Várias vezes me interroguei sobre as razões de uma tão evidente simpatia por

este encarregado. Afinal, nunca ninguém referiu que ele tivesse reivindicado

abertamente junto do patrão direitos e regalias para os trabalhadores. Ele próprio

minimizou qualquer conflito aberto com o proprietário (com quem trabalha desde o

início da empresa), referindo apenas um ou outro desentendimento pontual. Mencionou

até as qualidades do seu empregador comparativamente com o patronato do sector em

geral o que, aliás, me pareceu sobretudo revelador da sua desconfiança em relação a

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mim198. Mas há outros aspectos a ter em conta. Sendo ele encarregado, detendo por isso

uma posição de poder na hierarquia da empresa, demarca-se totalmente da atitude que os

seus colegas adoptam junto dos operários: defenderem os interesses do patrão;

controlarem os trabalhadores; serem autoritários; não quererem misturar-se com eles;

etc. CR, embora não conteste abertamente o patrão nem a empresa, também não se

mostra nada preocupado em assumir a sua defesa; tal como os trabalhadores, prefere

afastar-se e fechar-se; prefere conviver com os trabalhadores, falar de futebol, de carros

e de pesca; resiste a colaborar nas horas “extra”, nos trabalhos ao sábado, etc. A sua

lógica é, portanto, a lógica comum à maioria dos operários: não é um activista; adopta

uma resistência passiva; procura outras compensações fora da empresa; está sempre

apressado para deixar a fábrica. Estas são algumas das práticas de alguém que, apesar do

seu estatuto de encarregado, parece de facto posicionar-se, não na zona de fronteira, mas

do “outro lado”. Resguardando-se nos laços de afinidade que mantém com os

trabalhadores, contribui para estruturar a identidade colectiva do grupo operário e

assume-se como uma peça central para alimentar a resistência passiva que a caracteriza.

Para terminar esta parte, vale a pena insistir num ponto já aflorado, mas ainda não

suficientemente discutido. Refiro-me à forma peculiar que a relação de poder entre o

encarregado e os operários pode assumir. Em certos momentos, os contornos dessa

relação apresentam-na completamente invertida, como já antes foi aflorado.

Obviamente que se trata de situações pontuais e mais relevantes na forma do que no

conteúdo. Além disso, não deve esquecer-se o carácter heterogéneo da colectividade

operária. As pessoas utilizam os recursos de que dispõem e procuram monitorizá-los no

dia-a-dia na relação com os outros, na base de experiências e habitus distintos, que se

traduzem em subjectividades e estratégias diferenciadas. Por exemplo, os recursos

económicos ou educacionais e as posições de status (pessoais ou familiares) que os

trabalhadores ocupam no exterior, etc., repercutem-se nas relações laborais, dando lugar

a comportamentos e estratégias dissemelhantes. A partir da observação da relação entre

o encarregado da linha de montagem (FI) e os operários mais qualificados, é possível

detectar o efeito simbólico do cruzamento discrepante entre o “saber-fazer” e as

credenciais educacionais. Num mundo em que as tecnologias avançadas se assumem

cada vez mais decisivas – pelo menos no discurso público e institucional em geral –, o

saber prático, parcial e tácito entrou abertamente em ruptura com o saber teórico,

198 Precisamente numa altura em que as minhas tentativas de aproximação aos operários chocavam ainda

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sistemático e explícito. Por isso, como assinalou Bourdieu (1979: 452), aqueles que

incorporam a definição dominante, apesar de desapossados de qualquer título legítimo,

tendem a perceber essa privação como uma mutilação essencial, cujos efeitos

disruptores sobre a identidade pessoal e social podem ser dramáticos. No caso concreto

do encarregado da montagem, além da contradição derivada da sua relação com o

conhecimento técnico e o diploma escolar, procura gerir a ambiguidade entre o seu

posicionamento na hierarquia e a procura de uma legitimação informal junto dos

subordinados. A constante invocação dos cursos de formação profissional que

frequentou denuncia a “boa vontade cultural” e a insegurança de uma aprendizagem

pouco consistente. Esta dimensão ajuda-nos a perceber melhor a lógica selectiva que

preside às suas práticas autoritárias e a razão de se colocar – em certos momentos –

numa posição de subalternidade, contrariando o estatuto de poder que formalmente

detém.

Um dos operários da montagem a que atrás aludi – o João – frequentava na

altura um curso de formação profissional (curso de encarregados), o mesmo curso que o

seu superior hierárquico (FI) também já frequentou. Esta circunstância ajuda-nos a

ilustrar como as características que acabei de referir fazem parte do jogo de poderes

entre os operários e o seu chefe directo. O trabalhador em questão mostra um à-vontade

e uma segurança bastante grandes na relação com o encarregado e com a fábrica em

geral. Na verdade, a sua experiência e a importância do seu posto de trabalho

constituem uma fonte de poder informal muito significativa. Acresce que uma anterior

iniciativa sua para se demitir levou a empresa a segurá-lo, aumentando-lhe

substancialmente o ordenado199. Como é evidente, este facto veio reforçar o seu poder.

Por isso me referiu que está lá a trabalhar mas poderia não estar: “eu estou aqui porque

me compensam em termos económicos, se não já cá não estava. Já tentei sair e eles é

que não quiseram… Deram-me mais algum e eu fiquei. Se estivesse a ganhar só 60

contos já cá não estava!…”. Isto ajuda-nos a perceber a relação “especial” do

encarregado para com ele. Quando está pontualmente a trabalhar ao seu lado, o FI

adopta uma postura serena e simpática, procurando meter conversa com o João. Faz-

lhe perguntas sobre o curso, o que pensa fazer depois de o terminar, falando de assuntos

ligados ao seu próprio curso, etc. Curioso é que esta aproximação parece rodear-se de

com o bom relacionamento que mantinha com o patrão e com os restantes encarregados. 199 Como reforço do meu argumento refira-se que, actualmente, cerca de três anos após esta observação

ter sido concluída, este operário ocupa uma posição de encarregado.

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todos os cuidados e precauções, adoptando o encarregado sempre um tom de voz muito

afável, em contraste com as abordagens autoritárias a outros trabalhadores, como atrás

assinalei. Com o outro operário que executa uma função idêntica – o Paulo –, a atitude

cordial mantém-se mas este fecha-se mais e “não lhe dá confiança”. Uma vez mais, o

facto de a operação de “montagem”, efectuada por estes trabalhadores, ser decisiva para

o andamento geral do processo produtivo explica, em parte, a cordialidade que o

encarregado lhes dedica. Quando um deles falta, ou chega atrasado, cria-se, regra geral,

uma certa atrapalhação na produção, o que não acontece com nenhum outro posto de

trabalho. Evidentemente que os trabalhadores em causa sabem disso e usam essa

“vantagem” nas relações com o chefe. Um deles chegava sistematicamente atrasado ao

trabalho – isto é, cinco ou dez minutos depois do toque da campainha (note-se que os

atrasos, ainda que de escassos minutos, podem levar à perda do prémio de assiduidade)

– o que em ocasiões de maior aperto dava lugar a algum nervosismo. Por vezes, quando

a sua falta de pontualidade habitual se alargava um pouco mais, pressentia-se o clima de

tensão e expectativa nos movimentos intranquilos do encarregado. Arranjava pretextos

na preparação do material para atrasar o arranque da linha. Quando se apercebia que o

carro do referido operário entrava nas traseiras da empresa ligava apressadamente as

máquinas e todo o mundo se agitava num ápice. Por um lado, era uma forma de lhe

mostrar que o seu atraso se traduzia em acréscimo de trabalho para os outros e

prejudicava toda a gente, mas, por outro lado, pretendia com isso esconder o

reconhecimento de que a sua tarefa era insubstituível.

Contudo, estas situações não ilustram apenas a importância estratégica de certos

postos de trabalho e o seu impacto nas relações de poder. Para além disso, é importante

dar atenção ao papel decisivo dos recursos pessoais e simbólicos que cada um dá

mostras de possuir. Não me refiro apenas ao domínio de um volume significativo de

capital escolar – que como já vimos assume aqui um efeito inegável, porque confere aos

operários que o possuem um certo ascendente sobre o seu supervisor –, mas também ao

facto de essa dimensão se repercutir na própria “pose” comportamental e até corporal

que estes trabalhadores denunciam, no modo como se relacionam com a empresa e os

colegas ou superiores. Efectivamente, trata-se de dois casos, em que as respectivas

famílias revelam traços de classe média e parecem viver numa situação remediada em

termos económicos. Ambos têm carro de matrícula recente; um deles vai casar

brevemente – com uma rapariga com habilitações escolares de nível superior (possui um

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bacharelato) – pelo que já adquiriu um apartamento; os seus pais exploram um café. O

outro também tem familiares directos em lugares de classe média e vive em casa dos

pais, uma moradia moderna, a confirmar os referidos sinais de desafogo económico200.

Ou seja, se quanto à sua posição nas relações de produção estes trabalhadores se

inserem numa localização proletária, já no que respeita à chamada classe mediada – a

posição de classe do conjuge ou familiares directos – estarão mais próximos da classe

média. Esta circunstância coloca-os, portanto, numa situação que contraria a total

dependência em que se encontram aqueles que, além de desapossados de recursos

escolares e de autoridade formal, são-no também de meios económicos ou de

qualificações técnicas que lhes permitam pensar em possíveis alternativas profissionais.

O facto de uma alternativa poder ser pensada é, em si mesmo, significativo e tem

consequências óbvias no posicionamento subjectivo do trabalhador face à empresa e aos

seus superiores hierárquicos. A relação de poder tem, como se sabe, muito de

simbólico e é, em boa parte, por isso que a dominação só existe porque existem

formas de aceitação da dominação. E tais formas podem ser as mais diversas, na medida

em que a mente dos subordinados é modelada não apenas no espaço fabril mas nas

diferentes esferas que integram o curso das suas vidas pessoais.

8.3 - Evasão e humor: rituais de descompressão

O papel do humor e do jogo nas relações de trabalho tem sido repetidamente

assinalado como um elemento fundamental na compreensão do universo da fábrica. As

brincadeiras, os jogos de sedução entre os dois sexos e os rituais de informalidade em

geral, podem constituir um importante barómetro das identidades sociais e culturais das

organizações. Tomá-los em conta pode permitir reequacionar diferentes dimensões da

estrutura interna de uma empresa e aprofundar a análise, nomeadamente no que se

refere à lógica contraditória que atravessa as relações sociais na fábrica, isto é, a

articulação entre a normalização e a ruptura. Como alguns autores têm chamado a

atenção, a subjectividade do trabalhador não é só subversão nem só trivialidade

(Linstead, 1985: 762). O humor pode assumir funções e significados contraditórios na

esfera organizacional. Pode dizer-se que ele se situa na fronteira entre o controle

institucional e a desmistificação do poder. Ajuda a lidar com situações de dureza e

adversidade, actuando por vezes como um meio de distanciamento e relativização das

200 A família viveu numa das ex-colónias e regressou em 1975. O pai, hoje reformado, manteve até

recentemente um mini-mercado na zona de residência.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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partes mais desagradáveis, previsíveis e aborrecidas das nossas vidas e, desse modo,

permite-nos encará-las com menos seriedade (Cohen e Taylor, 1976). Nesse sentido, o

humor pode constituir uma forma latente de acomodação e aceitação. Alternativamente,

pode considerar-se que a piada humorística constitui um ataque à ordem estabelecida e

representa um triunfo da informalidade, assumindo-se como resistência ou como desafio

através da sua capacidade de desmistificação do real. A resposta satírica ou o gesto de

gozo relativizam acusações de estupidez ou de falhanço e por vezes desafiam ou

“desarmam” as posições de poder no quadro das relações industriais. Por outro lado, os

usos do humor são um indicador importante para testar a atmosfera das subculturas da

fábrica ou das organizações e denunciam os esquemas de “negociação tácita” inseridos

no sistema de poder em vigor (Turner, 1971; Douglas, 1975; Linstead, 1985). A

orientação transgressiva ou adaptativa das situações humorísticas variam, portanto,

segundo inúmeros factores e podem até alterar-se de caso para caso.

Não obstante o quadro disciplinar e a força dos mecanismos de controle em que os

trabalhadores estão inseridos, o jogo, a celebração e a festa, etc., são aspectos que

permeiam as relações laborais. O trabalho não é só trabalho. As formas parcelares de

lazer ou de jogo informal são um ingrediente fundamental das identidades do trabalho e

tanto podem ser elementos da produção do consentimento, como expressão da

criatividade corrosiva do operariado (Burawoy, 1988; Westwood, 1984).

Desde o primeiro dia em que cheguei à empresa apercebi-me da importância da

informalidade e dos rituais de jogo entre os operários. Foi, antes de mais, procurando

percebê-los e alinhando neles que me fui aproximando dos trabalhadores. Mas no início

essa é, talvez, a principal dimensão das relações na produção que vinca a fronteira entre

quem está dentro e quem está fora do grupo operário. Os intervalos constituem um

espaço privilegiado para observar, numa primeira abordagem, por um lado, o desejo de

evasão e de fuga e, por outro, o significado da dimensão lúdica nas relações entre os

trabalhadores.

6.3.1 - Os intervalos e as brincadeiras sexistas

Durante os curtos intervalos (de dez minutos), que têm lugar às 10 h da manhã e

às 4 h da tarde, o ritmo do cronómetro continua a marcar os movimentos dos

trabalhadores. Mal a campainha toca é o caminhar apressado em direcção ao portão

traseiro da fábrica. Larga-se tudo o que se tem em mãos sem hesitar um instante. Os

dez minutos passam demasiado rápido e por isso têm de ser aproveitados ao segundo. É

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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tempo de “correr” até aos balneários (situados a uns cinco metros frente ao portão

traseiro da fábrica) para lavar as mãos, comer uma peça de fruta, ou bolachas

acompanhadas de um sumo, e fumar um cigarro nos restantes cinco minutos, aqueles

que o fazem. Um grupo de homens despacha-se depressa do balneário e vem comer as

suas sandes ou peças de fruta para a rua, normalmente na esquina entre a entrada da

oficina e a casa dos cães, onde estão dois animais que já conhecem os operários.

Trocam-se breves palavras, em geral comentários pontuais sobre futebol, carros ou

qualquer assunto de ocasião. Alguns dão restos de comida aos cães e trocam-se

comentários a esse propósito. Uma parte dos homens só mais tarde – uns cinco minutos

depois – vem juntar-se a este grupo. São os que não trazem comida de casa. Estes

dirigem-se primeiro ao refeitório (situado um pouco mais ao lado), onde tomam um café

ou galão acompanhado de um croissant ou de uma sande com fiambre, por exemplo. No

bar do refeitório, regra geral, as bebidas e os alimentos já se encontram em cima do

balcão à espera dos habituais destinatários, pois a D. Amélia (empregada da empresa

que toma conta do bar) tem consciência da pressa dos seus “clientes” e já conhece os

seus hábitos alimentares.

No refeitório existem mesas e bancos corridos de madeira, onde os diversos

grupos se distribuem ao almoço, depois de retirarem as marmitas que põem a aquecer

com a comida, durante o primeiro intervalo, numa máquina eléctrica aí instalada para o

efeito. Nos pequenos intervalos a maioria das mulheres permanece mais no refeitório,

mas à hora do almoço há ritmos distintos (o período do almoço tem a duração de uma

hora). As mais jovens – o grupo das de Alvito – almoça em pouco mais de dez minutos.

Por vezes, quando ainda me preparava para sentar já algumas arrumavam as coisas e

limpavam a mesa, a fim de irem dar o passeio do costume. O núcleo das “costureiras”

(as operárias da secção da costura) detém-se aí mais vagarosamente à volta da mesa,

mesmo depois de terminada a refeição, umas a fazer rendas ou malhas, outras a

consultar revistas como a “Maria”, a “TV Guia” ou a “Caras”, até terminar o tempo do

intervalo. Há ainda pequenos grupos de mulheres e homens que ficam na rua,

encostados à parede da fábrica, junto ao portão ou à porta dos balneários. Este ritual

dura apenas uns três ou quatro minutos durante os intervalos, e no período de almoço

entre dez a quinze, porque antes disso o pessoal permanece disperso. É principalmente

nesta zona, e apenas durante esses instantes que antecedem o toque da campainha para o

regresso ao trabalho, que podem observar-se alguns contactos e brincadeiras. Trata-se,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

355

acima de tudo, de fragmentos que retratam a atmosfera de informalidade entre os

trabalhadores.

A piada machista e os gestos insinuantes de alguns dos homens dirigem-se por

vezes à curtíssima mini-saia de uma jovem operária – a Guida – que se presta bastante a

esse tipo de jogo. A propósito do tio António ter sido levado ao hospital dias antes, a

Guida aconselhava-o a meter baixa e ficar em casa, “senão qualquer dia vai-se abaixo

das canetas”. Ele respondia, matreiro, que “a perna do meio aguenta-se bem!…”; – “A

do meio é a mais coxa!”, respondia ela. Um dos encarregados aproxima-se do grupo,

abre o capot do seu automóvel para sair a humidade; depois esfrega as mãos e diz que

está frio. A Guida insinua-se e brinca com ele: “está com frio? Venha para ao pé de mim

que eu aqueço-o!”. Há um olhar intencional de outra operária mais jovem que torce o

nariz e olha de alto para a mini-saia da colega, enquanto come um enorme bolo com

creme. Amavelmente, oferece-me: “quer uma dentada?” – “não obrigado”, respondi. As

pernas e as mini-saias da Guida, além de suscitarem alguns olhares vorazes dos homens,

parecem não cair nas graças de algumas colegas. Provavelmente condenam o uso que

ela parecia fazer disso a fim de estar nas boas graças de alguns. A ousadia destas

brincadeiras ultrapassa muitas vezes os limites do “pudor” ou da “decência” que é

suposto existir, mesmo numa relação de informalidade entre colegas. A linguagem

brejeira, por exemplo, não é do uso exclusivo dos homens. Palavrões como o “foda-

se!”, ou até pior, podem ser pronunciados por algumas operárias.

Um outro elemento digno de registo prende-se com o vestuário. Os trabalhadores

vêm em geral bem vestidos para a fábrica. Ou melhor, nota-se que as roupas que se

usam em cada dia de trabalho são objecto de um cuidado especial, principalmente por

parte das operárias. É verdade que as nove horas passadas na fábrica são ocupadas em

tarefas como escovar sapatos, trabalhar com colas, lidar com máquinas que espalham

poeiras e detritos em volta, todos eles trabalhos cansativos, onde se transpira bastante e

se está exposto a uma atmosfera poluída. Seria lógico, portanto, esperar-se que no

trabalho fabril se iria encontrar o pessoal vestido com roupas usadas e gastas. De facto,

não é isso que acontece. Pelo contrário, uma grande parte das operárias usam roupas que

mais parecem de traje domingueiro. Por baixo da bata ou do avental que usam na

produção podem ver-se algumas mini-saias com meias de vidro, saias compridas com

uma abertura lateral, camisolas de lã e camisetes, penteados bem arranjados e

maquilhagens a preceito. Também os homens se apresentam “em bom estilo”, com

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roupas semelhantes às da classe média, e pude confirmar que são alvo de apreciação e

de comentários do sector feminino a esse respeito – como por exemplo, “hoje o FI

vem muito bem vestido… o que é que se passa?!…” – a ilustrar a permanente atenção

que se dedica a esta dimensão estética. Numa altura em que conversava com duas

operárias no refeitório entrou o encarregado e, perante o seu olhar de relance, uma delas

comentou: “deve estar com ciúmes…”. Há repetidas referências a ciúmes e algumas

operárias revelam bastante intimidade com os colegas, a qual é visível nos comentários

e brincadeiras entre uns e outros.

Os encarregados são, muito provavelmente, e por motivos óbvios, o alvo

privilegiado de atenção por parte das mulheres, pelo menos dalgumas delas, no que se

refere a estes jogos de sensualidade. Mas este aspecto não pode ser circunscrito ao

ambiente de trabalho uma vez que, para muita gente, os percursos de casa para a fábrica

e vice-versa são também oportunidades para se estabeleceram conhecimentos, lugares

onde se cruzam olhares e podem ocorrer encontros ou iniciar-se relações, inclusive

amorosas. A preocupação com o corpo e com a imagem são factores decisivos de

estruturação da identidade pessoal e, deste modo, pode dizer-se que a questão do

vestuário se liga às estratégias de gestão da imagem e do corpo, ao apuramento do

sentido estético, aspectos que se inscrevem na tendência geral da sociedade para o

voyeurismo e a esteticização da vida quotidiana. Esta preocupação está, evidentemente,

presente nos dois sexos. Mas, neste ambiente a mulher (sobretudo a jovem) é ainda “o”

objecto de desejo abertamente assumido, esperando ou “tolerando” com naturalidade

atitudes “machistas” da parte de qualquer homem. Aqui o “piropo” ou o gesto brejeiro

são atitudes “naturais” enquanto a postura desinteressada (ou “politicamente correcta”)

é em geral recebida com desconfiança por parte da mulher.

As brincadeiras nos intervalos em torno da saia da Guida podem ilustrar a anterior

formulação. Perguntam-lhe: “a saia é curta porque não havia mais pano?” – “o que é

bom é p‟ra se mostrar” – “p‟ra se mostrar e p‟ra se comer!”, acrescenta uma voz

masculina; “o tio António diz que dá duas seguidas?!…” [risos]; “ai credo!” – comenta

uma operária, “qualquer dia ainda morre em cima da mulher… eu cá até sou capaz de

dar cinco!… [gargalhada geral]”; junto ao portão, o tio António confidenciou-me, num

gesto típico de quem “mete o veneno”, que um dos trabalhadores por vezes “dá

beliscões” a uma das jovens quando estão a trabalhar juntos, e, acrescenta: “ela não se

importa…”. Já dentro da fábrica, a caminho do posto, um dos encarregados (JM) está

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parado por breves segundos em frente da Guida. Olha ostensivamente para as suas pernas

enquanto diz: “vamos então aquecer?”; ela finge não ligar ao comentário intencional, mas

já a virar as costas ainda ouço o último comentário daquele trabalhador: “aquecia,

aquecia…, mas não havia de ser aqui!…”.

Outras situações reveladoras da informalidade tendem a ocorrer no sector masculino.

No último quarto de hora do período do almoço, o Pedro procedia por vezes à lavagem do

seu R5 nas traseiras da fábrica. Alguns trabalhadores assistiam àquela tarefa e trocavam-se

palavras esparsas acerca de carros e do preço da gasolina. Um dos operários de idade mais

avançada prefere deixar o carro em casa porque mora perto da empresa, o que suscita o

comentário lateral: “para que quer ele o carro se o deixa sempre em casa?”. O colega

dirige-se a ele directamente e pergunta: “um capitalista como você?! Para que anda a

poupar? (…)”; – “Está a guardá-lo para os filhos que é para eles depois lhe meterem as

notas no caixão, quando morrer!…”, comenta outro. O sr. JM defende-se com o preço da

gasolina e diz que se trouxesse o carro todos os dias o ordenado não chegava. Mas,

enquanto este trabalhador parece mais preocupado em poupar no desgaste do seu

automóvel e na gasolina, o Pedro parece orgulhoso do seu velho “bólide” e por vezes

discute com os amigos acerca da velocidade que atinge com ele. Os outros, com carros

mais novos, riem-se e gozam, mas ele gosta de exibir as suas qualidades de “acelera”,

principalmente quando entra na fábrica “a abrir”. Em contraste com estes sinais de relativa

escassez e preocupações de poupança, o Porsche de colecção do patrão apareceu algumas

vezes nas traseiras da fábrica, ao que parece por estar a ser objecto de afinação pelo

mecânico da empresa. Enquanto este se mostra pressuroso na defesa do “bom negócio”

que o seu patrão terá efectuado com o carro (comprado num leilão a baixo preço e que,

segundo ele, já foi objecto de uma oferta de compra por 7200 contos) os outros duvidam

de tudo isso e preferem brincar com o assunto. Os comentários são de desdém. Põem

dúvidas acerca do real valor do automóvel e dizem que o patrão quer vendê-lo, mas em

tom de gozo adiantam que “não há quem lho compre”. Alguém me pergunta a mim se não

quero comprar. Observam o empresário a sair da fábrica mas a brincadeira continua: “hoje

é que ele vai arranjar comprador para o chaço!!…”.

Quer as actividades e as formas de ocupação espacial das imediações da fábrica,

quer os temas de conversa, são reveladores das relações, das tensões e do tipo de humor

que prevalece no seio de cada um dos sexos. As rotinas e movimentos de apropriação

do espaço durante o período do almoço parecem obedecer a lógicas distintas em que as

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identidades masculina e feminina se demarcam uma da outra. A maior parte dos homens

vai almoçar a casa e por isso sai da fábrica a toda a pressa, regressando pouco antes do

reinício do trabalho, enquanto a maioria das mulheres almoça no refeitório a refeição

que traz de casa. Para além das pequenas conversas de circunstância entre homens e

mulheres, a interacção entre os dois sexos raramente se traduz em formas directas de

contacto. São principalmente os mais velhos que conversam esporadicamente com

algumas operárias. Os mais novos preferem manter-se deliberadamente ao largo, pelo

menos durante as pausas, o que significa que pretendem marcar as distâncias – “há por

aí alguma canalhada a quem não se pode dar confiança”, dizia-me um deles, referindo-

se às raparigas mais jovens –, mas tal não implica ausência de transações entre os dois

sexos. Essa demarcação de espaços revela, por um lado, a reprodução da tradicional

divisão sexual na esfera dos lazeres e, por outro, parece transportar por parte de cada um

destes sectores uma observação discreta, mas atenta, dos movimentos e gestos do sexo

aposto. As conversas201 dos homens orientam-se, como já indiquei, para os temas de

desporto (futebol, corridas de automóveis, etc.), problemas de carros ou, mais

raramente, de questões laborais. Ocasionalmente, alguns lêem “O Jogo” ou “A Bola” ou

ainda um jornal da terra. Quanto às mulheres – além das costureiras que ocupam parte

do tempo de almoço a fazer tricot ou a ler literatura “cor-de-rosa” e parecem bastante

fechadas entre si –, um pequeno sector fica no refeitório a comentar situações da

família, das crianças, das actividades de fim-de-semana, etc. Junto ao portão da fábrica

várias raparigas costumam ficar a conversar, sentadas em caixas com material

empacotado. A propósito da semana de férias “forçadas” que foram marcadas para a

altura da Páscoa, as operárias pareciam divertir-se a comentar o assunto. Olhando

para o autocarro da empresa, uma dizia: “podíamos ir todos até ao Algarve agora na

Páscoa…”. Outra responde, numa expressão de gozo, “ainda se pagassem o hotel pr‟á

gente dormir…”. Alguém acrescenta, “ficávamos todos a dormir no autocarro… As

mulheres em baixo e os homens em cima…”. Nesse momento soltaram uma gargalhada

colectiva. Era evidente a segunda intenção que estava presente naquela troca de

palavras. Duas das jovens raparigas riam-se ao mesmo tempo que cochichavam ao

ouvido uma da outra.

201 Como já foi assinalado, trata-se mais de comentários esparsos do que de conversas propriamente

ditas. Nunca vi, de facto, os homens interessados em discutir seriamente um problema, seja de trabalho

seja outro qualquer. Geralmente um fala, conta um episódio qualquer e na pequena audiência alguém

acrescenta um comentário pontual, de acordo, de desacordo ou de conteúdo humorístico.

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Neste contexto, a dimensão sensual parece estar permanentemente presente na

interacção entre um homem e uma mulher, podendo assumir a forma de brincadeira

descontraída ou de tensão latente cujo fundamento é dificilmente perceptível, mesmo

pelas directamente envolvidas. Como outros jogos no trabalho é um ritual que facilita o

aliviar da pressão e da disciplina, mas ao mesmo tempo reflecte a ambiguidade entre o

interesse sexual e os jogos de poder numa cultura onde impera a masculinidade (cf.

Lyman, 1987). As dificuldades que tive inicialmente em fazer com que os trabalhadores

conversassem comigo sobre questões laborais, ou acedessem a que nos encontrássemos

fora da fábrica, podem ajudar-nos a perceber quer a natureza das relações entre os dois

sexos quer o já referido desejo de fuga e evasão. Como perceberam que eu procurava

estudá-los na fábrica, deduziram que via na empresa pontos de interesse que eles

próprios não vislumbram, o que acentuou ainda mais o seu fechamento em relação a

mim. Mesmo depois de ultrapassada a desconfiança quanto à hipótese do meu

alinhamento com a lógica patronal, a sua atitude continuou a pautar-se pelo

desinteresse. Tal atitude foi bem notória no que se referia às questões da empresa ou da

sindicalização. Interpreto isso como um efeito do absoluto desejo de esquecimento

daquela realidade, já que “pensar” nos problemas ou “discutir” as contrariedades que

são obrigados a enfrentar no dia-a-dia, significa para eles um reforço do mau estar e um

crescimento da revolta interior. Seriam iniciativas, do seu ponto de vista, desnecessárias

porque supõem que isso “não leva a nada”. A alguns dos meus comentários respondiam

com silêncio e indiferença. Como quem diz: “falas assim porque não tens de aguentar

isto diariamente, estás aqui porque queres, enquanto nós estamos por obrigação e

necessidade”. É preferível falar de futebol ou da pesca. Não há nada a fazer. As

situações de humor podem constituir pequenas “vinganças” quando ridicularizam algum

representante da hierarquia mas, em geral, trazem à memória situações que se afastam

dos problemas da fábrica ou que fazem esquecer momentaneamente os

constrangimentos que aí são vividos. Embora mais tarde me tenha encontrado com

alguns dos meus “colegas” fora da empresa, e até durante os fins de semana, não foi

fácil chegar até esse nível de aproximação.

A dimensão de jogo sexista constituiu também um factor de dificuldade na minha

aproximação com as operárias mais jovens. A gestão dessas relações exige uma

familiaridade e um estatuto que eu efectivamente não possuía. Por exemplo, em relação

às mulheres jovens de Alvito – a quem por vezes dei boleia no meu carro até à sua zona

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Entre a Fábrica e a Comunidade

360

de residência –, a sua renitência foi notória, principalmente porque, como confirmei

depois, tinham receio de que a vizinhança fizesse comentários. Além disso, a distância

social que nos separava foi, sem dúvida, um factor de perturbação das relações

informais e dificultou a minha integração. Muitas vezes, quando tentava conversar com

uma operária de modo mais sério deparava-me com reacções irónicas, de gozo e de

insinuação com as quais era difícil de lidar. Principalmente da parte das mais jovens, a

sua postura e os seus sorrisos adolescentes pareciam reflectir a atitude de quem se vê a

si mesma sobretudo como objecto de desejo sexual por parte dos homens. O embaraço

que revelam no campo discursivo é como que compensada pela carga gestual e

simbólica portadora de uma linguagem paralela, implícita, que incidia sobre mim como

um poder desarmante. Talvez possa ver-se aí uma dimensão simbólica do poder

feminino que através de uma postura insinuante, meio irónica, meio sensual, se assume

como “resposta” a um “poder” argumentativo que elas parecem olhar com um misto de

admiração, embaraço e distanciamento triunfante.

6.3.2 - Jogo e humor na produção

É claro que as situações de informalidade que acabo de referir têm lugar sobretudo

durante as paragens do trabalho. Mas, como pude testemunhar, o trabalho não é só

trabalho. Também durante o período laboral os gestos de brincadeira, as cumplicidades

pessoais e os elementos de jogo estão presentes. A troca de pequenas ofertas, um

rebuçado, uma amêndoa ou um chocolate são atitudes geralmente praticadas entre os

trabalhadores, mesmo nas horas de serviço, e mais comuns entre pessoas de sexos

diferentes. Durante a minha estadia adoptei também esse hábito, o que sem dúvida

ajudou a cimentar a informalidade com as trabalhadoras e até a criar algumas

cumplicidades.

