entre a civilização do mal-estar e a ilusão de um futuro: uma crítica filosófico-psicanalítica...

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28 Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho Entre a civilização do mal-estar e a ilusão de um futuro Uma crítica filosófico-psicanalítica ao neo-pós-tudo 1  Juarez Caesar Malta Sobreira PROLEGÔMENOS A tarefa de realizar uma reflexão  –  desde uma perspectiva histórico-filosófica  –  sobre o desenvolvimento cultural da humanidade provoca um questionamento radical sobre o sentido da própria existência humana. Para aventar hipóteses sobre o sentido ôntico e radical do existir, devemos utilizar algumas contribuições teóricas de Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche, Mircea Eliade, René Guénon e Julius Evola. Pretendemos rever os paradigmas que sustentam a ideia de um "desenvolvimento" proporcionado pela civilização. Colocaremos em discussão o  pensamento de Freud e sua crítica à cultura, elaborada com mais vigor em Die Zukunft einer Illusion (1927) e Das Unbehagen in der Kultur (1930). Como contraponto, utilizaremos a "visão social" de Nietzsche, especialmente a terceira parte de Also Sprach Zarathustra (1884). Resgataremos ainda, nesse exercício crítico, o pensamento de três autores não- acadêmicos. Tratam-se Mircea Eliade, em The Myth of the Eternal Return or Cosmos and History (1954), de Julius Evola, e sua Rivolta Contro il Mondo Moderno (1934), e, finalmente, René Guénon, autor de La Crise du Monde Moderne (1927) e Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps (1945). Utilizando esses autores, pretendemos dar continuidade ao labor crítico dos mesmos e questionar o direcionamento que a civilização ocidental contemporânea tem  privilegiado, com especial atenção ao fetichismo da quantificação. Verificar-se-á a existência de um paradoxo entre o desenvolvimento material, quantitativamente mensurável, e a miséria afetivo-emocional, qualitativamente verificável, que se descortina ante o olhar do homem contemporâneo. A vã expectativa de que os males 1  [N. do E.] A publicação desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela Zona de Impacto, com o intuito de republicar trabalhos que compuseram o periódico Caderno de Criação - ISSN 0104-9389. Esse artigo foi publicado no Ano VII, Nº 22, Junho - Porto Velho, 2000.

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Entre a civilização do mal-estar e a ilusão de um futuro:Uma crítica filosófico-psicanalítica ao neo-pós-tudo.Autor: Juarez Caesar Malta Sobreira.http://www.revistazonadeimpacto.unir.br/anteriores.html

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    Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho

    Entre a civilizao do mal-estar e a iluso de um futuro

    Uma crtica filosfico-psicanaltica ao neo-ps-tudo1

    Juarez Caesar Malta Sobreira

    PROLEGMENOS

    A tarefa de realizar uma reflexo desde uma perspectiva histrico-filosfica

    sobre o desenvolvimento cultural da humanidade provoca um questionamento radicalsobre o sentido da prpria existncia humana. Para aventar hipteses sobre o sentido

    ntico e radical do existir, devemos utilizar algumas contribuies tericas de Sigmund

    Freud, Friedrich Nietzsche, Mircea Eliade, Ren Gunon e Julius Evola.

    Pretendemos rever os paradigmas que sustentam a ideia de um

    "desenvolvimento" proporcionado pela civilizao. Colocaremos em discusso o

    pensamento de Freud e sua crtica cultura, elaborada com mais vigor em Die Zukunft

    einer Illusion (1927) e Das Unbehagen in der Kultur (1930). Como contraponto,utilizaremos a "viso social" de Nietzsche, especialmente a terceira parte de Also

    Sprach Zarathustra (1884).

    Resgataremos ainda, nesse exerccio crtico, o pensamento de trs autores no-

    acadmicos. Tratam-se Mircea Eliade, em The Myth of the Eternal Return or Cosmos

    and History (1954), de Julius Evola, e sua Rivolta Contro il Mondo Moderno (1934), e,

    finalmente, Ren Gunon, autor de La Crise du Monde Moderne (1927) e Le Rgne de

    la Quantit et les Signes des Temps (1945).

