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Secretaria de Estado da Educação
Superintendência da Educação Departamento de Políticas e Programas Educacionais
Coordenação Estadual do PDE
ARTIGO PDE
PDE – 2010
ENTENDENDO A ESCRAVIDÃO PARA DESCONSTRUIR PRECONCEITOS: UMA
ANÁLISE DO FILME “AMISTAD” EM SALA DE AULA
Professor Pesquisador: Norival Claro da Silva
Orientadora: Profª Drª Márcia Elisa Teté Ramos.
Londrina - Paraná
LONDRINA – PARANÁ
2010
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ENTENDENDO A ESCRAVIDÃO PARA DESCONSTRUIR
PRECONCEITOS: UMA ANÁLISE DO FILME “AMISTAD” EM
SALA DE AULA
Autor: Norival Claro da Silva
Orientadora: Profª Drª Márcia Elisa Teté Ramos
RESUMO O presente artigo é o resultado da conclusão dos estudos do PDE 2010, exibe o relato de uma proposta de trabalho implementado na escola que tem como objetivo de estudo um recorte do filme “AMISTAD”, porém o foco centra-se na metodologia do processo de construção do conhecimento. O filme, como qualquer documento histórico pode nos aproximar de verdades, pode nos mostrar verossimilhanças e pertinências através de sua argumentação geral produtora de sentido. A problemática insere-se nos debates sobre o uso escolar do filme como documento histórico: como trabalhar um filme mostrando que se aplicarmos os mesmos procedimentos dos historiadores ao mesmo realizar uma análise histórica. A produção pedagógica expõe relatos apresentando resultados do trabalho implementado e conclusões, via filme e material didático, aplicado no oitavo ano do Ensino Fundamental do Colégio Estadual Professor José Carlos Pinotti, para dar condições ao aluno compreender que qualquer material cultural é uma fonte histórica, sendo assim, possível de análise próxima do historiador. Sobretudo, explora a construção do conhecimento histórico, os conceitos históricos, como por exemplo, escravidão, através da análise de um filme.
Palavras-chave: Filmes; Ensino de História; Uso de fonte. 1. Introdução
Usei o filme em sala de aula, no sentido de tornar a aula – não mera diversão
e lazer –, mas espaço de construção do conhecimento histórico, no caso, tomando
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com a História da escravidão africana no Brasil. Desta forma, fazendo com que o
educando construa o conhecimento histórico através do filme “AMISTAD”.
Nosso país, durante os últimos anos do século XIX e os primeiros do século
XX, apresentaram profundas contradições de nossa sociedade. Nela, até 1888,
havia-se mantido o predomínio da escravatura. O binômio nação/raça presidiu as
construções de identidade no século XIX e ainda nos primeiros anos do século XX.
O debate conceitual unido à análise dos acontecimentos do período pode contribuir
para compreensão da História, tanto dos descendentes dos imigrantes escravos no
século anterior, quanto dos seus descendentes, nascidos em solo brasileiro e que
tanto participaram ativamente da formação do Brasil como nação que temos hoje.
Esta história permaneceu muitas vezes esquecida pela preeminência dos
enfoques subordinados às teorias hierárquicas ocidentais, às quais se acomodaram
as construções homogeneizadoras das elites. Os livros didáticos usados na escola,
nas poucas vezes em que falam dos negros, desconsideram suas diferentes origens
assim como a história de suas civilizações. Algumas pesquisas mostram a quase
exclusão da figura afro-brasileira no material didático. As representações que se
constituem a partir dos livros usados pela escola são as do negro como escravo, que
executa trabalho braçal e é inferiorizado intelectualmente. Dessa forma, o livro
didático tem um poder que poderíamos chamar de “degenerador”, na constituição da
autoestima e da identidade da criança negra, contribuindo para construir e reforçar
sentimentos de inferioridade. Para reverter esse quadro, é preciso desconstruir as
representações negativas do negro formadas no processo didático. A Lei 10639/03,
ao estabelecer no Artigo 26A a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira busca reparar essa injustiça feita não apenas aos negros, mas a todos os
brasileiros, pois essa história esquecida ou deformada pertence a todos os
brasileiros, sem discriminação de cor, sexo, gênero, etnia e religião. A promulgação
da Lei 10639/03 representa um avanço no sentido da promoção da igualdade nas
relações raciais. No entanto, o texto da Lei não é garantia de sua efetiva realização.