Uma das poucas operárias qualificadas a quem de vez em quando oferecia

rebuçados e com quem passei a conversar durante a hora do almoço, tornou-se de certa

maneira uma cúmplice com quem brincava regularmente (a Célia). Pequenos

comentários ou troca de “bocas”, fosse sobre uma colega mal humorada naquele dia,

fosse sobre o encarregado, foram-se tornando habituais entre nós. A dada altura

pressenti até algum desconforto do nosso “chefe” em relação a isso. A propósito de

certas atitudes das colegas mais jovens dizia-me ela, por vezes, que “estavam com

inveja” e, quanto aos gestos de desconfiança do encarregado, afirmava que “tinha

ciúmes”. Um dos operários pregadores (João) ironizava a esse propósito dizendo-me:

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“veja lá!… não desestabilize a rapariga que ela tem namorado…”. As piadas entre o

João e a Célia revelam a existência de cumplicidades mais antigas. Ele comentava:

“quem tratar mal esta menina tem que me tratar mal a mim também…”. Ela, por vezes,

provocava-o a propósito dos seus habituais atrasos. Uma manhã, depois de ele chegar

cerca de um quarto de hora atrasado, dizia-me ela, junto dele: “há duas classes, os que

trabalham e os que têm um bom ordenado!!…”. Ele limitava-se a esboçar um leve

sorriso e um breve olhar sonolento, sem dizer nada. Mas é sabido que alguns colegas

não viam com bons olhos o facto de o João ganhar bastante acima da média e chegar

sistematicamente atrasado.

As situações de humor e de jogo, apesar de poderem ser interpretadas como “micro-

transgressões”, e por vezes terem como alvo o encarregado, podem também espelhar

formas de concorrência e rivalidades individuais entre os trabalhadores, ou marcar as

clivagens internas entre secções e grupos informais. Quando, por exemplo, uma jovem

torce o nariz ou faz uma careta ao passar pelo encarregado; quando imita o modo de andar

de uma colega; quando se põe a alcunha de “speed” a uma operária que é lenta e se

atrapalha a executar as suas tarefas, etc., estamos perante ironias que exprimem a

heterogeneidade do grupo. Todavia, vale a pena realçar também a orientação para a

distracção e para o esquecimento. Brincar, falar ou dizer uma piada é sempre um “corte”

momentâneo com os longos períodos de rotina. A contrariedade com que é geralmente

vivido o tempo da produção encontra múltiplas vias de escape, que passam pelas piadas,

pelo “cortar na casaca” de algum colega ou encarregado, pelos rituais de jogo e sedução ou

simplesmente por um estado de espírito que designaria por uma espécie de “sonhar

acordado”, em que se despendem longos períodos com os pensamentos absorvidos com

problemas familiares ou outros do foro íntimo de cada um.

6.4 - Ambiguidades e heterogeneidades de classe

Como sabemos, o debate sociológico em torno da classe resulta em boa medida da

não correspondência entre a categoria sociológica e o actor social. A existência

substantiva das classes na luta política e social sempre foi problemática. Não há, nem

nunca houve, classes homogéneas. Sendo assim, que especificidades podem ser

apontadas a este operariado? Quais os principais traços dos trabalhadores desta

empresa? De que forma são estruturadas e que vectores fundamentais se interpõem nos

processos de construção e desconstrução das suas identidades sociais e culturais? Como

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362

se articulam as relações na produção com os vínculos culturais das comunidades

envolventes?

As situações que presenciei nesta empresa ilustram a diversidade de condições e

modos de vida dos operários. Os comportamentos no ambiente produtivo constituem

uma dimensão fundamental onde se reflectem fragmentos do envolvimento social dos

indivíduos noutro tipo de processos. As expectativas, trajectórias e subjectividades dos

trabalhadores são estruturados com base num investimento pessoal que passa, entre

outras coisas, pelo seu enquadramento no grupo doméstico e pelas condições –

económicas, sociais e culturais – que a partir dele são disponibilizadas e que modelam o

esforço de acumulação de cada um, seja no plano económico, seja no cultural ou

educacional. Mesmo nas situações de maior carência, são notórios os factores de

natureza cultural sobre os quais se constrói uma representação do mundo prático de

cada um, e em que a experiência pessoal se tece das respostas imediatas ou de curto

prazo aos problemas do dia-a-dia.

Para os sectores mais carenciados, que necessitam de trabalhar para assegurar a

sobrevivência, “ter um emprego”, seja ele qual for, é condição decisiva não só para

assegurar a subsistência, mas simultaneamente para afirmar um estatuto socialmente

digno. Em tais situações não sobra muito mais espaço para além do que é ocupado na

produção e na organização diária da vida familiar. Quando muito, os pequenos lazeres –

ver a novela ou um jogo de futebol na televisão, a distracção com os amigos, uma ida ao

café ou a meia hora de namoro dos mais jovens – são elementos de escape que ajudam a

recuperar o ânimo para enfrentar o dia seguinte. As actividades associativas, quando

existem, ou são vividas pelo lado lúdico das identidades locais (o caso das actividades

recreativas) ou exigem um grau de consciência social e política que aqui está

virtualmente ausente (o caso do sindicalismo). Nestas condições, o acesso a consumos

“culturais” fica fortemente condicionado. Ou enquadra-se nas modalidades lúdicas da

tradição local ou circunscreve-se à lógica mercantilista da cultura de massas, ou ainda,

como se viu no capítulo anterior, apresenta formas mescladas que combinam ambas as

dimensões.

Pode dizer-se que as vidas destes operários são organizadas pelo trabalho, mas

eles não vêem o trabalho como o centro das suas vidas. Especialmente o trabalho na

fábrica e a “condição operária”. Nos segmentos mais escolarizados esse é um estatuto

que por vezes se esconde, enquanto nos mais desfavorecidos é um factor de segurança,

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363

uma carência preenchida, ainda que de forma precária e também um factor de

reconhecimento social. Ter um emprego, mesmo na fábrica, ajuda à integração na

comunidade e é uma necessidade absoluta no quadro familiar, presente ou futuro.

Contudo, a identificação com a condição operária, no sentido mítico e “heróico” do

termo, é algo de que ninguém parece orgulhar-se. Apesar de as grandes convulsões

sociais e políticas também terem tido algum impacto nesta região, tais referências

passam ao lado da memória colectiva da actual geração do operariado do calçado. É, por

exemplo, sintomático que as trabalhadoras da linha de montagem indiquem, em geral, a

sua profissão como “empregada fabril” porque, segundo me referiu uma delas, “se

dissesse que era operária ainda pensavam que trabalhava na construção civil ou num

hospital…”.

A experiência operária é vivida como uma experiência colectiva, igual a tantas

outras, que fazem parte da vida difícil das classes baixas. Na fábrica, como outrora no

campo, o trabalho tem a sua componente de jogo e de lazer. A disciplina, a

racionalidade económica e o poder autocrático estão longe de anular todos os espaços

de informalidade, de autonomia e de jogo. Tirar partido das pequenas brechas do

sistema é um dos jogos a que os trabalhadores se entregam e, mesmo quando os espaços

de liberdade são escassos, a sua inteligência prática permite-lhes resguardá-los e recriá-

los, fugindo aos mecanismos de controle através de regras informais que corroem a

hierarquia formal. É, por um lado, resultado da própria dinâmica de qualquer sistema

vivo e, por outro, um reflexo da própria natureza humana. Os espaços de liberdade são

sempre aqueles em que o ser humano se recusa a cumprir como uma máquina e em que

pode manifestar as suas emoções. Por isso, as práticas de conteúdo recreativo, bem

como a história de amor que me foi relatada (cf. Capítulo 6-A, adiante) constituem

componentes relevantes, tanto pela afirmação da afectividade, como pela faceta rebelde

que introduzem numa atmosfera produtiva onde o elemento predominante é a

racionalidade produtiva. Se na vida social em geral a paixão amorosa nem sempre se

assume apenas pelo seu lado idílico, na fábrica ela assume-se como mais um factor de

perturbação e um ingrediente lubrificador das dinâmicas identitárias da colectividade

operária. Se as rotinas diárias aguardam impacientes pelo mais inofensivo gesto de

ruptura, um “acontecimento” desse tipo, adquire neste contexto um carácter excepcional

que suscita todas as atenções.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

364

Paralelamente, a heterogeneidade dos trabalhadores da firma Walky e as próprias

condições de implantação e expansão deste sector industrial não permitiram a

estruturação de um colectivo operário com uma forte consciência de classe. Os

operários não estão organizados autonomamente nem se mostram predispostos a

organizar-se. Parecem rejeitar qualquer forma de luta colectiva dirigida contra a

exploração e o poder autocrático que sobre eles se exerce. Todavia, como mostrei

anteriormente, os trabalhadores não são totalmente passivos e estão muito longe de

aderir à pura lógica produtivista. As formas culturais e identitárias em que se movem

constituem não um padrão harmonioso e estável mas um sistema dinâmico e aberto,

composto de múltiplas facetas, contradições e ambiguidades. É um processo em

estruturação que sofre os efeitos contraditórios de lógicas que se cruzam na produção e

nas comunidades de origem num jogo de constantes permutas. Pode dizer-se que, em

qualquer destes espaços estamos perante comunidades em formação. Retomando a

terminologia de Boaventura Sousa Santos, correspondem às “comunidades-amiba”,

assentes em identidades múltiplas e inacabadas em permanente reconstrução e

reinvenção (Santos, 1996: 485). É sob o impulso destas formas cruzadas de

identificação que as subjectividades dos trabalhadores evidenciam no trabalho a

presença de laços transclassistas e de lealdades comunitárias, enquanto na comunidade

transportam os efeitos da modelação identitária a que estão expostas no interior da

fábrica.

Sem uma consciência contestatária activa, os operários desta fábrica revelam,

apesar disso, nos seus comportamentos quotidianos, variadas formas de resistência.

Hesitantes entre um sindicalismo visto com desconfiança e um patronato poderoso, os

operários são dissuadidos da contestação colectiva organizada porque a vêem como uma

opção demasiado arriscada. Não vendo a mobilização sindical como uma alternativa

viável e clara, debatem-se com a opção entre consentir nas condições de exploração em

que trabalham ou pôr em risco a principal fonte de subsistência. Ao optarem pela

primeira solução, as respostas à pressão disciplinar e produtiva podem adquirir

diferentes contornos. As manifestações de descontentamento são individuais e feitas em

surdina. Não se trata, porém, de um puro individualismo liberal mas sim de atitudes

ambíguas derivadas de um mal-estar latente, de um medo diariamente recalcado na

empresa, à mistura com um sentido de auto-responsabilização pessoal pelo contributo

de cada um para a subsistência familiar. Acusam-se a si mesmos da sua impotência

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Entre a Fábrica e a Comunidade

365

através de repetidos desabafos de conformismo e contrariedade: “nós é que somos os

culpados porque toda a gente tem medo!…”, “aceitam tudo”, “deixam-nos fazer o que

querem”, “ninguém quer dar a cara”, etc. O sindicato está distante e a sua representante

interna (a delegada sindical) é votada ao isolamento, pois os trabalhadores aprenderam

que a militância é um desafio pelo qual se pode pagar um preço demasiado elevado.

Talvez a tolerância patronal em relação à actual delegada sindical se deva sobretudo a

esse relativo isolamento junto do colectivo dos trabalhadores. Dessa maneira pode

invocar-se a existência de liberdade formal, porque os seus efeitos práticos pouco ou

nada beliscam a prática autoritária. A esta atomização dos comportamentos liga-se

igualmente o facto de não existir na empresa nenhuma estrutura representativa dos

trabalhadores. O sentimento generalizado de impotência e de auto-culpabilização

poderia fazer crer que se trata apenas de uma hesitação que só espera que alguém dê o

primeiro passo. Mas o problema é mais profundo: de facto ninguém dá esse passo. E se

não o dá não é por puro medo ou por total ausência de alternativas. Sendo verdade que

nos sectores mais precarizados é esse o sentimento dominante, também o é que há na

empresa trabalhadores conscientes de que poderiam opor-se organizadamente ao patrão.

Não o fazem porque não querem correr o risco de “ser queimados”, o que deverá ser

interpretado à luz da lógica de acumulação individual e familiar. Embora, como já se

disse, a ambição individual possa não ser a principal causa da fraqueza da acção

colectiva, não deixa de ser evidente que os sinais exteriores de riqueza de muitos

patrões e de certos sectores da classe média assumem um carácter simbólico e um poder

de sedução extremamente fortes. Deve atender-se, repito, à heterogeneidade das

situações. Mas, em todo o caso, a propensão para a ostentação das categorias sociais

economicamente mais desafogadas – do pequeno negociante ao funcionário, do

vendedor de automóveis ao agente de seguros, do profissional liberal ao comerciante –,

é ilustrativa de que as estratégias de acumulação se estendem da classe dominante às

classes médias e contagiam as fracções melhor posicionadas da classe trabalhadora.

Arriscar num pequeno negócio, mobilizar a família inteira para o trabalho, acrescentar

ao baixo salário alguma actividade paralela, constituem orientações que atingem

sectores significativos do operariado.

Um operariado que não cresceu entre o discurso emancipatório e a linguagem “de

classe”; em que as camadas adultas nasceram em ambientes rurais marcados pelo

catolicismo e viveram no pós-25 de Abril o clima local de forte contestação anti-

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Entre a Fábrica e a Comunidade

366

comunista e anti-revolucionária; que continuam a ver no radicalismo sindical a principal

causa do encerramento de muitas empresas durante esse período. Paralelamente, os

sectores mais jovens da força de trabalho entraram directamente no mundo fabril num

período de expansão do “neo-liberalismo”202 e sem qualquer referência – nem mesmo

longínqua – relativamente à cultura operária e à militância sindical. Se, por um lado, os

jovens aderem facilmente à massificação na esfera do consumo, resistem, por outro, à

massificação produtiva e ao discurso sindicalista que no passado animou a condição

operária. O resultado é a crescente fragmentação da classe e a emergência de um

individualismo, meio dócil, meio amedrontado, funcionando na base dessa

ambivalência em que a experiência fabril é permeada pelas referências e aspirações

oriundas da esfera do consumo e da comunidade. No quotidiano laboral, as pessoas

procuram acima de tudo esquecer a fábrica, mas fora dela o seu espectro parece

persegui-las. As formas de resistência e de protesto resumem-se às micro-rupturas, às

pequenas cumplicidades e subtilezas que contrariam pontualmente os interesses

patronais e a pressão da hierarquia, mas sem porem em causa os seus mecanismos e as

suas estruturas de poder.

6.5 - Lógicas e trajectórias numa classe fragmentada

Neste último ponto irei apresentar um conjunto de casos destinados a pôr em

evidência a pluralidade de lógicas, de processos e de condições sociais que alimentam

as relações de trabalho. Através deles é possível viajar um pouco por ambientes

exteriores à fábrica, a fim de situar com mais algum detalhe as práticas e as condições

de vida dos trabalhadores no que diz respeito ao espaço doméstico e às actividades que

desenvolvem fora do emprego. Seleccionei algumas situações que retratam

sociabilidades e trajectórias pessoais e familiares desta colectividade operária – cujos

processos de construção e desconstrução identitária se baseiam no cruzamento entre as

experiências vividas na produção e fora dela – bem ilustrativos das múltiplas

contaminações socioculturais e das subjectividades ambivalentes que a atravessam203.

202 Independentemente disso, neste sector industrial e nesta região, a lógica patronal sempre encontrou

como é sabido formas de tornear a legislação laboral e, portanto, na prática sempre vigorou a lógica de

poder de cariz “despótico-paternalista”. 203 Dado o imenso volume de informação recolhida e também o grau de envolvimento nas vidas pessoais

e familiares de alguns dos meus “colegas temporários”, a escolha e selecção de certos casos em

detrimento de outros é sempre um processo algo difícil. Evidentemente que cada trabalhador vive em

condições particulares e insere-se numa trajectória familiar específica. Poderia também dar conta do caso

do tio António, com a sua pequena adega, quintal cultivado, as suas galinhas e coelhos. Poderia falar mais

em detalhe da Rosa, a “solteirona” quase analfabeta e também com evidentes marcas de campesinato.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

367

6.5.1 - Seis casos exemplares

Caso 1 - O stress do Pedro, entre a irreverência e a necessidade. Este operário

pode ilustrar o exemplo de um trabalhador que poderia, à primeira vista, situar-se

num contexto de forte militância sindical. A sua atitude contestatária e de

permanente rebeldia parece debater-se com as barreiras diversas que se interpõem

à prática da actividade sindical. Embora não sendo assumidamente um

sindicalista, rebela-se contra a recusa do patrão em proceder aos descontos para o

sindicato desde a última greve. Principalmente desde essa altura, afirma, “se

alguém começa a falar de sindicato fazem logo tudo para correr com ele dali para

fora”. Diz-se de esquerda e cheguei a vê-lo defender a necessidade de um governo

comunista. É um dos que mais admira o único encarregado que se opõe

abertamente à lógica patronal: “ele é o único que fala com os operários e aceita as

suas opiniões (…), e se for preciso ir contra os outros encarregados ele vai! O que

tem a dizer diz na cara!”. Todavia, não é apenas o sistema “autocrático” em vigor

na empresa que impede o Pedro de ser um activista sindical. O seu

posicionamento político parece pautar-se mais por influências e lealdades pessoais

do que por uma efectiva consciência de classe. Debate-se com profundas

carências económicas e problemas de ordem familiar daí derivados e os precários

recursos educacionais que detém também não ajudam. É apenas um caso de um

proletário, filho de proletários inserido do contexto sócio-económico da região.

Procura gerir a contradição entre a necessidade de trabalhar e o impulso para

contestar, a vontade de acumular os recursos mínimos para dar uma educação às

filhas e a revolta contra um salário miserável. Tem um espírito fraterno mas está

mergulhado num mundo competitivo e individualista, mesmo no âmbito mais

estrito dos trabalhadores e suas famílias, onde o esforço de acumulação só pode

dar algum resultado com o sacrifício de todos os seus membros. Por vezes

dasanima. Porque sente que não compensa, apesar de se “esfarrapar” com

trabalho. É um dos que procura levar trabalho à tarefa da fábrica para casa e

espera ser convidado a trabalhar aos sábados, quando a empresa necessita. Por

isso, fica irritado e desabafa junto dos mais chegados quando o convidam apenas à

última da hora: “para a próxima, quando precisarem, digo logo que não contem

comigo!…”. É certamente um desabafo que provavelmente não irá cumprir

porque entretanto o orçamento mensal da família ameaça não chegar e o fim do

mês ainda vem longe. Recebe, líquidos, cerca de sessenta contos, como a maioria.

Comprou um carro usado, um velho “R5” por cerca de 300 contos, o seguro é

caro, a mulher está desempregada e tem duas filhas a estudar, uma delas com

problemas de saúde. As despesas são muitas. Com pouco mais de 40 anos, tem a

quarta classe e o hábito de leitura é muito escasso. Creio que se limita ao jornal

“O Jogo”, cuja linha editorial dá mais destaque aos feitos gloriosos do seu clube

do coração, o F. C. do Porto. Chegou a chumbar no exame de condução pelas

dificuldades de interpretação das perguntas.

Em geral é uma pessoa bastante alegre, um brincalhão, mas por vezes aparecia na

fábrica com um ar muito abatido, sem dúvida devido às regulares discussões com

Poderia dar conta da trajectória da D. Aida, uma senhora com um percurso de classe média que viveu

anos em África e tem os seus filhos todos licenciados. Os casos do Cunha e do Manuel, que também estão

presentes (sob outros nomes), seriam também ilustrativos de operários com estilos de vida mais próximos

da classe média. Os casos seleccionados valem sobretudo pela exemplaridade das situações, mas creio

que mostram bem a heterogeneidade do colectivo operário da empresa e de um modo geral dos

trabalhadores do sector.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

368

a mulher. A sua esposa teima em recusar-se a trabalhar numa fábrica e isso não é

do seu agrado, dadas as dificuldades de emprego e a falta de recursos com que se

debatem. Esta é, provavelmente, a principal razão das suas angústias. Um

problema do qual não gosta de falar. A sua persistente renitência em se encontrar

comigo fora da fábrica denotou o seu provável receio de que eu pretendesse

desvendar alguns desses aspectos da sua vida familiar. Quando a situação familiar

é boa torna-se mais fácil convidar-se um novo amigo para ir a casa, mas quando o

que se passa é o contrário, compreende-se o desejo de resguardar a privacidade.

Na fábrica procura suportar o melhor que pode as exigências produtivas e

disciplinares. De certa maneira, já se habituou porque já trabalha no sector há

mais de vinte anos e trabalhar nesta empresa, como ele reconhece, até tem as suas

compensações. É um dos que costuma sair duas vezes por dia, além dos habituais

intervalos, para ir à casa de banho fumar um cigarro. Tem uma boa relação com os

colegas e com o seu chefe directo, de quem é amigo; pode fazer umas horas

“extra” de vez em quando e até levar algum trabalho para uma cunhada sua fazer

em casa; tem verdadeiros amigos na empresa, com quem periodicamente se

encontra para irem à pesca; dá-se bem com as raparigas mais jovens e, além das

habituais brincadeiras, chega até a dirigir-lhes gestos de sedução sexual.

Quando lhe perguntei o que é que faz nos tempos livres dos fins de semana

respondeu-me que não faz “nada!…”. Não deixa de ser curiosa esta resposta. O ar

de satisfação que espelhava no rosto perante a ideia de “não fazer nada”

denunciava a convicção de que o “fazer” significa trabalhar. Após esclarecimento

do sentido da pergunta respondeu que fica em casa, vê televisão, por vezes dorme

um bocado à tarde, lê um jornal desportivo, vai esporadicamente ver um jogo de

futebol do Arrifanense ou da Sanjoanense, de vez em quando vai com a mulher ao

hipermercado, “no fim do mês, que é quando há dinheiro…”. Aos fins-de-semana

da parte da manhã, em geral, entretém-se a lavar o carro ou a arranjá-lo, depois do

almoço vai até ao café com as filhas ou visitar familiares que vivem nas

proximidades. Quando é preciso vai uma vez por outra ao Porto ou a Coimbra,

neste caso mais por causa das consultas da filha. Além disso, vai por vezes à

pesca com os amigos – incluindo dois dos seus colegas de trabalho – até à zona de

S. Jacinto, onde passam o dia.

Caso 2 - Iniciativa e insucesso: um operário polivalente (Afonso). Este é um

operário com alguma qualificação integrado numa das outras secções da fábrica

(que não a da montagem). Como outros colegas seus, tenta acrescentar mais

algum rendimento ao seu ordenado, desenvolvendo outras actividades fora da

empresa. Negoceia com carros, usados e acidentados. Em colaboração com um

amigo, compram-nos e reparam-nos para depois os venderem, mas o negócio nem

sempre corre bem. Na sequência dessa actividade chegou a possuir um “Toyota”

de alta cilindrada que trazia para a fábrica. Era “uma autêntica bomba”, segundo

me disse, mas os problemas financeiros obrigaram-no a vendê-lo. Além disso,

dedica-se também à agro-pecuária, com a criação de porcos e galinhas no quintal

anexo à habitação onde vive, propriedade do pai.

Foi emigrante no Brasil onde também trabalhou numa fábrica de calçado. Após o

seu regresso, há cerca de 10 anos, instalou uma pequena “fabriqueta” de calçado

em sociedade com o pai. Um negócio que acabou por ser mal sucedido e que

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Entre a Fábrica e a Comunidade

369

resultou, tempos depois, no seu encerramento. Voltou então para a empresa, onde

antes já tinha trabalhado. As finanças detectaram-lhe uma ilegalidade e exigiram-

lhe o pagamento de impostos em atraso e o Afonso ficou a braços com uma dívida

de monta. A empresa concedeu-lhe um empréstimo com que pagou essa dívida e

que tem vindo a abater em prestações mensais descontadas no ordenado. Esses

problemas degradaram as relações familiares, o que foi agravado com a morte da

mãe. Os conflitos com o pai chegaram a assumir proporções graves.

Fiz uma breve visita a sua casa. Esta, integra-se num conjunto de habitações com

vários anexos, alguns deles alugados e outros ocupados por familiares seus.

Visitámos a pocilga dos porcos, uma parcela de terreno cultivada (que é dum

cunhado, emigrante em França) e o barracão onde se encontram dois carros para

serem reparados. Quando passávamos pelas traseiras das habitações térreas

detectei movimento na janela dum pequeno cubículo e fui espreitar. Aí funcionava

uma pequena “fabriqueta” de calçado com três ou quatro trabalhadores que

estavam ainda em plena actividade por volta das sete horas da tarde. Apareceu um

jovem que o meu amigo cumprimentou e apresentou-me, acrescentando: “não te

preocupes que não é fiscal das finanças!…”. O rapaz disse-me que estavam a

fazer cortes de gáspeas, uma encomenda para uma empresa de calçado que lhe

paga à peça.

O Afonso sempre manifestou algum interesse e curiosidade pelo meu trabalho.

Lamentava-se da vida rotineira do trabalho na fábrica e costumava comentar: “isto é

uma miséria; os que não têm mais nada, coitados, têm que aceitar tudo e contentar-se

com isto; temos que procurar ganhar alguma coisita por fora que isto aqui não chega

para nada!…”. Referia-se com visível orgulho às filhas pequenas que andam na escola.

Quando é preciso, é ele que vai à escola falar com a professora.

Na empresa, este trabalhador parecia um tanto isolado em relação aos colegas.

Convivia pouco nos intervalos e por vezes mantinha-se à distância. Soube por

outras fontes que já teve diversos problemas com alguns colegas e com o seu

chefe. Dizem que é boa pessoa e em geral muito passivo, mas que em certas

alturas por qualquer motivo pode “passar-se” e tornar-se agressivo. Houve um

caso de agressão que o envolveu a ele e a um colega devido a um favor que o

outro se tinha comprometido a fazer (levá-lo de carro a qualquer sítio) e que não

pôde cumprir. A seguir à discussão veio a briga, que só não atingiu proporções

mais graves porque os colegas o evitaram.

Caso 3 - Uma família pobre. A Carriça e a Joana são irmãs e trabalham ambas

na empresa. Moram em Alvito e frequentaram a escola até ao sexto ano. Além

delas, mais quatro colegas acompanham-nas diariamente no percurso de autocarro

desde a aldeia, que fica a cerca de trinta quilómetros da fábrica. Com as esperas e

atrasos dos transportes, chegam a demorar perto de duas horas de caminho. O

passe mensal custa cerca de oito mil escudos (perto de 15% do ordenado) e

queixam-se do patrão por este não lhes dar um subsídio de transporte. Só quando

ficam a fazer horas extraordinárias até tarde é que a carrinha da fábrica as vai

levar a casa. Todas com idades inferiores a vinte anos, duas delas já eram casadas,

cada uma com uma criança. Tal como a Carriça e a Joana, curiosamente também

duas das suas colegas têm em comum com elas, além do local de residência e da

condição de operárias desqualificadas, o facto de serem órfãs de pai desde

crianças. Todas elas entraram para a fábrica por volta dos quinze anos. Uma das

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Entre a Fábrica e a Comunidade

370

colegas, a Russa, antes de casar aparecia por vezes na fábrica com marcas de

violência. As mãos todas negras da pancada que lhe dava o irmão mais velho.

As duas irmãs dão-se bem uma com a outra e parecem felizes na sua vida agitada.

Uma vida de trabalho condimentada com os momentos de convívio e de namoro,

principalmente aos fins-de-semana, que é quando por vezes vão à discoteca local,

“O Mirante”, ou a uma outra que fica perto, a “Hollywood”. Na família são nove

irmãos ao todo (cinco rapazes e quatro raparigas); quatro já eram casados nesta

altura; três deles são emigrantes em França e na Alemanha. Dos solteiros, apenas

um dos rapazes e uma outra irmã estão na localidade. O primeiro trabalha na

construção civil e a rapariga é igualmente operária fabril noutra empresa de

calçado. O pai morreu com 33 anos. Era alcoólico e sofria de tuberculose. Foi

encontrado morto à beira de um caminho. A Joana contou-me que o pai bebia

muito, era doente e não trabalhava. Segundo o que diz a mãe, “ganhou uma

infecção e vomitava sangue (…), os pulmões desfizeram-se e deitou-os pela boca

fora”. Sublinha novamente, com um ar mais indignado do que triste: “ele era

muito bêbado! Batia na minha mãe e tudo!!”.

Quando na fábrica mencionei que gostava de as ir visitar a reacção foi

inicialmente de estranheza e admiração. A Carriça, que é a mais jovem das irmãs

e também aquela onde são mais visíveis os modos rudes, quando entrou para a

fábrica, segundo contam os colegas, mal percebiam o que ela dizia. Ainda hoje a

brusquidão das suas reacções, à mistura com o uso de termos que por vezes não

entendo, deixam-me confuso e até bloqueado. O ar de “rufia” e o sorriso matreiro

que imprime nos seus comentários são desarmantes. Quando a abordei para lhes

dar boleia até Alvito começou por reagir com ar de espanto, mas a rir: “pr´a

quê?!… O que é que você vai fazer pr‟a Alvito?…”; – “conversar com a sua

família, com a sua mãe…”, respondi; – “você não tem nada que aprender lá!!…

pr‟a que é que há-de ir a Alvito?… Ainda corriam de lá consigo à pedrada!…”.

Mas ria-se muito e mostrava-se divertida, aparentemente satisfeita com a situação.

Cerca de uma semana depois, a reacção foi-se tornando mais receptiva,

principalmente com a ajuda da irmã, mais calma e mais madura. Esta justificava-

se dizendo: “moramos numa casa muito velha…”. Acrescenta depois que o

problema é que a vizinhança começa logo a cochichar e, além disso, a mãe chega

tarde a casa, vem dos campos onde anda “a fazer umas terras”.

Também elas dispendem algumas horas a trabalhar na terra durante o fim-de-

semana, a ajudar a mãe. O terreno é-lhe cedido para cultivo por um dos patrões

para quem trabalha a “ti Rosa do Lexia”, como é conhecida na aldeia a mãe das

minhas amigas. Nos seus fins de semana e nas horas livres as irmãs, além de

ajudarem a mãe sempre que é preciso nas lides agrícolas, costumam ir lavar a

roupa da casa ao lavadouro público onde, segundo dizem, as mulheres fazem

comentários “do pior” e se corta na vida desta e daquela… Quando é preciso

fazem outras tarefas como, por exemplo, apanhar lenha nas redondezas, já que a

casa onde vivem ainda não dispõe de luz eléctrica nem água da companhia. É

realmente uma casota antiga, muito pobre e degradada, como pude constatar.

Quando as visitei em Alvito, quer a ti Rosa quer as filhas receberam-me com

grande amabilidade, apesar de ter aparecido de imprevisto, num sábado. A tez

escura e o rosto enrugado da senhora fazem-na bastante mais velha do que os seus

cinquenta e poucos anos. Criar nove filhos sozinha e naquelas condições tem de

deixar marcas profundas. Mostrou-se, no entanto, satisfeita e compensada por

sentir que os filhos já estavam todos crescidos e cada um a tomar o seu rumo. Os

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Entre a Fábrica e a Comunidade

371

anos mais difíceis já passaram… era “a miséria de quem nasce pobre”. No modo

de vida desta família, são claramente visíveis as marcas do Portugal profundo,

rural e pré-moderno, mas em estreita dependência económica da indústria local.

Caso 4 - Trabalho e música no domicílio. A Isabel e o Toni são cunhados (ela é

irmã da mulher dele). Falar dos dois permite-me não só referir novas dimensões

das relações de trabalho mas também a importância das ligações familiares dentro

e fora da empresa, na produção e no lazer. Ela coordena o trabalho domiciliário

que a empresa contrata. Ele é operário na linha de montagem e nas horas livres é

músico e animador de um grupo de folclore na zona.

A Isabel era uma das trabalhadoras que muitas vezes almoçava na minha mesa

com duas outras operárias e também o cunhado. Não diariamente, porque ela não

almoça todos os dias no refeitório, devido a ter de dar a volta pelas casas das

trabalhadoras ao domicílio. Enquanto está na empresa trabalha na secção do corte

e costura, mas sobretudo trata de preparar a “obra” destinada aos chamados

“auxílios”, como é designado o trabalho domiciliário. A Isabel distribui a “obra”

pelas 6 ou 7 mulheres que trabalham nessas condições, passando em casa de cada

uma delas e, dias depois, faz o mesmo percurso para recolher as respectivas peças

depois de cozidas, faceadas, etc. Utiliza para isso uma carrinha da empresa. É um

trabalho pago à peça e é também ela que faz os pagamentos. Nessas funções, está

directamente dependente do encarregado geral e recebe um salário superior ao das

outras operárias devido a essa actividade de coordenação. Em princípio, é o

encarregado geral que estabelece o preço final a pagar às trabalhadoras que se

encontram naquele regime, o qual pode variar entre os 120$00 e os 130$00 por

cada par de componentes.