    Utilizando esses autores, pretendemos dar continuidade ao labor crtico dos

    mesmos e questionar o direcionamento que a civilizao ocidental contempornea tem

    privilegiado, com especial ateno ao fetichismo da quantificao. Verificar-se- a

    existncia de um paradoxo entre o desenvolvimento material, quantitativamente

    mensurvel, e a misria afetivo-emocional, qualitativamente verificvel, que se

    descortina ante o olhar do homem contemporneo. A v expectativa de que os males

    1[N. do E.] A publicao desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela Zona de Impacto, com ointuito de republicar trabalhos que compuseram o peridico Caderno de Criao - ISSN 0104-9389. Esseartigo foi publicado no Ano VII, N 22, Junho - Porto Velho, 2000.

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    para os humanos cessariam ante o progresso da civilizao se mostrou frustrada e hoje,

    mais que nunca, o homem tornou veraz o dito latino segundo o qual homo homini lupus.

    O paradigma que est por trs desta concepo aquele segundo o qual somos

    governados por foras instintuais e, sobretudo, inconscientes que nos remete aos

    conflitos que, comeando com o enfrentamento com os pais, reverberam a posteriori nos

    conflitos com as autoridades e, em ltima anlise, com a prpria civilizao. Ser nessa

    direo que nossa conferncia vai abordar o grande mistrio do sentido da existncia do

    homem e sua inscrio na cultura. De modo que a questo desde logo exposta: entre a

    natureza e a cultura, onde se inscreve a possibilidade de desenvolvimento humano?

    Esta conferncia antecipa tal preocupao e sugere algumas linhas de reflexo.

    O MAL-ESTAR DO FUTURO E A ILUSO DA CIVILIZAO

    A questo fundamental da existncia humana pode ser sintetizada em uma expresso: a

    busca da felicidade. Este um objetivo implcito e precpuo na vida de todas as pessoas.

    Estamos neste mundo, neste vale de lgrimas, envoltos em um entramado de impedimentos para

    a consumao dos prazeres mais simples e naturais. Entretanto, continuamos cultivando nossos

    sonhos de felicidade.

    Todas as grandes obras produzidas pelo homem tm como objetivo proporcionar algum

    tipo de felicidade. Porm a histria da humanidade tem nos ensinado que este bem o mais raro

    de todos. A felicidade, essa sensao passageira de plenitude, ocorre (quando ocorre) de modo

    fugaz, porque felicidade algo extremamente voltil.

    A histria do homem sobre a face da terra testemunho da violncia do homem contra o

    homem. Desde os primrdios da civilizao que se teria iniciado em uma poca proto-

    histrica at a idade contempornea, especialmente aps as revolues industrial e

    tecnolgica, a humanidade tem conhecido avanos culturais nunca dantes imaginado.

    O avano e as conquistas da civilizao, em suas mltiplas diversidades, nunca

    proporcionaram ao homem um maior bem-estar e conforto interior. Muito pelo contrrio, o que

    temos assistido um aumento do grau de infelicidade, de desamparo, de "desajustamento" que

    cada vez mais caracterstico do chamado "homem moderno".

    Estamos, pois, diante de um paradoxo. Se, por um lado, dominamos uma tecnologia que

    objetivamente nos proporciona conforto e uma espcie de satisfao material imediata, por

    outro lado, convivemos com um "mal-estar" intrnseco prpria civilizao. Segundo a

    Organizao Mundial de Sade, existem atualmente cerca de 340 milhes de pessoas sofrendodepresso. Isso apenas nos casos diagnosticados! Imaginem que apenas um caso em cada trs

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    so diagnosticados. Significa que mais de um bilho de pessoas padecem desse verdadeiro mal

    de fim-de-sculo. No um quadro dos mais promissores para o devir humano. Estamos diante

    de uma civilizao doentia.