As Leis 10.639/03 e 11.645/08 são simbolicamente uma correção do Estado
brasileiro pelo débito histórico em políticas públicas, em para a população negra.
Evidentemente, o Estado promove a legislação curricular inserindo a problemática
dos afro-brasileiros, devido aos debates, necessidades, objetivos, movimentos e
reivindicações, então instalados no meio social. Com a aprovação da Lei
10.639/2003, torna-se obrigatório, no Ensino Fundamental e Médio, o ensino sobre
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História e Cultura afro-brasileira e africana, o que assinala a necessidade de
estabelecer novas diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações
étnico-raciais no Brasil, que engloba, o estuda dessas disciplinas.
Alguns livros didáticos como: “Tudo é História”, de Oldimar Cardoso publicado
pela Editora Ática em 2006; “Saber e Fazer História” de Gilberto Cotrim e “História
Temática” de Andrea Montellato, Conceição Cabrini e Roberto Cateli Junior, da
editora Scipione publicado em 2005, contam a história do negro no Brasil relatando
como esse povo foi banido de sua pátria natal e escravizados aqui. Também fazem
um relato da torturante viagem até o solo brasileiro, depois relata castigos sofridos,
da sua luta pela liberdade. Contudo, em relação à cultura africana, está limitada à
mera contribuição em nosso vocabulário, alimentação, religião, música e
instrumentos musicais, como se a cultura do branco fosse central e as outras
culturas e/ou etnias fossem apenas complementos, visto que quem “contribui”,
ajuda, colabora com algo supostamente já construído. A ideia de contribuição traz
embutida a ideia de que o que já está pronto, acabado, recebe “acréscimos”. Em
última instância, o branco é “autor” da cultura, e as outras etnias serviriam para
acrescentar ao que está dado.
Os livros de História do Brasil, aqui citados como objeto e fonte de estudo
foram analisados da seguinte maneira: periodização, fatos históricos, explicação
histórica, mitos, feitos históricos, comunidade de crença e valores, trabalho e classe
social, marcados na estrutura social brasileira.
Constatei1 que os livros construídos pelos autores sustentam se na defesa de
uma caminhada evolutiva do Brasil em direção ao modelo de civilização européia, na
qual a escravidão é condenada moralmente, mas justificada como necessidade
econômica. Os livros citados integram uma visão ou mesmo um projeto das classes
que procuram intervir na cultura, pelo fato de serem economicamente dominantes.
Fundamental é perceber que existe, talvez, muitas vezes de forma sutil, uma política
de intervenção cultural que procura estabelecer uma identidade nacional una,
branca, cristã e liberal, e, acima de tudo, politicamente conservadora.
Procurei dar condições aos alunos para eles construírem o conhecimento
histórico em relação aos seguintes pontos: a cultura da África; que parte dessa
1 É preciso esclarecer que não proponho uma análise profunda e referenciada dos livros didáticos. Minha “pesquisa” serviu apenas ao propósito de ter uma visão panorâmica da forma como tais livros trabalham a questão do afro-brasileiro e a escravidão, inclusive para justificar meus objetivos quanto ao uso escolar do filme como documento histórico, isto sim, eixo norteador do presente projeto.
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cultura foi incorporada à nossa pelos escravos; de que maneira isso foi introduzido
no Brasil; as formas de fiscalização e dominação do senhor proprietário dos
escravos; como os escravos praticavam sua religião, dança, musica e sua
alimentação.
Tais interesses são sustentados pelo uso escolar do filme:
A imagem fílmica merece um lugar de destaque na sala de aula, provocando no aluno uma reflexão, desenvolvendo a análise crítica de seu mundo. Estudos sobre o tema (cinema) asseguram que os dados provenientes da visão são também responsáveis pela retenção mais duradoura daquilo que os alunos aprendem. (ABUD, 2003, p.183 a 193.)