Periodicamente, as mulheres dos “auxílios” reclamam devido à demora e às

dificuldades de execução de certas tarefas. Em geral, só quando conseguem

efectuar o trabalho com elevada qualidade e rapidez são solicitadas a trabalhar

para outras empresas, o que lhes permite então regatear o preço do seu trabalho. É

claro que estas funções conferem à Isabel um estatuto diferente dentro da

empresa, que no fundo se assemelha à posição de um encarregado, já que é a

responsável por esse “sector” da produção. Mas como de facto não tem

subordinados dentro da fábrica continua a manter um bom relacionamento com as

colegas e partilha com os outros trabalhadores muitas das atitudes de

descontentamento que tenho vindo a referir.

O Toni trabalha na primeira operação da linha de montagem, na preparação das

formas e respectivas peças de calçado que coloca em cima dos carros,

encarregando-se também de fixar a palmilha à forma, com o auxílio de uma

máquina de pregar. É um trabalho de particular responsabilidade, pois, tem de

preparar e adaptar as formas, segundo o número e o modelo, aos conjuntos de

componentes que chegam das secções anteriores (as gáspeas, da costura, e as

palmilhas e solas, dos pré-fabricados). Qualquer engano ou falha repercute-se em

toda a montagem. Por isso se vê o Toni sempre em movimento, ora a colocar os

materiais nos carros, ora a trabalhar na máquina de pregar, ora a ir buscar mais

cestos com as formas adequadas ao modelo seguinte. Quando falta uma sola num

carro, ou os números estão trocados (o que é raro acontecer), é ao Toni que os

trabalhadores se dirigem. Quando é preciso meter mais obra na linha, é a ele que o

encarregado se dirige.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

372

Trata-se, pois, de uma pessoa simpática e bem disposta. É fácil vê-lo a pronunciar

desabafos de revolta quando alguma coisa não corre bem, seja com o seu serviço,

seja em relação a qualquer problema que afecte os trabalhadores, como foi o caso

da marcação das férias. Mas, ao mesmo tempo, é a imagem do trabalhador

competente e preocupado com o seu trabalho. Já teve outras profissões,

nomeadamente na construção civil, o que lhe permitiu conhecer outras zonas do

país. Tirou a carta de condução enquanto eu estive na empresa e por isso deixou

de trazer a sua velha motorizada204. Agora já vem para a fábrica no Ford Escort

(de 1972) que adquiriu por cento e poucos contos, mas, segundo diz, está em bom

estado.

Juntamente com a mulher e os dois filhos, é membro do Rancho Folclórico do

Souto, onde tocam vários instrumentos, cantam e dançam. Esta vocação de

músico popular já vem de família. O pai foi também, como ele, muito activo no

associativismo musical, desde a juventude. Fui visitar o Toni em sua casa, na zona

de S. Martinho da Gândara, próximo de Ovar, acompanhado do meu amigo

Alfredo.

Era dia primeiro de Maio. Um “dia do trabalhador” como qualquer outro feriado

ou fim-de-semana, passado com a família. O quotidiano operário é a luta de todos

os dias e pode traduzir-se nas queixas contra o encarregado, mas neste caso

também no dedilhar do cavaquinho. Os grandes símbolos do movimento operário

e da luta de classes passam ao lado da consciência e das práticas destes

trabalhadores, como já vimos. A família esperava-nos. Estavam todos: além do

casal, também o pai (63 anos, operário do calçado) e a mãe do Toni, uma irmã

com o marido e a filha pequena, os dois filhos do casal (um rapaz de 11 anos e

uma rapariga de 16, também operária do calçado) e o “conversado” (expressão do

pai) da filha. Este último mal o vimos, pois, enquanto permanecemos com os

outros junto à entrada, os namorados estavam aninhados no sofá da salinha

contígua, com toda a benevolência dos pais. Fomos convidados a entrar e

sentámo-nos à volta da mesa da minúscula cozinha da pequena casa térrea que o

Toni e a mulher têm de renda por dez contos. É uma casa de campo, envolvida por

vários terrenos cultivados, com diversos arrumos improvisados nas traseiras. O

aspecto exterior da habitação deixa adivinhar a condição humilde dos seus

habitantes.

Toda a família toca cavaquinho. Já o avô tocava guitarra e participava nas “Festas

dos Reis” e nas “Janeiras”. Como antes assinalei, o pai do Toni foi na sua

juventude grande cantador e animador. Com grupos de jovens deslocava-se pelas

casas dos lavradores nas festas das colheitas, recebendo em troca diversos tipos de

oferendas. Esta é, pois, uma prática antiga que foi sendo transferida de geração em

geração e à qual o Toni procura dar continuidade, ensinando os filhos. Estes

parecem, aliás, aderir com agrado a essa lógica205. Tocaram para nós três ou

quatro músicas – o Toni no acordeão, a mulher e a filha no cavaquinho e o pai na

guitarra – bem ritmadas, a enquadrar a boa disposição e harmonia que toda a

204 Contou-me ainda que em sua casa tinha uma moto autêntica mas não a podia utilizar pois era

propriedade do seu falecido irmão (23 anos) que seis meses antes morrera num acidente quando ia (com a

namorada) na moto a ultrapassar um tractor que se atravessou no momento fatal. 205 O Toni fala sempre com grande entusiasmo da sua participação em numerosos encontros musicais,

bem como no seu gosto pela música e pelos instrumentos, que ele próprio arranja. Referiu que num dos

cavaquinhos, recentemente arranjado, foram colocados fios de aço previamente retirados de um cabo de

travões de bicicleta, que agora “viraram” cordas musicais de cavaquinho.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

373

família transmite. Registámos com agrado a afectividade, a brincadeira e o bom

ambiente entre todos os membros deste pequeno “clã” de operários músicos.

Ofereceram-nos o lanche, que foi amavelmente recusado.

Também na visita que efectuei a casa da Isabel encontrei o Toni. Mal

cheguei, logo deparei com ele, com um boné americano na cabeça, entretido a

lavar o seu carro nas traseiras junto à casa que a cunhada e o marido estão a

acabar. Desmultiplicando-se em actividades, também ele ajudou na construção da

nova casa dos cunhados, uma casa de piso térreo que vem sendo erguida aos

poucos, desde há cerca de um ano, com a contribuição de vários membros da

família. Finalmente, está quase pronta e nota-se o contentamento da Isabel.

Desculpando-se com a sujidade e falando das limpezas e do pó, manda-nos entrar

(a mim e à minha companheira nessa visita). Dentro da casa, um homem fazia

alguns arranjos; era o seu marido, que está reformado por invalidez (devido a um

atropelamento de que foi vítima). Nas traseiras existem outras casas velhas onde o

casal e os filhos (dois rapazes, de 14 e 21 anos, e uma filha ainda criança)

continuam a habitar até mobilarem e acabarem a nova moradia.

A Isabel e o marido habitam aí há mais de vinte anos, desde que casaram. Ao

longo desse período têm vindo a explorar uma pequena parcela de terra (com cerca

de 2ha) que entretanto adquiriram aos antigos proprietários. Estes residiam

também numa habitação contígua, no mesmo terreno, onde envelheceram e

morreram. Sem herdeiros e sem família reconheceram a protecção que no final da

vida receberam da Isabel e do seu marido, legando-lhes em testamento as casas e o

resto da propriedade. Embora fragilizado, devido aos traumatismos mal sarados

após o acidente, é o marido que se ocupa da exploração da terra, onde, além de

plantações de batata, couves, cebola, etc., há também algumas árvores de fruto

(dois limoeiros, duas figueiras e algumas laranjeiras). A semana de férias dos

trabalhadores, por altura da Páscoa, foi no essencial passada a tratar dos arranjos

da casa, mas, se não fossem esses afazeres seria normal a Isabel continuar a

circular nos contactos com as operárias domiciliárias que ela coordena, mesmo

com a empresa encerrada.

Caso 5 - Paixões e romance.206 Sob este título pretendo retratar uma dimensão

geralmente pouco referida no contexto fabril, mas que penso constituir um

exemplo de como os afectos e a dimensão amorosa são um ingrediente

fundamental das relações de trabalho. A fábrica não é só constrangimento e

produção. Embora essas componentes ocupem aí um lugar central, elas não têm

necessariamente de anular a emergência de outro tipo de fenómenos e

experiências, por vezes vividas como formas de libertação e realização pessoal.

A força libertadora da paixão, o romance em ruptura com as convenções sociais

não é apenas uma ideia romântica da literatura ou do cinema. É, como se sabe,

uma realidade social presente nas organizações e instituições e que, por isso, pode

ilustrar uma outra face dos mecanismos socioculturais – sejam eles de resistência

e adaptação ou apenas factores de perturbação pontual – presentes numa empresa

industrial. Como em muitas outras empresas, existem aqui alguns casais que se

conheceram na fábrica. Houve casos pontuais de namoro ou de pequenos flirts e

206 Embora os acontecimentos aqui referidos sejam verídicos, há aspectos que são propositadamente

ficcionados, por razões de defesa do anonimato dos seus intervenientes.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

374

fala-se de situações de envolvimento sexual entre encarregados e operárias, que

tiveram lugar no passado. Este é um tema particularmente sensível e por isso não

foi fácil obter informações detalhadas por parte dos intervenientes directos. Quer

por terem sido situações marcantes e, nalguns casos, até traumatizantes, quer

porque se trata de problemas do foro íntimo, facilmente susceptíveis de alimentar

a habitual “coscuvilhice”.

Uma história de paixão e romance marcou de modo mais notório esta

colectividade operária. Pelas razões apontadas, e ainda porque envolveu uma das

operárias mais populares e respeitadas da empresa, este assunto tornou-se uma

espécie de tabu colectivo. Por isso mesmo, não faria sentido ignorar um

acontecimento com tão evidente impacto no seio do grupo operário. O que se sabe

é parcial e algumas destas informações não serão exactas. Mas o próprio processo

de deturpação, e o facto de alguns comentários terem apenas a validade de um

boato, não anulam a relevância sociológica destes aspectos enquanto ingredientes

que de um modo ou de outro interferem na construção identitária activada no

espaço da fábrica.

Os principais intervenientes já deixaram a empresa. Um homem e uma mulher

encontraram-se na fábrica. A Teresa e o Faustino. Ela, uma operária qualificada,

com um nível de instrução correspondente ao actual 9º ano, 26 anos, solteira.

Cheguei a encontrar-me com ela fora da empresa e confirmou-se o que todos

diziam: é realmente muito bonita, inteligente, discreta. Vista pelos colegas como

um coração frágil e romântico que “se deixou levar”. Chegou a ser uma espécie de

líder informal dentro da empresa e todos lhe fazem referências elogiosas pelas

suas capacidades de trabalho e pelo seu “bom coração”. Ele ocupava na altura

uma função de responsável pelo “controle de qualidade”. Era casado.

Envolveram-se um com o outro, alimentando ela esperanças de que o seu objecto

de paixão consumasse o divórcio, o que foi sendo protelado ao longo de cerca de

três anos.

Houve pelo meio peripécias dolorosas que envolveram outros trabalhadores ainda

hoje na empresa. Um desses casos passou por uma outra trabalhadora (a terceira

figura a intervir nesta história, digamos) que chegou também a sair com o referido

“D. Juan” – ao que se supõe com intuitos sexuais e talvez de inveja pessoal –, para

sofrimento da Teresa, que aparecia na fábrica muito triste e se desfazia em choro

durante o trabalho. Ao que consta, um outro operário (Paulo) vinha desde há

muito alimentando uma paixão secreta pela Teresa. Perante o desenrolar da

referida relação entre ela e o Faustino, que passou a ser conhecida de todos, este

quarta “personagem” do enredo (um jovem trabalhador que continua na empresa)

fechou-se ainda mais na sua conhecida timidez. Tornou-se uma vítima silenciosa

daquele processo e sofreu sozinho o seu desgosto de amor. Uma tristeza que se

agravou perante um rival que era casado e com funções de chefia, situação que

rapidamente deu azo a todo o tipo de comentários e intrigas. Desde essa altura, o

Paulo nunca mais dirigiu a palavra a Teresa.

Um “enredo” tão conturbado merecia um final dramático, o que efectivamente

veio a acontecer. Como as famílias (da Teresa e do Faustino) deram conta do que

se passava, e perante a iminência de um divórcio, acabaram mesmo por intervir

directamente, tendo o pai dele numa ocasião, e o dela noutra, aparecido na

empresa a fim de discutirem o assunto. Foram os momentos culminantes do

escândalo. Apesar de se ter confirmado o divórcio, tempos depois o romance

terminou e o referido Faustino acabou por sair da empresa. Mais recentemente foi

a vez da Teresa seguir o seu caminho, mas foi preciso muito tempo para se

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Entre a Fábrica e a Comunidade

375

recompor. Encontrou novo companheiro e vive maritalmente com ele. Está mais

calma, diz que “é feliz” e continua a trabalhar no calçado.

A forma respeitosa como este caso me foi sendo referido, em primeiro lugar pelo

tio António, realçava o grande respeito e solidariedade da maioria dos

trabalhadores por aquela operária. Segundo uma das suas amigas, ela anda agora

muito melhor, mais calma e recuperou a boa disposição. Mas a aura de líder e a

alegria que incutia nas relações de trabalho, além da sua beleza, alimentaram

também muitas invejas. Além disso, os contornos “escandalosos” do romance

deram lugar a muitos comentários pouco lisonjeiros, principalmente da parte do

sector feminino. Esta ilação baseia-se quer nos seus próprios comentários,

nomeadamente quando se referia à “dor de cotovelo” ou à “inveja” que algumas

colegas sentiam, quer no facto de se tratar de uma operária cujos traços de

urbanidade, grau de consciência política e estilo de vida a afastam bastante do

sector mais ruralizado das suas colegas. Talvez isso tenha contado na sua saída da

empresa. Referiu-me que, se há homens que abusam na relação com as mulheres

“é porque elas deixam, consentem e se calhar até gostam. Quem quiser e souber

dar-se ao respeito pode evitar qualquer abuso”. Nesta opinião, apesar de ser

genérica, esconde-se sem dúvida uma crítica àquelas que, por vezes, têm actos de

exibicionismo ou de “desafio” para depois simularem o papel de vítimas.

Por outro lado, é significativo o facto de, não obstante as constantes brincadeiras

que têm lugar no dia a dia entre homens e mulheres, onde as referências ao sexo e

a carga de sensualidade são evidentes e repetidas, os comentários a esta história

serem escassos. Suspeito que se trata de uma cumplicidade colectiva em que,

embora todos tenham bem presente o que se passou, procuram ajudar ao

esquecimento e evitar gestos que possam ter uma segunda leitura, capazes de

reavivar feridas ainda mal saradas. Nomeadamente, tendo em conta que alguns

dos intervenientes na “história” continuam a trabalhar na empresa (como é o caso

do Paulo).

As insinuações das mais jovens para com este trabalhador, a forma atrevida com

que se metem com ele, seja para lhe pedirem boleia, seja quando referem que

viram o seu carro no sítio tal…, induzem uma espécie de solidariedade feminina

pelo Paulo, talvez uma compensação por ter vivido um intenso amor não

correspondido. Ele é realmente tímido, “bem parecido e bom rapaz” (como elas

dizem), filho de “boas famílias”, e por isso é fácil acreditarmos que também

desperte paixões secretas. Enfim, neste jogo de expectativas dissonantes, uma

outra operária, da costura, confessa às colegas mais próximas uma paixão pelo

Paulo (segundo dizem as “más línguas”). Ingenuamente, parece ter acreditado na

história e anseia pelo momento em que ele lhe revelará o seu amor. Só que tudo

isso não passa de mais um jogo urdido pelos amigos e colegas de ambos, a fim de

alimentarem os sonhos da rapariga e testarem a paciência dele. É apenas uma

brincadeira maldosa que pretende ligar o Paulo a uma trabalhadora considerada

pouco dotada em termos de beleza e de inteligência. Mas as brincadeiras em torno

disso já são escassas, porque as reacções dele aconselham a ter cuidado. As piadas

sobre namoradas arriscam-se apenas a acicatar o seu lado mal humorado.

Caso 6 - A delegada e o sindicalismo ausente. Uma promessa à Nª. Srª. de

Fátima poderá estar na base da “militância” da Maria – casada, 29 anos, duas

crianças –, a actual delegada sindical na empresa. Entrou em ruptura aberta com o

patrão em Agosto do ano de 1995, quando os trabalhadores foram todos chamados

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Entre a Fábrica e a Comunidade

376

a abdicar de parte das suas férias. Ela não podia. Tinha compromissos familiares e

também com a sua própria fé. Segundo diz, tomaram-na de ponta e foi

“perseguida” a partir daí. Deixaram mesmo de contar com ela para fazer horas

extraordinárias e facilmente encontraram pretexto para lhe retirarem o prémio de

assiduidade. Apesar das razões válidas que apresentou – um compromisso que

tinha com familiares emigrantes em França que vinham cá de propósito para irem

a Fátima pagar uma promessa –, o patrão reagiu mal. “Não queres vir, não vens!”,

foi a sua resposta, num tom definitivo.

Mas, ao que parece, a “vingança” não ficou por aí. Pouco tempo depois, ficou sem

o prémio e quanto mais se ia assumindo como “contestatária” mais a atitude

discriminatória se fazia sentir. Mas ela aguentou firme. Diz que também não está

para se chatear. Pelo menos assim, confiou-me, não se sente na obrigação de ter

de fazer horas. Eles já nem lhe pedem. Reconhece que não se esforça muito no

trabalho porque “eles não merecem!… a gente não pode falar nada do sindicato

porque o patrão arranja logo maneira de nos prejudicar… fazem os descontos que

querem se a gente chega atrasados nem que sejam dois minutos. Mas eu cá já me

queixei ao sindicato e tiveram que me dar tudo o que eu tinha direito”. Tendo

recebido apoio e incentivo do sindicato, foi assumindo com maior frontalidade a

sua atitude rebelde. Queixa-se da falta de organização dos trabalhadores, o que ela

lastima, mas crê que não há nada a fazer.

Numa altura em que o calçado foi notícia na televisão devido a um conflito

surgido numa empresa a propósito da introdução dos cartões magnéticos de

controle das idas à casa de banho, o caso foi comentado pelos operários. Mas a

troca de palavras foi, como de costume, escassa, dispersa e contraditória. Além da

pressa constante, os trabalhadores mostram-se pouco inclinados e discutir seriamente

este tipo de problemas. Ouviram-se vozes de revolta contra os patrões da referida

empresa: “não há direito carago! o pessoal trabalha, trabalha e nem pode fazer as

necessidades quando é preciso!?…”; logo outro operário punha a tónica nos

“abusos”, lembrando que numa fábrica onde trabalhou algumas “até chegaram a

dormir na casa de banho”; outro falou que na “Ecolett” havia uma operária que se

drogava e um dia desapareceu do posto de trabalho durante horas e foram encontrá-

la no WC. Apesar do sentimento dominante ser contra o abuso de poder dos patrões

e o controle exagerado sobre os trabalhadores, estes desabafos são sempre

pronunciados individualmente e os circundantes manifestam-se pelo silêncio.

Mesmo em momentos de revolta, o medo está presente e no final fica sobretudo a

sensação de impotência e resignação.

Dias depois dessa notícia, apareceu no refeitório um panfleto do MRPP sobre a

situação no calçado, os horários, a flexibilidade e contra o controle das idas à casa

de banho através do cartão magnético. Título: “CONTRA A POLÍTICA DA

FOME E DO CACETE, OS TRABALHADORES DEVEM RESPONDER COM

A LUTA”. Na sua habitual linguagem radical, aquele partido afirmava que os

patrões pretendem retirar o 13º mês (que passaria a prémio de produtividade) e, na

prática, aumentar a semana de trabalho: “Invocando o pretexto da instauração da

semana de 40 horas, o sector mais retrógrado dos patrões portugueses pretende

aumentar esse mesmo horário e, no entanto, continuar a pagar os mais baixos

salários da Europa.”(sic). Apenas dois ou três trabalhadores se detiveram por

breves instantes a olhar o papel.

Cerca de uma semana mais tarde surgiu a delegada sindical com um “abaixo

assinado” do sindicato, que começou a circular entre os operários. Nele se

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Entre a Fábrica e a Comunidade

377

contestava a flexibilização dos horários e o projecto-lei e se afirmava que “[caso o

mesmo seja aprovado] vai obrigar os trabalhadores a trabalharem até 50 horas

(não recebendo quaisquer horas extraordinárias por isso) de segunda a sábado. As

pausas não contam como tempo de trabalho (...) abrindo o caminho para o livre

arbítrio dos patrões (…). Se a proposta passasse a lei, seria dar aos patrões o poder

absoluto dentro das empresas: do quero-posso-e-mando.” (comunicado do

Sindicato do Calçado, 25/3/96).

A Maria estava em plena actividade militante. Aproximou-se quando eu estava

com o Toni junto ao carro dele, dirigiu-se a ele e a outro operário (o Zé). Em

gestos muito terra-a-terra, e utilizando obscenidades pelo meio, foi directa ao

assunto: “assina aí isso que estes gajos querem-nos aumentar o horário para 50

horas!”; aquele operário dizia, “espera aí, eu quero ler; deixa ver isso!...”. Outros

que se aproximavam diziam “não pode ser! Ah! isso é paleio do sindicato (...),

esses também só querem é mama!”. O Paulo afastou-se, o Zé disse logo que não,

abanando com a cabeça. A delegada estava “fula”. Desabafava: “eu já sei como é

que é! Estes gajos falam, falam e toda a gente tem é medo!” Dizia para o Toni que

estava ainda a olhar para a folha: “carago! assina essa merda!...; eu já sei que

ninguém assina!” O Toni acabou por assinar e a seguir a Maria dirigiu-se ao

refeitório. Vários trabalhadores assinaram o papel sem problemas, mas outros

recusaram-se. Um dos meus colegas, apesar dos seus usuais gestos de revolta

contra os baixos salários ou contra os abusos do encarregado, demarcava-se e

mostrava-se desconfiado em relação aos objectivos do sindicato: “Estou farto

desse paleio! Então não queriam as 40 horas?! Não puseram lá o Guterres?

Tiraram o Cavaco e votaram no Guterres, agora aguentem-se! (...)”.

Muitos trabalhadores revelam uma evidente desconfiança em relação ao sindicato.

Suspeitam dos “interesses” obscuros dos dirigentes e activistas sindicais, referem-

se a casos de delegados sindicais que foram cooptados pelos patrões e que viram

os seus prémios e condições de trabalho melhorados porque aceitaram abdicar do

seu papel de luta. Argumentos que, não só descrêem dos objectivos de

solidariedade dos líderes sindicais, mas têm subjacente o risco de “provocar” o

patrão através do activismo sindical. Parece enraizada a ideia de que “eles têm a

faca e o queijo na mão”, logo, não há nada a fazer. Acima de tudo há que defender

a todo o custo o posto de trabalho, ainda que isso obrigue a uma sujeição difícil de

aguentar.

Acresce que os verdadeiros líderes, os trabalhadores mais populares junto do

colectivo, raramente se assumem como sindicalistas e, deste modo, acabam

muitas vezes por ser os mais revoltados, mas nem sempre reconhecidos como os

mais capazes, os únicos que aceitam assumir-se como delegados sindicais. Esta

operária, por exemplo, é olhada como pouco competente. E a “competência” na

produção parece colher mais simpatia do que a simples militância. Uma situação

paradoxal, na medida em que a imagem de “competente” ou de “incompetente” é

ela própria construída no seio da empresa com a ajuda do poder dominante. O

“bom trabalhador” nunca é o mais rebelde ou, pelo menos, nunca é aquele que

assume abertamente a sua rebeldia. As histórias que circulam acerca desta

trabalhadora parecem no entanto devastadoras. Diz-se que ela “tem problemas” e

insinua-se que “não regula bem”. Referiram-me que chegou a ser apanhada a

roubar as sandes que os trabalhadores traziam para o lanche… O facto de na

origem do processo de “consciencialização” sindical de uma operária estar um

conflito ligado à sua fé católica parece ilustrar uma situação, no mínimo, ambígua,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

378

já que o sindicalismo é visto com desconfiança pela sua conotação esquerdista e,

portanto, anti-clerical. No caso desta delegada, não parece que o elemento

religioso seja suficiente para neutralizar essa desconfiança. Assim, o sindicalismo

está de facto ausente em termos de adesão militante e em termos de capacidade de

influenciar a luta organizada dos trabalhadores no dia-a-dia da empresa. Mas ao

mesmo tempo ele está presente enquanto referência central, seja pela negativa ou

pela positiva. É devido a essa presença do sindicato no imaginário das empresas

que qualquer gesto mais ostensivo de contestação facilmente corre o risco de ser

conotado, o que não deixa de se traduzir no adensar do retraimento por parte dos

mais conscientes. Ou seja, o sindicalismo está ausente enquanto estrutura

organizada, mas está presente enquanto referente central pelo qual se pautam as

práticas e representações dos trabalhadores e do patronato.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

379

Capítulo 6-A

O SOCIÓLOGO NA FÁBRICA

Fragmentos de um ―Diário de Campo‖

NOTA PESSOAL

Já que este relato pretende expor algumas das hesitações e dúvidas com que me fui debatendo ao longo desta

experiência, valerá a pena começar por uma breve nota pessoal. Esta poderá ser entendida, digamos, como

um cartão de apresentação, mas que, simultaneamente, se destina a revelar alguns aspectos do meu próprio

percurso que, espero, possam contribuir para tornar mais clara a razão das opções tomadas nesta pesquisa,

quer quanto ao tema, quer quanto aos procedimentos seguidos. É, com efeito, certo que as opções em relação

a este ou àquele tema, bem como a vocação mais teorizante ou mais interventiva do cientista social, o seu

positivismo ou a sua postura crítica, são aspectos que se inscrevem na sua trajectória de vida.

Muito embora tenha exercido outras actividades profissionais ao longo da vida, os meus contactos com o

mundo operário tinham até agora sido pouco mais do que fortuitos e pontuais. Filho de pequenos

comerciantes, cresci nos anos sessenta num Alentejo submetido à opressão salazarista, em terra de mineiros,

onde grassava a pobreza e onde uma mera paragem laboral dava azo a que os trabalhadores fossem

violentamente agredidos e encarcerados pela PIDE. As memórias da infância e, mais tarde, as vivências do

ambiente estudantil lisboeta, na adolescência, quando chegavam a Portugal alguns ecos dos movimentos

sociais e culturais da década de sessenta, a rebeldia contra o autoritarismo do regime e a adesão às

expressões musicais e culturais que nessa altura tanto chocavam a moral dominante, marcaram

profundamente a minha sensibilidade perante as questões sociais. Nos anos quentes do pós-25 de Abril a

actividade sindical e a militância de esquerda, com a ―classe operária‖ no centro do discurso político e

mergulhado no radicalismo ideológico de então, as pichagens à porta da fábrica, os panfletos distribuídos

aos trabalhadores em nome da ―vanguarda revolucionária‖, enfim, as noites de vigília em defesa das casas

ocupadas pelas famílias dos bairros de barracas, constituíram experiências ímpares, cuja riqueza humana

não poderia ser esquecida, mesmo depois dos ideais emancipatórios de então caírem por terra. Ficou

sobretudo a vontade de compreender os fenómenos sociais de forma mais profunda e sistemática e em especial

as injustiças sociais, a vida das classes baixas e os mecanismos de opressão e exclusão que sobre elas

continuaram a exercer-se. A essas influências seguir-se-ia – no pós-25 de Novembro de 1975 – a

progressiva desconfiança e finalmente a ruptura com o dogmatismo político-ideológico do revolucionarismo

leninista. Enfim, também algumas influências de professores dos últimos anos do ensino secundário

levaram-me a optar pela licenciatura em sociologia.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

380

O ambiente que encontrei entre a jovem comunidade sociológica do ISCTE e os intensos debates aí

suscitados, no contexto de ―ressaca‖ pós-revolucionária, estimularam fortemente a avidez por novas teorias e

a descoberta de explicações mais fundamentadas acerca dos problemas sociais e políticos das sociedades

contemporâneas. Além de pequenos trabalhos de pesquisa que efectuei ao longo do curso, o seminário final

de licenciatura foi elaborado em torno da acção operária numa empresa da periferia de Lisboa, trabalho esse

que constituiu, digamos, o ponto de partida da investigação sociológica centrada no operariado. A industria

do calçado surgiu, já em Coimbra, como tema de provas académicas.

Importava agora dar continuidade a esse trabalho e aprofundá-lo com base numa perspectiva de análise que

me permitisse articular diferentes abordagens e onde pudesse envolver-me de perto no quotidiano e no modo

de vida dos trabalhadores. A metodologia da observação participante apresentou-se, assim, como uma

resposta capaz de conciliar a profundidade analítica com o desejo de experimentação e envolvimento social e

humano no universo cultural da classe trabalhadora.

A ABORDAGEM E O PATRÃO

O escasso número de empresas que responderam aos cerca de vinte faxes que enviei para fábricas de calçado

localizadas nesta zona revela, desde logo, alguma coisa acerca do patronato do sector industrial do calçado.

Refiro-me nomeadamente à sua fraca sensibilidade para com as questões sociais, mas também à sua notória

desconfiança para com a Universidade e a sociologia, em especial perante a situação ―bizarra‖ de um

académico se dispor a trabalhar como operário numa linha de montagem. Em todo o caso, tive a felicidade

de encontrar um empresário – de uma PME com perto de 60 trabalhadores, sendo a maioria mulheres,

situada na zona de S. João da Madeira – que se dispôs com grande entusiasmo a dar acolhimento ao meu

trabalho e que me proporcionou todas as condições pretendidas. Tratando-se se uma empresa com as

dimensões e estruturas que me pareceram adequadas, e dado o bom relacionamento que à partida estabeleci

com este proprietário – após ter auscultado a situação noutras duas empresas, que mostraram igualmente

algum interesse, e depois de as ter visitado e entrevistado os seus responsáveis –, a opção estava tomada.

Mas, como se deve calcular, o interesse entusiástico deste proprietário não foi inocente. A estratégia patronal

orientou-se segundo duas vertentes que importa referir. A primeira passou pela tentativa de ―usar‖ a

presença do investigador para projectar para o exterior uma imagem da empresa coincidente com a sua visão

pessoal. Era uma forma de procurar reforçar a sua auto-imagem de empresário, independentemente de o

fazer ou não de forma consciente. Uma auto-imagem que pretendia afirmar-se pelo espírito aberto e

moderno, pelo desejo em se fixar na linha da frente em termos de investimento na inovação, na criatividade e

na motivação do seu pessoal. Um empresário ainda jovem e dinâmico, filho de um industrial e genro de

outro, mas que se mostrou orgulhoso de ter conseguido tudo o que tem à sua própria custa. Iniciou a sua

actividade profissional muito jovem – como professor, primeiro, e mais tarde como comerciante no calçado,

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Entre a Fábrica e a Comunidade

381

antes de abrir a empresa –, viajou sozinho pelo estrangeiro onde nos anos sessenta trabalhou em hotéis e

restaurantes a lavar pratos, etc. É interessante notar que a projecção de uma tal imagem teve como

destinatários mais próximos – além dos potenciais destinatários longínquos, tais como, os quadros, a

Universidade, o mercado em geral –, os seus concorrentes directos, ou seja, os industriais do sector sediados

na cidade, os quais, por razões profissionais ou outras, mantêm contacto regular com a actividade da

empresa. Comprovei no final do meu trabalho esse propósito quando constatei que o próprio empresário se

encarregara de divulgar nesse meio a minha presença na empresa. Além disso, participei a seu convite num

jantar informal com outros empresários do ramo, seus conhecidos. De acordo com a sua lógica, transmitir a

ideia de que a empresa tem dificuldades económicas ou problemas de escassez de encomendas é algo que,

perante a concorrência, deve ser evitado. Há que dissimular os sintomas da crise, além do mais, porque isso

tem, ou pode ter, consequências junto de fornecedores, clientes, banca, etc. As iniciativas inovadoras são

ingredientes que, do seu ponto de vista, podem tornar-se importantes mais-valias e, portanto, é imperioso

dar-lhes atenção207. A oportunidade de ter um sociólogo na empresa ajustava-se bem a essa perspectiva, e

daí a sua receptividade entusiástica e o grande interesse que manifestou em relação à pesquisa.