    O que se passa com a civilizao? Ser a doena afetivo-emocional o nus da cultura? Eo bnus da cultura, qual ser (se que tem algum)? Quais os objetivos da civilizao, seno

    proporcionar felicidade humanidade? Os bens materiais produzem felicidade perene? Os

    prazeres corporais podem nos proporcionar felicidade? Enfim, qual o sentido ltimo da

    civilizao? Estas so questes difceis de responder de modo unvoco. Os filsofos tm se

    debruado sobre o tema desde eras pretritas. Um dos mais clebres filsofos de todos os

    tempos, Herclito de feso, j nos ensinava que a felicidade no est relacionada aos bens

    materiais ou aos prazeres carnais. Diz ele, no fragmento 4: "(Se a felicidade estivesse nos

    prazeres do corpo), deveramos chamar felizes os bois quando encontrassem capim para comer".Portanto, no so os bens materiais que podem nos proporcionar felicidade. H algo de

    intangvel, de impossvel, nos sonhos de felicidade do ser humano. E ento, perguntamo-nos,

    vivemos para qu? Qual o sentido do nosso existir? Essas preocupaes exigiam respostas que,

    sculos aps sculos, diversos amantes da sabedoria procuraram responder. Nessa busca, o

    prncipe Sidarta Gautama revelou que o mundo se resume a quatro nobres verdades: tudo dor;

    a dor nasce do desejo; a dor se extingue com a extino do desejo; para se obter a cessao do

    desejo, preciso seguir o caminho dos oito passos (correo de opinies, intenes, motivos,

    palavras, ocupao, esforo, pensamento e meditao).

    Mais perto de ns, Plato nos ensinou na sua Stima Carta, que no haver remdio para

    os males que afligem a humanidade, enquanto os sbios no governarem a terra ou que os

    governantes no possurem a sabedoria. Dado que o amor sabedoria no encontrado entre os

    governantes, nem os verdadeiros sbios conseguem ser eleitos para os cargos mais importantes,

    somos levados concluso que a felicidade no fcil de ser conquistada. Para explicar essa

    nossa inquietude, esse mal-estar congnito e intrnseco civilizao, vamos escutar as palavras

    inventivas de Sigmund Freud, o criador da Psicanlise. Sua obra extensa e profunda, parte de

    um pressuposto radical: no podemos ser felizes. Por que? Porque nossos desejos mais naturais,

    mais primitivos, mais viscerais, so proibidos porque vo de encontro aos objetivos da

    civilizao. Em duas obras, Freud explica a mecnica por assim dizer dessa "doena cultural".

    Em O Futuro de Uma Iluso e em O Mal-Estar na Civilizao, Freud estabelece os princpios

    tericos da nossa permanente infelicidade. Segundo este autor, ns, os seres humanos, no

    somos governados pela razo, mas sim por foras instintuais, obscuras, que nos so

    desconhecidas porque so frutos do nosso inconsciente. Esta descoberta provoca o mesmo

    sentimento de desamparo, quanto as descobertas de que a terra no era o centro do universo, e

    de que os homens so parentes dos macacos.

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    Para termos uma ideia do que felicidade vale ressalta que o amor sexual proporciona

    "nossa mais intensa experincia de uma transbordante sensao de prazer, fornecendo-nos assim

    um modelo para nossa busca de felicidade." Entretanto, a felicidade no pode ser realizada e,

    por causa dessa infelicidade culturalmente congnita, temos que lutar contra o mundo pois "oque chamamos de nossa civilizao em grande parte responsvel por nossa desgraa". Da que

    "o impulso de liberdade, portanto, dirigido contra formas e exigncias especfica da

    civilizao ou contra a civilizao em geral". O certo que, para Freud, o homem inimigo da

    civilizao. Isto o paradigma mais radical j enunciado por um pensador. Por qu? Porque

    toda civilizao se ergue sobre a coero e sobre a renncia aos instintos. Sabemos que em

    todos os indivduos, mesmo naqueles mais cultos e mais mansos, sobrevivem impulsos

    destrutivos e anti-sociais. Em algumas pessoas tais tendncias so excessivamente fortes e

    determinam o repertrio do comportamento social (ou melhor, anti-social) do indivduo. Daporque a sociedade deve tomar medidas para que a exigncia de satisfao dos instintos mais

    primitivos de tais indivduos no ponham em perigo o conjunto da sociedade.

