ensinando e aprendendo a fazer perguntas

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PROGRAMA SALA DE PROFESSOR | 2007 Título do vídeo/documentário: “A vida examinada – O que é Filosofia?” MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Ensinando e aprendendo a fazer perguntas Professores EDUARDO AMARAL (Filosofia), FERNANDO ISAO KAWAHARA (História) e JOSÉ LUIZ PASTORE MELLO (Matemática) Introdução: O que significa fazer perguntas Ensinar os alunos a dar boas respostas é o que tradicionalmente nós professores procuramos fazer. No entanto, nem sempre ou raramente as perguntas que fazemos a eles são verdadeiramente as perguntas que eles carregam consigo e, se assim for, para eles a resposta tanto faz como tanto fez apenas contenta o exercício escolar, como cópia de uma informação que consta do livro didático ou do repeteco do que disse o professor. Uma resposta assim, cuja pergunta não é ―significativa‖, como costuma-se dizer, não faz tampouco da resposta ser significativa, isto é, a resposta torna-se irrelevante para o aluno. Nossa proposta de trabalho para o documentário “A vida examinada – O que é Filosofia?” 1 visa portanto ao desenvolvimento de um outro processo: ensinar a fazer perguntas, de modo que se tornem perguntas significativas para os alunos. Não se trata, por outro lado, de nos rendermos aos caprichos da mocidade. As perguntas que eles já carregam consigo nem sempre chegam ao x da questão. É preciso ensiná-los a perguntar, sobre o que perguntar. A curiosidade deles é tão passageira quanto infrutífera, isto é, não os leva a novas indagações mas, pelo contrário, cessa a própria curiosidade que se contenta com uma resposta pronta e imediata aquela que eles mesmos podem alcançar ao pesquisar em uma enciclopédia, na internet ou coisa que o valha, pronta para ser ―consumida‖. Trata-se aqui de um outro tipo de perguntar. Uma pergunta pelos fundamentos, pelos princípios, que é o tipo de pergunta que a Filosofia se faz, desde o seu nascedouro na Grécia Antiga. Vale dizer que a Filosofia assim pensada, como um ―certo jeito de perguntar específico, sobre fundamentos e princípios‖, é presente em todas as demais áreas do conhecimento, em todas as disciplinas escolares são aquelas questões de fundo de cada disciplina. 1 O vídeo está disponível no blog CRÔNICAS DE ESCOLA Para nos aproximarmos um pouco mais dessa concepção de pergunta filosófica, tomemos de empréstimo as palavras de Platão: “pois a admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia”. Todos somos filósofos, ao menos quando somos tomados por ―admiração‖. Essa admiração é o que nos move a filosofar a perguntar, enfim, sobre o sentido das coisas em que acreditamos, se elas são verdadeiramente assim como acreditamos que elas sejam ou, pelo contrário, se estamos enganados. Não se trata portanto de uma mera pergunta que nos fazemos sobre aquilo que não sabemos, mas uma pergunta que carrega consigo essa admiração, um espanto: ―Pelos deuses, Sócrates! Causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens!‖, diz o jovem Teeteto ao dialogar com Sócrates. Eis o princípio de toda a filosofia: essa ―admiração vertiginosa‖. Quando perguntamos sobre os fundamentos e os princípios nos quais as nossas próprias disciplinas se baseiam, essa pergunta pode por em xeque tudo o que acreditamos ser real e eis aqui o tema do documentário, quando nos apresenta o famoso ―Mito da Caverna‖. Mais do que isto, essa não é uma mera curiosidade passageira, mas uma curiosidade que lateja, que não admite uma resposta única, mas permanece sempre aberta à reflexão. Vamos então estimular essa curiosidade nos alunos, atiçá-los a ver as coisas de um outro jeito, incentivando o questionamento vamos permitir que os alunos encasquetem: manter a pergunta latejante na cabeça. A eles, valem as palavras de Rainer Maria Rilke ao jovem poeta Franz Xaver Kappus: “Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta.” [Rainer Maria RILKE. Cartas a um jovem poeta/A Canção de Amor e de Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke. Porto Alegre, Globo, 11ªed, 1983. Tradução de Paulo Rónai e Cecília Meireles.]

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O Ministério da Educação, através da Secretaria de Educação à Distância, mantém a programação da TV Escola, que visa a formação de professores. Tive a oportunidade de participar do programa Sala de Professor, no qual, após a exibição de um vídeo documentário, três professores de diferentes disciplinas do ensino médio propõem um trabalho a ser desenvolvido em sala de aula, com os alunos. O que se segue é o roteiro de trabalho que redigimos.

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Page 1: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

PROGRAMA SALA DE PROFESSOR | 2007

Título do vídeo/documentário:

“A vida examinada – O que é Filosofia?”

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Ensinando e aprendendo

a fazer perguntas Professores EDUARDO AMARAL (Filosofia),

FERNANDO ISAO KAWAHARA (História)

e JOSÉ LUIZ PASTORE MELLO (Matemática)

Introdução:

O que significa fazer perguntas

Ensinar os alunos a dar boas respostas é o que

tradicionalmente nós professores procuramos fazer. No

entanto, nem sempre ou raramente as perguntas que

fazemos a eles são verdadeiramente as perguntas que

eles carregam consigo e, se assim for, para eles a

resposta tanto faz como tanto fez – apenas contenta o

exercício escolar, como cópia de uma informação que

consta do livro didático ou do repeteco do que disse o

professor. Uma resposta assim, cuja pergunta não é

―significativa‖, como costuma-se dizer, não faz tampouco

da resposta ser significativa, isto é, a resposta torna-se

irrelevante para o aluno.