A segunda vertente refere-se à tentativa de tirar proveito da minha presença para ―motivar‖ os operários,

ou seja, esperava ele que da minha colaboração com a direcção pudesse resultar algum acréscimo de

incentivos à produtividade, sem acréscimo de custos económicos. Assim, a ―negociação‖ tácita entre nós

passou pelo meu compromisso em entregar-lhe no final um ―diagnóstico‖ da situação social dos

trabalhadores com vista ao desenvolvimento de novas formas de incentivo à produtividade e à motivação do

pessoal. Neste campo é possível distinguir duas coisas. Por um lado, a tentativa – supostamente genuína e

sem dúvida legítima do seu ponto de vista – de ajudar a criar condições para que os operários se dedicassem

mais à vida da empresa, se identificassem mais com ela, procurassem trabalhar melhor, aderissem mais

abertamente aos objectivos patronais, etc., donde resultariam consequências positivas para ambos os lados.

Por outro lado, uma expectativa em relação a possíveis informações que eu poderia veícular-lhe acerca das

atitudes dos operários e do seu empenhamento no trabalho208.

A conversa informal e o bom relacionamento que prevaleceu entre nós ao longo de todo o período da pesquisa

traduziram-se em repetidos convites para passar no seu gabinete ao fim do dia, onde se trocavam impressões,

quer sobre o decorrer do meu trabalho quer sobre a situação da empresa e dos trabalhadores. Mantendo

207 Por outro lado, esse discurso virado para fora é contrariado pelo discurso dirigido aos seus colaboradores internos (e a mim próprio), repetidamente centrado na crise e nas dificuldades financeiras, na encomenda que devia chegar e não chegou, na fraca adesão aos modelos apresentados nas feiras internacionais, na necessidade de vender terrenos para aumentar o capital da empresa, etc., etc. 208 Desde o início que ficou clara a minha posição de neutralidade assim como a defesa do anonimato em relação a quaisquer situações de trabalho que viesse a detectar no seio do grupo operário. Esta minha posição foi respeitada e compreendida da sua parte. Mas em alguns momentos pareceu-me óbvio o seu desejo de saber mais acerca do que dizem e do que pensam os trabalhadores.

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sempre a necessária postura conciliadora, porque naquele contexto o seu poder se exercia também sobre o

investigador, não deixei de ter a sensação de que, à medida que o tempo ia decorrendo, cada vez mais me

encontrava no centro de um jogo de poder. Podem imaginar-se as dificuldades que tive em gerir a minha

posição nesse jogo.

Nesse aspecto, tudo correu conforme o previsto e no final facultei ao proprietário o prometido ―diagnóstico‖

(ver Anexo 5), assinalando diversos pontos críticos e apontando um conjunto de sugestões destinadas a

flexibilizar a estrutura organizacional e os canais de comunicação da empresa. Não deixa, contudo, de ser

significativa a reacção violenta do patrão quando soube, semanas depois da conclusão do meu trabalho, que

tinha participado num debate promovido pelo sindicato onde foram referidos (e depois divulgados na

imprensa) alguns dos constrangimentos e práticas autoritárias de que os trabalhadores do calçado são

vítimas nas empresas. Apesar de se tratar de uma abordagem genérica sobre o sector e o nome da empresa

nunca ter sido divulgado, isso não me impediu de ser acusado de estar a ―fazer o jogo do sindicato‖, de

prejudicar a imagem dos empresários, e até de ―traição‖.

A CAMINHO DA FÁBRICA

S. João da Madeira, 26/2/96, segunda-feira. Ainda não eram 8h da manhã quando atravessei a

Zona Industrial localizada na periferia de S. João da Madeira e me dirigi à empresa no meu primeiro dia

de trabalho. Num dia chuvoso e ainda de noite, parei por momentos numa fila de carros a olhar as

correrias dos trabalhadores que cruzavam a rua em direcção aos portões das fábricas. Quer o intenso fluxo

de trânsito, com carros, motos e motoretas a chegar e a arrancar apressados, quer as várias formas de

comércio com os cafés-roulottes e os mercados improvisados, com as suas frutas, roupas, brinquedos, etc.,

tornam ainda mais animado - e confuso para mim - o ambiente deste núcleo de produção industrial onde

proliferam as fábricas de calçado e dos seus diversos componentes. É este o cenário com que os trabalhadores

do sector do calçado desta zona estão familiarizados, onde mergulham todas as manhãs e do qual

aparentemente fogem, apressadamente, todas as tardes.

Sendo o meu primeiro dia de trabalho na fábrica, estava, como não podia deixar de ser, bastante apreensivo com

o início da minha ―nova vida‖. Dirigi-me ao gabinete do encarregado geral (M.), uma pequena estrutura de

madeira envidraçada situada no topo da fábrica, junto às escadas que dão para o escritório. Trocámos breves

palavras sobre os objectivos do meu trabalho, dos quais ele já tinha uma vaga ideia (certamente transmitida pelo

patrão). Limitei-me a adiantar que me interessava sobretudo trabalhar como operário e junto dos operários, a

fim de sentir as dificuldades e exigências da produção como qualquer outro trabalhador. Aceitei de imediato a

sugestão que se fizesse uma ficha com o meu nome, destinada ao registo diário das entradas e saídas no relógio

de ponto, como acontece com todos os outros. Como era sabido, os encarregados e chefias estavam minimamente a

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par dos meus objectivos e do meu estatuto académico. Ainda assim, pensei na estratégia que tinha previsto: uma

actuação discreta e cuidadosa, não divulgando detalhadamente, e muito menos logo no início, todos os aspectos da

observação que pretendia realizar.

O CHOQUE INICIAL

Não pude deixar de me atemorizar ao penetrar naquele ambiente mecanizado e ruidoso. Senti o choque da

atmosfera densa e agitada da fábrica. Nesse momento pareceu-me até algo escura. À permanente azáfama

juntava-se um meio ruidoso composto pelas mais variadas sonoridades das máquinas, das descargas de pressão,

da saída de vapores dos fornos e sistemas de refrigeração, do martelar metálico dos diversos instrumentos de

trabalho; além de um intenso cheiro a produtos químicos e óleos que pairava no ar. A movimentação

mecanizada de todo o pessoal ao toque da campainha, com as pessoas a desdobrarem-se em gestos rápidos, a

pegarem nas suas ferramentas e a entregarem-se às suas tarefas sem perda de tempo, coroava este cenário para

mim ainda tão estranho.

Não irei esquecer os sentimentos contraditórios que me assaltaram nesse momento: ao mesmo tempo uma

sensação de angústia e curiosidade, de apreensão e expectativa. ―Isto é mesmo a sério‖, pensei. Mas a

preocupação em começar não me deixou tempo para reflexões. Fui de seguida apresentado ao encarregado da

linha de montagem (FI), que me conduziu até ao meu posto e me explicou a tarefa que tinha de efectuar,

mostrando ele primeiro como se fazia. Após uma rápida explicação e introdução ao meu colega de posto: ―... vai

ficar aqui ao pé do sr. António a arrancar pregos. Eu vou-lhe explicar como se faz…‖. Foi buscar o

arrancador, que é uma espécie de chave de fendas com a ponta em curva e com uma pequena fenda, que tem de

se encostar à cabeça do pequeno prego para fazê-lo sair, segurando o sapato (sandália, neste caso) com a mão

esquerda e manuseando a ferramenta com a outra. Comecei o meu trabalho.

RITMO DEMASIADO INTENSO

O calçado surge do meu lado esquerdo, com os pares enformados e colocados na posição invertida (com as solas

para cima), nas aberturas próprias entre os tubos cilíndricos dos carros da linha de montagem. No início

vinham dois pares em cada carro, mas por vezes apareciam três. Retiro uma sandália com a mão esquerda e

seguro-a contra o peito, procuro os dois pregos e, com algum esforço e as dificuldades iniciais, arranco-os com a

ferramenta da mão direita. Volto a colocar a sandália no mesmo sítio. Por vezes é difícil encontrar os pregos,

porque são pequenos e a cor confunde-se com a da palmilha e, além disso, como esta está coberta de cola, os

pregos não saltam à primeira tentativa. Tendem a ficar agarrados à ferramenta ou à sandália. Isto obriga a

mais um movimento com os dedos para os retirar para o chão, sem perda de tempo. A atrapalhação crescia

quando, mesmo assim, os pregos teimavam em ficar colados aos próprios dedos. Mas com este modelo de

sandália de Verão, como tem as palmilhas bastante maleáveis, é fácil arrancá-los, apesar de tudo. O pior é a

cadência que tem de ser imprimida. Não param de chegar mais carros com os tabuleiros cheios. Logo a seguir ao

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meu posto, o calçado entra num forno que se fecha automaticamente e por isso o tempo e o espaço de manobra

são muito pequenos. As dificuldades aumentaram ainda mais quando, com o rápido andamento da linha, os do

posto anterior (os montadores ou também chamados pregadores) se atrasaram nessa tarefa e vinham depositar os

pares nos carros (depois de pregados na palmilha) quando estes já estavam prestes a entrar no forno. Nesse caso

não dá tempo para fazer tudo. Ouvi então os primeiros desabafos de protesto da parte do tio António: ―ele não

vê que isto está atrasado?‖; com ar chateado, nervoso e encolhendo os ombros: ―se não vem desligar a máquina e

parar isto, deixa-se seguir tudo pr' á frente!!‖. O meu companheiro de trabalho revelou desde logo ser um

incorrigível falador. Perguntou-me se era amigo do FI (o encarregado); eu disse-lhe que não e que estava ali para

aprender a fazer sapatos porque me interessava conhecer melhor aquele sector; adiantei que iria ficar apenas por

um período curto, de dois ou três meses. Deu-me alguns conselhos, ensinou-me a posição correcta das mãos, para

ter cuidado com os dedos e para não me preocupar, que isto ―quem não sabe, aprende‖. Cerca de uma hora

depois de iniciado o trabalho, o encarregado geral chamou-me para falar mais um pouco comigo, procurando pôr-

me a par dos problemas da produção e querendo saber mais alguma coisa do meu trabalho. Tanto ele como o

encarregado da montagem mostraram-se bastante colaborantes para comigo.

UM IMPREVISTO

O primeiro imprevisto, que me causou grande apreensão, surgiu minutos depois, quando vinha a regressar ao

meu posto e me informaram que o meu colega tinha tido um ataque e estava a ser levado para o hospital.

Disseram-me os colegas do lado que aquelas crises eram habituais mas não se sabia ao certo se era do coração,

se era uma quebra de tensão ou apenas um desmaio. Isso aliviou-me do vago sentimento de culpa que me

assaltou, pois já começava a pensar que o incidente se relacionasse com a minha presença. Deram-me mais

alguns pormenores sobre a situação daquele operário. Com a idade dele (62 anos) e os problemas de saúde, já

não devia estar a trabalhar; ainda por cima continuava a beber, desrespeitando os conselhos médicos. O patrão,

quando mais tarde passou junto a mim para me cumprimentar, disse: ―se calhar o homem pensou que você lhe

vinha tirar o lugar…‖, o que me deixou ainda mais apreensivo. Felizmente, às 2 h da tarde já o ―tio‖

António, como é amigavelmente tratado pelos outros, estava de regresso e aparentemente bem de saúde. Tinha

sido uma quebra de tensão.

A CARRIÇA

Enquanto o meu companheiro esteve ausente, veio substituí-lo uma jovem operária (Carriça - 19 anos) na

tarefa de ―riscar‖. Esta tarefa só é necessária em certo tipo de ―obra‖, em especial quando se trata de calçado

com sola de borracha e que envolve a parte de baixo da gáspea, como é o caso das sandálias neste momento em

produção (que fazem parte de uma encomenda de 30.000 pares a exportar para a Holanda). Como

rapidamente adquiri prática em arrancar os pregos, procurei aprender a riscar, a fim de poder ajudar a minha

colega no tempo que me sobrava, uma vez que ela, além de estar agora a fazer esse trabalho, tinha ainda a sua

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própria tarefa neste posto (colar uma fita em redor da sandália, junto ao risco). A operação de riscar consiste em

fazer um risco à volta da sandália, o qual deve coincidir com o limite da respectiva sola de borracha. É por isso

necessário utilizar as solas que caminham no tabuleiro de cima do mesmo carro de transporte, instalado na

linha de montagem (onde circulam as diferentes componentes dos dois ou três pares por carro), adaptá-las às

restantes partes já montadas na forma e, usando uma esferográfica própria, riscar em volta da linha limite da

sola, evitando que a mesma saia da posição adequada enquanto se movimenta e risca a sandália de um lado e

do outro, à frente e atrás. Parece simples e é simples. O único problema é, como em tudo o resto, fazer bem e

muito depressa. Como estas são as duas operações que me irão ocupar mais nos próximos tempos estou a

descrevê-las com algum detalhe. Depois de ganhar a necessária perícia e agilidade, entra-se na cadência exigida

pela velocidade do andamento da linha (que é regulável e, segundo as exigências e possibilidades produtivas, é

alterada pelo encarregado). Tira-se a sandália enformada com uma mão e, com a outra, a respectiva sola

(direita ou esquerda), adaptando-a de imediato; é preciso não pressionar em excesso mas apenas o suficiente;

encosta-se a sandália ao peito, segurando com a mão a sandália enformada e a sola, sem a deixar sair do lugar;

com caneta na mão direita, risca-se de um lado; vira-se tudo e risca-se do outro lado; finalmente risca-se à frente

e atrás e coloca-se o calçado no mesmo lugar e no mesmo carro de onde foi retirado. É claro que a posição exacta

de segurar o calçado, a posição mais ou menos inclinada da caneta – ou se risca tudo de seguida ou se anda

para trás e para frente –, são pequenos detalhes para os quais é impossível estabelecer um padrão rígido e

totalmente previsível. Ou melhor, é um dos muitos exemplos que ilustram a impossibilidade de controlar todos os

movimentos, com a mesma posição, a mesma velocidade, etc. Este aspecto, que os responsáveis entendem em geral

ser uma limitação, é utilizado pelos trabalhadores como uma oportunidade de fazer valer e preservar a margem

de autonomia que podem deter, por mais ínfima que ela possa ser. Quanto mais a respectiva operação possua

características artesanais, mais amplo tende a ser o campo de manobra do seu executante. O caso do calçado é

um daqueles sectores em que a automação é muito limitada e, mesmo nas tarefas mais mecanizadas, a

componente manual tem um peso significativo.

O encarregado do meu sector referiu a ―polivalência‖ que tem vindo a ser introduzida na linha de montagem, de

modo a facilitar a deslocação de trabalhadores de um posto para outro sempre que isso se justifique. Ele próprio

circula pela linha, controlando o andamento e a qualidade do trabalho nos seus diferentes postos, efectuando

algumas operações e, quando é necessário, fazendo deslocar alguém de um local para outro, como aconteceu com a

substituição do meu colega, hoje de manhã. Mas a operária que para lá se deslocou continuou ligada ao nosso

local mesmo após o regresso do tio António, para meter a fita nas sandálias, tarefa que só ela efectua (ia para lá

de vez em quando, uma vez que o seu posto principal fica do outro lado da linha, onde desenforma e prega saltos

com uma máquina).

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A CONVERSA DO „TIO‟ ANTÓNIO

O tio António conversava comigo ou com a Carriça, conforme o local onde estava. Eu limitei-me a ouvir um

discurso do qual não consegui entender nem metade. É o ruído geral que me incomoda; é a preocupação em estar

concentrado para fazer as tarefas correctamente e depressa; é ainda o sotaque e a terminologia da linguagem que

eu não entendo. Embora me apercebesse logo que era um brincalhão, estou ainda a aprender a descodificar

quando está a brincar ou a falar a sério. A irrequietude do meu companheiro e a sua linguagem desbragada,

aliados à sua idade avançada e ao frágil estado de saúde, parecem suscitar uma condescendência geral que creio

não contemplar os outros trabalhadores. Por outro lado, é visível a sua tentativa de tirar proveito da minha

presença para conversar e ―provocar‖ as operárias. Por isso, procurei demarcar-me das brincadeiras mais

atrevidas que procuravam envolver-me. Embora alinhasse parcialmente naquele jogo, disse às duas operárias do

outro lado da linha que não tinha nada a ver com as piadas do tio António209, ao que uma delas me

respondeu dizendo que não me preocupasse, ―ele é sempre assim, todos os dias; a gente já o conhece, já sabemos

como é que ele é!…‖. Às muitas perguntas que me dirigiu fui respondendo com simpatia, mas em geral dando

respostas vagas: onde é que moro, se sou casado, se tenho filhos, de onde é que sou, se tenho carro, etc., etc.

Parece-me que devo, nesta primeira fase, ter bastante cuidado nas relações que vou estabelecendo. O meu

companheiro de posto torna-se saturante, mas, apesar de ter percebido que os outros se esquivam e não levam

muito a sério as suas conversas, creio que ele pode ser, e já está a ser, uma fonte de informação e um meio de

integração no grupo que tenho de aproveitar.

Os cuidados que tive neste meu primeiro dia de trabalho foram no sentido de evitar imiscuir-me em conversas

que não fossem dirigidas a mim, ou começar a bombardear as pessoas com perguntas que poderiam causar

desconfiança. A desconfiança existe certamente, mas não sei ao certo em que sentido. Assumi a postura do

―recruta‖ que procura, em primeiro lugar, ambientar-se e aprender a lidar com a (nova) situação. Senti algum

receio de ser identificado como alguém que está ali para controlar, alguém ao serviço do patrão. Não irei esconder

a minha posição nem mentir aos trabalhadores acerca dos meus objectivos, mas quero ter cuidado e, antes de

mais, sei que é preciso paciência e tempo até ganhar alguma confiança com eles.

209 O espírito de humor deste meu “colega” chegou mesmo a ser provocatório para comigo. A sua expressão “andar a fazer gáiolas” era suposto significar “fazer cera” ou “fazer ronha”, isto é, fingir que se trabalha. Expressão esta que ele usava para se referir ao encarregado, quando o via a passar ao largo. Mas a dada altura – provavelmente depois de me ter ouvido falar com alguém da minha “pesquisa” – , para se meter comigo, começou a usar aquele termo. Se o FI não estava, dizia que ele anda “a fazer uma pissquisa!…‖ (para ser fiel à sua pronúncia) e ria-se para mim ostensivamente. Apesar de algum abuso da expressão me ter levado a chamar-lhe a atenção, porque poderia introduzir um elemento de chacota relativamente ao meu trabalho. Esse receio foi, no entanto, meramente pontual. Perante a minha veemência o meu parceiro abdicou definitivamente desse “abuso”.

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28/2/96, quarta-feira. Hoje de manhã doíam-me imenso os dedos devido ao trabalho de desenformar

sandálias manualmente, que ontem efectuei o dia todo. Durante a noite acordei com dores e por isso, para me

proteger, tive de colocar dois pensos nos dedos. Embora contrariado, achei por bem tomar algumas precauções

caso continuasse a efectuar o mesmo serviço. Dirigi-me ao encarregado e disse-lhe que se aquele modelo

continuasse a sair ao ritmo do dia anterior talvez precisasse de auxílio, mas entretanto ainda continuei a fazê-lo

sozinho durante mais algum tempo. Cerca de meia hora depois ele chamou-me para voltar para o posto anterior

e colocou uma operária a fazer esse trabalho, mas com o auxílio da máquina de desenformar. Eu voltei, por

agora, para o posto anterior.

APROXIMAÇÕES

Mais um dia em que senti que o relógio andava demasiado lentamente, excepto nos curtos intervalos em que

parece acontecer o inverso. Numa altura em que, no intervalo do almoço, estava a chegar ao balneário fui

abordado por um operário que se aproximou de mim, perguntando se estava a dar-me bem com este trabalho.

Mostrou curiosidade e interesse em saber algo mais acerca das minhas motivações para estar a trabalhar no

calçado. Como é evidente, a maioria dos trabalhadores já se apercebeu que não sou um operário típico. Por isso,

e de acordo com o plano pré-estabelecido, não vou mentir deliberadamente aos operários. Na minha

aproximação com eles deverá haver reciprocidade e, nesse sentido, deve prevalecer uma ―negociação‖, em que, à

medida que vou ―descobrindo‖ algo de novo, ou seja, à medida que as pessoas se vão abrindo comigo eu próprio

irei revelando um pouco mais dos meus objectivos e de mim próprio. Respondi à pergunta do Afonso dizendo-lhe

que me interessa conhecer mais a fundo o mundo do calçado para efeitos de um estudo sobre o sector, que não

tem nada a ver com os interesses do patrão, tendo apenas objectivos científicos. Acrescentei ainda que preciso de

conhecer de perto as dificuldades laborais e económicas em que vivem os operários do calçado e suas famílias. O

meu interlocutor pareceu-me uma pessoa consciente das dificuldades. Afirmou que havia uma grande exploração

e que os patrões se aproveitam das dificuldades e do medo que muitos trabalhadores têm. Entretanto, ao mesmo

tempo que aquele se afastava para ir almoçar, aproximou-se um outro trabalhador (AB, encarregado) que

também quis saber mais alguns detalhes do meu trabalho, embora este (como todos os encarregados, creio) já

estivesse minimamente ao corrente. Como tinha assistido à conversa anterior, perguntou se era um estudo

sociológico. Respondi afirmativamente, sublinhando que o anonimato das fontes de informação será sempre

garantido e que me interessa obter os pontos de vista de todos os sectores que têm a ver com a empresa. Foi ele

que satisfez alguma da minha curiosidade, ao revelar que os trabalhadores andam um bocado intrigados comigo.

Segundo me disse, fazem-se os mais variados comentários e circulam diversas especulações em meu redor. As

operárias comentaram sobre o local e junto de quem eu me sentei à hora do almoço no primeiro dia, ao que o

AB adiantou que ―se calhar ele já fez isso de propósito…‖; umas dizem que irei passar a ser o encarregado

geral dentro de algum tempo e estou a aprender as operações; outros afirmam que estou a aprender para depois

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montar uma fábrica; diz-se ainda que sou um psicólogo; e até há quem diga que sou da polícia judiciária…

Em geral, as pessoas notaram logo a forma e a assiduidade com que os encarregados e o próprio patrão falam

comigo. Seja uma imagem positiva ou negativa aquela que mais influência ganhe junto dos trabalhadores, é

inevitável que tal perturbação provoque receios e embaraços de vária ordem. Espero contudo que tais receios

venham a ser ultrapassados ou, no mínimo, substancialmente atenuados.

Para além dos diálogos mais ou menos confusos que entretanto retomei com o tio António, as interacções com os

operários e operárias vão seguindo o seu curso no espaço produtivo. Já que é aí que vou ter de passar a quase

totalidade da minha estada, tenho de procurar retirar dessa situação e desse tempo quase ―interminável‖ (cerca

de 9 horas diárias em pé!) o maior proveito possível para a pesquisa. Começam a surgir alguns sorrisos

espontâneos e cumprimentos com simpatia, à minha passagem. Procurando estimular esse sentimento, e como

notei que isso é um hábito entre alguns trabalhadores, hoje ofereci rebuçados à Carriça e às colegas que

trabalhavam na mesa junto a ela. No mesmo sentido, estou a tentar aproximar-me dos operários aos quais

tenho maior acesso nas horas de trabalho e que me parecem mais abertos a fim de, aos poucos, afirmar o meu

estatuto de ―neutralidade‖ e conquistar a sua confiança.

AS “BOCAS” PICANTES

Nas curtas conversas que têm lugar nas horas de serviço repetem-se as piadas de índole sexual, em especial

quando se trata de situações em que os intervenientes são de sexos diferentes. É vulgar ouvirem-se palavrões, que

são pronunciados tanto por homens como por mulheres. Numa altura em que me magoei num dedo e

espontaneamente me saiu um ―ffff…‖, uma jovem do outro lado da linha riu-se, ao mesmo tempo que desviou o

olhar. Dada a fraca familiaridade existente é natural que se note alguma ―vergonha‖ nas suas atitudes para

alguém que mal conhecem, mas, ao mesmo tempo, talvez seja também um sintoma de que na relação comigo

outros cuidados deverão ser tidos em conta da parte dos operários (mulheres ou homens), uma vez que, tudo leva

a crer, me olham como alguém que para todos os efeitos é ―diferente‖ deles.

Efectivamente, vão-se confirmando os receios de que a minha movimentação e a postura que ela deixa

transparecer são alvo da curiosidade geral. No quotidiano do espaço produtivo, qualquer gesto fora do comum é

digno dos mais diversos olhares. É obvio que isto acontece em geral, e não apenas no que me diz respeito, mas

não deixa de ser curioso como um simples movimento mais anormal, como quando hoje saí por escassos segundos

do meu posto de trabalho para espreitar a secção do lado, isso foi imediatamente registado pelo meu colega de

posto. Mal regressei, o tio António logo comentou, com o seu riso matreiro, a minha pequena indisciplina:

―então foi ver como se trabalha no corte?!…‖

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AS PRIMEIRAS ANGÚSTIAS

4/3/96, segunda-feira. Ao longo da manhã de hoje senti-me bastante desalentado. Ao ver-me ali a

arrancar pregos, a dar marteladas nos sapatos, a desapertar sandálias com a rapidez exigida pela cadência da

linha de montagem e com os dedos a doerem-me cada vez mais; ao ver, por outro lado, as pessoas a fecharem-se,

a sentir a desconfiança, assaltou-me a ideia de que era necessário actuar e ultrapassar barreiras. Fazer alguma

coisa. A minha inquietação conduziu à precipitação. Fui junto do posto onde está o João e o Paulo e,

aproveitando o pretexto das notícias recentes sobre os cartões magnéticos, comentei: ―então o calçado foi notícia

nacional, na televisão!!‖. A resposta foi o silêncio total. Aliás, foi apenas o ruído das máquinas, porque este só é

interrompido nos intervalos e ao fim do dia de trabalho. Em momentos destes, chego a duvidar das

possibilidades de romper o cerco e de conseguir informações interessantes sobre o pensamento dos operários. Há

factores absolutamente incontornáveis: o violento ritmo de trabalho obriga-nos a ficar colados ao posto o dia todo;

o ruído constante limita fortemente as possibilidades de comunicação; o curto período dos intervalos não chega

para nada; à hora do almoço os operários (homens) saem a correr e chegam em cima da hora; e as mulheres que

almoçam no refeitório parecem-me ainda mais fechadas e desconfiadas em relação a mim.

Hoje, à hora do almoço, decidi sentar-me junto ao grupo de raparigas onde está a Carriça, para tentar conversar

com elas sobre o conflito dos cartões magnéticos. Ao pedir licença para me sentar, ―posso sentar-me aqui?‖,

apesar da resposta afirmativa, notei logo o embaraço geral e o desconforto da parte delas. Eram quatro

raparigas, com uma única já conhecida sentada no outro extremo da mesa. Minutos depois surgiram alguns

comentários entre elas sobre aquele acontecimento, com alguém a dizer que identificou na televisão uma pessoa

conhecida. Perguntei se conheciam alguma das porta-vozes, disseram-me que não. Perguntei se conheciam o

Manuel Graça. A Carriça e a colega do lado (a ―Russa‖, 18 anos, casada, 1 criança) entreolharam-se com ar

de espanto, em sinal de que não sabiam quem era. Eu esclareci: ―é o dirigente do seu sindicato‖ – ―Ah! o

careca!‖, disse a Carriça. Contiveram um leve sorriso e calaram-se. As outras duas que estavam em frente a

mim (a Carla e a Mila) não pronunciaram uma palavra e mal olharam na minha direcção. Passados escassos

minutos estavam a arrumar as marmitas nos sacos e a saírem da mesa, onde fiquei sozinho. Acabei de almoçar

e não arrisquei a dirigir-me a outro grupo de operárias.

RODEIOS DOS ENCARREGADOS

6/3/96, quarta-feira. Logo às 8 horas fui chamado ao gabinete do encarregado geral para ―trocar

impressões‖, aproveitando a relativa acalmia na produção, no início do dia. No seu gabinete – conhecido

entre os trabalhadores pela ―gaiola‖ –, conversámos durante cerca de dez minutos. Aparentemente, a sua

intenção ao chamar-me era saber se o meu trabalho estava a correr bem, mas creio que pretendeu, acima de

tudo, justificar-se sobre o clima de relativa confusão na sexta-feira passada, com algumas operárias a

resistirem a trabalhar até mais tarde, e as consequentes dificuldades em terem a encomenda pronta a tempo

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de chegar a horas ao local de embarque (o aeroporto de Pedras Rubras). Informou-me que só foi possível

entregar metade (200 pares destinados à Coreia do Sul) da quantidade prevista, devido às dificuldades em

conseguir voluntários. Falou-me do problema surgido no Verão passado, quando uma encomenda foi

devolvida e teve de ser toda refeita devido a problemas e defeitos nos moldes. Fiquei a pensar que tais

explicações visavam, por um lado, preservar a boa imagem da empresa que o patrão pretende transmitir-me,

pelo que seria prudente neutralizar quaisquer possíveis comentários ou gestos de descontentamento que eu

tivesse detectado e, por outro lado, se inseriam nalguma instrução do patrão para que o encarregado esteja

atento à minha movimentação junto dos operários. Esta foi uma dúvida momentânea que mais tarde se veio

a transformar numa quase certeza.

O ritmo produtivo tornou-se hoje ainda mais ―puxado‖. Segundo dizem, para compensar a quebra

verificada nos dias anteriores. Continuo a sentir dificuldades em chegar junto das operárias.

DILEMAS

O meu maior dilema neste momento é não saber se é uma mera questão de tempo. Sinto-me, de certo modo,

no meio de uma encruzilhada. De um lado, o patrão e os encarregados que me aliciam para os pontos de

vista assentes na lógica ―institucional‖ da empresa. Do outro, o operariado que continua desconfiado, a

marcar as distâncias e a esquivar-se a uma maior aproximação. Apesar de algumas explicações que já

avancei, suponho que as dificuldades em entenderem efectivamente o meu comportamento e o meu interesse

são, de facto, enormes e constato, com alguma desilusão, a ausência de curiosidade em saberem mais sobre

isso. Se a têm não a manifestam. Julgam-me e avaliam-me, acima de tudo, por aquilo que faço; e o que

tenho feito é trabalhar e participar muito timidamente em breves trocas de palavras sobre ―nada‖. Se

assumir abertamente o meu estatuto e for mais afirmativo, corro o risco de enviesar as suas atitudes (ainda

mais) e perder a possibilidade de captar qualquer espontaneidade. Se continuar com esta postura ‗soft‘,

descomprometida, discreta e ambígua, corro provavelmente o risco de ocupar o tempo todo na produção, a

assistir à correria diária para fora da fábrica e limitar-me a registar os pequenos desabafos e comentários em

torno das ―rendas‖, da criança da vizinha que foi ao médico, da sogra que está doente ou, no caso dos

homens, do carro que teve um furo e do resultado do jogo de futebol. Como o meu objectivo passa por uma

maior aproximação às pessoas, ganhar a sua confiança e, se possível, saber das suas vidas fora da fábrica,

para tal é necessário tomar alguma iniciativa. Pensei, por isso, ter uma conversa mais aberta com as

operárias que almoçam no refeitório para lhes explicar os meus objectivos a fim de tranquilizá-las e

conquistar mais adesões. Tenho, porém, as maiores dúvidas e receios acerca disso.

Durante todo o dia meditei e angustiei-me à volta deste problema. De tal modo que me vi na necessidade de

falar com alguém. Decidi telefonar ao meu orientador. Efectivamente, só quem passa por problemas

semelhantes sabe bem que não se trata apenas de uma pequena inquietação derivada da inexperiência. São

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situações inevitáveis do processo de pesquisa que marcam a nossa relação com a realidade em estudo e que

não se esquecem. Provas disso são-nos dadas por quase todos os autores quando voltam a escrever sobre o

trabalho de observação participante, ainda que já se tenham passado dezenas de anos após o momento da

pesquisa (veja-se Burawoy, 1988; Burawoy e Lukács, 1992; Hofstede, 1994; Santos, 1995). O profundo

sentimento de desânimo é como que uma catarse que parece durar uma eternidade. Deriva das expectativas

positivas que, sem darmos por isso, se instalam em nós. Só a experiência vivida permite que a auto-reflexão

nos revele os nossos próprios preconceitos. Só perante o iminente bloqueio e após muitos momentos penosos,

descobrimos que o ―mal‖ tem de estar em nós.