    Tal viso se baseia na sua teoria das pulses. Estas colocam em evidncia exigncias

    instintuais que reivindicam pura e simplesmente a satisfao total de todos os seus desejos. Ora,

    sabemos que o homem inserido na cultura no pode usufruir do gozo pleno e irrestrito dos seus

    instintos. Para defender-se dessa exigncia de gozo, a sociedade elaborou as normas e criou

    instituies para garantir as proibies que a cultura impe aos indivduos. Acredita-se que sem

    controle social, os homens reunidos em grandes grupos tornam-se incontrolveis e por isso

    precisam ser liderados por uma minoria. Neste sentido, as massas no podem prescindir de

    serem dirigidas por uma minoria como tambm deve existir uma coero ao trabalho porque os

    homens no gostam de trabalhar e s o fazem por fora da necessidade.

    Nenhuma sociedade produziu um homem que espontaneamente gostasse de trabalhar e

    que abdicasse de satisfazer seus instintos mais primitivos. Existem indivduos que so

    prisioneiros dos seus desejos instintuais, de tal maneira que sero sempre pessoas anti-sociais.

    Esse pessimismo freudiano demonstra que Freud no compartilhava da viso romntico-

    messinica do comunismo porque o marxismo parte de um pressuposto equivocado: a de que o

    homem, liberto das relaes de classe, se tornaria um altrusta, generoso, bondoso, como que

    um retorno sua condio de "bom selvagem". Freud afirma, em O Mal-Estar na Civilizao,

    que o ser humano possui uma "inclinao para a agresso" e que tal inclinao "constitui o fator

    que perturba nossos relacionamentos com o nosso prximo" de tal forma que, para impedir

    transtornos maiores, a civilizao deve gastar muita energia para conter a agressividade humana.

    Freud afirma tambm, em O Futuro de uma Iluso, que existe uma "mania destrutiva dos

    participantes da civilizao". Assim, os instintos mais "naturais" no ser humano esto fadados a

    permanecer sob o taco das normas ditas civilizadas. Desse modo, origina-se a frustrao dos

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    instintos que, impedidos de exercer a plenitude dos seus gozos, procuram sabotar as proibies

    impostas pela civilizao.

    Desde os primrdios da civilizao, existe um repertrio de privaes dos prazeres

    realizada pelas proibies culturais. Isso faz renascer em cada gerao uma espcie de revoltacontra a civilizao. Os desejos instintuais mais violentamente reprimidos so o canibalismo, o

    incesto e o homicdio. Desses trs desejos instintuais, s o canibalismo parece ter sido proscrito

    em todo o mundo, ao passo que o homicdio acompanha a histria da humanidade desde

    sempre, e quanto ao incesto, diz Freud: "A intensidade dos desejos incestuosos ainda pode ser

    detectada por detrs da proibio contra eles". Os instintos que reclamam satisfao sexual so

    recalcados pela sociedade. aqui que a religio desempenha importante papel para a civilizao

    posto que contribuiu para "domar" o instinto sexual, embora felizmente no de modo total. A

    frustrao decorrente das proibies e interdies culturais, a maioria de carter sexual,proporcionou a descoberta de que "um nmero estarrecedoramente grande de pessoas se

    mostram insatisfeitas e infelizes com a civilizao, sentindo-a como um jugo do qual gostariam

    de se libertar", afirma Freud. Para combater paixes intensas de carter instintual, foram

    proibidos o incesto e o homicdio. A interdio do assassnio e do incesto deram origem ao

    totemismo, arcabouo das religies. Freud questiona como possvel os homens permanecerem

    submetidos s suas paixes e exigncias instintuais. A substituio da religio pela razo tem

    sido tentada, mas sem sucesso. E, ao mesmo tempo, assistimos ao refortalecimento dos

    sentimentos religiosos na neoliberal e ps-moderna sociedade ocidental. Freud explica: "o efeito

    das consolaes religiosas pode ser assemelhado ao de um narctico".