A escolha do filme Amistad se deu, por se tratar de um filme de grande
impacto e repleto de recursos que prendem a atenção dos alunos-adolescentes. Não
é um documentário que procura a reconstrução da história, mesmo porque a
finalidade de um filme é a de primeiramente entreter, e não escrever história. Quem
produz um filme é um cineasta e não um historiador, mesmo que o cineasta até diga
que quer retratar a história. No caso deste filme, a forma como o filme foi utilizado,
pode propiciar ao aluno, elementos importantes que o fez compreender como os
escravos eram trazidos para a América nos porões de navios negreiros, como eram
tratados, o que denuncia o modo de como o africano era visto pelos brancos na
época.
A história do filme baseia-se em acontecimentos do ano de 1839, e, diz-se
que parte de fatos reais que ocorreram a bordo do navio negreiro espanhol Amistad.
Por meio deste filme foi possível reconhecer as condições de captura e
transporte de escravos africanos para os trabalhos na América do Norte, a máquina
jurídica americana do final do século XIX e o germe das primeiras medidas para a
abolição da escravatura na América.
O filme mostra o processo de julgamento de negros nos Estados Unidos, 22
anos antes da Guerra Civil, numa conjuntura marcada pelo expansionismo em
direção ao Oeste e pelo acirramento das divergências do norte protecionista,
industrial e abolicionista, com o sul livre-cambista, agro-exportador e escravista.
O filme se inicia com uma turbulenta jornada marítima numa embarcação que
é identificada como “Amistad”. Trata-se de um navio negreiro que sofre enorme
revés ao ver os prisioneiros se rebelar e trucidarem grande parte da tripulação.
Desconhecendo os caminhos marítimos pelos quais conseguiram voltar para casa,
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os lideres da rebelião mantém dois prisioneiros que devem levá-los de volta a África.
São traídos e aportam na América do Norte.
Os sobreviventes da tripulação disputam a posse da “mercadoria” humana
transportada no Amistad, são contestados pela rainha da Espanha, que também
quer apoderar do conteúdo da embarcação; alem deles os oficiais norte-americanos
que apreenderam o barco e controlam o motim desejam a posse dos cativos para
vende-los.
Dentro desse quadro de disputa por mercadorias humanas e a trajetória dos
escravos até a América onde são vendidos para o trabalho forçado nas propriedades
agrícolas, que o projeto foi implantado na escola, como um material de apoio, e um
documento de fonte de pesquisa.
A história é uma disciplina escolar que possibilita satisfatoriamente a utilização do cinema como recurso pedagógico, as correntes historiográficas como as pedagógicas da contemporaneidade compreendem qualquer produto cultural, no caso o filme, como documento histórico que pode ser explorado em sala de aula. (FERRO, 1977, p.11-12.)
2. Desenvolvimento
2.1. Iniciando a implementação do Projeto
O objetivo desse estudo possibilitou a compreensão da cultura negra como
um dos elementos formadores da própria cultura brasileira, destacando o conceito
histórico de “escravidão” através da análise do filme Amistad. Em especial, procurei
construir o conhecimento histórico utilizando o filme como documento histórico.
Desta forma, procurei: a) Contribuir para a formação de alunos e sociedade em geral
na temática da cultura afro-brasileira; b) Recuperar a memória histórica, revisando a
importância dos negros na formação étnico-social do povo brasileiro; c) Oportunizar
o desenvolvimento de projetos educativos na concepção de transversalidade,
possibilitando o fortalecimento do olhar interdisciplinar; d) Possibilitar a vivência de
um novo saber-fazer a respeito da identidade afro-brasileira diante da atual
pluralidade cultural; metodologias de ensino criativas e dinâmicas; e) Explorar o filme
como documento histórico no sentido de dar condições para que o aluno construa o
conhecimento histórico.
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Antes de apresentar o recorte do filme Amistad para que o aluno pudesse se
inteirar do assunto escravidão negra no Brasil, de como todo esse processo
acontecia à luz das autoridades brasileiras e que se tratava de um a pratica legal,
mas não moral, propus a leitura de alguns textos que serviram como embasamento
para compreensão2.
Se a Lei 10.639/2003 torna obrigatório a inserção de temas ligados as
culturas afro-brasileiras, e os livros didáticos não tratam desse tema com muita
relevância, achei por bem desenvolver um estudo sobre a cultura africana no Brasil,
para esclarecimento aos alunos trazida pelos africanos que vieram banidos de sua
pátria para aqui serem escravizados nos grandes latifúndios em diversas regiões do
Brasil.