Nossa proposta de trabalho para o documentário

“A vida examinada – O que é Filosofia?”1 visa portanto

ao desenvolvimento de um outro processo: ensinar a

fazer perguntas, de modo que se tornem perguntas

significativas para os alunos.

Não se trata, por outro lado, de nos rendermos aos

caprichos da mocidade. As perguntas que eles já

carregam consigo nem sempre chegam ao x da questão.

É preciso ensiná-los a perguntar, sobre o que perguntar.

A curiosidade deles é tão passageira quanto infrutífera,

isto é, não os leva a novas indagações mas, pelo

contrário, cessa a própria curiosidade que se contenta

com uma resposta pronta e imediata – aquela que eles

mesmos podem alcançar ao pesquisar em uma

enciclopédia, na internet ou coisa que o valha, pronta

para ser ―consumida‖.

Trata-se aqui de um outro tipo de perguntar. — Uma

pergunta pelos fundamentos, pelos princípios, que é o

tipo de pergunta que a Filosofia se faz, desde o seu

nascedouro na Grécia Antiga. Vale dizer que a Filosofia

assim pensada, como um ―certo jeito de perguntar

específico, sobre fundamentos e princípios‖, é presente

em todas as demais áreas do conhecimento, em todas as

disciplinas escolares – são aquelas questões de fundo de

cada disciplina.

1 O vídeo está disponível no blog CRÔNICAS DE ESCOLA

Para nos aproximarmos um pouco mais dessa concepção

de pergunta filosófica, tomemos de empréstimo as

palavras de Platão:

“pois a admiração é a verdadeira característica

do filósofo. Não tem outra origem a filosofia”.

Todos somos filósofos, ao menos quando somos

tomados por ―admiração‖. Essa admiração é o que nos

move a filosofar – a perguntar, enfim, sobre o sentido

das coisas em que acreditamos, se elas são

verdadeiramente assim como acreditamos que elas

sejam ou, pelo contrário, se estamos enganados. Não se

trata portanto de uma mera pergunta que nos fazemos

sobre aquilo que não sabemos, mas uma pergunta que

carrega consigo essa admiração, um espanto: ―Pelos

deuses, Sócrates! Causa-me grande admiração o que

tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter

vertigens!‖, diz o jovem Teeteto ao dialogar com

Sócrates. Eis o princípio de toda a filosofia: essa

―admiração vertiginosa‖. Quando perguntamos sobre os

fundamentos e os princípios nos quais as nossas

próprias disciplinas se baseiam, essa pergunta pode por

em xeque tudo o que acreditamos ser real – e eis aqui o

tema do documentário, quando nos apresenta o famoso

―Mito da Caverna‖. Mais do que isto, essa não é uma

mera curiosidade passageira, mas uma curiosidade que

lateja, que não admite uma resposta única, mas

permanece sempre aberta à reflexão.

Vamos então estimular essa curiosidade nos alunos,

atiçá-los a ver as coisas de um outro jeito, incentivando o

questionamento — vamos permitir que os alunos

encasquetem: manter a pergunta latejante na cabeça. A

eles, valem as palavras de Rainer Maria Rilke ao jovem

poeta Franz Xaver Kappus:

“Não busque por enquanto respostas que não

lhe podem ser dadas, porque não as poderia

viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo.

Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois,

aos poucos, sem que o perceba, num dia

longínquo, consiga viver a resposta.”

[Rainer Maria RILKE. Cartas a um jovem poeta/A Canção de

Amor e de Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke. Porto

Alegre, Globo, 11ªed, 1983. Tradução de Paulo Rónai e

Cecília Meireles.]

Page 2: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

2

Esclarecida a proposta de trabalho, podemos agora dar

sugestões de como fazer. Em primeiro lugar, cumpre

problematizarmos com os alunos a própria noção de

―pergunta‖, tal como fizemos nesta introdução. Embora o

vídeo-documentário trate mais especificamente da

Filosofia, pretendemos atentar para que essa ―pergunta

filosófica‖ está presente também nas demais disciplinas.

Portanto, os professores podem pensar em algumas

perguntas interessantes, instigantes e desafiadoras que,

em muitos casos, são as questões de fundo de suas

disciplinas. O passo seguinte será o de elaborar uma aula

expositiva bem intrigante sobre as boas perguntas da

disciplina de cada professor envolvido no projeto. Uma

fala inicial poder ser: ―Eu não sei exatamente como

responder a essa pergunta e vocês poderiam me ajudar a

tentar respondê-la‖. E, assim, cada professor mostraria

alguns encasquetamentos fundamentais proporcionados

pela busca ao conhecimento.

O que se segue são sugestões para cada uma das

disciplinas envolvidas, a saber, a própria Filosofia e

também História e Matemática.

Filosofia: O método socrático

O ponto de partida é propriamente o vídeo-documentário.

A partir dele, nas aulas de Filosofia, o professor poderá

aprofundar a discussão sobre o chamado método

socrático (a maiêutica). Sócrates dirige a seus

interlocutores perguntas – põe em exame o que disse

seu interlocutor, se isso que ele disse era propriamente

que ele pretendia dizer. Há, com efeito, uma espécie de

descompasso entre o que dizemos e o que pretendemos

dizer. É bastante comum essa situação entre nós, de não

encontrarmos as palavras certas para dizer aquilo que

queremos dizer, e ao tentarmos dizer, o que é dito parece

contraditar com o que foi pensado.