    O paradoxo do ser humano que ele governado por foras que desconhece. Assim, "o

    intelecto do homem no tem poder, em comparao com sua vida instintual". Nossa razo

    limitada pelo poder dos nossos desejos inconscientes. Somos prisioneiros, por assim dizer, das

    reivindicaes de prazer que nossos instintos reclamam. Mas no combate entre o instinto e a

    razo, esta apesar de mais fraca termina por impor uma certa ordem porque "a voz do intelecto

    suave, mas no descansa enquanto no consegue uma audincia. Finalmente, aps uma

    incontvel sucesso de reveses, obtm xito. Esse um dos poucos pontos sobre o qual se pode

    ser otimista a respeito do futuro da humanidade", garante Freud.

    SOBRE A FELICIDADE

    Se existe algum propsito da existncia humana, este deve ser a conquista da felicidade

    que significa ausncia de sofrimento e experincia intensa de prazer. Portanto, a humanidade se

    mobiliza em funo do princpio do prazer. Mas contra a consecuo do princpio do prazer

    encontram-se as proibies culturais. Por outro lado, a infelicidade est mais ao alcance de

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    todos porque nos ataca desde trs diferentes direes: desde dentro do nosso prprio corpo,

    desde o mundo externo (social) e desde nossos relacionamentos interpessoais.

    Para impedir a plenitude do princpio do prazer, existe um outro princpio, o da

    realidade, que o guardio de todos os valores sociais e culturais. Isso porque existe um perigonos prazeres instintuais. Eis o alerta que Freud nos traz em O Mal-Estar na Civilizao:

    O sentimento de felicidade derivado da satisfao de um selvagem impulso instintivo no domado

    pelo ego incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfao de um instinto que j

    foi domado.

    Eis aqui o ponto central da nossa reflexo. A felicidade possvel, a quota de

    possibilidade real de prazer que cada um de ns pode retirar do mundo, depende da fora que

    podemos utilizar para modificar o mundo e o modelar de acordo com nossos desejos. aqui que

    o pensamento de Freud se cruza com a filosofia de Nietzsche, naquilo em que o poder assenta-

    se sobre a vontade frrea de um desejo que no se deixa ludibriar.

    Para ser feliz em plenitude, a pessoa deveria ter acesso ao gozo pleno, gozo esse no

    sentido de algo que se situa para alm do princpio do prazer, algo da ordem do indizvel. Todos

    os instintos do homem buscam a sua consumao, at mesmo o instinto de morte. Portanto, a

    civilizao deve erigir-se por sobre os instintos, renunciando aos mesmos. Essa "frustrao

    cultural" permeia as relaes humanas e causa hostilidades tanto entre os homens quanto entreestes e a prpria civilizao. "No fcil entender como pode ser possvel privar de satisfao

    um instinto. No se faz isso impunemente", adverte Freud.

    A necessidade do trabalho para suprir a necessidade e a busca do objeto sexual e do

    amor, possibilitam a sociabilidade e o advento da civilizao. Entretanto, esta no ser uma

    relao amistosa porque, segundo Freud, "o amor se coloca em oposio aos interesses da

    civilizao" e esta, por sua vez, "ameaa o amor com restries substanciais."

    Nesse ponto devemos recordar que Nietzsche afirmou: "H sempre o seu qu de loucura

    no amor; mas tambm h sempre o seu qu de razo na loucura."Sabemos que a primeira e mais forte norma cultural de natureza sexual. Trata-se do

    tabu do incesto, proibio universal, presente em todas as sociedades de todos os tempos,

    sofrendo apenas variaes de uma cultura para outra. Freud afirmou que a proibio do incesto

    "constitui, talvez, a mutilao mais drstica que a vida ertica do homem em qualquer poca j

    experimentou."

    Entretanto, a transposio do homem de seu estado natural para o cultural ocorre devido

    a proibio da satisfao dos impulsos sexuais dentro da prpria famlia. Dito de outro modo, a

    cultura nasce da represso da aspirao primeira de todo o ser humano, que possuir como

    objeto sexual as pessoas que amou na infncia.