O primeiro ponto a ser esclarecido quando se trabalhar com filme histórico é
que, como em qualquer documento histórico, não há como buscar a verdade
histórica objetiva. Primeiro porque não existe uma verdade histórica, segundo
porque fontes históricas não fornecem versões históricas. No entanto, o filme – e
repito: como qualquer documento histórico – pode nos aproximar de verdades, pode
nos mostrar verossimilhanças e pertinências através de sua argumentação geral
produtora de sentido: “o sentido fílmico não é uma significação inerente ao filme,
mas são as hipóteses de investigação que permitem revelar certos conjuntos
significantes” Pierre Sorlin.
O professor não precisa ser um crítico de cinema quando apresenta um filme
em sala de aula, mas se faz necessário ter um olhar crítico para que possa entender
o filme através de procedimentos próprios de um profissional da história, ou seja,
partindo do princípio que, como documento histórico, o filme apresenta lacunas,
problemas, idiossincrasias, etc.
Minha problemática insere-se nos debates sobre o uso escolar do filme como
documento histórico: como trabalhar um filme mostrando que se aplicarmos os
mesmos procedimentos dos historiadores ao mesmo, estaremos realizando uma
análise histórica? Quais seriam estes procedimentos que são próprios da analise
histórica? Como dar condições para que o aluno compreenda que qualquer material
cultural é uma fonte histórica, sendo assim, possível de análise próxima a do
2 Apresentei inicialmente os seguintes textos: A História da Escravidão Negra no Brasil, Tráfico Negreiro, Sua Excelência, O Traficante de Tráfico de Escravos.
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historiador? Como construir o conhecimento histórico, os conceitos históricos, como
por exemplo, escravidão, através da análise de um filme?
2.2. Para além das tradições quanto ao tema e à visão que se tem aluno
Denomina-se cultura afro-brasileira o conjunto de manifestações culturais do
Brasil que sofreram algum grau de influência da cultura africana desde os tempos do
Brasil colônia até a atualidade. A cultura da África chegou ao Brasil, em sua maior
parte, trazida pelos escravos negros na época do tráfico transatlântico de escravos.
No Brasil a cultura africana sofreu também a influência das culturas européia
(principalmente portuguesa) e indígena, de forma que características de origem
africana na cultura brasileira encontram-se em geral mescladas a outras referências
culturais.
Traços fortes da cultura africana podem ser encontrados hoje em variados
aspectos da cultura brasileira, como a música popular, a religião, a culinária, o
folclore e as festividades populares. A cultura africana e as outras culturas se
influenciam mutuamente formando a cultura brasileira. Alguns elementos já se
“misturaram” de tal forma, que não são identificados de forma objetiva, clara e
acabados. Os estados do Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Minas Gerais,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul foram os mais
influenciados pela cultura de origem africana, tanto pela quantidade de escravos
recebidos durante a época do tráfico como pela migração interna dos escravos após
o fim do ciclo da cana-de-açúcar na região Nordeste. Quanto mais contemporâneo,
mais as culturas se mesclam em nível nacional.
Porém, quando se fala de influência cultural, devemos considerar que a
cultura africana transforma e é transformada por outras culturas de forma estrutural.
Por vezes, ao elencar as influências culturais, alguns discursos desprezam o fato de
que o trabalho escravo produziu riqueza, integrou valores e práticas que “fizeram”
História. Contudo: “Ainda que tradicionalmente desvalorizados na época colonial e
no século XIX, os aspectos da cultura brasileira de origem africana passaram por um
processo de revalorização a partir do século XX que continua até os dias de hoje” 3.
3 http://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_afro-brasileira
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Até pouco tempo atrás havia um grande desencontro entre nossos alunos e a
maioria dos antigos livros de História do Brasil. Isso porque o aluno é alegre, aberto
e dinâmico e os antigos livros eram fechados, cansativos, monótonos.
Durante o século XX, o ensino de História denominava se tradicional ou
positivista, tinham objetivos claros e definidos. A principal preocupação era ensinar
História para explicar a genealogia da nação, transmitir ao aluno um conjunto de
fatos que compunham a história do país, partindo da origem e chegar até sua
atualidade, procurando explicá-los da maneira como aconteceram.