O documentário alude ainda a uma situação estranha:

por vezes, quando dizemos algo, expressamos um

pensamento que não foi pensado – ou seja, que as

palavras expressam um pensamento do qual nem nos

demos conta. O episódio a que nos referimos aqui, no

documentário, dramatizado, é o diálogo de Sócrates com

Trasímaco, uma célebre passagem do Livro I da

República de Platão. As perguntas de Sócrates provocam

seu interlocutor a denunciar ele próprio um conteúdo que

não estava pensado que, ao vir à luz, contradita o que

antes havia se dito. Dito e contradito – eis a contradição,

que põe em xeque todo o discurso do interlocutor.

*

Em um primeiro momento, para que os alunos percebam

como é que o método funciona, pode-se propor aos

alunos uma reflexão sobre palavras que falamos

usualmente querendo dizer coisas parecidas ou até

querendo dizer a mesma coisa. É que as palavras nos

ocorrem sem muito pensar. Porque aprendemos a nossa

língua quando pequenos, ela parece fazer parte da

gente; estamos tão habituados a ela que ela nos parece

tão familiar, tão natural. E assim, não pensamos muito

para falar: as palavras nos ocorrem espontaneamente,

saem da boca sem titubeios, sem vacilar.

A título de exemplo, consideremos então algumas dessas

palavras. Na nossa linguagem ―natural‖ — e repare que

agora usamos as ―aspas‖—, usamos natural, comum e

normal num mesmo sentido. Falamos que é natural que

almocemos por volta do meio-dia, querendo dizer que é

comum que o almoço ocorra ao meio-dia. Falamos até

que é normal almoçarmos ao meio-dia. Mas, ao falar

assim, dizemos três coisas bastante diferentes, porque

natural, comum e normal não dizem a mesma coisa.

Cuidemos assim: a palavra natural só usaremos quando

nos referirmos à natureza; são palavras que podemos

facilmente associar, uma deriva da outra e dizem-se uma

em relação a outra: tudo que existe na natureza e por

natureza dizemos que é natural.

Natural em nós é sentir fome quando ficamos um tempo

sem comer. Bichos também sentem fome, e isto é

natural. Ora, eles só comem (ou, se quisermos:

―almoçam‖) quando sentem fome. Por que é que seria

natural almoçar ao meio-dia, se nem sempre é ao meio-

dia que sentimos fome? É natural sentir fome e é natural

que busquemos o que comer quando sentimos fome – e

não necessariamente ao meio-dia.

O efeito desse raciocínio nos alunos é devastador:

―Nossa! Como é que eu nunca tinha pensado nisso

antes?‖ Assim, aquilo que parecia ser natural deixa de

ser.

Não podemos considerar natural almoçar ao meio-dia,

tampouco é natural que andemos vestidos ou que carros

passem no sinal vermelho. Os exemplos seguem ao

infinito, de coisas que (note o tempo verbal que aqui e

agora empregaremos) considerávamos ―naturais‖.

Natural é simplesmente o que é da natureza, por

natureza.

Os alunos se sentirão inquietos para saber então o que é

comum e o que é normal, se nada disso é natural. Uma

pergunta seria: ―a que palavra vocês associam a palavra

comum? Natural associamos a natureza. E comum?‖

Page 3: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

3

Comum é palavra que também podemos associar

facilmente a outra derivada sua, comunidade. Então, o

que é comum nesta comunidade não é comum à outra

comunidade. É comum que homens andem de saias – na

Escócia – mas não é comum que andem de saias – no

Brasil. Perceber que a palavra comum sempre nos

remete a relacionar à comunidade da qual estamos

falando – enquanto natural é algo mais genérico, que

vale para toda a natureza. É bom voltar aos exemplos

anteriores, para que os alunos percebam como – de

pergunta em pergunta – tudo muda de sentido. É comum

almoçarmos ao meio-dia? É comum que carros

atravessem o sinal vermelho? E por aí vai.

Por fim, chegamos à palavra normal – normalidade,

norma. Aquilo que é normal é o que está conforme a

norma. Pode até ser comum que carros atravessem o

sinal vermelho, mas isso não é normal, ou não deve ser

considerado como tal. Não é tão comum que consigamos

almoçar ao meio-dia, em meio ao corre-corre do dia-a-dia.

Mas é o normal – que os horários (para entrar no

trabalho, por exemplo) são definidos por esta ―norma‖,

que nem sempre aparece expressa, mas uma norma que

é tácita. — E os alunos ficarão se perguntando afinal se

isso ou aquilo é natural, comum ou normal.

Se o leitor acompanhou o raciocínio, e tanto melhor que

nunca tivesse pensado nisso antes, deve se sentir

―admirado‖. Pois este mexer com o significado das

palavras foi já um exercício de Filosofia – sobre os

conceitos com os quais sempre lidamos na nossa

linguagem usual, mas nem sempre nos damos conta de

que são conceitos. Ao percebê-los, foi como por em

xeque alguns dos nossos fundamentos aos quais não

dávamos muita importância.

O exemplo, aqui, tampouco foi aleatório. Com efeito, os

termos natural, comum e normal repercutem na História

da Filosofia, desde a Grécia Antiga, quando, de um lado

os primeiros filósofos, dito pré-socráticos, tomarão a

natureza (phýsis) como alvo de suas preocupações e, de

outro, os sofistas adotarão o relativismo (em que se pese

aí as comunidades em jogo, isto é, o que é mais ‗comum‘

e portanto considerado assim verdadeiro ou ‗normal‘).

Além disso, tais termos permitem também o diálogo com

as demais disciplinas, das ciências naturais – Física,

Química, Biologia e, no rasto de Pitágoras, a Matemática

– até as ciências humanas, em que entre o que é comum

e o que é normal (como exercício de poder), todo mundo

se confunde.