Na verdade, só comecei a ―despertar‖ quando me apercebi que, sem querer, estava a atribuir aos operários

certos ―defeitos‖. O querer ver neles um entusiasmo e um interesse que não existiam era sem dúvida um

obstáculo do investigador que tinha de ser ultrapassado e não um problema intrínseco da pesquisa. As

atitudes dos trabalhadores não têm de corresponder àquilo que nós inconscientemente desejamos: cooperação,

interesse em aproximarem-se de nós, abertura total para nos darem conta daquilo que fazem ou pensam.

Todas as acções que podem ser observadas devem ser equacionadas pelo investigador e, portanto, também as

acções ou os gestos de fechamento ou de evitamento são interessantes para a pesquisa. No entanto, só depois

de estar à beira do desespero fui levado a perguntar-me: porque é que os operários deveriam querer falar

sobre os seus problemas laborais? Que motivos válidos poderão eles ter para quererem aproximar-se de mim

e partilhar comigo as suas preocupações? O que poderão eles ver em mim que lhes mostre vantagens em falar

comigo? Que afinidades temos, afinal, ou poderemos vir a ter?…

HABITUAÇÃO

7/3/96, quinta-feira. Talvez pelo facto de ter reflectido sobre os sentimentos de bloqueio e isolamento

que me têm assaltado, talvez por me ter questionado a mim próprio e ter baixado a fasquia das minhas

próprias expectativas, senti hoje um crescendo de à-vontade com o ambiente da fábrica. Senti-me mais

descomprimido ao aceitar a ideia de que os trabalhadores são como são e eu só tenho é que saber observar e

compreender os seus comportamentos no dia-a-dia, sejam eles de adesão ou de indiferença perante a minha

presença. Deu-se como que um processo de ―naturalização‖, que me leva a sentir mais tranquilidade. E o

curioso é que apesar de objectivamente nada de especial ter acontecido, tenho a sensação de ter dado um

importante passo em frente, que parece começar a traduzir-se numa inserção mais profunda no colectivo dos

trabalhadores da empresa. Eles não só não agem como eu inconscientemente queria que agissem, como se o

fizessem seria um sinal de debilidade da própria pesquisa. Se estão ou não interessados em falar dos

problemas da empresa ou simplesmente em ouvir-me, constitui um importante indicador das suas

representações e práticas de classe. Terei, pois, de estar mais atento aos silêncios, ao desinteresse, ao desejo de

evasão e às eventuais recusas. Além disso, o importante é dialogar com as pessoas das coisas banais e das

questões que forem surgindo, o mais possível de forma espontânea e natural. O facto de, por exemplo, se

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Entre a Fábrica e a Comunidade

392

falar de carros ou de futebol tem que ser tão relevante como se as conversas girarem em torno da greve, do

encarregado ou do sistema de controle dos cartões magnéticos. O que retirei daqui foi que, apesar de à

partida já se saber que o processo de integração é ele mesmo um factor decisivo a ser equacionado na própria

pesquisa, essa orientação não é susceptível de ser completamente captada no abstracto. Uma coisa é saber

isso na teoria e outra bem diferente é senti-lo na experiência prática. Cada caso é um caso, e os obstáculos

que se colocam são sempre diferentes e inesperados, pois, se assim não fosse, não seriam obstáculos. Por isso

Burawoy chama correctamente a atenção dizendo que a observação participante só se torna relevante quando

nos surpreende.

12/3/96, terça-feira. Nos últimos dias venho tentando uma aproximação mais lenta, descontraída e

continuada com os trabalhadores, assumindo que, para todos os efeitos, tenho um estatuto diferente dos

outros, que inevitavelmente se reflecte na minha relação com eles. Contudo, não deixo de procurar cimentar

as afinidades e vou aderindo a algumas brincadeiras, alinhando no seu jogo. Falando comigo, raramente as

operárias dizem palavrões (embora haja algumas que o fazem desde sempre à minha frente), mas é notório

que cresce o seu à-vontade para comigo. Já me conhecem e algumas tratam-me pelo nome – sr. Elísio.

Participo na sociedade do totoloto e de vez em quando ofereço amêndoas e rebuçados a algumas das

raparigas que trabalham na linha.

Sinto que a familiaridade com o ambiente na fábrica só agora começa a atingir a sua plenitude. Se, ainda

recentemente, era fácil sentir-me desapontado e frustrado porque as coisas não corriam de acordo com as

minhas expectativas, ou porque me parecia que ―não acontecia nada‖, agora, dou por mim a agir como um

trabalhador igual aos outros, alguém que está na fábrica com as suas ocupações e responsabilidades, alguém

que trabalha, que troca diálogos e experiências anteriores, que se torna cúmplice nas ―caretas‖ que a

operária faz ao encarregado quando ele vira as costas, enfim, alguém que se vai dando a conhecer à medida

que também os outros se vão revelando e aproximando. É esta partilha, é a possibilidade de sentir a

experiência do trabalho e as vivências mais variadas que ela contém, desde o convívio à produção, do cansaço

à breve alegria libertadora que se vive nos intervalos, da conversa repetida do tio António aos diálogos

intermitentes com o João, da agitação das operárias do lado de lá da linha à familiaridade com os

movimentos e os sons cadenciados da fábrica, é toda uma atmosfera que já penetrou em mim, e torna-se

agora claro que é preciso vivê-la, passar por ela, sentir a violência do trabalho fabril, o torpor no corpo ao

fim da tarde, a ânsia de olhar para os ponteiros do relógio que em certas horas parecem parados. É

importante sentir tudo isto para poder compreender por dentro o que é o quotidiano do operariado do

calçado.

CONTRADIÇÕES DO PODER

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Entre a Fábrica e a Comunidade

393

Ao mesmo tempo que me relaciono com mais à-vontade com os trabalhadores, os encarregados parecem por

vezes adoptar para comigo a mesma atitude que eu adopto para com os operários. A relação deles, de todos

eles, sempre foi de grande cordialidade e simpatia em relação a mim, mas nem todos agem segundo uma

mera lógica de ajuda desinteressada.

Hoje de manhã, o encarregado da montagem (FI) pôs-se a falar com o tio António, ao meu lado, a

propósito do calendário das férias. Começou por dizer que quando esteve no estrangeiro também tinham

férias por altura da Páscoa e que essa é uma boa altura pois é a meio do semestre entre o princípio do ano e

o Verão. Lamentou-se que há quase dois anos que não tem férias, pois no ano passado estava a contar com

as férias em Agosto e houve necessidade de trabalhar... Depois teceu ainda alguns comentários sobre o

patronato: ―já se sabe que os patrões querem tudo para eles, só vêem o lado deles, a gente é que tem de

produzir para eles gozarem‖, etc, etc. Para mim foi óbvio que toda esta conversa era de facto dirigida a mim

e não ao tio António. Desde o início que procurou uma certa aproximação comigo e, sempre que havia

oportunidade para isso, ia dialogando sobre a sua experiência e o seu percurso profissional. Ao mesmo

tempo que eu vou diariamente assistindo aos sinais da sua impopularidade junto dos trabalhadores, ele

parece recear que eu me torne cúmplice destes na atitude crítica em relação ao estilo de chefia que ele

personifica. Ao tentar afirmar um certo distanciamento face ao patrão, pretende obter com isso a minha

cumplicidade e é, ao mesmo tempo, um sinal de querer saber mais sobre o que é que eu penso. Presumo que

isto seja um sinal de que a hierarquia quererá saber mais sobre as minhas posições e sobre a eventual

influência que elas possam adquirir junto dos trabalhadores. É claro que esta questão revela também o

relativo poder de que estou investido no espaço da empresa. Isso acontece, primeiro, porque a minha

actividade tem a legitimidade de ser aceite e apoiada pelo patrão; segundo, porque nenhum dos intervenientes

tem o domínio ou sequer conhece ao certo a natureza do meu trabalho; e, terceiro, porque a minha aceitação

e as afinidades que vou desenvolvendo se centram sobretudo no grupo operário.

Em todo o caso, tenho procurado manter uma certa contenção no tocante a expressar opiniões interventivas

que possam ser interpretadas como tentativas de politização ou formas de influenciar os trabalhadores contra

o patrão ou contra os encarregados. Contudo, é difícil por vezes evitar emitir a minha opinião quando os

operários manifestam as suas posições e o seu descontentamento na minha presença ou dirigindo-se

directamente a mim.

A FICAR COM O VÍCIO…

15/3/96, sexta-feira. Voltei ao lugar habitual mas entretanto iniciei uma nova tarefa. Estive a facear

as gáspeas e a trabalhar com a máquina de bater as calcanheiras. Enquanto me ocupava com essas tarefas,

tive uma visita-surpresa do patrão que se mostrou surpreendido com a minha capacidade, já que essa é

considerada uma tarefa difícil. No entanto chamou-me a atenção por eu e a colega ao meu lado (a Carla)

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Entre a Fábrica e a Comunidade

394

estarmos a desperdiçar tempo uma vez que ela fazia só um trabalho mecânico enquanto eu fazia uma tarefa

manual e outra mecânica e por isso ela ficava à espera. Escassos momentos após ele ter saído e sem nos

darmos conta estava novamente a ―apanhar-nos‖ a fazer a mesma ―asneira‖, com a diferença que agora

era eu que, enquanto estava à espera da Carla, ia adiantando mais uma operação das que era suposto ser

ela a realizar. Apesar das minhas explicações ele comentou: ―já está a ficar com o vício…‖. Vício que,

neste caso, se refere à tendência dos trabalhadores em fazerem as coisas à sua maneira, em vez de seguirem

estritamente as instruções dos superiores.

UMA PEQUENA DISSENSÃO

Hoje surgiu uma pequena dissensão entre mim e o meu companheiro de posto. Da parte da tarde comecei a

sentir-me um pouco irritado, primeiro, porque a sua conversa repetitiva e em geral desconexa se torna em

certos momentos insuportável; segundo, porque quando está mais entusiasmado diminui o ritmo de trabalho

— pois ele esbraceja sempre que fala —, o que faz recair sobre mim um acréscimo de esforço. Como eu a

dada altura comecei a executar parte do trabalho dele, além do meu, ele foi-se a pouco e pouco ―encostando‖

a essa situação. Mesmo em alturas de maior aperto, em que o ritmo acelera, o seu estilo de conversador

frenético não abranda. É, portanto, um duplo acréscimo de cansaço que recai sobre mim e cuja causa directa

reside no tio António. Obviamente que não o faz com uma intenção deliberada, mas o efeito é o mesmo. E

se refiro aqui esta questão é porque julgo ser uma situação que muito provavelmente se repete na relação de

trabalho entre os operários e se assume, assim, como mais um factor de fragmentação e individualismo, isto

é, pode traduzir-se na afirmação do sentimento de exploração de um trabalhador por outro.

Já no balneário, à saída, verifiquei que o meu habitual companheiro comentava para os colegas algo sobre

umas botas que não ficaram bem arranjadas, numa operação efectuada por mim. Compreendi de imediato

que o encarregado lhe havia chamado a atenção acerca disso e ele estava a assacar-me a responsabilidade,

dizendo que ―ainda tem muito que aprender…‖, etc. A seu lado estava o Paulo e o Toni que, mesmo antes

da minha chegada, lhe respondiam que ele é que era o responsável do posto e, portanto, era ele quem devia

estar mais atento. Efectivamente, recordo-me bem das ditas botas estarem bastante enrugadas e de tê-las

mostrado ao meu colega numa altura de grande aceleração da linha, ao que ele encolheu os ombros,

atarefado, dizendo: ―deixe seguir que eles depois logo hão-de ver…‖. Quando já vinha a sair, o Paulo

ainda me disse que ―ele pensa que você que está aqui para aprender e então tem que dar no duro, depois

encosta-se!…‖. Mais um exemplo duma situação conhecida no mundo do operariado industrial que se

prende com os rituais de iniciação exercidos sobre os novatos.

APROXIMAÇÕES E HESITAÇÕES

Em conversa com o pequeno grupo de trabalhadoras com quem costumo tomar café, revelei hoje um pouco

mais dos meus objectivos de pesquisa, justificando desse modo o meu interesse em fazer algumas entrevistas e

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Entre a Fábrica e a Comunidade

395

encontrar-me com elas fora da empresa. Quanto a esta questão, disseram-me, não ser fácil porque nas

localidades onde residem não há condições para que eu pudesse ser recebido e falar com elas, sem que isso

provocasse comentários da vizinhança. Por outro lado, os próprios maridos ou namorados também não

veriam isso com bons olhos. Registe-se ainda a reacção de algumas operárias quando, em momentos como

este, dão a entender que o meu discurso é para elas demasiado elaborado. A expressão dos seus rostos é

reveladora. Uma delas fez um gesto em direcção às colegas que parecia dizer ―fala bem, este nosso colega!‖.

Apesar de se tratar do uso de termos ou expressões vulgares para grupos sociais com um pouco mais de

recursos educacionais, é praticamente impossível evitar que o simples uso de uma palavra menos comum no

seu vocabulário quotidiano seja conotada com uma carga ―intelectual‖. O facto de não se fazer uso de

termos correntes na gíria local, bem como a semântica geral do discurso, parece gerar um efeito de sedução, o

qual certamente se liga à acção de inculcação mais geral por parte da cultura dominante sobre a classe

trabalhadora. No contexto da fábrica, tal atitude é mais visível nas raparigas do que nos homens. No caso

destes, é mais provável deparar-me com posturas de distanciamento que parecem querer dizer ―conversas

bonitas já nós ouvimos muitas…‖ ou ainda ―falas bem mas não me convences…‖. No fundo são gestos

que vincam apenas a realidade incontornável de que entre o investigador e os operários há uma barreira

social e cultural muito difícil de transpor.

NA BAIXA TAMBÉM SE GANHA…

Pouco depois, o encarregado discutiu com o tio António de forma particularmente violenta. Como eu estava

perto, mas do outro lado da linha, pude observar a cena sem que se apercebessem da minha proximidade

apesar do enorme o ruído não me deixar ouvir todas as palavras. O motivo foi uma sandália mal riscada.

O encarregado ―berrava‖ que ―só o trabalho bem feito é que se quer, mal feito não vale a pena!‖. A cara

vermelha e nervosa do meu companheiro a gritar igualmente para o seu chefe e virando-lhe as costas, com o

outro a gritar que olhasse para ele, enquanto o tio António continuava a falar e a esbracejar numa

expressão de rebeldia ostensiva e descontrolada. Fiquei a meditar naquela cena passada a cerca de um metro

de distância. Um adulto com 62 anos e perto de trinta de experiência operária a reagir irritado mas com os

olhos no chão, como uma criança intimidada. O mesmo homem que dias antes tinha oferecido ao outro, que

agora o humilhava, uma garrafa do seu vinho caseiro. Pedira-me a mim para lha entregar, certamente

porque temia que os colegas dessem conta desse gesto e o vissem como um acto de ―graxice‖. Agora, ali

estava ele, irado mas numa postura submissa a responder quase contorcido, tentando defender a sua

dignidade daquela maneira. Segundo mais tarde me revelou, respondeu que ―não é só aqui que se ganha

dinheiro! Na baixa também se ganha dinheiro!!‖. E com isto invocava a sua debilidade física e denunciava

a falta de reconhecimento pela sua dedicação ao trabalho e à empresa. Como quem diz, ―se a firma não me

quer cá, se já não presto, posso meter baixa em vez de estar aqui a aturar-vos‖. Porém, este caso ilustra

bem a dimensão simbólica que o trabalho pode representar na vida de uma pessoa. Não é tanto uma

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396

necessidade de subsistência, uma vez que o pequeno terreno, o trabalho da mulher (trabalha de tarde a fazer

limpezas numa quinta), algum dinheiro que acumulou e a actividade agrícola, juntamente com uma reforma

antecipada que poderia obter antes do limite de idade (dada a sua saúde precária) chegar-lhe-iam para

sobreviver, sem grandes aflições. Mas a ligação à actividade fabril é já muito longa e profunda. Precisa de

estar ali para se sentir útil e activo. A partilha, o convívio diário e o respeito e amizade dos colegas

compensam o esforço físico que tem de dispender. Por outro lado, é interessante verificar que se invoca a

situação de baixa como se ela representasse qualquer espécie de privilégio, ideia que parece efectivamente

estar presente em alguns sectores da força de trabalho e que se traduz nomeadamente nos comentários contra

os ―abusos‖ de quem mete baixa muitas vezes e, ainda, nas atitudes de gozo sempre que um colega

qualquer ficou em casa doente.

OUTRAS ACTIVIDADES…

27/3/96, quarta-feira. Tenho reparado que muitos trabalhadores têm outras actividades: negócios de

compra e venda de automóveis e pequena agricultura com pecuária, pequena agricultura familiar, negócios de

electrodomésticos, comércio de frutas e venda de pequenos artigos de vestuário que nalguns casos se

transaccionam na empresa na hora do almoço. Comprei até uma gravata nessas circunstâncias. Das

actividades de lazer apenas sei que o João é membro de uma pequena associação de bairro, que a Carriça

faz parte da Fanfarra de Alvito, que o Toni toca num grupo falclórico e que o Paulo, tal como o João já

praticaram ‗karaté‘.

Como de costume, tomei café ao almoço com a Célia, a Alzira e o ―senhor Rogério‖ (é assim que em geral

se referem ao mecânico), dos poucos que têm iniciativa para conversar de assuntos um pouco mais

interessantes do que comentar com a parceira as mais vagas banalidades, muitas vezes de forma

imperceptível para mim.

TER OU NÃO TER OPINIÃO…

28/3/96, quinta-feira. Os pequenos gestos dos trabalhadores em relação a mim, assim como os meus

em relação a eles, continuam a gerar no meu espírito alguma hesitação. Apesar de nesses momentos me

deixar guiar pela intuição, há continuamente situações que me obrigam a reflectir. O investigador deve ter

opinião? Até que ponto deve manifestá-la livremente? Numa situação de observação participante estas

perguntas levantam sérios problemas. É claro que o investigador tem e deve ter opinião como qualquer

sujeito social. Todavia, ao manifestar a ―sua‖ opinião numa situação de pesquisa como esta, é preciso saber

como afirmá-la e como geri-la, e por isso deve, na medida do possível, ponderar os inúmeros efeitos que pode

provocar, sendo que, alguns deles põem em risco a subsequente obtenção de mais informação, pois, a forma e

o conteúdo das suas tomadas de posição geram nos outros múltiplos efeitos… Por exemplo, quando o

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encarregado me vem falar do programa ―casos de polícia‖ onde estava um sociólogo, está a invocar um tema

que lhe parece ser do meu agrado; quando o Alfredo se refere ao fenómeno das Igrejas e seitas religiosas está

a procurar saber a opinião de alguém que ele considera especialista nesse tipo de assuntos; quando a Célia

começa a cantarolar músicas dos Madredeus ou a falar das injustiças…; quando o João se refere a temas

como o cinema, jogos de computador ou fala dos operários de S. Roque (que ele diz serem bem pagos) e diz

que ―isso é que você deveria ter interesse em fazer um estudo‖; quando o Afonso se queixa que ―isto é todos

os dias a mesma coisa‖ e que ―os operários fazem horas extra porque têm medo e porque precisam do

dinheiro, coitados...‖; quando o Luís diz que ―isto é uma porcaria duma vida... já vamos embora mas

daqui a pouco estamos de volta outra vez...‖ e acrescenta, num tom que é tido por brincadeira ou

provocação: ―isto é tudo uma exploração...‖, estão a manifestar opiniões, muitas delas genuínas. Mas, resta

saber se esses desabafos e esses gestos seriam alguma vez pronunciados se não se soubesse que estão perante

alguém que estuda as questões sociais. É muito provável que, mesmo sem a minha presença na fábrica, este

tipo de gestos ou afirmações nunca surgissem espontaneamente nas conversas entre os trabalhadores. Estou

convencido que se a minha intervenção passasse a ser mais activa na relação com os operários, as suas

atitudes seriam ainda mais condicionadas, isto é, orientadas em direcção àquele que se assume como

sociólogo. Não há dúvida de que uma atitude mais interventiva retiraria ainda mais espontaneidade às

opiniões e comportamentos dos trabalhadores. Por outro lado, se me tivesse assumido como um simples

operário, ou as pessoas dificilmente acreditariam nisso – além de que tal opção exigiria uma presença no

terreno muito mais longa –, ou teria de usar outras estratégias de ―disfarce‖ e assumir uma identidade

fictícia. Teria, portanto, de abdicar (sem o conseguir, provavelmente) do conhecimento e da opinião inerentes

à pessoa do investigador. Além de eticamente duvidosa, tal postura não daria certamente garantias de

captar informações mais autênticas e ―espontâneas‖. A subjectividade de cada um inscreve-se na sua própria

identidade e no ser social que ele é. Muito embora a interacção e a ―identidade‖ possam por vezes funcionar

como um jogo de espelhos, não é possível colocarmo-nos totalmente na pele de outro nem abdicar da nossa

própria forma de lidar com os outros. Isso é tanto mais evidente quanto se trata aqui, não de um qualquer

estatuto profissional da classe média mas de uma submersão no interior do operariado. Por isso, a

ambiguidade com que tenho de coexistir é esta: estou a fazer um estudo mas a trabalhar como operário. É

isso que as pessoas sabem. Se nos primeiros dias, ainda sem saberem quem era, se especulava tanto sobre o

meu papel na empresa, caso não tivesse revelado nada de substancial sobre mim, a desconfiança poder-se-ia

prolongar não se sabe até quando e o mais provável seria que o fechamento fosse muito maior.

DISTÂNCIAS, RESERVAS E CANSAÇO…

Os trabalhadores sabem que sou diferente, mas também já perceberam que não estou na fábrica para os

manobrar ao serviço do patrão. Por isso, queixam-se muitas vezes à minha frente, falam contra o

encarregado, desabafam alguma da sua revolta contida. O que existe a interpor-se entre mim e eles é

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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sobretudo uma barreira cultural. As pessoas têm pouco interesse em assuntos de ―gente culta‖ e neste ponto

deve reconhecer-se a sua inteligência. Há de facto pouca coisa em comum entre mim e eles. Se para mim a

fábrica é um meio, para eles é algo de inevitável e de opressivo. Pretendem é livrar-se dela e esquecê-la. A

fábrica é uma obrigação e o trabalho uma necessidade. Não há interesse em ir para o café ou para a aldeia

onde se reside falar da empresa. Eu próprio sinto na pele o peso do ‗stress‘ e do cansaço ao fim do dia. Fico

sem vontade para tomar qualquer iniciativa de acompanhar algum operário e compreendo bem que eles

queiram é sossego e sair para casa rapidamente. Mesmo ao almoço, ao sentir os escassos momentos de

silêncio, apetece é descansar um pouco e ficar quieto.

DESOLAÇÃO…

29/3/96, sexta-feira. A desolação continua a acompanhar-me e em certas alturas torna-se difícil

suportá-la. Hoje completei um mês e uma semana de trabalho na fábrica. Foi dia de pagamento. À saída

(17 horas) encontrei-me com um pequeno ―núcleo‖ de três operários com quem já criei algumas afinidades e

que fazem parte do meu convívio diário durante as horas de trabalho, com quem faço comentários e troco

desabafos sobre o patrão, os colegas, sobre a arrogância do encarregado,etc. Tinhamos combinado tomar um

copo ou jogar matraquilhos. Dois deles, que têm maior à-vontade comigo, justificaram que ―hoje não dá‖,

não tinham tempo. Um tinha de ir levar a namorada ao emprego e comprar sapatos, o outro tinha de ficar

na empresa para receber o salário de uma cunhada que trabalha ao domicílio para a empresa. Apesar de

logo na primeira semana ter estado um pouco no café com dois destes, acontece que desde essa primeira

aproximação não foi mais possível encontrar-me com eles fora do local de trabalho. Não é, creio eu, que o

referido encontro tivesse corrido ―mal‖. Foi até amistoso, muito embora o facto de ter então revelado os meus

objectivos de pesquisa (deva) ter causado no seu espirito algum embaraço ou mesmo retraimento.

…E DESINTERESSE

É claro que quando hoje tomei essa iniciativa já receava tal indisponibilidade e já há muito que percebi a

constante pressa dos trabalhadores em deixar a fábrica. Interpreto isso não apenas como um desejo de

deixá-la fisicamente, mas uma necessidade de esquecer durante algum tempo que ela existe. Por isso, a

alegada falta de tempo é simplesmente uma falta de interesse. E porquê essa falta de interesse? É difícil

uma resposta definitiva, mas posso aduzir algumas razões: 1º) por pensarem que o meu interesse é para

falar da empresa e dos seus problemas; 2º) por se sentirem inferiorizados perante o meu estatuto social; 3º)

por não haver pontos de contacto e interesses comuns, suficientemente fortes; e 4º) por saberem que a minha

estadia ali é passageira. Perante isto, sou forçado a dar-lhes alguma razão e até a reconhecer a sua

inteligência quando persistem nesta atitude. Esse é, no fundo, o problema com que se debate a sociologia,

por mais ―transgressiva‖ que seja a metodologia posta em prática. É que, para além das boas intenções do

sociólogo, para além da sua genuína generosidade, interpõe-se uma clivagem de classe entre ele e o ―seu‖

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objecto de estudo, a qual se assume como uma barreira intransponível. É um facto que o que leva o

investigador ao terreno e mais anima o seu interesse pela pesquisa é, no fundo, a prioridade que atribui à

sua própria carreira profissional, inserindo-se, portanto, na sua própria condição de classe. Quer queira,

quer não, os operários são, para além dos laços afectivos, das cumplicidades e das relações de amizade que

possa estabelecer com eles, o seu ―instrumento‖ de trabalho.

MUDANÇAS NA LINHA

1/4/96, segunda-feira. Hoje houve mudanças na posição das máquinas na linha de montagem.

Mudaram de posição a máquina dos calcanhares (do Paulo), a de cardar (da Mila), a de alisar e

pressionar os tacões (em que eu próprio tenho trabalhado) e ainda outra, também de cardar (onde ficou o tio

António), passou para o outro lado do forno, junto à Mila. Assim, eu e o meu habitual colega ficámos

agora separados, o que deu azo a um comentário do Paulo: ―como é que agora ele vai passar? tem que lá ir

ter com o homem de vez em quando senão dá-lhe para ali alguma coisa... Ele não pode estar sem

conversar!...‖. Durante algum tempo dava a ideia de uma autêntica ―revolução‖. Varria-se,

movimentavam-se máquinas, limpava-se. Havia bastante pó por causa disso. A Carriça resmungava ―logo

à segunda-feira é que se lembraram de fazer isto para uma pessoa ficar logo toda suja...‖.

ABRIR O JOGO

Hoje, à hora do almoço, tive uma breve conversa com as operárias que almoçam no refeitório. Estava junto

da máquina de aquecer a comida e enquanto esperava, aproveitei. Pedi para me darem um minuto de

atenção e expliquei duas ou três coisas. A intenção era apenas dar-lhes mais confiança. As minhas

palavras foram mais ou menos as seguintes: ―já cá estou há um mês e como sabem estou aqui a trabalhar

convosco porque quero estudar o sector do calçado. Alguns apenas ouvem os patrões e usam apenas as

estatísticas da produtividade para fazer os seus estudos. Eu estou aqui convosco porque acho que os

trabalhadores são a parte mais importante da produção, no calçado e na economia em geral. A minha

posição aqui não é igual à vossa porque vim para aqui através do centro de estudos a que pertenço. Por isso

é que o patrão fala comigo de maneira diferente. Eu sei que se fosse apenas um trabalhador como vós ele

não falava assim e se calhar nem falava comigo. Mas, como tenho outra posição, ele ouve-me. Ele quer que

eu, no final, lhe dê a minha opinião sobre o que está bem e o que está mal na fábrica e eu vou dizer-lhe.

Mas, para fazer isso, preciso que vocês se sintam à vontade comigo e confiem em mim para me dizerem o

que acham que não está bem. Nem o patrão nem ninguém vão saber quem é que disse o quê. Agradeço às

pessoas que já me deram algumas informações e que têm falado comigo. Não se preocupem que os vossos

nomes ficam anónimos. É claro que não tenho a certeza que as minhas sugestões sejam seguidas pelo patrão

mas sei que ele irá ouvi-las e tê-las em conta. Eu acredito que é possível a empresa funcionar melhor se os

trabalhadores tiverem melhores condições…‖. Agradeci, e só depois me fui sentar a almoçar.

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Creio que o meu discurso foi bem recebido pelas operárias. Todas esperaram em silêncio que eu terminasse e

os seus gestos indicaram concordância. Quando acabei houve uma resposta (da Manuela) dizendo que se eu

estivesse na fábrica e fosse representante dos trabalhadores ―eles logo arranjavam maneira de o pôr para

fora…‖.

Notei que os que partilhavam a mesa comigo estavam bastante mais afáveis. O Toni convidou-me para eu

o acompanhar, se quiser, quando ele tiver ensaio ou algum espectáculo do rancho folclórico a que pertence.

De tarde, a Mila veio de propósito ao meu lugar para me dizer que gostou do meu ―discurso‖. Estou certo

que fiz bem em abrir um pouco mais o jogo. Sei que a maioria das operárias não entendeu o objectivo do

―estudo‖ mas sem dúvida que ficaram mais à vontade com este gesto e mais convictas de que estou ao lado

delas. Vendo-me a trabalhar ao seu lado o dia todo e a almoçar e falar com os trabalhadores havia já

indícios que mostravam que eu era aceite, mas a minha maneira de falar – em particular com as chefias e o

patrão – causavam no espírito de muitos alguma intriga. Pareceu-me que, a partir de agora, será possível

que projectem em mim alguma forma de identificação enquanto porta-voz de algumas das suas preocupações.

UMA PROVOCAÇÃO AO PATRÃO

3/4/96, quarta-feira. Seguia de carro com o proprietário da empresa até à Mealhada, onde nos íamos

juntar com amigos seus para um jantar. É claro que o seu objectivo se inseria na sua dupla lógica de, por

um lado, pretender saber mais pormenores acerca do andamento do meu trabalho na fábrica e, por outro

lado, me ―mostrar‖ junto dos empresários do sector como um sinal do seu dinamismo e espírito inovador ao

receber um sociólogo na sua empresa. Durante a viagem trocámos algumas impressões sobre os problemas do

sector e a maneira de levar os trabalhadores a dedicarem-se mais aos objectivos produtivos. Ao contrário do

que era costume, desta vez estava disposto a ouvir-me, mais do que a insistir no seu habitual discurso de

empresário incompreendido. Convém assinalar que um dos aspectos mais interessantes na nossa relação se

prende com o facto de sempre me ter sentido muito à-vontade para expressar as minhas opiniões e de com

isso se ter criado entre nós um clima de confiança e respeito mútuo, apesar das opiniões serem muitas vezes

divergentes. Creio mesmo que o meu interesse e entusiasmo em relação à vida da empresa são um factor que

merece o seu total reconhecimento. Tinha preparado algumas ideias para lhe transmitir, comentários

genéricos que a meu ver constituem aspectos decisivos a equacionar se de facto se pretender introduzir

alterações na dinâmica da empresa. Sumariamente, dei-lhe conta do que pensava, nos seguintes termos:

1º) É necessário que a direcção seja capaz de assumir erros. Se há algo a melhorar é porque há coisas que

poderão ser feitas e ainda não foram, ou seja, cometem-se erros. Se há coisas que se reconhece não estarem

bem, a primeira responsabilidade deve ser assacada à direcção, uma vez que qualquer mudança terá de

passar em primeiro lugar por aí. Isto se de facto se pretende uma efectiva modernização organizacional. É

preciso capitalizar ao máximo a contribuição de todos nesse processo. ―Quatro olhos vêem mais do que

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dois‖, isto é, todos podem contribuir para a melhoria da qualidade e para corrigir os erros cometidos: a

direcção, as chefias intermédias e os trabalhadores.

2º) É necessário que os responsáveis e o próprio patrão sejam capazes de distinguir entre a direcção do

sindicato e os trabalhadores da empresa que sejam filiados. Por muito justas que possam ser as críticas aos

processos utilizados pelo sindicato, esse é um problema que não diz respeito à direcção das empresas. Além

disso, os trabalhadores mais reivindicativos podem ser aqueles que mais capacidade possuem para melhorar

a vida da empresa e o ambiente de trabalho. Os líderes de opinião, os que estão mais próximos dos

operários devem ser os primeiros a ser ouvidos e ―conquistados‖ para o processo de mudança e inovação na

empresa.