Além das mudanças na forma de escrever história, também tivemos
mudanças na forma didático-pedagógica. Com a difusão da pedagogia da Escola
Nova, a forma de usar documentos históricos sofreu modificações. Essa pedagogia
deslocou para o aluno o centro do processo ensino-aprendizagem. Então passou a
ser recomendado que o professor se tornasse orientador do aluno. No caso do
ensino de história, a utilização de documentos tornou-se uma forma do professor
tornar as aulas de história mais agradável para motivar o aluno para o conhecimento
de história, e estimular suas lembranças e referencias sobre o passado e, tornar o
ensino menos preso ao livro didático. O fato de utilizar documentos durante as aulas
pudesse levar o aluno a um contato próximo com as realidades do passado.
Hoje o aluno não quer saber de “decorar” e muito menos quer uma história
que ele, através de revistas, televisão e outros meios de comunicação, já sabe que
não é verdade. O fato é que o aluno de hoje é criativo e mais bem informado do que,
por exemplo, em décadas passadas, quando os próprios meios de comunicação
impediam o sujeito infanto-juvenil de saber a verdade dos fatos.
De acordo com COTRIM (1993, p. 03) “A nova metodologia explica que
estudar história é adquirir consciência dos fatos, é saber que pode-se transformar a
sociedade, é saber o que fomos para transformar o que somos”. Afora o aluno que
não aceita mais o ensino de história tradicional, também os estudos sobre ensino de
história apontam para as exigências de materiais didáticos, metodologias, conteúdos
mais inovadores. A história e a geografia enquanto disciplinas visam estudar o
homem como ser social, agindo conjuntamente na transformação do meio físico e
social para satisfação de suas necessidades, construindo para si um mundo
humano. Através do estudo da vida humana presente, das instituições sociais e do
funcionamento da sociedade, os alunos devem ser incentivados a compreender
como as relações entre os homens e entre as classes sociais vão levando as formas
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de organização sócio-espacial e econômica, umas criadoras de desigualdades e
injustiças e outras mais igualitárias e mais propícias ao desenvolvimento das
características humanas.
Segundo LIBÂNEO
A história estuda o homem nos diferentes tempos de sua existência e nos lugares onde ele vive; como ele vai estabelecendo relações com os seus semelhantes através do trabalho, como vão sendo criadas as instituições sociais, como o homem vai resolvendo os conflitos entre os interesses das classes sociais. A geografia estuda as relações do homem com o espaço natural e como pode transformá-lo em seu beneficio e em beneficio da comunidade humana. (1994, p. 46)
Como se pode verificar, o objetivo maior desta matéria é ajudar os alunos no
conhecimento da realidade física e social, a partir da realidade mais imediata de
modo a suscitar a compreensão do papel dos indivíduos e grupos na transformação
da sociedade, tendo em vista um mundo de convivência humana que assegure a
plena satisfação das necessidades materiais e espirituais de todos.
O documento então passou a ser um instrumento didático para o professor,
ajudando a tirar o aluno da passividade e reduzir a distância de sua experiência e
seu mundo em relação a outros mundos e outras experiências descritas nos livros
didáticos. Foi então estimulado o uso de mapas históricos, gravuras, filmes, que
permitiriam refazer as imagens do passado ou fazer o aluno imaginar como era o
passado. Com isso seria possível tornar as aulas mais atraentes, e o aluno mais
participante das aulas.
Essa concepção propõe que a relação entre professor, aluno e conhecimento seja interativa, uma relação em que o trabalho com os conteúdos e o prazer de aprender poderão ajudar aluno e professor a pensarem historicamente e se apoderarem da história vivida numa dimensão totalmente humana. (SCHMIDT, 2004, p.95)
Seguindo nesta direção, muitos autores dos quais tomo como referencial,
pautam sua reflexão sobre a relação cinema-história tomando como premissa de
que todo filme é um documento. E, se pode ser analisado de forma histórica pelo
historiador de modo a construir a escrita da história, pode ser também utilizado pelo
professor na construção do saber histórico escolar. Para que uma película se torne
um documento válido para a investigação historiográfica, depende de dois pontos: a
concepção de História do pesquisador e o valor intrínseco do documento.