Ainda como sugestão de trabalho e para melhor ilustrar o

que foi dito há pouco, tomemos por exemplo o caso da

escravidão dos negros no Brasil. A condição ―ser negro‖ é

natural enquanto a condição de escravo é normal (se por

isso entendermos o exercício de poder do homem branco

sobre o negro através de uma ―norma‖). Por outro lado, o

branco europeu é o comum, enquanto negro é incomum.

Como então o que é incomum se torna anormal (e que

assim pode ser alienado, escravizado)? Quais as relações

e confusões que podemos notar entre os conceitos

natural, comum e normal no caso da escravidão?

Ainda a Filosofia: O “Mito da Caverna”

É de grande alcance o trabalho com o ―Mito da Caverna‖

de Platão, ao qual o documentário faz uma boa

dramatização. Trata-se de um dos textos mais

conhecidos de toda a História da Filosofia, que recebeu

inumeráveis adaptações e versões. Seja como for, o Mito

da Caverna forma uma imagem do que é a Filosofia, mas

não só: tem a ver também com toda a forma de

conhecimento quando desafia aquilo em que

acreditamos e subverte nossas crenças. É por causa

disto a admiração da qual falávamos.

Em que acreditar? Por que acreditar nisto e não naquilo?

Afinal, o que é a realidade? É esta na qual acreditamos?

Por quais critérios definimos o que é real e verdadeiro? E

alcançar o real, mais do que nele acreditar, é conhecê-lo.

E se o real não for nada daquilo em que acreditamos?

Tais são as perguntas que o ―Mito da Caverna‖ suscita.

A primeira reflexão que propomos em alguma atividade

com os alunos é que pensem a respeito destas

perguntas que enunciamos há pouco. De um modo geral,

poderemos esperar como respostas dos alunos

afirmações como ―é real aquilo que é ‗concreto‘, aquilo

que eu posso ver, tocar, sentir…‖. Neste sentido, o

critério que estabelece o que é real seriam as sensações.

Poderíamos então dirigir aos alunos novas perguntas,

como as que se seguem: Mas será que não

consideramos também real aquilo que ouvimos falar, a

depender de quem fale? Não acreditamos, por exemplo,

nas imagens que vemos na televisão e no que nos diz o

apresentador do jornal por confiarmos em sua palavra?

Por acreditarmos, enfim, que o jornal que se apresenta

na tevê deve nos dizer a verdade dos fatos? Não

acreditamos, por exemplo, na palavra do professor, por

acreditarmos que ele deve saber a verdade? Pois há

ainda outro critério para estabelecermos o que é real, ou

que acreditamos ser o real, que seria a confiança

naquele que fala, por acreditarmos em sua autoridade.

Page 4: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

4

Mas também não perderíamos essa confiança, caso o

jornal mentisse descaradamente, ou que assim

julgássemos? Ou, no caso do professor que dissesse

coisas que contrariam o que sempre se aprendeu na

escola, e julgássemos a sua fala como falsa, também

não perderíamos confiança em sua autoridade? Outro

critério, portanto, seria o nosso próprio julgamento,

daquilo que nos parece ser real, isto é, verossímil, a

partir dos critérios de que falamos antes e mais este:

conforme aquilo que estamos mais habituados, mais

familiarizados, acostumados, aquilo que nos parece mais

―comum‖? Dissemos: comum, de acordo com nossa

comunidade. E não julgávamos que o que é comum é

também natural?

Percebe-se, na última pergunta lançada, como é o nosso

próprio julgamento que é posto em dúvida – o que há de

causar uma ―admiração vertiginosa‖, sem dúvida! – e

assim retornamos mais uma vez às perguntas iniciais.

Um segundo passo para o trabalho em Filosofia seria o

de partir para a leitura do próprio texto do ―Mito da

Caverna‖ para tentarmos identificar ali como Platão

apresenta-nos a questão, de como a realidade,

considerada primeiramente como tudo aquilo que pode

ser visto na caverna, muda completamente quando

aquele que estava acostumado com as sombras da

caverna, que as tomava como reais (como a única

realidade), é forçado a sair da caverna e ver o que há

fora da caverna – ver os objetos dos quais conhecia

apenas as sombras projetadas na parede da caverna.

Como já dissemos, o ―Mito da Caverna‖ ganhou várias

adaptações. Queremos chamar a atenção para duas

delas. A primeira é uma história em quadrinhos,

―Sombras da vida‖, de autoria de Mauricio de Souza, em

que o personagem Piteco envolve-se num enredo

baseado no texto de Platão2. A partir dela, os alunos

poderão fazer as comparações com o texto. — Há no

entanto uma ressalva: a versão acaba por identificar as

sombras da caverna com a televisão. Se isto é de menor

alcance em relação à teoria de Platão, para quem as

sombras representam o próprio mundo visível, dos

fenômenos, das aparências, tal como nos aparecem – no

entanto pode ser bastante interessante associar tais

sombras aos produtos da indústria cultural, cujo maior

ícone é a televisão3.

2 A história em quadrinhos encontra-se disponível na internet, neste

link. 3 Em 2005, em outro programa ―Sala de professor‖ da TV Escola, sobre

o documentário ―A Vida na TV‖, as fichas que resultaram do trabalho

nos servem de orientação para o trabalho que aqui sugerimos a partir

da leitura da história em quadrinhos de Maurício de Souza, em especial

a ficha desenvolvida pelo professor Eduardo Brandão, de Filosofia,

disponível neste link.

A outra sugestão – aliás, já bastante difundida entre os

professores – é a exibição do filme The Matrix (1999),

cujo enredo tem forte inspiração no ―Mito da Caverna‖. O

professor poderá formular questões como as que já nos

referimos – o que é a realidade e quais critérios pelos

quais julgamos algo como real – de modo a orientar os

alunos para a leitura do filme. Estaríamos nós na Matrix?