3º) Se existir um clima de medo e desconfiança, os trabalhadores calam-se perante as orientações da

hierarquia mas, por vezes, a revolta latente vai aumentando e um dia pode explodir. O descontentamento

(mesmo recalcado) leva a que se deixem passar os erros na produção e coarcta-se a preocupação de melhorar

as coisas. O chefe deve criticar e exercer a sua autoridade, mas também saber admitir quando erra. Criticar

é positivo, ―gritar‖ é negativo. Os operários e as operárias não devem ser tratados como crianças

irresponsáveis. As pessoas gostam de ser responsabilizadas e tomam mais cuidado naquilo que fazem se o

seu esforço for reconhecido.

4º) A maior dedicação; a assiduidade; o trabalho produtivo e bem efectuado devem ser premiados. Mas

também o espirito crítico e o interesse pela empresa têm de ser incentivados e recompensados (com incentivos

materiais mas também com gestos e atenções que têm um importante efeito simbólico).

Sugeri ainda as seguintes medidas a tomar: a) que fosse criada a figura do ―trabalhador do mês‖, tendo em

conta os critérios atrás assinalados. O operário exemplar teria direito a um prémio substantivo, embora o

mesmo lhe pudesse ser retirado em qualquer altura; b) em períodos de pouca produtividade, quando a

carteira de encomendas diminui, em vez da obsessão de manter os operários sempre a produzir é preferível

aproveitar parte desse tempo para conversar, dialogar e dar mais formação aos trabalhadores (quer na

vertente técnica quer na social); c) criar ou favorecer a criação de um órgão representativo e autónomo dos

trabalhadores na empresa, o qual poderia permitir estabelecer uma melhor articulação entre o ponto de vista

dos operários e a direcção da empresa. Seria um canal de diálogo que permitiria maior dinamismo e

motivação, já que nas condições actuais os canais de comunicação funcionam mal, precisamente porque não

pode haver livre expressão de ideias.

Enquanto expus as minhas ideias o meu interlocutor ouviu em silêncio, apenas interrompendo quando me

referi ao diálogo. Ele acha que há diálogo e que não se pode dar demasiada importância a certos operários

porque, segundo ele, não estão preparados para isso. No entanto, afirmou que concordava em 95% daquilo

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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que eu disse… A conversa foi interrompida porque entretanto chegámos ao restaurante. E no regresso, como

voltámos acompanhados de um dos seus amigos, não se voltou a falar da empresa.

ROSTOS FECHADOS

15/4/96, segunda-feira. Depois de uma semana de férias, com a fábrica fechada, voltei hoje ao

trabalho. Tudo na mesma. Como faltou a Lucinda, uma operária que normalmente trabalha a dar cola

nas palmilhas, estive eu a fazer esse trabalho. É um ―trabalho leve‖ mas muito chato, principalmente por

se tratar de sandálias com muitas tiras, como foi o caso. A cola fica dura rapidamente e para quem tem

pouca prática é fácil ficar com os dedos cobertos de cola, o pincel ora trás de menos ora trás de mais e por

isso tornou-se complicado dar vazão ao andamento da linha. Fiquei todo sujo. Foi, além disso, mais um

dia onde pontificou o desânimo.

É a irritação contida a crescer dentro de mim, embora procurando repetir para mim próprio algo semelhante

à velha máxima da militância comunista de que ―as massas têm sempre razão...‖. Não posso, no entanto,

impedir o sentimento de desapontamento que por vezes se apodera de mim. Ao fim de um mês e meio, e a

seguir a uma semana de interrupção do trabalho na fábrica, faz impressão constatar a falta de calor

humano da maioria dos trabalhadores. Não apenas em relação a mim, mas mesmo entre eles. São poucos

os que ao chegar se cumprimentam e nenhum (que eu visse) se dirige a outro com uma palmada amigável,

um gesto caloroso. Quando muito, dão o habitual ―bom dia‖ ao colega mais próximo e sempre pronunciado

em surdina, um som murmurado e quase imperceptível a que o outro por vezes nem responde (é o caso do

cumprimento do João para o Paulo, é o caso das jovens operárias – a Carriça, a Mila e a Russa – que

entram carrancudas, de testa franzida e nem se cumprimentam umas às outras. Em geral, só de tarde se

vêem alguns sorrisos, embora escassos. De manhã, nunca.

À entrada perguntei ao Paulo, ―então? Houve muita pesca?‖, ao que ele respondeu vagamente ―o peixe não

quer nada com o anzol...‖. E esta foi, creio, a totalidade das palavras do Paulo durante o dia. Comigo não

falou mais, com o João, idem. É verdade que este sentimento de desconsolo também me impediu de iniciar

com ele qualquer diálogo. Mesmo sabendo que com o Paulo têm que ser os outros a dizer alguma coisa, hoje

não houve pachorra para isso.

MEDO DA PERSEGUIÇÃO

Ao Pedro, toquei-lhe no ombro por duas vezes, falei-lhe e nunca me respondeu. Inclusive, no refeitório evitou

qualquer diálogo quando lhe dirigi a palavra. Este operário é um dos casos que me parece continuar

desconfiado e a evitar aproximações excessivas comigo. Como o João sabia que eu tinha passado em S.

Jacinto durante a semana de férias, é natural que lhe tenha dito e o Pedro deve ter pensado que eu teria ido

―persegui-los...‖. Um dos seus colegas confessou-me que ele ―talvez não queira dar confiança‖. Acredito que

seja isso. Não quer dar confiança. E é precisamente isso que me deixa irritado, já que se trata de alguém

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por quem desde o início nutria uma simpatia sincera. O facto de reconhecer que cada um tem todo o direito

de querer ou não alguma aproximação comigo não atenua a secreta ―fúria‖ que começa a crescer em mim

em relação a este trabalhador, principalmente tendo em conta que foi um dos que primeiro se encontrou

comigo no café e que na altura se mostrou aberto a colaborar comigo. Estou convencido que esta atitude se

deve, não tanto à desconfiança, mas a uma efectiva e ostensiva demarcação de campos. Não me vê como um

dos dele. É possível que seja simplesmente o seu sentimento de classe a funcionar e, se como sociólogo devo

compreender tal atitude, como ―colega‖ ou apenas como pessoa não posso deixar de me sentir mal com a

situação. Esses dois papéis são neste contexto indissociáveis, como se sabe. A partir de agora vou talvez

ignorá-lo ostensivamente. Suspeito também que se me vir a ganhar confiança com o seu supervisor directo

(por quem nutre grande admiração) irá, talvez, mudar de atitude, mas a minha vontade neste momento é

não lhe dar mais hipóteses.

A COLA, AS PALMILHAS E A MANUELA

18/4/96, quinta-feira. Estar a dar cola confere-me a vantagem de me movimentar mais e desse modo

poder com mais facilidade aproximar-me dos outros trabalhadores, em particular das mulheres que estão na

zona dos acabamentos. Posso falar com a Manuela ou com a Assunção, com a Conceição (que almoça na

minha mesa), com a Russa e com a Carla (que de vez em quando me vêm ajudar nesta tarefa) ou ainda

com a Célia (porque de vez em quando passa por mim no seu serviço) e ainda posso continuar a trocar

impressões com o João e por vezes com o Paulo. Decididamente, o tempo e o espaço da produção constituem

o meu observatório privilegiado. A pouco e pouco a minha presença acabou por se tornar familiar às

operárias que trabalham na zona onde me encontro. Começam agora a mostrar alguma curiosidade e,

timidamente, tomam até a iniciativa de fazer perguntas. Embora se trate, por exigências da produção e da

disciplina, de escassos fragmentos de diálogo entrecortados pelo regresso às tarefas produtivas, a facilidade de

movimentos, a abertura crescente e, acima de tudo, o meu sentimento de à-vontade e de partilha com os

trabalhadores em geral podem agora fazer frutificar o meu trabalho. Sinto que o tempo já é pouco para as

potencialidades de toda a informação e observação que está ainda latente, isto é, por realizar. Admito a

possibilidade de cá voltar mais tarde. A Manuela, com quem quase não tinha falado antes, mostra-se

muito curiosa. Creio que ela personifica o sentimento de muitas das outras suas colegas.

CURIOSIDADE E JOGO

Desejam conhecer mais sobre mim e sobre o meu trabalho. Mas ao mesmo tempo dão ainda sinais de receio,

de embaraço e de vergonha. É um jogo repleto de contradições e ambiguidades. Sentem que não entendem

muita coisa do que eu pretendo, acham estranha a minha curiosidade, o meu interesse a as minhas

perguntas. ―Mas para que é que você quer saber isso?‖; ―porque é que faz todas essas perguntas?‖ e ainda

―o que é que faz um sociólogo?‖; ―Devia fazer era com que o patrão desse aumentos...‖. Isto na sequência

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de algumas interpelações que lhes dirijo acerca das suas actividades familiares, por exemplo. Já não têm

qualquer receio, pelo contrário, tal como dizia a Manuela, muitas delas ―acham engraçado‖ o meu interesse

e curiosidade em relação às suas vidas.

Também elas parecem querer entender mais acerca do que faço e do que penso, mas é difícil dado que as

minhas respostas, das duas uma: ou são vagas e não adiantam nada, ou são imperceptíveis. Se esboço uma

explicação um pouco mais elaborada surgem logo os sorrisos de quem não está a ligar nada... No caso da

Manuela, que se vai tornando uma das minhas melhores colaboradoras, não era um sorriso reverente nem

propriamente de ignorância. Transmitia uma certa rebeldia e gozo matreiro, como quem diz ―fala, fala que

eu já te atendo...‖. É talvez a curiosidade e a atracção por uma situação para elas insólita de alguém que é

visto com um estatuto superior a querer uma aproximação e a mostrar interesse pelos trabalhadores.

JANTAR SÓ COM HOMENS?…

Espalhou-se entre algumas operárias a ―notícia‖ de que está em preparação ―um jantar‖ de despedida

comigo e com um grupo de homens. É o programa que temos, eu, o João, o Alfredo e o Paulo para o Solar

dos Presuntos, amanhã. O João terá dito à Célia e esta já desabafou para o Alfredo, ―está aí uma

equipa... Pois é, e nós é que não temos direito a nada...‖ E o Alfredo a responder ―se calhar ainda não está

nada perdido... ainda estás a tempo de ser convidada...‖ Estas reacções foram complementadas com o

―recado‖ da Manuela que me veio dizer: ―A Célia diz que os homens vão organizar um jantar de

despedida sua e ela não foi convidada...‖. Parece haver aqui uma espécie de jogo e de insinuação da parte

das raparigas, por um lado a mostrarem o seu interesse e curiosidade, por outro, a fazê-lo de forma tal que

parece uma demarcação fantasiada entre o campo feminino e o masculino, sendo que o primeiro observa à

distância o que faz ou o que pretende fazer o segundo, procurando medir até que ponto o nosso interesse em

incluí-las se manifesta, mas sabendo-se de antemão que, neste contexto, as mulheres não acompanham os

homens em petiscos na tasca… É no fundo o jogo de atracção e pudor que caracteriza as relações feminino/

masculino nos meios populares.

VIAGEM A ALVITO

19/4/96, sexta-feira. Cumpriu-se finalmente um dos desejos que vinha procurando desde há várias

semanas, de acompanhar as minhas amigas de Alvito até à sua aldeia. As manas Joana e Carriça, a

Russa, a Manuela e a Carla. A viagem foi descontraída, com sorrisos, comentários e boa disposição.

Contaram que conhecem bastantes pessoas que costumam apanhar o mesmo autocarro. Mas, apesar da boa

disposição geral, sentia-se que ao sairmos para fora do espaço da fábrica o seu à vontade diminuiu

substancialmente, pelo menos de início. Estando eu sozinho com um grupo de 4 amigas, jovens, que se

conhecem há muito tempo, seria de esperar um ambiente de à-vontade e de brincadeira. De certa maneira foi

isso que aconteceu. Depois da timidez inicial, todos nos divertirmos com os gestos da Carriça que vinha a

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indicar o caminho, quando ela, falando alto até quase me assustar, gritava ―vire aí, vire aí!‖ fazendo as

colegas rir em coro –, pouco antes de chegarmos indicaram-me o local: ―ali abaixo é o campo que nós

fazemos!‖. Parámos por instantes e lá em baixo, no fundo do vale viam-se de facto os talhões cultivados.

Foi aí que dias antes as irmãs tinham passado a tarde a semear batatas com a mãe. Passámos também por

um pinhal onde uma delas comentou, ―pr‘ aqui vem a gente à lenha… apanhar paus e madeira pr‘ à

fogueira‖. No caminho falaram-me também do lavadouro público onde costumam ir lavar roupa aos

sábados pela manhã. Confessaram-me que aí também se ―lava a roupa suja‖ da bisbilhotice local, e

falaram-me duma tal ―Balbina‖, que mora ao lado desse tanque e, segundo contavam, divertidas, é

deficiente mental. A Carriça afirmava sem rodeios; ―Oh!, ela é uma tonta do carago!‖. Dizem que se mete

na vida dos outros. ―É tola‖, sublinham. ―Ela e o marido. E a filha vai pelo mesmo caminho!…‖.

Antes de chegarmos a Alvito fomos primeiro levar a Carla (a Carlota como a tratam) até Gião onde ela ia

buscar a filha de nove meses que fica na ―ama‖ (que é a mulher do patrão do marido). A uns 200 metros

da casa da ama havia uma casa em construção onde dois ou três trabalhadores estavam no telhado: ―aí,

anda a trabalhar o Artur!‖ – diz a Manuela. ―A Carla vai levar...‖, dizem na brincadeira. Era o

marido da Carla que estava a montar o telhado da casa, em tronco nu e com um boné na cabeça. A Carla

corou um pouco quando eu olhei para trás. Ver a mulher chegar de carro, de boleia com um desconhecido

poderá provocar algumas perguntas ou desconfianças do marido. A Manuela indicou-me a escola onde

andaram. No largo onde as deixei, numa curva da estrada que dá para Vila da Feira, há um espaço com

pavimento empedrado, em plano inclinado e com algumas árvores frondosas e de grandes dimensões. Dizem-

me que é aí onde tem lugar o mercado semanal, aos Sábados. Quiseram ficar todas nesse local.

NOS CARRINHOS DE FEIRA

Alvito, 17,40 horas (escrito em guardanapos). Estou no café. Em frente vejo a Joana com o seu kispo

vermelho de capuz, cabelo apanhado e mala a tiracolo. A Manuela e a Carriça estão a andar nos carrinhos

de feira para onde se dirigiram quando saíram do carro. Trocaram de posições. Agora é a Joana que ocupa

o lugar da irmã e se vai divertindo com a Manuela. A Carriça assiste, à espera de nova mudança. Olha

para os lados. Para mim, mas também, penso eu, está a sondar se aparece o namorado pelas redondezas...

Continuam a andar nos carrinhos. Já fui até lá, trocámos breves gestos e sorrisos e voltei pouco depois.

Quando viram que eu regressei (após ter ido arrumar o carro) e me dirigia ao café em frente, fizeram

alguma algazarra. Riam-se e apontavam com o dedo na minha direcção. O café onde estou a escrever é

frequentado pela Manuela aos fins de semana, mas as duas irmãs disseram-me que não costumam cá vir. É

um café-bar, com salão de bilhares, separado da zona das mesas por uma divisória de madeira pintada.

Mesas redondas com tampo em espelho com figuras desenhadas em cenários aristocráticos (um cavalheiro de

longas barbas serve champanhe a duas donzelas vestidas ao estilo cortês do século XVIII). Cadeiras em

estrutura metálica, pintadas de verde escuro e com almofadas e encostos em tecido aveludado de cores vivas.

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A sala é de grandes dimensões com as paredes decoradas em espelho a toda a volta. Num canto em frente à

entrada principal fica o balcão em ―L‖, estilo bar inglês, com garrafas e copos invertidos na parte superior.

Aí predominam as garrafas de whisky e os licores e aguardentes. Há exaustores e ventiladores, boa

luminosidade solar, candeeiros com luz vermelha espalhados pelas paredes. Sobre a linha dos espelhos, uma

TV colocada na parede com dispositivo de adaptação de posição. Por um lado, parece um café à moda

antiga, num espaço amplo, mas, por outro lado tem alguns traços de bar. Na zona dos bilhares, há duas

mesas altas, um sofá no mesmo estilo das cadeiras do lado direito da porta de entrada. Nas paredes há

ainda mais alguns quadros pequenos com imagens femininas em traje clássico desenhadas sobre espelho. O

som da TV está ―off‖ e ouve-se música da ―Rádjio Cidadji…‖

PETISCO NO “SOLAR DOS PRESUNTOS”

Regressei a casa, tomei um duche, descansei um pouco e por volta das 22,30 horas fui encontrar-me com os

meus companheiros conforme estava combinado. O encontro foi no café da mãe do João. Quando cheguei

estavam lá o Paulo e o Alfredo a jogar ‗snooker‘ na cave. Pouco depois chegou o João, de regresso do seu

curso de formação. Jogámos duas partidas de ‗snooker‘. Notei a descontracção do Paulo que habitualmente

é bastante reservado. Os diálogos giravam sempre em torno do jogo e ao ritmo das tacadas. Não houve, por

assim dizer, conversas sérias. Cerca das 23,20 horas seguimos para o nosso objectivo sem que o outro colega

convidado (o Zé do corte) tivesse aparecido. Viajámos todos no meu carro. Algumas bocas do Paulo a

revelar algum receio nas curvas mais apertadas, mas tudo correu bem. O ―Solar dos Presuntos‖ fica em

Oliveira de Azeméis, junto à variante que segue para o Sul. É uma casa de comes e bebes com mesas de

madeira grossa, moderna mas num ambiente popular. Um misto de tasca-cervejaria em que a qualidade dos

petiscos é mais importante do que a decoração. Pedimos uma ―tábua‖, com presunto e queijo servidos em

lascas sobre a referida tábua (semelhante a uma tábua de cozinha). Presunto em abundância de óptima

qualidade. Os assuntos de conversa começaram então a girar em torno de aspectos da fábrica. Falou-se da

minha ida a Alvito e das operárias de lá. Riram-se quando o João contou que eu tenho dificuldade em

entender o que diz a Carriça. Dizem-me que também a irmã, quando veio para a fábrica, revelava uns

modos muitos brutos e uma linguagem até para eles difícil de compreender. Falou-se também do

encarregado, assinalaram mais uma vez os modos rudes com que trata algumas operárias, bem como os seus

duvidosos traços de carácter e capacidades técnicas. Insistiram que ―a ele não se pode mostrar os dentes…‖.

NA DISCOTECA “A SAPATARIA”

Terminada a ceia fomos ainda a uma discoteca-bar em Oliveira de Azeméis, a ―Sapataria‖. Bebemos um

copo e, cada um a seu modo, foi apreciando o ambiente. As conversas são poucas pois estas atmosferas são

mais propícias à excitação do corpo e, porventura, dos apetites sexuais e outros devaneios, do que à

conversação. Discotecas e bares constituem um dos muitos meios de normalização dos consumos simbólicos e

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de aproximação das práticas juvenis dos meios urbanos e menos urbanos. É provavelmente um tipo de

espaços onde os jovens das classes médias se misturam de forma mais ou menos indistinta com os fragmentos

mais escolarizados do operariado. Ao lado do João, do Alfredo e do Paulo constituíamos apenas um

pequeno grupo de amigos igual a muitos outros. Será que um espaço como este, embora inserido num meio

marcadamente industrial, transporta consigo formas de demarcação social capazes de deixar de fora os

sectores mais carenciados das classes trabalhadoras? Será que estas – ou seja, a juventude operária menos

escolarizada – tendencialmente se aproximam mais de espaços onde predominam o ‗karaoque‘ e a chamada

música ‗pimba‘? Serão estes ambientes de actividade lúdica relevantes na fragmentação da identidade

operária? Questões que deixo por agora sem resposta, mas que não deixam de fazer sentido, quando acabo

de passar por um sítio destes acompanhado de três jovens operários. É certo que as meninas loiras e altas

dentro do balcão, a exibirem-se fogosas para os muitos homens e rapazes que, de copo na mão, rodeavam a

zona, devem pouco a outros produtos – televisivos ou não – de atracção/docilização de massas na base do

―show-business‖ ou da mais baixa ―porno-brejeirice‖. O João cumprimentou um ou outro dos presentes que

lotavam o espaço. A proporção de presenças femininas era notoriamente escassa, em comparação com a do

sexo oposto. Apesar de se chamar ―Sapataria‖ e de estar sediada nas instalações de uma antiga fábrica

(situda na zona industrial), todo este cenário se confunde com o de qualquer outra discoteca de uma grande

cidade.

REUNIÃO COM OS ENCARREGADOS

22/4/96, segunda-feira. Hoje ao fim da tarde tive uma reunião com todos os encarregados, a qual

estava prevista desde o início, com o acordo do patrão.

Fiz primeiro uma breve exposição apresentando algumas noções e pressupostos da abordagem sociológica,

encaminhando depois as questões do mais geral para a organização e a empresa: 1) As relações sociais, a

contradição entre a lógica do grupo e o indivíduo, integração e conflito, normas e interacção, papel e estatuto;

2) O poder como relação social desequilibrada e dinâmica: o exercício do poder pelo constrangimento e pela

legitimação; poder e autoridade; fontes de poder informal; 3) A organização e a empresa; o antagonismo de

interesses; os factores de motivação, necessidades primárias e secundárias, a gestão do conflito; a cultura de

empresa.

Escutaram e mostraram algum interesse pela exposição, que durou cerca de 30 minutos. O AB foi o único

que tirou alguns apontamentos.

Sentiu-se claramente que a atitude geral destes chefes de secção é pautada pelos seguintes princípios: a) o

patrão dialoga pouco e não admite os erros - resta termos de nos calar; b) a maioria dos operários não se

interessa em saber mais e em fazer melhor; c) os trabalhadores não têm mentalidade para dar opiniões sem

perderem o respeito pelas chefias. As atitudes mais rígidas em relação ao diálogo com os subordinados

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vieram do FI. Quando explicava o seu esforço para ensinar ―o melhor método‖ para executar a operação,

reafirmava a sua paciência nessas explicações aos operários. Embora de forma diplomática, interroguei-o:

―Alguma vez se enganou?‖ resposta titubeante: ―É natural que uma ou outra vez me engane mas, em

geral, nunca me engano.‖ Da parte dos outros, concordam que há falta de diálogo entre eles e o patrão, mas

afirmam que ele existe (o necessário) entre eles próprios e os operários. Não é nada surpreendente, claro.

Notaram-se algumas diferenças de pontos de vista entre o FI e os outros. Por exemplo, a propósito de

situações de trabalho em que o DA discordou, dizendo que admite facilmente que o outro tem razão,

quando a tem, e não acha que com isso se crie uma situação de perda de autoridade. Justificação do FI:

―mas é que tu vais lá uma vez por outra e eu estou lá todos os dias e isso não pode ser assim. Abusam

logo‖. Ousei interpelar o FI com o exemplo da mudança de posição das máquinas, pois parecia-me lógico

que ele tivesse pedido a opinião dos trabalhadores que lidam habitualmente com os equipamentos. Ele

acusou o toque e respondeu de imediato: ―não perguntei porque não tinha nada que perguntar! Eu é que sou

o encarregado e tenho autonomia para poder mudar as posições; o patrão dá-me liberdade para isso e eu é

que sei qual é a posição mais correcta!‖. Falou depois da ―economia de movimentos‖, etc. O M., tal como os

outros, também estava, nesse caso concreto, em desacordo com o FI. Mas este continuou na sua: o ―líder‖ é

que tem o conhecimento e não pode dar a escolher aos operários o que querem, ―um queria assim, outro

queria assado...‖. Nunca se pode satisfazer a todos, é o argumento para quem acha preferível apresentar as

decisões como facto consumado.

Depois da saída do FI, os outros três quiseram ficar mais um bocado; todos a mostrar interesse em falar

das questões da empresa, com destaque para o AB. Este referiu as suas anteriores experiências e falou do

sindicato, aceitando que era um direito dos trabalhadores, pois, os patrões também têm as suas associações.

Por muito que o sindicato cometa erros e exageros é o único que os trabalhadores têm e é normal que estejam

lá filiados. O DA mostrou respeitar os direitos sindicais e foi crítico face à lógica dos patrões que não dão

suficientes recompensas. Em geral sublinharam, uma vez mais, as dúvidas e reservas em relação aos

argumentos das ―dificuldades‖ avançados pelo patrão. Porque, dizem, não é só agora que aparece esse

argumento, já no ano passado e há dois anos foi igual. A desilusão é grande por não haver aumentos desde

1994 e compreendem, por isso, que os trabalhadores estejam descontentes.

A mensagem de cariz pessimista que o patrão transmite não parece ser partilhada por ninguém.

ESPECULAÇÕES…

23/4/96, terça-feira. Como a reunião de ontem teve o seu início ainda durante o período laboral e

reuniu todos os encarregados, os trabalhadores aperceberam-se de que se passava qualquer coisa. Hoje,

surgiram logo boatos de que eu tinha estado a discutir com os encarregados e em particular com o FI.

Embora na reunião a minha intervenção tenha sido fundamentalmente teórica, o que é de facto é que teve

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também uma vertente didáctica onde, pelo menos implicitamente, este encarregado estava no centro daquelas

temáticas.

É interessante verificar alguns dos efeitos colaterais desta iniciativa junto dos trabalhadores: na própria hora

da reunião, quando perceberam que o patrão não estava presente e que a mesma tinha sido só entre os

encarregados e eu próprio a curiosidade geral acentuou-se. Hoje, houve alguns sinais de admiração pela

minha (aparente) influência na empresa. Comentava-se entre os operários, aparentemente com ar de

satisfação, que ―o FI ouviu algumas que precisava de ouvir...‖.

VISITA À NOÉMIA E À ZIRA

26/4/96, sexta-feira. Hoje à tarde, como era dia de ―ponte‖ e não se trabalhava, fui com o Alfredo

fazer algumas visitas. Primeiro visitámos a casa da Noémia. Ela e a filha, a Zira, são ambas nossas

colegas. Vivem em Macieira de Sarnes, próximo da casa do tio António e do próprio Alfredo que também

vive na zona. Encontrámos as duas em casa. É uma casa térrea situada nas traseiras de uma rua estreita

que vai confluir para o centro da aldeia. A Noémia estava na altura a preparar uma galinha para o jantar

e a Zira estava lá dentro a estudar. A mãe tinha um avental e um boné americano na cabeça. A filha

apareceu depois à porta de calções e camisola de alças, aí conversámos com as duas descontraidamente, num

dia de sol primaveril. Não esperavam a nossa visita, mas receberam-nos com muita simpatia. Do outro

lado do caminho de acesso, junto às casas, há um pequeno quintal com algumas árvores e produtos que a D.

Noémia e o marido arranjam nas horas livres. Fizeram-me perguntas acerca da reunião que tive dias antes

com os encarregados.

VISITA AO TIO ANTÓNIO

Conforme combinado, fizemos também uma breve visita a casa do tio António. Mal chegámos, apareceu ele

ao portão e logo começou a contar o trabalho que teve no arranjo dos troncos de madeira que tem

amontoados no quintal à beira do muro. Tem lenha para mais de um ano, disse-nos. O interior da casa é

relativamente pequeno e são visíveis as marcas de uma família pobre, mas talvez mais no campo educacional

do que em termos económicos. Uma habitação semelhante a muitas outras do campesinato mais tradicional.

Cheia de anexos improvisados junto à entrada e da parte de trás, no quintal. Tem galinhas, coelhos e duas

pequenas parcelas desniveladas onde cultiva diversos produtos. Chamou-me a atenção a enorme variedade de

apetrechos, com toda a espécie de objectos acumulados nos diversos cubículos junto aos animais de criação, na

parte lateral da casa, etc. Levou-nos a ver a plantação de batatas e alguns enxertos em árvores de fruto,

feitos pela mulher, que não tinha ainda chegado do trabalho. Mostrou-nos os pintos que está a criar, as

galinhas, os coelhos, o quintal bem tratado, com pequenas leiras de alface, cebola, salsa, couves, batatas,

morangos, as videiras etc., que se espalham por várias zonas do terreno. Além disso, havia ainda a

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promessa de ―provar o vinho‖ de que repetidamente me vinha lembrando. A ―adega‖ é também um

acumular de ferramentas, garrafões, uma bicicleta, pilhas de lenha para a lareira, etc. etc. Para acompanhar

o vinho foi buscar um ‗tupperware‘ onde estavam nacos de presunto nos quais ele mexia com as mãos e que,

por motivos óbvios, tanto eu como o Alfredo, amavelmente recusámos comer.

REGRESSO A ALVITO

27/4/96, sábado. Por volta das 10 horas encontrei-me no café com o Alfredo e dirigimo-nos até Alvito.

Uma hora depois estávamos lá. Demos uma volta de reconhecimento pela capela de N.ª Sra. da Piedade

que fica na zona mais alta, no lugar do Mirante. Uma mulher idosa caminhava em oração, às voltas à

capela, certamente no cumprimento de promessas à santa. Passámos junto ao Centro Social de Alvito,

subimos uma pequena alameda empedrada que parece destinar-se à preparação das procissões e chegámos à

igreja, onde a Manuela e a Joana vão aos sábados dar catequese às crianças. Subimos depois por essa rua

até ao ―largo da feira‖, onde se situa o mercado semanal que funciona todos os sábados. Vários toldos e

coberturas de pano protegiam as roupas, sapatos, brinquedos e muitos outros produtos dos feirantes.

Atravessámos a estrada principal, contornámos o aglomerado de casas onde estão o talho, a padaria, a

ourivesaria, a florista e o Café Jardim, onde já tinha estado. Da parte da manhã o mercado tinha pouco

movimento e no café havia pouca gente. Demos mais uma volta em busca do lavadouro público. Indicaram-

nos o caminho por uma vereda estreita entre os quintais, muros e terras cultivadas onde algumas pessoas

estavam a trabalhar. Um tractor a ―fresar‖ a terra e duas mulheres também ocupadas nas lides agrícolas.

No caminho, encontrámos uma rapariga com um alguidar de roupa à cabeça, sinal de que estávamos na

rota certa. Na última casa, já junto ao lavadouro, uma mulher perguntava: ―isso é para a SIC?‖.

Dissemos que não, nem havia câmara de filmar, mas ela teimava que sim, talvez por ver a máquina

fotográfica que levava comigo. Soube depois que era a tal Balbina de que me falaram as nossas amigas, que

tem fama de se meter com toda a gente e de ―não regular bem da cabeça‖. Junto ao lavadouro – uma

construção em cimento com um tanque rectangular, com cerca de dois metros de largura por cinco de

comprimento –, abunda a vegetação e há uma presa de água (que nasce de uma mina que aí existiu)

coberta de ervas e com água de sabão. Mesmo ao lado um amontoado de cartões, plásticos e os mais diversos

resíduos que para ali são deitados pelas lavadeiras. Por baixo dos cartões e plásticos novos, outros mais

antigos tinham sido queimados. Na altura não havia ninguém a lavar. Foi aqui que a Carriça e a Joana

vieram ainda nessa tarde lavar a roupa da semana. Voltámos à zona do mercado e, perguntando a

algumas vendedoras de legumes, indicaram-nos a casa da ―Ti Rosa do Lexia‖, a mãe da Joana e da

Carriça (Lexia era o nome do falecido marido). No caminho para lá surgiu-nos sorridente e a acenar a

Manuela, que estava à porta de casa da irmã. Falámos um pouco e tirámos fotografias, apesar de alguma

resistência por parte dela. Quer a casa da irmã onde estava, quer a dos seus pais, logo a seguir, são edifícios

de primeiro andar, bem arranjados e onde se nota claramente o desafogo económico próprio de uma família

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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considerada ―remediada‖, ou seja, bastante acima da situação de pobreza da família das duas manas. Os

pais da Manuela, além destas casas possuem também parcelas de terra de cultivo na zona. Não vi mais

ninguém da família, pois apenas falámos com ela junto à porta de casa. Quando a vimos estava em

limpezas na casa da irmã e no regresso estava a varrer um pequeno átrio fora de casa onde conversava com

um vizinho.