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2.3. O filme como documento em sala de aula
Um filme, mesmo que não faça uso da história como parâmetro, mesmo que,
por exemplo, seja uma ficção científica, traz em si representações, valores,
comportamentos próprios do contexto histórico em que foi produzido. Muitas vezes,
o filme não aborda o contexto histórico em si, apenas faz uma alusão em cima de
um fato histórico, criando outra historia essa mais comercial e mais atrativa para o
publico. Então podemos reconhecer que o filme não pode ser visto como uma
reprodução fiel da realidade. Considero que caberia ao professor como profissional
da história, levar os alunos a reconhecer a natureza deste documento histórico, cuja
finalidade é entreter, por vezes pretende mostrar um período histórico, mas não e
utiliza de procedimentos históricos científicos para reconstrução do passado, e, são
os agentes escolares, professor e alunos, que, no processo de aprendizagem
transformam o filme em documento histórico, ao interpretá-lo com os procedimentos
da história.
O cinema é um testemunho da sociedade que o produziu e, portanto, uma
fonte documental para a ciência histórica importante. Nenhuma produção
cinematográfica está livre dos condicionamentos sociais de sua época. Isso nos
permite afirmar que todo filme é passível de ser utilizado enquanto documento. No
entanto, para utilizar-se cientificamente de tal assertiva, requer-se cautela e
cuidados especiais. A forma como o filme reflete a sociedade não é, em hipótese
alguma, direta e jamais se apresenta de maneira organizada (em circuitos lógicos e
coerentes), mesmo que assim o apresente. Por isso, é necessário que o
pesquisador/professor, ao tratar o filme como fonte documental, se distancie
concepção mecanicista pela qual o reflexo social é abordado de forma direta.
Pode-se dizer que a principal característica que define os protagonistas do
tipo de filme de Amistad é a capacidade de se sacrificar, de lutar, de empreender
qualquer jornada em nome daquilo que acreditam, por mais difícil que seja. SILVA
(2007) afirma que, em um roteiro, para ser bem aceito pelo público, é preciso
identificação, e quanto mais humana a feição dos personagens, mais provável a
identificação. É preciso que os personagens tenham suas qualidades louváveis e
desejadas pelo espectador e, ao mesmo tempo, possuam fraquezas que os tornem
mais humanos e mais próximos. No caso específico da identificação dos professores
e das professoras, como espectadores, que estabeleceram com os filmes e seus
personagens, concordamos com ESPINAL na seguinte passagem:
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A identificação do espectador cinematográfico com o protagonista do filme é possível graças ao fato de que o cinema, ao nos submeter a um estado para-hipnótico, atenua a parte exterior da própria individualidade. A para-hipnose, em que o cinema pode colocar o espectador, torna o público muito mais sugestionável e receptivo a toda influência exterior. (1976, p. 60)
É nesse processo de identificação com os personagens dos filmes que os
professores e professoras podem pensar as suas subjetividades e os seus
posicionamentos sociais, no trato das questões étnico-raciais.
O valor de documento de um filme está relacionado de acordo com a visão do
analista do documento. Um filme pode dizer tanto quanto for questionado. As
possibilidades de análise podem ser infinitas. Um filme, por se muito útil na
reconstrução do vocabulário, com os costumes da época, do vestuário, da
arquitetura e dos costumes da época, principalmente em si tratando de filmes de
época. Na verdade eles representam a mentalidade da época em que o enredo esta
sendo desenvolvida, a produção inclui ideologias, muitas vezes, inconscientemente
o produtor acaba transmitindo uma visão ideológica visível para a sociedade. Um
filme, sempre vai além do seu conteúdo, escapando mesmo a quem o produziu.
Feita a seleção do filme a ser utilizado em sala, é necessário fazer uma
análise individual do mesmo. A primeira etapa é de contextualização, ou seja, a
leitura histórica do filme, deve se concentrar naquilo que denominamos de crítica
externa do filme. Esta etapa consiste nas seguintes atividades: resgate da
cronologia da produção do filme (período de produção e de lançamento); verificação
e comparação da existência de versões do filme a ser utilizado (no caso de existirem
mais versões); as alterações usadas pela censura (se houve); se possível,
levantamento da equipe técnica de produção, dos seus custos de produção, das
fontes financiadoras e de outros fatores importantes (como o público-alvo, por
exemplo) do processo de produção. Nesta etapa, parte-se para o estudo da biografia
dos produtores do filme (mesmo que seja oficial): a que classe social pertence; quais
as características mais gerais dessas produções e em que elas se assemelham à
película que está sendo pesquisada4.