Uma última sugestão: o vídeo-documentário faz alusão

algumas vezes a Descartes. Guardada a devida distância

que a Modernidade tem em relação à Antiguidade, os

argumentos das Meditações Cartesianas e do Discurso

do Método podem ser mobilizados pelo professor, seja

apenas na sua reconstituição oral, seja através de

excertos do texto, como desdobramentos do ―Mito da

Caverna‖.

Diz Descartes, sobre as sensações, que não se deve

confiar em quem alguma vez nos enganou – e assim

estabelece a dúvida sobre a realidade de nossas

sensações e do mundo que considerávamos tão real

quanto pudéssemos apreendê-lo através de nossos

sentidos. A dúvida metódica levará a por tudo em xeque

– pois tudo se torna duvidoso. O argumento do sonho:

Como diferenciar o sonho da vigília, se enquanto

sonhamos acreditamos que aquilo é real? E quando

acordamos, também acreditamos que é real – mas há

diferença entre sonho e realidade? E cá estamos de volta

à Matrix. — A única certeza que lhe restará é que é ele

mesmo quem duvida, é ele quem pergunta afinal sobre a

realidade das coisas, é ele quem cogita de tudo ser

apenas uma ilusão. Cogito ergo sum: penso, logo existo

– eis a única certeza que resta, que é agora a primeira

certeza para reconstituir todo edifício do saber humano4.

4 Sugestões de leituras e consultas:

PLATÃO. A República [livro VII]. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

Coleção ―Os Pensadores‖. p.225-229.

Há inúmeras traduções disponíveis do ―Mito da Caverna‖, também

conhecido por ―Alegoria da Caverna‖. Entre elas, sugerimos apenas

uma, cujo texto nos pareceu mais acessível, que assim recomendamos,

publicada em uma ótima antologia de textos da História da Filosofia, a

saber: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos pré-

socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2ªed., 2000,

pp. 39-42. [Tradução de Lucy Magalhães]

Vários dos diálogos de Platão encontram-se também disponíveis na

internet no site http://www.dominiopublico.gov.br/ , como o Teeteto

e a Apologia de Sócrates.

Comentadores de Platão:

BOLZANI FILHO, Roberto. ―Platão: verdade e Justiça na cidade‖, in

FIGUEIREDO, Vinicius (org.). Seis Filósofos na Sala de Aula. São

Paulo: Berlendis e Vertecchia Ed., 2006.

CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos

a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

WATANABE, Lygia A. Platão por mitos e hipóteses. São Paulo: Moderna,

1995. (Coleção Logos) [Há também uma boa antologia de textos,

inclusive o ―Mito da Caverna‖.]

Sobre DESCARTES. Cf. LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Descartes: a

metafísica da Modernidade. São Paulo: Moderna, 1993. (Coleção

Logos) [Há uma ótima antologia de textos de Descartes, dos

argumentos a que nos referimos]

Page 5: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

5

História: Tempo para perguntar

A História se dá no tempo. Esse é um pressuposto

fundamental do estudo histórico, pelo qual supomos ser

o tempo algo em que ocorrem os fatos em uma

sequencia, isto é, cronologicamente. Há uma ideia de

continuidade – o tempo seria então contínuo, que segue

invariavelmente seu curso, de ontem para hoje e de hoje

para amanhã.

Silenciosamente, assumimos essa ideia sobre o tempo

como verdadeira, ―natural‖. Todavia, se atentarmos um

tanto mais, poderemos começar a nos perguntar se o

tempo é isso mesmo. Afinal de contas: o que é o tempo?

O tempo caminha sempre para frente? Não volta para

trás? Mas — quando nos lembramos de algo, o primeiro

beijo, por exemplo, não voltamos àquele tempo? E uma

palavra puxa outra e já estamos às voltas com um

conceito muito caro aos historiadores: a memória.

E falando de voltas que o mundo dá e o tempo também,

podemos falar de tempo cíclico. Na natureza, de um

modo geral, reparem que as coisas ocorrem em ciclos. As

estações do ano, que ano-a-ano se repetem,

ciclicamente. A semente, que gera uma árvore, que gera

frutos, que geram novas sementes, que geram novas

árvores… E, se o tempo é cíclico, serve para medir o quê?

E se tempo vai e volta, o tempo é então uma repetição?

Mas o tempo, já não havíamos dito, ele não ia sempre

para frente?

O tempo também dura, ou melhor, o tempo passa de

maneira diferente. Responda, então, o que demora mais

para passar: uma hora namorando na praça ou quinze

minutos decorando texto para a prova de História? O

tempo não dura sempre a mesma coisa? Então, ele tem

descontinuidade? Ele varia em seu curso?

Tais perguntas querem fazer com que não tomemos o

tempo como coisa tão natural – algo que de tão

―natural‖, não chegamos a pensar nele. Com efeito,

temos uma apreensão do tempo que foi construída ao

longo do tempo… do tempo histórico, do tempo que os

homens criam para si mesmos. O tempo é então uma

criação. — Dito assim, os alunos tomarão um susto,

ficarão espantados, admirados. O que é o tempo, afinal,

isto do qual dizemos que nele ocorrem fatos – a História?

Sobre o Filme The Matrix. Cf. IRWIN, William et al. Matrix: Bem-Vindo

ao Deserto do Real. São Paulo: Madras, 2003; e também CHAUI,

Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 13ªed., 2003. [Em

especial no capítulo introdutório, quando a autora se refere diretamente

ao filme The Matrix.]

Se nos imaginarmos sem relógios, nenhum relógio, seja

da igreja, das ruas ou dos pulsos, não tomaríamos uma

outra percepção do tempo? Outra fruição do tempo? Ou,

não nos perderíamos no tempo sem os relógios?