Chegámos finalmente a casa da Joana e da Carriça. Uma casota velha de piso térreo cuja entrada é um

portão em chapa e que dá para um alpendre e um pátio interior. As paredes exteriores há muitos anos que

não levam cal, e só tem uma pequenina janela para o exterior. É uma habitação em ―U‖ virada para um

terreno cultivado, do lado oposto ao do caminho de acesso. Batemos no portão e aguardámos. Espreitando

para o interior viam-se arrumos diversos, lenha, utensílios agrícolas, cordas com roupa estendida, etc. Um

espaço bastante degradado, mas limpo. A ―ti Rosa do Lexia‖ apareceu descalça e com ar ensonado. Estava

a descansar um pouco, depois do almoço. Mas mostrou-se muito amável e reconhecida com a visita surpresa,

depois das filhas explicarem que ―este‖ é que era ―o tal senhor‖ que estava lá na fábrica a fazer um estudo.

Uma das filhas chamou-lhe a atenção: ―atão? Vem, descalça?… Vá calçar uns sapatos!‖. Mas ela não

foi, disse que estava bem assim com um sorriso. Estava mais à-vontade. O facto de não nos terem dirigido

convite para entrar deve ser entendido não como sinal de indiferença ou falta de simpatia mas talvez como

resultado de uma certa timidez ou ―vergonha social‖ face às parcas condições da habitação. A outra irmã,

que não conhecíamos, teimou em não sair do portão. Ficou lá dentro a espreitar com a sua timidez de

adolescente. Fugia, ou melhor, escondia-se para dentro de uma porta que dá para o interior do pátio quando

pressentia que a máquina fotográfica ia disparar na sua direcção.

A recepção foi agradável. Riam-se, comentaram sobre a fábrica, sobre o encarregado – a propósito da

reunião que tive com eles – responderam a diversas perguntas nomeadamente a sra. Rosa sobre o ex-

marido: ―ele tinha duas doenças, uma era dos pulmões; mas não passou a doença para ninguém, nem para

nenhuma das filhas; a outra era pior. Era a cabeça que não regulava bem. Bebia muito e não trabalhava.

Só de vez em quando...‖

Por volta das 16 horas, ainda voltámos a encontrar a Joana e a Manuela, quando chegaram à igreja para

a lição de catequese. Estavam bem vestidas, penteadas e maquilhadas. Mostraram-nos os convites para os

respectivos casamentos, devidamente arranjados e atados com lacinhos vermelhos.

Antes do regresso, eu e o Alfredo estivemos ainda no Café Jardim a jogar ‗snooker‘. O mercado estava

agora muito mais movimentado e também no café havia muitos jovens, rapazes e raparigas, a tomar café, a

conversar, a jogar bilhar e nas ‗slot machines‘. Fomos depois dar um passeio até Castelo de Paiva.

NA DISCOTECA HOLLYWOOD

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Entre a Fábrica e a Comunidade

412

À noite, fui com o Alfredo e o Paulo à discoteca Hollywood onde ficámos até às três e tal da manhã. Fica

na estrada entre Sta Maria da Feira e Alvito e é uma das discotecas da zona, tal como ―O Mirante‖, que

aos domingos à tarde é muito frequentada por jovens operários de ambos os sexos. Hoje, havia bastante

movimento, mas com um público mais heterogéneo e com maior presença de filhos da classe média. É um

grande espaço, com um balcão no primeiro piso e vários pequenos bares. O serviço das mesas é efectuado por

raparigas. Aos fins de semana é normal terem lugar programas diferentes, com animação ao vivo210, que

vai desde a música, com a presença de cantores populares, aos ‗shows‘ de passagens de modelos, como foi o

caso de ontem.

PASSEIO À SERRA DA FREITA

28/4/96, domingo. Fui com o Alfredo e o Paulo dar uma volta pelas redondezas. Fomos até à Serra

da Freita, aldeia de Albergaria das Cabras, Arouca, Sta. Eulália, Nª. Sra. da Mó, e regressámos a S.

João. Comprámos pão-de-ló e doces regionais em Arouca. Quando saímos estava um dia de sol e

temperaturas elevadas, pelo que o Paulo apareceu com roupa de Verão, sapato de domingo e camisa de seda

de manga curta. Mas quando começámos a subir logo vimos sinais de que ia chover naquela zona, com o

céu bastante carregado e escuro para o lado da serra. De repente, começou a fazer frio e mais tarde caiu uma

forte chuvada de granizo. À medida que subíamos a serra víamos os carros a regressar com os pára-brisas

cobertos de gelo. Lá em cima, o frio e a chuva tornaram o passeio menos agradável e os meus companheiros

mal saíram do carro. O local é, porém, muito bonito e tranquilo. Como contou o Paulo, que foi o

proponente e o guia das voltas que demos, aquilo no Verão tem grande movimento. Muita gente procura a

serra para repousar e fugir aos engarrafamentos e à confusão das praias. No cimo da serra da Freita

existem diversos locais agradáveis, com muito arvoredo e zonas preparadas para se fazerem piqueniques.

Há riachos, aldeias em pedra em zonas aprazíveis, cascatas e vistas magníficas. Um dos atractivos é a

chamada ―pedra parideira‖, uma rocha que, segundo se diz, brota pequenas pedras do seu interior.

EM RITMO DE CRUZEIRO

29/4/96, segunda-feira. Ritmo de cruzeiro, aproxima-se o fim. É tempo de uma maior

descontracção, até porque nesta altura o ritmo produtivo baixou. As minhas amigas de Alvito andam todas

contentes. A Manuela entregou-me um convite para o casamento. Logo de manhã, a Célia, quando passou

por mim comentou: ―hoje mal acabei de entrar soube logo onde é que andou no fim de semana...‖. Dizem-

me que vou deixar saudades. Dirigem-me os mais diversos comentários sobre os colegas e isso faz-me sentir

que agora é que a pesquisa deveria de facto começar. Acerca do senhor Rogério (o mecânico), comprova-se a

210 Alguns eram anunciados em folhetos profusamente distribuídos pelos cafés da zona. Para esta altura estavam previstos, na discoteca Big Cansil, em Escapães, “A fúria do Açúcar - irmãos, irmãos... ora porra”, 30/4; “Ruth Marlene - Só à estalada”, dia 25 de Abril, 16 h. Na discoteca Hollywood, na Vila do Lobão, “Mila Ferreira”, dia 30 de Abril; e “MDA com Nayma/ Amor”, dia 4 de Maio.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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opinião da maioria, segundo a qual ele ―é todo do lado do patrão e que está sempre a querer saber para ir

contar...‖. Chegam até a aproveitar-se disso: ―às vezes quando a gente quer que se saiba diz de propósito à

frente dele...‖.

O patrão passou por mim e voltou a lembrar-me que quer ―um resumo da situação…‖

Alguns trabalhadores riam-se das explicações do encarregado para ensinar ―o melhor método‖ para

executar a operação… O encarregado geral, tal como o da montagem afirmam que o diálogo com os

trabalhadores não é possível, nem desejável: ―nunca mais se chegaria a qualquer consenso e a confusão era

muito maior...‖ Estão é mal habituados, digo eu. Porque os trabalhadores aceitam tudo, ou quase tudo,

depois de dois ou três desabafos para o lado ou mesmo para dentro... – Que remédio! Fazem o que

querem!... Paciência! Eles é que mandam!... –, engolem em seco, e já está!

VAI DEIXAR SAUDADES…

30/4/96, terça-feira. Aproxima-se o final do meu trabalho na fábrica. À medida que o tempo passa

sente-se mais claramente a simpatia dos trabalhadores. Uma teia de cumplicidades estabeleceu-se entre mim

e eles e por isso também a mim me está a custar a ideia de partir definitivamente. Repetem-se os desabafos:

―já estávamos habituados a si...; para a semana já cá não está…; quando você se for embora o FI vai

voltar a apertar mais com o pessoal‖;

É uma sensação de satisfação sentir que a generalidade dos operários ganharam grande confiança em mim;

em especial as mulheres dos acabamentos que, como perceberam que eu podia falar com elas e elas comigo

sem que o encarregado o impedisse, aproveitam a minha presença para desabafarem e falam agora

abertamente. É uma forma de desanuviar o ―stress‖ do trabalho. A Conceição e a Assunção metem-se com

a Manuela por ela estar sempre a chamar por mim.

No caso dos homens, durante os intervalos, e como se aperceberam que andei a passear com alguns colegas,

os outros parecem ver nisso um garante de que estou do lado deles. O Afonso mostrou-se desapontado por eu

não ter passado em casa dele. A explicação que me deu da sua morada foi insuficiente para a descobrir.

Algumas das trabalhadoras com quem mais contactei nos últimos tempos ganharam comigo uma confiança

e um à vontade que ultrapassaram as expectativas iniciais. A Célia, a Manuela, a Carla, principalmente

(mas também a Joana, a Carriça, o João, o Alfredo), perguntavam sobre os mais diversos assuntos e

queriam por vezes que eu lhes explicasse coisas da sociologia. A Célia queria que eu lhe dissesse se ―as

operárias daqui são muito diferentes das de outros sítios‖ e o que é que eu achei delas; a Manuela por vezes

dizia-me que também podia ser socióloga porque tem curiosidade em saber coisas sobre as pessoas…

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414

Essa curiosidade manifestava-se também quando eu lhes dirigia perguntas sobre a sua vida familiar e as

ocupações de tempo-livre durante os fins-de-semana. O mesmo acontecia perante a minha intenção de visitar

as suas zonas de residência.

A aplicação do pequeno inquérito aos trabalhadores da fábrica acabou por ser uma forma eficaz para o

esclarecimento desta curiosidade geral sobre os objectivos do meu trabalho. As perguntas formuladas no

questionário – sobre a situação familiar, o passado e actividade dos pais, as opiniões sobre diversos aspectos

da vida na fábrica e em especial das relações com as chefias, as actividades de lazer durante os fins-de-

semana, etc. –, ao aparecerem de forma sistemática e por escrito aos olhos dos trabalhadores, mostraram-

lhes o conjunto de aspectos das suas vidas e da vida na fábrica que eu pretendia conhecer para efectuar o

meu estudo. O inquérito funcionou, assim, como uma importante peça no conjunto de factores que fizeram

aumentar a abertura verificada na minha relação com os operários. Ao mesmo tempo, as conversas e a

aproximação com os encarregados ajudaram também a conhecer novos aspectos e a formular novas questões.

O facto de os trabalhadores se aperceberem que eu tive reuniões com os encarregados aguçou ainda mais a

sua curiosidade sobre o assunto. Houve inclusive quem notasse alterações de comportamento no encarregado

desde a reunião que tive com ele e os seus colegas.

MOSTRA DE FOTOGRAFIAS

2/5/96, quinta-feira. Como era o penúltimo dia, aproveitei para tirar mais algumas fotografias e

mostrar as que tirei nos dias anteriores. Isto aconteceu da parte da tarde. Apesar de ter regressado do

almoço já em cima da hora, trouxe as fotografias para o local de trabalho, pois algumas operárias estavam

ansiosas por vê-las. Embora procurasse ser discreto, isto não deixou de criar alguma excitação. Além disso,

também tirei novas fotografias ao pessoal da montagem, fui várias vezes ao escritório e ao gabinete do

patrão, o que fez aumentar a curiosidade, a agitação, as trocas de olhares e de sorrisos e, como consequência

de toda essa atmosfera (suponho eu), a irritação contida do encarregado (FI) também se tornou notada.

Parece claro que ele está ansioso que eu me vá embora. Apesar de eu próprio estar consciente disso e fazer os

possíveis para que os meus movimentos não afectem o trabalho – nem o meu, nem o dos outros –, é difícil

evitar alguma perturbação. Acima de tudo, é a autoridade dele que é, neste contexto, indirectamente

abalada já que, tendo eu o apoio patronal para fazer este trabalho e tendo conquistado a simpatia geral dos

seus subordinados – para não falar das criticas abertas aos seus métodos de chefia e isto, principalmente nas

reuniões de encarregados –, torna-se para ele complicado gerir esta situação.

EU NÃO ME APEGO ÀS PESSOAS…

Suponho que, por um lado, o FI estará a evitar tomar atitudes mais autoritárias com as operárias porque

percebeu que isso é para mim matéria de estudo e, por outro lado, receia que a possível opinião negativa que

eu esteja a construir a seu respeito irá chegar até ao patrão e aos operários em geral. Uma das operárias

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disse-me que, ao dizer ao FI que ―o sr. Elísio vai deixar saudades…‖, ele respondeu: ―eu não me apego

muito às pessoas!‖. Outra, já várias vezes comentou que ―para a semana é que vamos andar aqui

direitinhas‖, ou ―temos de aproveitar agora, que para a semana já não se pode conversar‖. Mesmo assim,

ainda foi possível ouvi-lo gritar no outro extremo da linha com a Joana, e responder num tom bastante

agressivo a uma das operárias da costura que vieram hoje ajudar nos acabamentos: ―se não quer vir para

aqui volte para donde veio!!!‖.

REFLEXÕES FINAIS

3/5/96, sexta-feira. Desde o inicio da minha chegada à fábrica que procurei ter em atenção o facto de

que a observação a realizar passaria necessariamente pela interferência gerada pela minha presença no seio

das relações do trabalho. Se os efeitos por ela criados foram, desde sempre, um factor a equacionar, nos

últimos dias em que cá estive tal interferência tornou-se ainda mais notória. Sendo embora pacífica e

evidente esta constatação, uma vez que a inserção de um elemento estranho nunca deixa de provocar alguma

perturbação no sistema, vale a pena lembrar que neste caso a interferência poderia, à partida, não só variar

segundo o grau ou o alcance das reacções que criasse, mas também segundo o tipo ou a qualidade das

mesmas. É uma reflexão ―post-factum‖, mas a experiência recolhida justifica-a. Não foi, em rigor, uma

participação enquanto trabalhador. Para ser uma efectiva observação participante teria sido forçoso que o

meu estatuto na empresa tivesse sido igual ao de qualquer outro trabalhador, o que passaria, desde logo, por

uma admissão normal como alguém que pede emprego numa fábrica. Se, nem o patrão nem as diversas

chefias tivessem tido conhecimento prévio dos meus objectivos e da minha condição de sociólogo, sem dúvida

que a observação teria sido outra e os resultados seriam substancialmente diferentes. O processo de

integração passaria por outras nuances, seria muito mais moroso e as afinidades que iria criar junto do

grupo operário assentariam em bases diferentes. Num cenário como este, as ―perturbações‖ seriam de outro

tipo e provavelmente mais próximas do dia-a-dia de trabalho, no modo como ele decorre sem a minha

presença. Em termos de grau, as alterações criadas reduzir-se-iam eventualmente ao mínimo, isto admitindo

que adoptaria uma atitude pacata e de mero observador passivo. As condições de partida e as limitações de

tempo para realizar o trabalho levaram-me, como se sabe, a adoptar uma estratégia diferente. Mas, mesmo

assim, os resultados poderiam ter sido outros, caso a divulgação dos meus objectivos e do meu estatuto

tivessem sido mal recebidos e gerassem comportamentos de segregação e de rejeição mais ostensivos por parte

dos trabalhadores. Conforme tenho vindo a revelar no presente diário, ao longo deste período de cerca de dois

meses, houve momentos de dificuldade, de desânimo e até de algum desespero. O relativismo distanciado e o

envolvimento obsessivo são dois pólos entre os quais deambularam os meus sentimentos subjectivos,

cruzando-se por vezes de forma paradoxal e angustiante. Isto aconteceu, em boa medida, porque as razões

de fundo que estão na base desta opção metodológica contêm um elemento humano e voluntarista que me

leva, por um lado, a nutrir um profundo respeito e admiração pelas condições de sacrifício e de dificuldade

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em que vivem muitas destas pessoas e, por outro lado, a acreditar que há dificuldades que podem ser

superadas e potencialidades que podem ser desenvolvidas, quer na empresa, quer na comunidade, desde que

as políticas de modernização e desenvovimento social se apoiem em estudos fundamentados de contextos

socioeconómicos desta natureza. Não é certamente a sociologia e muito menos a mera acção de um sociólogo

que, por si sós, poderão fazer face aos problemas sociais inerentes à própria ordem económica capitalista.

Mas a análise sociológica e os resultados das pesquisas que fazemos podem servir não apenas para

enriquecer o conhecimento da comunidade científica, mas também podem ter algum impacto junto dos

trabalhadores e das estruturas sindicais. Ou seja, podem ser utilizados num sentido emancipatório e

contribuir a prazo para o aprofundamento da democracia e da justiça social. No caso concreto desta

pesquisa, penso, obviamente, divulgar os seus principais resultados, não só a alguns dos trabalhadores que

viveram de perto esta minha ―aventura‖, mas também aos responsáveis sindicais do sector. Em todo o caso,

não restam grandes ilusões acerca dos seus efeitos imediatos. O mais provável é, na melhor das hipóteses,

chegar à esfera sindical e à comunidade sociológica portuguesa.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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CONCLUSÃO

Procurei com esta pesquisa desenvolver uma abordagem contextualizada de uma

categoria social – a classe operária – hoje em dia fora de moda. Alguns previram a sua

morte a prazo, outros ignoram-na como se ela tivesse sido extinta juntamente com o

afundamento da ortodoxia leninista. Efectivamente, é inegável que, perante a crescente

globalização dos mercados – e a par da desagregação do modelo fordista e da crise do

Estado-Providência –, se tem vindo a assistir a uma profunda recomposição da “classe

trabalhadora” e a um progressivo enfraquecimento do sindicalismo operário. Mas, a

enorme diversidade de modalidades produtivas, a fluidez dos mercados e a

flexibilização dos sistemas de trabalho têm caminhado lado a lado com o reforço do

poder capitalista, cujo corolário é o extraordinário incremento de novas formas de

exploração, de exclusão e de opressão sobre os trabalhadores e as classes baixas.

Pode dizer-se que, em termos genéricos, as desigualdades sociais se revestem de

características diversificadas e por vezes obscuras, mas quase todas as análises

subscrevem a sua crescente agudização. Na esfera económica, o crescimento das

chamadas formas de “trabalho atípico” como sejam a produção domiciliária, a

exploração da mão-de-obra infantil, o trabalho à tarefa, os regimes de subcontratação,

etc., traduzem, sem dúvida, um virar de página subsequente à falência e reestruturação

dos tradicionais sectores da indústria pesada. O forte incremento do trabalho autónomo,

do emprego no terciário, dos serviços administrativos e das telecomunicações, apesar de

fazerem baixar as estatísticas da actividade laboral no sector secundário, não fizeram

desaparecer – e em alguns casos reforçaram até – a importância económica e social de

sectores industriais onde a hiperexploração continua a ser a regra. Muitas das

actividades mais exigentes em mão-de-obra intensiva, umas mais antigas outras mais

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recentes, são hoje facilmente deslocadas dos países centrais para os periféricos. E o

resultado disso é que as desigualdades – no plano dos indicadores de desenvolvimento e

justiça social –, não só se tornaram mais flagrantes à escala mundial, como se traduzem

na “periferização” de amplos segmentos da força de trabalho no seio dos próprios

países centrais.

A indústria do calçado é um daqueles casos que nos permite verificar como

alguns destes fenómenos se fazem sentir de forma notória na sociedade portuguesa.

Sendo Portugal um país semiperiférico da Europa, poder-se-á dizer que este sector

produtivo constitui em termos sociais uma periferia dentro da semiperiferia. Ao abordar

aqui este tema e ao equacionar as dimensões da classe e da comunidade pretendi, não só

pôr em evidência algumas dessas contradições, como mostrar que a análise das classes

sociais pode articular-se com outro tipo de abordagens e contribuir, assim, para a

compreensão dos processos de mudança social e dos mecanismos de reprodução das

desigualdades.

Embora rejeitando o papel determinista do factor classe, continuamos a verificar

que as clivagens de classe estão bem presentes no mundo laboral, ainda que apareçam

por vezes esbatidas na sua expressão política ou submersas entre outros tipos de

desigualdades. As ligações entre a classe e a comunidade, vistas numa perspectiva

histórica, ajudaram-nos a compreender alguns fenómenos sociais muito prementes na

actualidade – designadamente a exploração, a pobreza, a precaridade de emprego, o

desenraizamento, etc. – mas que ficam normalmente obscurecidos pelos resultados

macroeconómicos em termos sectoriais, como tem vindo a suceder com a indústria do

calçado.

Através da remissão para o passado histórico foi possível observar alguns dos

impactos da penetração do mercado na região desde finais do século XIX. Ao mesmo

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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tempo que foi crescendo a presença da industria moderna, foi-se tornando mais notória

a mistura cultural e a ampliação da esfera de acção das comunidades tradicionais, a

comprovar que não há crescimento económico que não se apoie em formas culturais. Os

efeitos modeladores da actividade industrial detectaram-se não apenas na sua

capacidade integradora das populações e dos trabalhadores recém-chegados ao mercado

de trabalho mas, simultaneamente, reflectem-se nas novas subjectividades e processos

de identificação que ajudaram a estruturar. Por um lado, as experiências de contestação

sindical e a resistência à modernização, promovida pelos sectores artesanais do

operariado nos princípios do século – experiências de luta que, ao mesmo tempo,

familiarizaram os operários chapeleiros com a linguagem de classe – influíram na

estruturação de uma cultura popular ainda vinculada à comunidade tradicional, mas

cada vez mais marcada pelo sentido de pertença a uma condição subordinada. Por outro

lado, a expansão das actividades industriais e comerciais dinamizou a multiplicação dos

contactos e o cruzamento entre culturas tradicionais. Tanto a experiência fabril como as

festas, as romarias e os arraiais foram-se tornando espaços de encontro entre estilos de

vida diversificados e oriundos de diferentes comunidades, fazendo emergir novas

clivagens classistas entre os padrões burgueses e elitistas e os padrões do gosto popular.

Com base na análise desse período histórico foi possível observar como alguns

dos sinais de antagonismo foram neutralizados – quer no terreno da luta sindical quer

no das contradições culturais –, devido à progressiva edificação de modelos de poder

suportados por relações de dependência e laços de lealdade parcialmente transferidos da

comunidade tradicional para a fábrica e alimentados pela estreita convivência entre

ambas. Tanto a presença significativa de formas pré-modernas de produção “oficinal” e

artesanal, como as iniciativas de carácter assistencial e filantrópico de princípios do

século XX (em que assentou o fenómeno do “bairrismo”, então emergente),

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favoreceram o desenvolvimento de novos arranjos na distribuição da autoridade. A

orientação localista e “bairrista” suportada pela lógica comunitária e simultaneamente

pela ideia de “progresso”, simbolizou a reconversão de formas culturais relativamente

estáticas e tradicionalistas em subjectividades apoiadas no “orgulho local” e projectadas

para o futuro através de um discurso “modernizante”, em nome das capacidades

laboriosas dos trabalhadores. Estes aspectos tornaram-se elementos apaziguadores de

potenciais clivagens e conflitos de classe, contribuindo de modo decisivo para o

aperfeiçoamento dos instrumentos locais de enquadramento. Poder-se-ia dizer que a

classe emergiu como factor estruturante dos novos antagonismos locais mas,

paradoxalmente, ao contribuir para a fragmentação da comunidade tradicional em favor

da comunidade industrial moderna (prefigurada na “vila industriosa” de SJM), saiu

enfraquecida nas suas potencialidades emancipatórias e reforçou os sentimentos

“bairristas”. Muito embora esse bairrismo não anulasse a força cultural das

comunidades tradicionais, ele constituiu um importante elemento na readaptação destas,

que veio juntar-se às pressões do mercado e da industrialização, e constituiu, de facto,

uma forma de estruturação identitária que concorreu com as experiências de classe do

operariado local.

Daí não deve concluir-se, porém, que as formas de resistência operária e popular

tenham desaparecido por completo. Quer na vertente político-sindical, quer no domínio

cultural continuaram a verificar-se práticas sociais e expressões simbólicas por vezes

claramente subversivas para as instituições dominantes. As histórias de vida relativas à

acção sindical durante o salazarismo mostraram alguma adesão social ao protesto e à

rebeldia perante a face mais violenta e persecutória do regime. E isto apesar dos factores

locais atrás assinalados (o bairrismo e o paternalismo autoritário) terem reforçado

significativamente a sua eficácia, sob a tutela do Estado Novo e dos seus aparelhos

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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doutrinários e repressivos. O discurso bairrista, por exemplo, conseguiu ampliar a sua

capacidade de acção à medida que se foi assumindo como uma segunda face da doutrina

nacionalista e beneficiou da protecção que lhe deram os meios de informação locais,

eles próprios porta-vozes da elite industrial que localmente reproduzia o poder

dominante. Além disso, a acção propagandística e organizativa das instituições oficiais

dedicadas à normalização das práticas produtivas e recreativas tornaram-se um veículo

cada vez mais poderoso durante o período salazarista. Mas, o papel do lazer popular não

foi meramente funcional. Ao mesmo tempo que se tornou objecto de uma acção

reguladora e disciplinar mais apertada, assumiu-se como um factor de resistência

situado entre o poder hegemónico da cultura dominante e a capacidade criativa da

cultura popular. A expansão dos lazeres e de modalidades (“menores”) de consumo às

classes baixas, apesar de pôr em evidência a força normalizadora do mercado, foi um

processo atravessado por inúmeras contradições. Pese embora a presença de inúmeros

condicionalismos, o poder simbólico das práticas festivas e do lazer popular não deixou

de mostrar a sua enorme influência nos processos de estruturação sociocultural e na

emergência de novas identidades e formas de acção, quer nas relações produtivas, quer

na reconstrução do sentido comunitário.

Por outro lado, ficou claro que a estrutura de classes desta região se vem

organizando em torno de uma lógica bipolar: um peso quase esmagador da categoria

proletária, que ultrapassa os 60% da força de trabalho (bastante superior aos 46,5% da

estrutura de classes nacional), uma classe média quase inexistente e uma classe

capitalista reduzida (embora com um peso superior ao da amostra do país), e uma

pequena burguesia ainda significativa (mas mais reduzida na região do que no país).

Estes traços gerais da estrutura classista da zona em estudo evidenciam a força de um

mercado de trabalho industrial bastante forte em mão-de-obra intensiva, mas pouco

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desenvolvido em termos tecnológicos e a nível de quadros superiores ou intermédios. A

força de trabalho feminina é a que denota maiores barreiras no acesso a posições de

autoridade, embora nas posições qualificadas e sem autoridade as mulheres estejam em

maioria, tal como acontece no resto do país. Os índices de mobilidade social

intergeracional são bastante elevados, quer no sentido ascendente, quer descendente, ou

seja, verificou-se a presença de múltiplas trajectórias transclassistas, muito embora a

estrutura de classes no seu conjunto se mantenha bastante estável entre as duas gerações

consideradas (registando-se apenas uma descida da pequena burguesia e uma ligeira

subida das categorias intermédias dos assalariados, os quais têm, apesar disso, um

reduzidíssimo peso). Curioso é ainda notar como se manifestaram as atitudes

subjectivas: uma identificação maioritária com a classe média (mesmo da parte dos

proletários); atitudes políticas tendencialmente posicionadas à esquerda do leque

político (no quadro do modelo esquerda-centro-direita considerado); nos items da

consciência de classe prevalecem as orientações de sentido conservador, em detrimento

das de sentido radical ou emancipatório (mesmo nas categorias mais desapossadas,

como o proletariado); expectativas predominantemente positivas quanto às

desigualdades sociais; predomínio de subjectividades optimistas em relação ao futuro.

Em suma, as situações de precarização das relações de trabalho e os elevados índices de

exploração a que os trabalhadores se sujeitam (ou seja, a classe objectiva), têm, no

fundo, pouca tradução em termos de consciência de classe e de participação em

movimentos de protesto. Quer isto dizer que o operariado não se identifica com – nem

actua como – uma classe, mantendo-se razoavelmente atomizado nas suas orientações

individuais.

Se nas franjas mais indefesas da classe trabalhadora os comportamentos de

retraimento e resignação são mais visíveis, detecta-se entre os operários um forte

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423

sentido materialista que os leva a investir no aforro, acreditando que o trabalho árduo,

as horas extraordinárias, a conquista e ampliação do prémio de produtividade, o

trabalho em horário “pós-laboral”, etc., são a única via, se não para o enriquecimento,

pelo menos para a melhoria de condição. Tendo sido esse o caminho seguido para o

sucesso económico de grande parte do actual patronato, o seu exemplo está presente nas

aspirações de muitas famílias operárias. Paralelamente, é notória a tendência actual para

uma adesão crescente a formas massificadas de consumo e actividades de lazer, mas

estas decorrem em paralelo com a presença persistente dos vínculos comunitários – que,

embora adaptados, continuam a subsistir –, o que contribui para que uma parte

substancial dos tempos-livres seja ainda canalizada para actividades de carácter

produtivo, embora exteriores à fábrica. Exemplos disso são as ocupações com os

trabalhos agrícolas na pequena propriedade familiar, ou mesmo as ocupações produtivas

exercidas a título informal no domicílio, ao fim do dia ou durante o fim-de-semana. A

orientação para o consumo, nomeadamente a adesão aos programas televisivos de

grande audiência, caminha de par com a orientação para actividades produtivas no

quadro das estratégias de acumulação familiares.

Finalmente, a observação sistemática do dia-a-dia dos trabalhadores no espaço da

fábrica permitiu constatar que a aceitação das práticas despóticas vigentes na indústria

está longe de significar adesão e de traduzir uma absoluta passividade. Contudo, as

formas de resistência que a colectividade operária põe em marcha, sendo acima de tudo

defensivas, latentes e dispersas, acabam por se transformar num mero mecanismo de

escape, isto é, assumem-se, no fundo, como um factor de amortecimento dos conflitos

abertos e, deste modo, dão lugar àquilo que Burawoy designou como a “fabricação do

consentimento”. É um sistema informal composto de múltiplos ingredientes, em que as

barreiras socioculturais e identitárias perturbam a eficácia do sistema produtivo mas,

Page 416: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

424

paradoxalmente, também lhe servem de alimento. As tácticas de jogo, as pequenas

transgressões, os ritualismos, as brincadeiras e o sentido de fuga mental ao quotidiano

da fábrica ajudam a suportar a violência e a transpiração exigidas pelo trabalho fabril.

Pode, portanto, concluir-se que a complexidade de lógicas que se cruzam neste

contexto confere à classe operária do calçado características específicas e sobreleva a

sua natureza dúctil e ambígua. Colocando-nos no nível genérico da zona em estudo – ou

no âmbito do sector produtivo do calçado aí inserido – é possível detectar múltiplas

permeabilidades e formas de adaptação entre o processo de implantação industrial e a

crescente maleabilização dos modelos identitários de base tradicional. Nessa medida,

pode dizer-se que as práticas e subjectividades da força de trabalho se mostram

vulneráveis, por um lado, aos constrangimentos e afinidades da produção e, por outro,

às lealdades e sociabilidades comunitárias e familiares. O efeito de classe aparece,

assim, relativamente difuso e como que pulverizado pela expansão de comportamentos

atomizados, ou enquadrado por estratégias familiares de acumulação e mobilidade

ascendente.

Todavia, se nos colocarmos no âmbito mais estrito da empresa industrial, ao

observarmos os comportamentos dos trabalhadores no quotidiano produtivo, podem

identificar-se práticas e atitudes de resistência defensiva que, embora funcionando em

moldes tácitos e subliminares, contrariam claramente as pressões produtivistas e a

lógica lucrativa do sistema. Dir-se-ia que tais práticas transportam um instinto de classe

mas não uma consciência de classe. É um sentimento que se exprime na tentativa de

resguardar para o grupo operário uma margem mínima de dignidade – individual e

colectiva – de uma condição social submetida aos mecanismos de exploração, mas que

não se traduz em acção emancipatória. Pode ainda pensar-se que os comportamentos

dos trabalhadores começam por ser – do ponto de vista das trajectórias individuais –

Page 417: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

425

animados por uma procura de alternativas de vida que ao mesmo tempo solidifiquem o

reconhecimento na comunidade, mas ao serem expostos à disciplina fabril, estruturam-

se em modalidades defensivas, e, deste modo, as formas identitárias aí recriadas vêem a

sua expressão política neutralizada pelo poder despótico-paternalista do patronato, no

quadro de uma fraca militância sindical e de um mercado de trabalho crescentemente

fragmentário, concorrencial e onde germina toda a espécie de lógicas paralelas e

atípicas de produção.