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    Alm do mais, a civilizao exige que cada um de ns utilizemos uma grande

    quantidade de energia psquica em nossos trabalhos, e essa energia subtrada da energia

    sexual. Por isso a civilizao ergue tantos empecilhos vida sexual. At h pouco tempo, a vida

    sexual s era admitida na sua expresso heterossexual e, mesmo assim, restrita ao casamento.Desta maneira, os canais de expresso da energia sexual eram muito limitados. Freud percebe

    este paradoxo e afirma peremptrio: "Apenas os fracos se submeteram a uma usurpao to

    ampla de sua liberdade sexual". Aqui temos, portanto, outro paradigma psicanaltico: o amor

    anti-social. Mas, afinal, o que h de anti-social no amor?

    O carter anti-social do amor pode ser percebido quando observamos que os casais

    apaixonados evitam a presena de terceiros, procurando sempre estar a dois. Da o motivo da

    frase "enfim ss", que os recm-casados dizem na lua de mel. Contra essa tendncia

    isolacionista do amor, necessrio utilizar a libido inibida em seus objetivos sexuais para que asrelaes coletivas, como as amizades, possam existir e fazer nascer vnculos comunitrios.

    O homem possui uma inclinao instintiva para a agresso. Essa agressividade se

    expressa em uma "hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um", o que , no

    dizer de Freud, "o maior impedimento civilizao."

    Vejam o que nos ensina Nietzsche: "No vos aconselho o trabalho, mas a luta. No vos

    aconselho a paz, mas a vitria. (...) No possvel estar calado e permanecer tranquilo seno

    quando se tem a flecha no arco", proclama o filsofo iracundo. Para lutar contra essa inclinao

    "para o mal", a civilizao fez surgir no indivduo um mecanismo de internalizao da

    agressividade que, sob a forma de "conscincia", faz o indivduo submeter-se s regras sociais.

    Isso s possvel porque o poder da autoridade externa (pai) introjetada e o superego

    assume o papel de coao moral que fora exercida pelo pai e depois pelas demais figuras de

    autoridade. Entretanto, o princpio do prazer consiste em encontrar a felicidade e este objetivo

    jamais descartado. Se o princpio do prazer ligado ao instinto da vida (Eros), o princpio da

    realidade subordinado ao instinto de morte (Tanatos). A questo fundamental, para Freud,

    refere-se a saber se possvel espcie humana, em seu desenvolvimento cultural, dominar os

    instintos de agresso e de autodestruio presentes nos homens. Freud alimenta a esperana de

    que no permanente combate entre Eros, o instinto de vida, e Tanatos, o instinto de morte, o

    primeiro afirme sua primazia. Entretanto impossvel prever o resultado desta luta que se trava

    a todo momento no interior de cada um e de todos ns, no lento e imprevisvel desenvolvimento

    humano e civilizacional.

    PERSPECTIVAS FILOSFICAS

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    A sensao de cansao com o "mundanal rudo", a que faz referncia Fray Luis de

    Len, reverbera na figura do sbio e santo Zaratustra, personagem da obra mxima de

    Nietzsche, quando este diz que "o rudo assassina os pensamentos..." Aos trinta nos Zaratustra

    abandonou sua ptria para refugiar-se durante dez anos no alto de uma montanha.Desiludido nas suas andanas por entre os homens demasiado humanos, Zaratustra

    retorna, aps breve interldio de contato com a civilizao, solido da montanha onde vivia

    como um eremita e por l ficou por algum tempo antes de iniciar nova viagem, desta vez por

    alto mar.

    Estamos j na terceira parte do Assim Falava Zaratustra, onde o bordo nietzscheano

    relembra-nos que "o homem deve ser superado" porque "at nos melhores h qualquer coisa

    repugnante, at o melhor coisa que se deve superar!" Nietzsche lana um desafio civilizao

    ao mesmo tempo que justifica com antecipao a descoberta freudiana de que o homem omaior inimigo da civilizao. Diz Nietzsche: "se alguma virtude h em mim, no temer

    nenhuma proibio".