Imaginemos então que advento foi este, a invenção do

relógio! Não o relógio de sol, que expressa o ciclo do sol

ao longo do dia, mas este instrumento que marca

matematicamente o tempo, em horas, minutos,

segundos, sempre iguais, contínuos… Imaginem mais, a

invenção do relógio de pulso o quanto significou para os

homens na relação vivida com o tempo… este

relogiozinho, grilhão das horas, das nossas horas, presos

que somos a elas, hora para ir trabalhar, hora para

almoçar, hora para voltar ao trabalho, trabalho, e depois,

que hora que passa mais rápida a que chegamos em

casa, jantamos, dormimos e voltamos a acordar!

O tempo é também dinheiro e há outros exemplos a

explicar. Mas, sempre dá um tempinho de lembrar que,

na sociedade industrial, tempo virou dinheiro, pois, ao

controlar o tempo passou-se a se remunerar a quem só

tinha a própria força de trabalho para vender, isto é,

estes que vendem o seu tempo-livre em troca de um

salário, remunerando o tempo de uso da força de

trabalho.

Eis então mais de uma ideia sobre o que o tempo é. Qual

delas adotamos para contar a história? Qual delas

poderemos adotar? Imaginem as diferentes abordagens

para aquilo que chamamos de ―fatos‖ quando mudamos

a noção de tempo. Perguntar-se assim é colocar em

questão o sentido da historiografia – disto que se estuda

em História.

Outra pergunta que nos encaminha para as mesmas

questões fundamentais do estudo de História é pensar

em quem são os seus ―protagonistas‖, por assim dizer.

Ou, antes, quem é o sujeito da História? São os grandes

personagens ou é cada um de nós? É a sociedade ou são

os grupos sociais? É o presidente da República ou são os

eleitores que votaram nele? É a Gisele Bündchen ou são

as pessoas que compram o que ela anuncia? É o Bush

ou são seguidores da Al Qaeda que querem matá-lo? São

todos esses que foram citados ou a História já está

escrita e, simplesmente, nós seguimos o nosso destino?

Perceber que a História – ou mais precisamente, os

―fatos‖ que são narrados e analisados no seu estudo –

mudam conforme a resposta que se dê a essa pergunta.

A História é contada a partir de um ponto de vista que é

bem determinado, embora nem sempre isso fique muito

claro. Os alunos tendem a pensar em uma certa

―objetividade‖ – que as coisas aconteceram tal e qual

está sendo narrada – o que, na narrativa, há muito de

―subjetivo‖, isto é, das ―escolhas‖ que o historiador faz,

das respostas que dá, ainda que provisoriamente, a

perguntas como as que formulamos há pouco.

Page 6: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

6

Ainda neste mesmo caminho, poderiam contestar tal

subjetividade, afirmando que a história é objetiva, pois é

comprovada a partir de documentos. Mas, como

podemos confiar nos documentos?

É por meio deles que conseguimos acessar o passado,

reconstruí-lo; são os elementos que nos permitem entrar

em contato com o que já aconteceu, são como lentes. E,

como tais, são os instrumentos que nos fazem olhar para

o passado. Partindo dessa comparação com o olhar e,

por extensão, com todos os nossos sentidos, são eles

que nos conectam com aquilo que se passa fora de nós –

o mundo, a realidade. Mas tais lentes podem tanto deixar

mais nítidos quanto podem distorcer o que percebemos

por meio deles, como também nossos sentidos podem

nos enganar.

E aí uma nova pergunta: os instrumentos que usamos

para conhecer são confiáveis? Como será que funcionam

esses instrumentos? Aqueles que sabem disso, podem

manipular estes instrumentos e com isso podem também

nos enganar? Pode-se fazer ver o que não está? E calar o

que foi dito? E fazer falar algo que tampouco foi ouvido?

E aqui a brincadeira, muito séria, deste perguntar pode

se abrir para a Biologia e o estudo dos sentidos, que,

aliás, dizem agora que são sete; para a Física e suas

geometrias óticas, tempos relativísticos e espaços

curvos; para a Química e os sabores artificiais e a

incerteza quântica; para as Artes e os desvios do olhar5.

5 Sugestões de leituras e consultas:

ELIAS, Norbert. Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 1994.

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

CHAUI, Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São

Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000.

HOBSBAWM, E. e RANGER, T. A invenção da tradição. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1984. [Tradução de Celina Cardim Cavalcante]

GOULD, Stephen Jay. Seta do tempo, ciclo do tempo: mito e metáfora

na descoberta do tempo geológico. São Paulo: Companhia das Letras,

1991.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e

Tecnológica. ―Conhecimentos de História‖ in Parâmetros Curriculares

Nacionais do Ensino Médio – Ciências Humanas e sua tecnologias.

Brasília: MEC/SEMT, 2000.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e

Tecnológica. Orientações Curriculares Nacionais do Ensino Médio –

Ciências Humanas e sua tecnologias. Brasília: MEC/SEMT, 2006.

Matemática: Pergunta infinita

Na matemática não faltam exemplos de situações que

trabalham com conceitos abstratos tais como o infinito

ou o zero, e que muitas vezes são explorados de forma

superficial. Vejamos algumas situações em que a ideia

do infinito está presente na matemática, bem como os

problemas suscitados por uma análise superficial sobre a

natureza do infinito6.