Este estudo de caso parece, de resto, constituir um bom exemplo das incontornáveis

dificuldades que se apresentam à classe operária na viragem do milénio, no que respeita

à sua organização enquanto classe no domínio da luta sindical e política. Com as

profundas transformações que estão a ocorrer nos sistemas produtivos e no mercado de

emprego, a fábrica (por mais “satânica” que continue a ser) e o trabalho (por mais

precário e instável que seja) apresentam-se ao operário como um bem cada vez mais

escasso e uma fonte vital de subsistência. Por esse motivo, devido à situação de

vulnerabilidade em que se encontram, tanto os que trabalham como os que aspiram a ter

um emprego são na prática dissuadidos de entender o trabalho como instância de

exploração e – mesmo quando sentem na pele essa exploração – é cada vez mais

improvável que o descontentamento laboral assuma a forma de conflitualidade aberta e

de “luta de classes” que já possuiu. Os constrangimentos e pressões disciplinares

experienciados na fábrica parecem por vezes transferir-se para outras esferas fora do

trabalho, quer encontrando no consumo individual ou familiar formas simbólicas de

compensação, quer alimentando modalidades de protesto colectivo de natureza diferente

e despoletados a partir de uma base comunitária.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

426

ANEXO 1 (cap. 4)

Principais beneméritos de S. João da Madeira

António Henriques/Comendador (1885-1953). Emigrou jovem para o Brasil (Pará),

regressando aos 26 anos; industrial ligado à indústrias de chapelaria, de borrachas e

também de calçado; foi o organizador do Grupo Patriótico Sanjoanense, que nos anos 20

lutou pela autonomia concelhia de SJM; foi vice-presidente da Comissão Administrativa,

eleita com a criação do Concelho, em 1926; e Presidente da Câmara Municipal de SJM

entre 1934 e 1945; alvo de sentidas homenagens após a sua morte, foi-lhe dedicado um

monumento na principal praça da localidade que ostenta o seu busto e agraciado com o

título de Comendador.

António J. de Oliveira Júnior/Comendador (…-1935). Industrial de chapelaria, é

considerado o fundador da indústria moderna em SJM; instituiu um fundo de assistência

aos pobres e fundou um asilo para crianças orfãs; apoiou a criação da Stª Casa da

Misericórdia de SJM, tendo sido o seu primeiro provedor.

António Dias Garcia/ Conde (1859-1940). Embora nascido de famílias pobres foi genro

do Visconde de SJM, emigrante e industrial no Brasil. Todos lhe reconhecem a humildade

no trato e a dedicação ao povo. Contribuiu para o desenvolvimento da sua terra com

importantes apoios financeiros: ampliação do Hospital; fundou um asilo de inválidos;

melhoramentos na Igreja (1886); título de Conde pelo Papa Pio XI; alvo de homenagens

locais, tendo-lhe sido erigida uma estátua, inaugurada com grande solenidade, pouco

antes da sua morte.

António da Silva Correia (…-1962). Emigrante no Brasil em jovem onde casou e se

tornou um conceituado negociante e se integrou nos meios sociais mais nobres. Viveu

alguns anos em SJM (1922-26) tendo sido aí o fundador e primeiro Presidente da

Associação Desportiva Sanjoanense participando na campanha de angariação de fundos

para a construção do campo de jogos. Regressado ao Brasil renovou os seus apoios

financeiros na construção da Escola do Parque, na manutenção da Stª Casa da

Misericórdia, no apoio aos Bombeiros, na instalação de uma creche e de um modo geral

no apoio (por vezes anónimo) às famílias mais pobres da vila.

Albino Francisco Correia/Visconde (…-1923) . Passou a maior parte da sua vida no Rio

de Janeiro. Apoiou a terra com ajudas monetárias aos pobres; comparticipou na

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Entre a Fábrica e a Comunidade

427

construção do Hospital; deu donativos para pavimentação de ruas; beneficiação de

escolas; criação da banda de música; melhoramentos da Igreja; ampliação do cemitério.

Benjamim José de Araújo (1856-1935). Foi o primeiro Presidente da Câmara Municipal

de SJM (de 1926 a 1934); emigrante no Brasil (Pará) desde novo, de onde regressou em

princípios do século, mantendo no entanto aí os seus negócios; contribuiu para

melhoramentos nos arruamentos; com outros sanjoanenses, lutou pela criação do

Telégrafo-Postal (Correios) de SJM, para o que contribuiu materialmente, fornecendo

casa para a sua instalação (onde funcionou por 12 anos); forneceu também instalações

suas para o funcionamento de diversas repartições ligadas à administração do novo

concelho; reivindicou e conseguiu a instalação do mercado dominical em SJM; prestou

importantes ajudas à indústria de chapelaria.

Francisco José Luís Ribeiro (1884-1913). Emigrou em jovem para o Brasil tendo aí

angariado fortuna; foi representante consular na cidade de Rosário de Santa Fé e é

considerado o maior impulsionador e financiador da construção do Hospital. Perante a sua

prematura morte, o seu legado foi gerido (a partir de 1914) por uma Comissão

Organizadora (da qual fizeram parte: o Revº António Joaquim de Oliveira, Manuel da

Silva Corrêa e António José Pinto de Oliveira).

José Moreira (1897-1959). Emigrante no Brasil aos 14 anos, onde prosseguiu estudos e

exerceu a profissão de contabilista; regressado a SJM em 1921 foi co-fundador do jornal

O Regional; de volta ao Rio de Janeiro organizou recolhas de fundos para edificação do

monumento aos Mortos da Grande Guerra (inaugurado em SJM em 1937); publicou uma

colectânea de estudos sobre o Padre António Vieira; legou à Biblioteca Municipal o seu

espólio, de alguns milhares de livros.

José Rainho/ Comendador (189…-1963). Nasceu no Orreiro/SJM em finais do século

passado, tendo emigrado para o Brasil na sua juventude. No Rio de Janeiro angariou

fortuna no ramo dos seguros (tendo chegado a Director da Companhia de Seguros Lloyd

Atlântico) e dedicou-se ainda à actividade educativa no Liceu Literário Português,

integrando os seus quadros directivos em 1916 e investindo grande parte da sua riqueza

na construção do novo edifício daquela escola (depois do incêndio que a havia destruído

em 1932). No Rio fundou o Instituto Luso-Brasileiro de Folclore e ainda o Instituto de

Estudos Portugueses Afrânio Peixoto. Esta sua acção cultural levou o Estado português a

atribuir-lhe o título de comendador, condecorando-o com a Grã-Cruz da Ordem de

Benemerência. Não esqueceu nunca a sua terra natal, contribuindo com importantes

Page 420: Entre a fabrica e a comunidade ee 2000

Entre a Fábrica e a Comunidade

428

fundos na edificação do Hospital, apoios à Associação dos Bombeiros Voluntários de

SJM (fornecendo-lhes também mobiliário e uma ambulância e legou o seu espólio à

biblioteca municipal.

Serafim Leite (1890-…). Padre jesuíta, teólogo e importante figura intelectual, natural de

SJM; historiador e estudioso da acção missionária da Companhia de Jesus no Brasil, onde

viveu vários anos; alcançou uma completa formação académica em Filosofia, Teologia,

Letras e Humanidades, tendo cursado em várias universidades de Espanha, Bélgica e

França; possuiu um doutoramento “honoris causa” pela Universidade do Rio de Janeiro

(1949); participou em inúmeras conferências de carácter científico obtendo grande

prestígio não só em Portugal como no estrangeiro; foi membro da Gallery of Living

Catholic Authors, nos EUA; foi membro da Comissão Organizadora da Exposição

Histórica da Ocupação e do Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo

(1937); foi condecorado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Santiago da

Espada, Mérito Artístico, Científico e Literário (Lisboa, 1938) e com a Comenda da

Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul (Brasil, 1940); é autor de uma vasta bibliografia, nas

áreas acima indicadas; foi o autor do símbolo heráldico do concelho de SJM e do

respectivo hino, criados em 1928.

Renato de Araújo (189…-1958). Médico cirurgião; viveu em Lisboa onde possuía, nos

anos 20, importantes contactos junto do Governo, o que terá favorecido a criação do

concelho em 1926; exerceu funções de Administrador do Concelho e de Presidente da

Câmara; um dos maiores obreiros da biblioteca municipal (que adoptou o seu nome).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

429

ANEXO 2

POPULAÇÃO E ESTRUTURA INDUSTRIAL DA REGIÃO

Evolução demográfica

Actualmente com mais de duzentos mil habitantes, o crescimento demográfico que

se verificou ao longo do século XX nestes três concelhos (S. João da Madeira, Oliveira de

Azeméis e Santa Maria da Feira) expressa bem o dinamismo industrial e o seu enorme

poder atractivo em relação às populações das freguesias rurais da região.

Evolução da população residente para os três concelhos

(milhares de habitantes)

0

50

100

150

200

250

1900 1920 1940 1960 1981 1991 1997

SMFeira

Ol Azem

SJM

Total

Fontes: 1900 a 1981, INE, in Caetano (1986); 1991, INE/ Censos; 1997, INE in Jornal Público, 27/11/97, 2 e 3/12/97.

Nota: O concelho de S. João da Madeira só foi criado em 1926, pelo que só existem estatísticas a partir da 1930.

Sectores de actividade

Veja-se no quadro abaixo a enorme importância das actividades do sector

secundário, que nos três concelhos rondavam em 1991 os 70% da população activa, um

valor muito acima do peso desse sector nas estatísticas nacionais (38,5%). Em

contrapartida, o terciário, com 26,4% e 27,1% em Oliveira de Azeméis e Santa Maria da

Feira, respectivamente, está ainda bastante abaixo da média nacional, muito embora seja

de referir que em S. João da Madeira (sem dúvida devido aos limites urbanos do

concelho), a população do terciário é percentualmente superior aos valores dos outros dois

concelhos (38,3%). Os números quase insignificantes do sector primário, embora

reveladores do apagamento deste sector enquanto actividade económica principal, não

devem fazer-nos esquecer o significado económico e social das actividades agrícolas da

região, em especial o da pequena agricultura complementar que, como atrás assinalei,

constitui um suporte muito importante do rendimento familiar.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

430

Distribuição da população activa, segundo o sexo,

por sectores de actividade (1991)

População Activa

(N)

Primário

(%)

Secundário

(%)

Terciário

(%)

Área

Geográfica HM H M HM H M HM H M HM H M

Continente 3 945 520 2 353 403 1 592 117 10,5 11,2 9,5 38,5 43,6 30,8 51,0 44,8 60,2

SM Feira 57 118 33 084 24 034 2,2 1,6 3,0 70,7 73,0 67,5 27,1 25,3 29,4

Ol. Azem. 33 260 19 061 14 199 4,1 3,1 5,4 69,5 72,9 64,9 26,4 24,0 29,6

SJ Madeira 9441 5 180 4 261 0,3 0,4 0,2 61,3 64,2 57,9 38,3 35,4 41,9

Região* 99 819 57 325 42 494 2,7 2,0 3,6 69,4 72,2 65,7 27,9 25,7 30,8

Fonte: INE, Recenseamento Geral da População

* Somatório dos três concelhos considerados.

Em relação à presença da força de trabalho feminina na população activa, ela situa-

se nos 43% nesta região, um valor ligeiramente acima da média nacional (cerca de 40%,

em 1991). De destacar é o facto de o peso percentual das mulheres incidir sobretudo no

sector secundário, com 67%, valor bem próximo do peso dos homens (69%), e que

representa mais do dobro do valor para o continente (31%). Adiante referirei o caso

concreto do calçado, onde o número de mulheres é superior ao dos homens. Em relação à

distribuição por sexo no secundário e no terciário, a situação é, pois, claramente distinta

quando contrapomos os dados da região com os do continente. Enquanto neste último

caso a maior presença feminina recai sobretudo no sector terciário, na região ela

representa apenas cerca de 31%, só cinco pontos mais do que os homens.

Importante é ainda ter presente as taxas de desemprego na região. De acordo com os

dados do Censos de 1991 o desemprego situa-se em valores pouco relevantes: 3,1% em

SJM, 2,7% em Santa Maria da Feira e 2,1% em Oliveira de Azeméis, sendo que a situação

de desemprego atinge mais as mulheres do que os homens (apenas para o desemprego

feminino, as taxas são respectivamente de 3,7%, 3,4% e 2,8% para os mesmos concelhos).

Estrutura industrial

Quanto à estrutura da indústria transformadora, refira-se, em primeiro lugar alguns

dados acerca do volume da força de trabalho para o distrito de Aveiro, os quais

evidenciam o já assinalado peso do sector secundário (55% no total do distrito e cerca de

70% nos três concelhos). Dados de 1995 coligidos pela Associação Industrial do Distrito

de Aveiro, indicam aproximadamente os seguintes números: 49.000 trabalhadores

empregados no sector “têxtil, vestuário e calçado”; 36.000 nos “produtos metálicos”;

23.000 na indústria de “madeiras e cortiça”; 16.000 nos “minerais não metálicos”; 11.000

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Entre a Fábrica e a Comunidade

431

na indústria de “alimentação e bebidas”; 7200 na “indústria metalúrgica”; 6.400 na

“indústria química”; e 6000 nas indústrias de “papel e artes gráficas”. No caso dos três

concelhos aqui em análise, a nível da indústria transformadora o calçado é claramente o

sector que absorve maior volume de emprego (entre 23.000 e 27.000 trabalhadores,

consoante as fontes), seguindo-se-lhe o ramo da indústria da cortiça (que se centra

sobretudo no concelho de Santa Maria da Feira, com cerca de 600 empresas e

empregando 10.000 trabalhadores), os produtos metálicos (5.300 trabalhadores) e os

têxteis e vestuário (2.800 trabalhadores)211.

Dimensão das empresas do sector do calçado

Em relação ao calçado, para além de ser o sector que tem vindo a revelar um dos

maiores índices de crescimento da indústria portuguesa nos últimos vinte anos212,

interessa sobretudo atentar em algumas das características da sua estrutura produtiva.

Como se sabe, as pequenas empresas são aqui predominantes.

Número de empresas de fabrico de calçado, segundo a dimensão

(para os anos de 1982 e 1991)

DIMENSÃO DAS EMPRESAS

Ano de 1982 Nº Trab. 0 - 4 5 - 19 20 - 49 50 - 99 > 99 Total

SM Feira 26 57 38 14 7 142

Oliv. Azem. 51 152 67 14 3 287

SJMadeira 21 43 46 25 7 142

Total 98 252 151 53 17 571

(%) (17,2) (44,1) (26,4) (9,3) (3,0) (100,0)

Ano de 1991

SM Feira 36 78 56 28 15 213

Oliv. Azem. 93 216 98 23 8 438

SJMadeira 24 50 55 30 11 170

Total 153 344 209 81 34 821

(%) (18,6) (41,9) (25,5) (9,9) (4,1) (100,0)

Fonte: MESS, Quadros de Pessoal, 1982 e 1991.

211 Dados mencionados na publicação O Distrito de Aveiro: quem somos, do Douro ao Buçaco, edição do

Governo Civil de Aveiro, Julho de 1995. 212 A produção (VBP) em 1994 foi estimada em 330 milhões de contos, representando um crescimento

anual médio de 28%. Quanto às exportações , que correspondem a cerca de 80% da produção nacional do

sector revelaram em 1995 uma taxa média de crescimento anual de 35% nos últimos vinte anos, o que

representa, para o mesmo ano, 8,1% do total das exportações da indústria transformadora portuguesa

(quando em 1973 se limitava a 1,2%). Em 1974 as exportações de calçado foram de 3,6 milhões de pares

(555 mil contos), enquanto em 1995 esse valor se situava nos 76 milhões de pares (o que correspondeu a

235 milhões de contos). Ainda quanto ao volume emprego, o sector cresceu cerca de 7% ao ano no mesmo

período, absorvendo em 1995 à volta de 60.000 trabalhadores a nível nacional (in A Indústria Portuguesa de

Calçado, edição APICCAPS, Porto, 1997).

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Entre a Fábrica e a Comunidade

432

Os dados do quadro acima mostram que cerca de 86% das empresas possuem menos

de cinquenta trabalhadores (dados de 1991), tendo o seu número global213 crescido

acentuadamente ao longo dos anos oitenta. As empresas com mais de cinquenta

trabalhadores assumiam um peso relativo de 15% nesse ano, sendo que na comparação

concelhia o caso de S. João da Madeira revela uma maior presença das empresas de maior

dimensão (24% com mais de 50 trabalhadores) em relação aos concelhos vizinhos, o que

confirma o poder estruturante daquele núcleo fundador.

Vejamos agora a distribuição da força de trabalho em função da dimensão das

empresas. Atentando no quadro abaixo, pode constatar-se desde logo a discrepância entre

o pequeno número das empresas de maior dimensão (as quais não são, apesar disso,

grandes unidades) e a quantidade significativa de trabalhadores que empregam, no seu

conjunto.

Número de trabalhadores ao serviço, segundo a dimensão das empresas

(para os anos de 1982 e 1991)

DIMENSÃO DAS EMPRESAS

Ano de 1982 Nº Trab. 0 - 4 5 - 19 20 - 49 50 - 99 > 99 Total

SM Feira 80 621 1177 987 1391 4256

Oliv. Azem. 152 1658 1996 883 448 5137

SJMadeira 60 466 1462 1616 1098 4702

Total 292 2745 4635 3486 2937 14095

(2,1) (19,5) (32,9) (24,7) (20,8) (100,0)

Ano de 1991

SM Feira 85 801 1648 1938 4006 8478

Oliv. Azem. 267 2301 2970 1452 1300 8290

SJMadeira 68 539 1695 2209 1894 6405

Total 420 3641 6313 5599 7200 23173

(1,8) (15,7) (27,2) (24,2) (31,1) (100,0)

Fonte: MESS, Quadros de Pessoal, 1982 e 1991.

Verifica-se que os 15% de empresas com mais de 50 trabalhadores, absorvem

55,3% da força de trabalho ou – numa leitura ainda mais evidente –, os 4,1% de unidades

produtivas com cem ou mais trabalhadores são responsáveis por 31% do emprego no

sector. Curioso é ainda o facto das 153 empresas com menos de 5 trabalhadores ocuparem

no total 420 trabalhadores, o que dá uma média inferior a 3 indivíduos por unidade. Ao

invés, os 7200 empregados das 34 maiores unidades traduz-se num valor médio de 212

213 É de admitir que estes números fornecidos pelas estatísticas do Ministério do Emprego sejam bastante

inferiores à quantidade real de unidades produtivas. Efectivamente, de acordo com dados do Sindicato do

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Entre a Fábrica e a Comunidade

433

trabalhadores por empresa. No global, a força de trabalho distribui-se por unidades de

diferentes dimensões, mas, como se pode observar, a grande maioria trabalha em

empresas de pequena dimensão: 31% em empresas com mais de cem empregados e cerca

de 45% em empresas com menos de cinquenta empregados. Estas simples indicações

reflectem a enorme heterogeneidade que caracteriza a indústria do calçado. O importante

não é simplesmente ver a variedade em termos do “tamanho” das empresas, mas sim ter

presente a diversidade das estruturas produtivas e dos ambientes laborais que se vivem no

sector.

Níveis de instrução e de qualificação profissional

A situação dos trabalhadores do calçado segundo os níveis de escolaridade e as

categorias socioprofissionais são aspectos igualmente importantes para a sua

caracterização. Pelo que atrás ficou dito acerca da estrutura industrial do sector, já se

adivinhava que nela predominam os trabalhadores de menores recursos escolares. Os

dados referentes a estes três concelhos confirmam plenamente essa ideia. Basta verificar

que perto de 60% dos empregados do sector não têm mais do que a quarta classe e apenas

cerca de 2,5% possuem habilitações superiores ao ensino secundário, para concluirmos

que a dita modernização do sector tem, por enquanto, um significado muito reduzido no

que diz respeito às qualificações escolares dos trabalhadores. Na verdade, o que fica claro

é que se trata de uma indústria cujas potencialidades e vigor competitivo se deve antes do

mais ao trabalho intensivo e aos baixos níveis salariais da massa de trabalhadores que nele

se empregam.

Distribuição dos trabalhadores do calçado, segundo os níveis de instrução

(para o ano de 1991)

NÍVEIS DE INSTRUÇÃO *

Concelhos < Ens.

Primário Primário Prepar. Secund. Compl. E.Técnico Médio/

Superior N/S TOTAL

SM Feira 329

(3,9)

4094

(48,6)

3175

(37,8)

268

(3,2)

128

(1,5)

31

(0,4)

6

(0,1)

377

(4,5)

8408

(100,0)

Ol. Azem. 231 (3,0)

4518 (57,9)

2258 (29,0)

194 (2,5)

90 (1,2)

35 (0,4)

14 (0,2)

452 (5,8)

7792 (100,0)

SJ Madeira 362

(5,9)

3352

(54,7)

1926

(31,4)

213

(3,5)

123

(2,0)

70

(1,1)

38

(0,6)

52

(0,8)

6136

(100,0)

TOTAL 922 (4,1)

11964 (53,6)

7359 (33,0)

675 (3,0)

341 (1,5)

136 (0,6)

58 (0,3)

881 (3,9)

22336 (100,0)

Fonte: MESS, Quadros de Pessoal, 1991. * Os números entre parêntesis são os valores percentuais para cada concelho, dos diferentes níveis de instrução.

Também no que toca à estrutura das qualificações por categoria socioprofissional,

os dados reflectem essa mesma situação. De um modo geral verifica-se que o grosso dos

Calçado, em 1990 existiam nos três concelhos, cerca de 1100 fábricas, embora parte delas não estivessem

formalmente registadas.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

434

empregados se situa nas categorias mais baixas, mas esta constitui à partida uma

indicação que é comum à generalidade da indústria. Se atendermos a que a quase

totalidade dos dirigentes coincide com os próprios proprietários das empresas (que, como

se sabe, também possuem níveis de instrução bastante baixos) e ainda a que o pessoal

“qualificado” (segundo os critérios do Ministério do Emprego que aqui se utilizam) se

insere, na sua maioria, nas tarefas produtivas da linha de montagem torna-se, uma vez

mais, evidente o que acima já se disse, ou seja, o peso esmagador do pessoal que integra

funções produtivas com baixíssimas exigências em termos de qualificações técnicas.

Distribuição dos trabalhadores do calçado, segundo os níveis de

qualificação e o sexo (1991)

NÍVEIS DE QUALIFICAÇÃO

Qs méd/ dirig* Chef interm Pess Qual SemQ/Nqual* TOTAL

Concelhos H

(%)

M

(%)

H

(%)

M

(%)

H

(%)

M

(%)

H

(%)

M

(%)

H

(%)**

M

(%)**

SM Feira 44

(1,5)

17

(0,3)

117

(4,0)

28

(0,5)

1731

(58,8)

598

(10,9)

927

(31,5)

4785

(87,5)

2943

(100,0)

5465

(100,0)

Ol. Azem. 46

(1,3)

3

(0,07)

77

(2,1)

25

(0,6)

2354

(65,5)

566

(13,5)

993

(27,6)

3559

(87,7)

3592

(100,0)

4200

(100,0)

SJMadeira 45

(1,6)

3

(0,09)

133

(4,7)

40

(1,2)

1752

(62,1)

291

(8,8)

802

(28,4)

2932

(88,5)

2822

(100,0)

3314

(100,0)

TOTAL 135

(1,4)

23

(0,2)

327

(3,5)

93

(0,7)

5837

(62,4)

1455

(11,2)

2722

(29,1)

11276

(86,9)

9357

(100,0)

12979

(100,0)

Fonte: MESS, Quadros de Pessoal, 1991.

* Nestes casos procedeu-se à agregação de duas categorias a partir da referida fonte.

** Excluiu-se a situação “ignorado”, que corresponde a 481 (HM). Por esse motivo, os

valores percentuais somados não atingem de facto os 100,0%. Manteve-se no entanto

essa indicação apenas para facilitar a leitura.

Um outro aspecto que merece atenção, a partir destes dados refere-se à distribuição

sexual pelas diferentes categorias socioprofissionais. Se de um modo geral as

qualificações dos trabalhadores são baixas, no caso das mulheres fica claro que nesta

actividade industrial elas são, efectivamente, vítimas de discriminação no acesso aos

postos de trabalho mais qualificados (ou melhor, menos desqualificados), como indicam

os dados acima. Tal situação é ainda mais notória se atendermos à elevada presença de

mão-de-obra feminina neste sector, o que nesta região corresponde a cerca de 58% de

mulheres contra 42% de homens. Para os três concelhos, 87% das trabalhadoras integra a

categoria mais baixa da tipologia, enquanto os trabalhadores detêm aí um peso de apenas

29%. No nível de pessoal qualificado, pelo contrário, o peso das mulheres é na ordem dos

11%, contra 62,4% dos homens. A situação é idêntica para os três concelhos, onde as

mulheres trabalhadoras estão praticamente afastadas de todos os cargos de chefia. Além

disso a mão-de-obra feminina, efectuando em muitos casos tarefas iguais às do sector

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Entre a Fábrica e a Comunidade

435

masculino, aufere vencimentos claramente mais baixos, ao abrigo de uma tabela salarial

distinta para homens e mulheres.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

436

ANEXO 3

Critérios de construção da amostra regional

População-Alvo: definiu-se como população-alvo todos os indivíduos activos que

tivessem mais de 18 anos e menos de 71 anos em 1995 e que mantivessem uma

actividade profissional (ainda que esta pudesse não possuir um estatuto formal)214. A

unidade de selecção da amostra foi a família e a unidade de aplicação do questionário o

indivíduo que dentro da família seleccionada tivesse feito anos mais recentemente (entre

os que estivessem em actividade).

Tamanho da Amostra: Para um nível de confiança de 95 %, com uma margem de

erro de 5% com uma proporção real na população calculada em 50%, fixou-se a amostra

num total de 300 indivíduos215. Considerou-se que para efeitos da selecção aleatória das

freguesias da sub-amostra regional, estas eram homogéneas. O número de indivíduos

inquiridos por freguesia foi de 15, num total de 20 freguesias.

Freguesias Seleccionadas: perante a listagem total das freguesias dos três

concelhos, seleccionaram-se pelo método aleatório simples as 20 freguesias e dentro

destas, dois lugares (ou duas ruas, no caso das freguesias urbanas), pelo mesmo método.

Dentro dos lugares (ou ruas) foram igualmente definidos pontos aleatórios e critérios

uniformes para todos os casos, tais como, uma vez na rua indicada, realizar metade dos

questionários em casas com números ímpares e metade no lado par, ou, uma vez no

lugar respectivo, partir do largo central da povoação (em geral pequenas aldeias) e

aplicar metade dos questionários no segundo arruamento em direcção à saída e a outra

metade na zona oposta. As freguesias e lugares seleccionados, foram os seguintes:

214 Estabeleceu-se o critério prático de considerar elegível qualquer indivíduo que ao longo do último ano

tivesse trabalhado em qualquer actividade, ainda que a título informal, desde que o somatório das várias

ocupações pontuais correspondessem, em média, a uma ocupação de cerca de 20 horas por semana

durante esse período e desde que dela não estivessem retirados há mais de uma semana (cf. Gary T.

Henry, Practical Sampling, Londres, Sage, 1990: 93). Tal pode ser, por exemplo, o caso de certos

reformados que continuaram a desenvolver actividade a título precário e de onde obtêm rendimentos, quer

no âmbito familiar, quer por conta de outrém. 215 Ver tabelas de amostragem para diferentes níveis de confiança, margem de erro e dimensão da

população em Allen D. Putt e J. Fred Springer, Policy Research. Concepts, Methods, and Applications,

Englewood Cliffs, New Jersey, 1989, pp. 186-188. Note-se que esta sub-amostra foi construída no âmbito

da amostra global realizada ao nível do continente e a qual foi estratificada por região e pela dimensão das

localidades (segundo o número de famílias presentes), inserindo-se a mesma dentro da região Litoral e da

sub-região (NUT III) do Baixo Vouga.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

437

Concelho se S.ta Maria da Feira Concelho de Oliveira de Azeméis

Freguesias: Lugares: Freguesias: Lugares:

Sanfins Carvalhosa Travanca Caniços

Quintã Igreja

Canedo Canedo Loureiro Arrôta

Sobreda Feital

Vila da Feira 2 ruas Ossela Mosteiro

Pigeiros Bajouca Vermoim

Cavadas Cucujães Fermil

Vila Maior Barreiro Vila Nova

Lobel Pinheiro Bemposta Cruzeiro

Arrifana 2 ruas Figueiredo Baixo

Paços de Brandão 2 ruas Vila Chã S. Roque Bustelo

Escapães Nadais Gândara

Lardim Fajões Gagim

S. João de Ver Fonte Seca S. Mamede

Gondufe

Souto Macieira

Badoucos

Espargo Rio do Lourido

Pinhal

Argoncilhe Ordenhe

S. Domingos

Concelho de S. João da Madeira

Freguesia de S. João da Madeira 2 ruas

Aplicação do Questionário: o levantamento dos dados decorreu entre os meses de

Maio e Novembro de 1995 e foi levado a cabo por uma equipa de entrevistadores,

recrutados entre os estudantes da licenciatura de sociologia da FEUC, tendo sido

previamente preparados com treino específico para este estudo. O próprio investigador

responsável integrou a equipa e aplicou ele mesmo uma parte dos questionários. Dado a

amostra ser constituída por pessoas com actividade profissional, os inquéritos foram

aplicados fora das horas normais do período laboral e durante os fins de semana. Do

total dos inquiridos com telefone procedeu-se à confirmação da presença dos

entrevistadores em cerca de 10 por cento dos casos. A aplicação de cada inquérito

demorou em média 45 minutos, tendo o número de recusas atingido cerca de 10% das

abordagens, em termos globais.

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Entre a Fábrica e a Comunidade

438

TABELA 1 - Critérios de operacionalização da matriz das localizações de classe com base

nos três tipos de recursos

I. Recursos em Meios de Produção Conta própria Nº de assalariados

1. Burguesia Sim 10 ou mais

2. Pequenos empresários Sim 1 - 9

3. Pequena burguesia Sim 0

4. Assalariados Não

II. Recursos Organizacionais

Directamente envolvido na

tomada das decisões de

estratégia para a organização

Supervisor com autoridade real

sobre os subordinados

1. Gestores Sim Sim

2. Supervisores Não Sim

3. Não gestores Não Não

III. Recursos em Qualificações/

Credenciais

Ocupação Habilitação literária Autonomia no trabalho

1. Técnicos Qualificados (experts) Profiss. liberais

Professores E. Sup.

Gestores

12º ano ou mais

2. Semiqualificados/ Categorias

Intermédias

Professores E. Sec.

Artesãos

Gestores

Técnicos

Vendedores

Emp. escritório

Menos que 12º ano

12º ano ou mais

12º ano ou mais

e Autónomo

e Autónomo

3. Não Qualificados/ Não

credencializados

Vendedores*

Emp. escritório*

Trabalhadores manuais não

qualificados

Menos que 12º ano

Menos que 12º ano

ou

ou

Não autónomo

Não autónomo

* Nestas categorias socioprofissionais basta que um dos outros dois critérios se cumpra para se ser não qualificado.

Fonte: Adaptado de Wright, 1985: 150

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Entre a Fábrica e a Comunidade

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TABELA 2 - A lógica geral da construção das variáveis

Fonte: Wright, 1989b: 305

TABELA 3 - Operacionalização da estrutura de classes para análise da

mobilidade social intergeracional

Propriedade Autoridade Qualificação

Categoria de classe

Conta

própria

Com

empregados

Posição de

gestão ou de

supervisão

Categoria

socioprofissional/ nível de

instrução

Patrões Sim Sim

Pequena burguesia Sim Não

Gestores e

Supervisores*

Não Sim Ocupações profissionais ou

semiprofissionais, técnicas

ou de gestão; outras

ocupações excepto

trabalhadores manuais não

qualificados

Técnicos e

Trabalhadores

Qualificados

Não Não Ocupações qualificadas ou

profissionais; outras

categorias técnicas ou

semiprofissionais, com

instrução superior ao 9º ano

ou equivalente

Proletários Não Não Trabalhadores manuais não

qualificados; outras

ocupações não profissionais

com instrução inferior ao

10º ano ou equivalente *

Para os inquiridos era possível distinguir os “gestores” dos “supervisores”, com base nas suas respostas ao grau de

autonomia e influência nas decisões organizacionais no local de trabalho. Mas, como essa informação não estava

disponível para os seus pais, e por necessidade de uniformização, foi necessário agregar as duas categorias. Também

para a tipologia de classe dos inquiridos as mesmas foram agregadas, mas neste caso devido ao peso insignificante que se revelou possuírem na região.

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