    Essa revolta contra o mundo, contra a civilizao, contra o modus vivendi do moderno

    homem ocidental recebeu fortes crticas tambm de outros grandes filsofos que agora vamos

    conhecer com brevidade. Em primeiro lugar, na nossa crtica civilizao, devemos lembrar

    que as demais culturas e civilizaes tambm excluem a possibilidade de ser feliz porque, como

    est escrito no Eclesiastes: "O que foi, ser, o que se fez, se tornar a fazer: nada h de novo sob

    o sol".

    Mircea Eliade, em O Mito do Eterno Retorno, afirma: "Nenhuma acontecimento

    nico, nada acontece apenas uma vez; todo episdio j aconteceu, repetido, e ser reprisado de

    modo perptuo; os mesmos indivduos apareceram, aparecem e continuaro aparecendo, a cada

    giro do crculo. O tempo csmico uma repetio e anakuklosis, o eterno retorno."

    A permanncia da cultura do mal-estar e da infelicidade est aliada uma iluso em um

    futuro promissor. Ora, isso no parece ser uma esperana factvel. Sabemos que as sociedades,

    as culturas e as civilizaes se movem em uma mesma direo, de forma contnua, cclica e

    espiralada. Isso significa que tanto no futuro como no passado, as condies subjetivas de

    existncia do homem so mais ou menos aquelas que conhecemos.

    Dois autores so fundamentais, alm de Freud e Nietzsche, para compreender a "crise

    existencial" que sofre a humanidade. O primeiro Ren Gunon, autor da Crise do Mundo

    Moderno, e o outro autor Julius Cesare Evola, autor de Revolta contra o Mundo Moderno.

    Este ltimo autor considera que nossa atual civilizao a pior de todas. Para ele, "se

    houve alguma vez uma civilizao de escravos em grande escala, foi exatamente a civilizao

    moderna (...) que imposta de maneira aparentemente inofensiva pela tirania do fator

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    Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho

    econmico (...) assim a escravido hoje a mais tenebrosa e a mais desesperada de todas as que

    foram alguma vez conhecidas."

    A viso de Evola no propriamente pessimista. Contra todas as terceiras e quartas

    ondas do "neo" (neocapitalismo, neopositivismo, neoliberalismo) e do "ps" (ps-modernismo,ps-vanguardismo, ps-historicismo), o homem encontra-se a ss com o seu destino de repetir

    ad infinitum os mesmos dramas e tragdias.

    essa circularidade do tempo e da histria que permite a sobrevivncia das literaturas

    clssicas: vivemos as mesmas emoes profundas que os habitantes da Grcia do sculo V,

    tanto que at hoje lemos as tragdias de Sfocles, por exemplo. Assim, temos diante de ns o

    desafio de propor novas solues para velhos problemas, se que existem solues novas ou

    velhas.

    J prelibando a finalizao desta conferncia, gostaria de lhes proporcionar umareflexo acerca da obra de Freud, elaborada por um dos mais ferrenhos crticos da psicanlise.

    Talvez essa crtica psicanlise diminua o mal-estar que nossas inquietaes filosficas por

    acaso tenham causado na susceptibilidade do pblico, que nos ouviu afirmar que ns, os

    humanos, somos prisioneiros do nosso inconsciente e que somos governador por foras

    psquicas que desconhecemos.

    Com isso estamos afirmamos o primado da irracionalidade, contra todas as

    reivindicaes da Razo formal, isso significa que por trs dos nossos pensamentos, razes e

    decises, encontram-se os desejos inconsciente que so anti-culturais e anti-civilizatrios.

    Mas Ren Gunon pode proporcionar alvio s senhoras e aos senhores, na sua crtica

    feroz a Freud. Em seu livro O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Gunon afirma que

    o carter geralmente ignbil e repugnante das interpretaes psicanalticas constitui, a esse

    respeito, uma 'marca' que no engana; (...) Na realidade, a psicanlise s pode ter como efeito o

    trazer superfcie, tornando-o claramente consciente, todo o contedo destes fundos baixos do ser

    que formam aquilo a que se chama propriamente o 'subconsciente'.

    CONCLUSO

    E o vosso mais alto pensamento deveis ouvi-lo de mim,

    e este:

    o homem deve ser superado.