Situação 1

Seja na sétima série ou no primeiro ano do ensino médio,

em algum momento o aluno aprenderá a determinar

frações geratrizes a partir da representação decimal dos

números. A passagem de ―decimais finitos‖ para a fração

não trás maiores desafios porque fundamentalmente

apóia-se na transposição quase que automática da

―língua materna‖ para a linguagem das frações, como por

exemplo:

Cinco décimos:

Duzentos e setenta e quatro centésimos:

No caso das dízimas periódicas, o procedimento que

normalmente se adota é o de utilizar recursos algébricos

para eliminar o período (parte que se repete do número).

Vejamos como isso se dá através da dízima 0,333...

I.

Multiplicamos ambos os lados da igualdade por 10:

II.

Subtraímos (I) de (II) membro a membro:

III.

IV.

O ―truque‖ usado é muito convincente e, com alguns

ajustes, pode ser usado para a determinação de

qualquer fração geratriz de dízimas periódicas. Ocorre,

porém, que o ―truque‖ só funciona porque estamos

assumindo uma ideia muito forte sobre conjuntos de

infinitos elementos que nem sempre é devidamente

explorada:

“Se tirarmos um elemento de um conjunto com

infinitos elementos, ainda assim ficaremos

com um conjunto de infinitos elementos.”

6 Sugestões de leituras e consultas:

COURANT, R., ROBBINS, H. O que é matemática? Rio de Janeiro: Ed.

Ciência Moderna, 2000.

NIVEN, Ivan. Números: racionais e irracionais. Rio de Janeiro:

Sociedade Brasileira de Matemática, 1984.

RADICE, Lucio Lombardo. O Infinito. Lisboa: Editora Notícias, 1981.

Page 7: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

7

Se esse pressuposto não for aceito, perderíamos a

garantia sobre a qual se apoia a passagem (III) do nosso

―truque‖. A rigor, 0,333... é um número com infinitos

algarismos 3 à direita da vírgula, ao passo que 3,333...

possui ―um algarismo a menos à direita da vírgula‖. Na

prática, como tanto em um caso como outro temos

infinitos algarismos idênticos à direita da vírgula, mesmo

com a ―retirada‖ de um deles ainda assim ficamos com

infinitos algarismos 3 à direita da vírgula em 3,333..., o

que nos permite dizer que o resultado de

(como temos períodos idênticos à direita da vírgula,

quando subtraímos um do outro eles são eliminados).

Note que a estratégia algébrica amplamente usada na

determinação de frações geratrizes de dízimas periódicas

exige a seguinte premissa acerca dos conjuntos com

infinitos elementos:

Retirar um elemento de um conjunto com

infinitos elementos produz um conjunto com

infinitos elementos

Situação 2

Na figura ao lado, ABC é um triângulo retângulo em A, e A’ e C’ são pontos médios, respectivamente, dos

segmentos e .

Sabe-se, da geometria básica, que nessas condições a medida do segmento é a metade da

medida do segmento .

A pergunta que propomos agora é a seguinte:

Dado que , quem possui mais pontos, o segmento ou o segmento

?

Sabemos que ambos segmentos têm infinitos pontos, contudo, um desafio interessante é o de propor uma estratégia para

verificar a possibilidade de se fazer uma correspondência ―um a um‖ entre os elementos de ambos os conjuntos (usando o

vocabulário da matemática: correspondência bijetiva, que significa dizer que a cada ponto P de faz-se corresponder

um único ponto M de , e isso ocorre para todos os pontos de ).

Observemos a figura abaixo e vejamos como isso é possível.

Os dois conjuntos são, portanto, equivalentes, apesar de

que , de onde podemos concluir que o todo

pode ser equivalente à parte.

Note que esse exemplo aponta com clareza para o fato

de que o conceito de infinito exige o abandono de certas

verdades fundamentais cuja evidência a vida cotidiana

dos conjuntos finitos nos impõe.

Situação 3

Número primo é aquele que é divisível apenas por 1 e

por ele mesmo, excetuando-se o número 1 que não é

definido como primo. Portanto, o conjunto dos números

primos é . Uma pergunta que

naturalmente nos ocorre é: Será que existem infinitos

números primos?

Para aqueles que acreditam na intuição como um

método para se chegar a verdades matemáticas, é

provável que a resposta seja ―SIM, existem infinitos

números primos‖ já que existem infinitos números

naturais, e o conjunto dos números primos é um

subconjunto dos naturais.

Se sua resposta foi essa, o que você teria a dizer sobre o

seguinte fato ilustrado na tabela que se segue?

Page 8: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

8

Entre os números 1 e 1000 Existem 168 números primos

Entre os números 1000 e 2000 Existem 135 números primos

Entre os números 2000 e 3000 Existem 127 números primos

Entre os números 3000 e 4000 Existem 120 números primos

Entre os números 4000 e 5000 Existem 119 números primos

Obs: e esteja certo que para um certo intervalo de 1000 números

NÃO HAVERÁ PRIMO ALGUM CONTIDO NELE

Sua opinião mudou depois de analisar a tabela?

Pois bem, a matemática é uma ciência que apoia-se

fundamentalmente na lógica dedutiva. O problema que

acabamos de analisar foi investigado, e solucionado por

volta de 300 a.C por Euclides, um dos precursores do uso

sistemático do pensamento dedutivo.

Apesar das evidências da tabela indicarem que o

conjunto dos números primos é finito, Euclides

demonstrou que ele é infinito, usando para isso uma

técnica de demonstração chamada redução ao absurdo,

que consiste em:

1º) parte-se de uma hipótese que se quer demonstrar;

2º) apresenta-se alguma contradição lógica que decorre

do uso em algum momento da hipótese;

3º) Conclui-se a negação da hipótese.

Vejamos a demonstração de Euclides, considerada uma

das mais belas da matemática.