A valorização do documento como recurso é imprescindível ao historiador, do
século XX, o documento escrito era fundamental, pois o historiador tinha que extrair
4 http://www.cliohistoria.110mb.com/videoteca/textos/cinema_conhecimento.pdf
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do documento as informações que nele estava contido, sem nada a ser
acrescentado. O objetivo era mostrar os fatos acontecidos da maneira que eles
haviam ocorridos. Em uma situação como essa a função do historiador se tornava
passiva e receptiva. Então conhecer a historia seria acreditar na versão dada pelos
historiadores baseadas em documentos escritos.
Para finalizar podemos ressaltar a importância do cinema como fonte de uma
maneira de perpetuar a memória e as imagens que muitas vezes caem no
esquecimento, sendo papel do historiador reviver essa memória. Compete ao
historiador confrontar sempre que possível, as informações retiradas dos filmes com
os documentos tradicionais, escritos, podem oferecer. Cabe ao professor uma
analise minuciosa para adaptar a didática com o filme
Uma compreensão muito generalizada pode representar uma ideia social
como verdadeira que às vezes não passa de uma fantasia. Ou seja, mitos, ideias,
crenças, herois, provocam uma ação no imaginário social que acabam se fixando
pelo cinema, como postura política sobre outra cultura, um interesse econômico, se
passadas pelo cinema. O poder dos filmes pode colaborar para desenvolver um
imaginário popular sobre a história. Modelos heroicos e patrióticos são encontrados
em livros didáticos ultrapassados, que glorificam o sacrifício e heroísmo individual.
Nos filmes, esta glorificação pode querer levar o espectador a amar sua pátria, ou
legitimar alguma ação das instituições governamentais, como uma guerra, ou seja,
não é porque o cinema é uma linguagem mais inovadora do que um livro, que um
conteúdo mais inovador será garantido.
3. Desdobramentos do Projeto:
O projeto foi aplicado aos alunos da 8ª série do Ensino Fundamental, com a
finalidade de desenvolver o senso critico ao produzir conhecimentos e concluir que a
história é um processo social, dinâmico e aberto à revisões.
Em resumo, a implementação do Projeto seguiu alguns passos: levantamento
do conhecimento prévio do aluno (o que considerou do filme, o que considera sobre
a escravidão, bem como sobre a cultura africana e o preconceito); apresentação do
filme após a aula expositiva sobre escravidão, com o propósito de traçar um
panorama geral sobre o assunto, bem como despertar o interesse dos alunos;
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orientações sobre pesquisa em relação à cultura africana; assistir ao filme Amistad;
solicitação do resumo individual do filme aos alunos; observância do roteiro de
análise do filme que também continha questões que deverão ser respondidas pelos
alunos em grupo.
O referido roteiro pautou-se em questões como: especificação do filme, ou
diretor, gênero; delimitação do tema: geográfica e cronológica; problematização:
questão ou problema que o tema suscita. Tais questões serviram para auxiliar na
interpretação histórica do filme, foco deste Projeto.
Desta forma, foram realizadas junto aos alunos a crítica, a interpretação, os
questionamentos referentes ao filme levando-se em conta a contextualização, ou
seja, descrição e análise das principais componentes da conjuntura que influenciam
ou condicionam o tema estudado e o filme em questão. Consideramos tanto a
história do cinema quanto o contexto histórico mais amplo no qual o filme Amistad se
insere. Em conjunto, discutimos sobre a recepção, influência e impacto que exerceu
este filme no Brasil, considerando a História que o filme procura mostrar e os
sentimentos que pode despertar no público. As possibilidades de recepção e/ou
apropriação do filme nos levaram ao sentido do filme, isto é, não apenas o tipo de
história que conta, mas também a maneira como conta, como tematiza, delimita e
descreve ou não, os eventos e o contexto histórico. Todas as atividades
mencionadas foram avaliadas de forma a substituir a avaliação tradicional do
bimestre, considerando uma avaliação do tipo participativa, interativa e processual.
Considerações Finais
Este Projeto pressupôs o trabalho com o filme Amistad como documento
histórico em sala de aula. Como parte de uma relação dialógica com o aluno para
saber seus conhecimentos prévios sobre o tema, bem como no sentido de
considerar sua interpretação (mesmo que orientada e direcionada pelo professor de
história), pode mudar em alguns pontos em seu período de realização. Em última
instância, interessa construir o conhecimento histórico, visando que o aluno construa
a noção de alteridade, de valores antipreconceito, próprios do sujeito histórico
crítico, responsável, consciente, cidadão.
Os resultados obtidos muito me surpreenderam, pois ocorreu uma
participação ampla por parte dos alunos, questionando sempre sobre os sofrimentos
impostos aos escravos, a forma de tratamento, torturas, tráfico humano, e as poucas
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resistências em se libertar do sofrimento imposto. Contudo, ressaltou-se que as
poucas resistências mostradas no filme eram vinculadas às condições dos negros
então expostos às variadas represálias. Não se objetivou tratar os escravos como
“naturalmente” passivos, mas subjugados às condições impostas em um sistema
escravista. Muitos questionamentos ocorreram durante as leituras dos textos,
também surgiram questões sobre a cultura deixada pelos africanos e a
marginalização de algumas delas, como dança, luta, religião, etc., mas o interesse
não foi apenas relacionado às manifestações culturais em si, mas ao fato de que
não percebemos que esta cultura se apresenta em várias esferas sociais sem que
percebamos. Os alunos ficaram sempre muito centrados no tema, o filme serviu
como um grande reforço não só para compreensão sobre a luta de sobrevivência
dos escravos e o modo como eram tratados e trazidos para o Brasil, como também
sobre a situação do afrodescendente na atualidade e o preconceito que ainda circula
na sociedade.
O Projeto implantado em sala de aula mostrou-se produtivo, sendo que a
avaliação proposta como participativa e processual mostrou resultados satisfatórios.
Posso afirmar que trabalho foi um sucesso já que os alunos se envolveram
ativamente e, por conta disso, houve um grande aproveitamento por parte destes, o
que implicou no fato de que eu, como professor tenha gostado de trabalhar este
tema e este filme com os alunos da 8ª serie do Ensino Fundamental.
Referências bibliográficas:
ABUD, K.M. A Construção de uma didática da história: Algumas idéias sobre a
utilização de filmes no ensino. História. São Paulo, v.22, n.1, 2003, pp. 183-l93.
ESPINAL, Luis. Cinema e seu processo psicológico. São Paulo: LIC
Editore. 1976.
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FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Editora
Paz e Terra, 14ª ed., 1983.
FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
História & Ensino, Revista de Ensino de História, UEL, v. 8, Ed. Eduel, out.2002.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo, Cortez, 1994.
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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO (Paraná). Diretrizes Curriculares da
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In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 81-95.
SCHMIDT, M.A.; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. SP: Scipione, 2004
TOMAS DE AQUINO, Santo – “Summa Theologica” – Marietti Roma, “De Magistro” –
Tradução de Maria Inês Cadim, Ed. Odeon.
Livros didáticos analisados:
CARDOSO, Oldimar Pontes. Tudo é História: História Moderna e História da
América Colonial, 6ª série do Ensino Fundamental, São Paulo: Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto, História e Consciência do Brasil, São Paulo, Ed. Saraiva,
1993.
CARDOSO, Oldimar Pontes. Tudo é História: História Contemporânea e
História do Brasil, 7ª série do Ensino Fundamental, S.Paulo, Ática, 2006.
COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer História: Feudalismo, Modernidade Européia
e Brasil Colônia, 6ª série, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2005.
COTRIM, Gilberto. Saber e Fazer História: Consolidação do capitalismo e
Brasil Império. 7ª série. 3ª Edição, S.Paulo, Saraiva, 2005.
MONTELLATO, Andréa; CABRINI, Conceição; CATELLI JUNIOR, Roberto.
História Temática, 6ª, 7ª e 8ª séries, São Paulo, Scipione, 2004.
Filmografia
AMISTAD. Diretor Steven Spieberg. Distribuído por Warner Home Vídeo, EUA. 1997.
154 minutos.