Vamos supor que exista um número finito de números

primos. Se for assim, então deve existir um último

número primo. Vamos chamá-lo de p. A sequencia de

números primos até o p é a seguinte:

2,3,5,7,11,13,17,19 p

Depois disto, Euclides imaginou um número composto

muito grande formado pelo produto de todos os números

primos, do primeiro ao último, ou seja, um ―numerão‖ N,

assim:

Está claro que o número N é um número composto, pois

é divisível por 2, por 3, 5, 7, 11, e assim por diante, e

finalmente é divisível por p, até aqui considerado o

―último‖ número primo.

Euclides não parou aí, pensou então num número ainda

maior que N, pensou no número M assim formado.

Ora, pensou Euclides, M não pode ser múltiplo de 2.

Observe que

é um número impar, quando dividido por 2 dá resto 1.

Também não é múltiplo de 3, dá resto 1 quando dividido

por 3, pelo mesmo motivo:

Usando um raciocínio semelhante concluiu que M não

pode ser múltiplo de 5, de 7, 11, 13, 17, enfim, não é

divisível por nenhum número primo menor ou igual a p.

Portanto o novo número

é um número primo ainda

maior que p.

Frente a esta contradição, Euclides concluiu que não

pode haver um último número primo, ou seja, que sua

hipóteses inicial não poderia ser verdadeira, provou

então que o número de primos é infinito (negação da

hipótese inicial).

Situação 4

No estudo das progressões geométricas, sabemos que as

série de infinitos elementos e razão entre –1 e 1 são

convergentes, o que quer dizer que é possível calcular a

soma dos seus infinitos elementos. O exemplo clássico

disso é a soma

Normalmente trabalha-se a determinação do valor da

soma a partir da fórmula de soma dos infinitos termos de

uma PG de razão entre –1 e 1, contudo, seu uso talvez

seja menos convincente do que a busca de imagens que

possam justificar essa soma. Um caminho possível para

isso é o de fazer infinitas partições de ―metades‖ em um

segmento de comprimento 1 unidade, como o que se

segue:

Note que a soma das infinitas partições será sempre 1.

Page 9: Ensinando e aprendendo a fazer perguntas

9

Tais são algumas das questões de fundo da matemática.

Uma abordagem interessante em matemática é a

apresentação de certos paradoxos lógicos, como o

Paradoxo de Zenão – cuja uma das soluções possíveis,

matemática, é o que foi apresentado na Situação 4, há

pouco.

Zenão foi filósofo, discípulo de Parmênides, para quem

as transformações que podemos perceber não

passariam de ilusão. Para defender as teses de

Parmênides, Zenão elabora uma série de paradoxos para

demonstrar o absurdo que é aceitarmos que há

verdadeiramente alguma transformação – que haja

movimento. O movimento é uma ilusão.

Este é um paradoxo clássico e bastante conhecido, a do

arqueiro que lança uma flecha que nunca chegará ao

alvo.

Ele, do ponto em que está, que chamaremos de 0 (zero),

lança a flecha, e vemos que ela alcança o alvo, em um

ponto 1, a uma distância 1. No entanto, isto é impossível.

Impossível que a flecha tenha alcançado o alvo, embora

seja isto mesmo o que qualquer um poderia observar.

Entretanto, contrariamente aos nossos sentidos, a flecha

não chega nunca ao alvo ou sequer consegue sair do

ponto 0.

Por que? Não é necessário que, antes de chegar ao

ponto 1, a flecha tem que necessariamente passar pela

metade da sua trajetória? Antes, tem que passar pelo

ponto

. Mas antes disso, não tem que passar pela

metade da metade do caminho, no ponto

? E antes, pelo

ponto

? E antes ainda,

? Ora, não podemos sempre

pensar que podemos dividir ao meio qualquer que seja o

trajeto, ou a fração do trajeto? Pois a trajetória, entre 0 e

1, possui infinitos pontos – pois poderemos sempre

continuar a dividir por dois distância que separa dois

pontos. Não é assim?

Que a flecha gaste um tempo qualquer t de um ponto a

outro. Então, ela gastaria infinitos tempos t para

alcançar o alvo. Logo, a flecha nunca chega. E será difícil

reparar que ela consiga mesmo sair do lugar.

Única conclusão possível: o movimento não existe.

E a este paradoxo, os alunos respondem atônitos: como

é possível?! A matemática está errada, professor!‖.

Outros, mais pragmáticos, simplesmente saem andando

pela sala ou usam da ironia: ―Professor, se eu jogar meu

caderno na sua cabeça, ele nunca vai te alcançar, não

é?‖

Atividades com os alunos

Com os exemplos a que nos referimos, pretendemos

apresentar possíveis caminhos em cada uma das

disciplinas para a elaboração de perguntas cujo sentido é

o questionamento dos fundamentos e princípios que por

vezes aceitamos sem muito pensar a respeito. A tarefa

aqui é, antes encontrar as respostas, mas o exercício da

dúvida, da reflexão, da pergunta.

Assim, motivados pelos exemplos e com o auxílio dos

professores, os alunos tentariam, então, elaborar

perguntas também, escolhendo algum tema que seja

pertinente a alguma das disciplinas envolvidas na

atividade.

Sugerimos que a pergunta seja elaborada por grupos

pequenos (até 5 alunos) e que haja um

acompanhamento por parte dos professores, para avaliar

o alcance das perguntas e proporcionar uma melhor

qualidade para a tarefa dos alunos. Note-se que, durante

o processo de elaboração da pergunta, será necessária

uma série de pesquisas simples e básicas: consulta a

dicionários, a enciclopédias, a livros didáticos; buscas

pela internet; entrevistas com professores e pessoas

entendidas no assunto em pauta.

Eventualmente, caso as perguntas que os professores

formularam, se foram capazes de causar ―admiração‖

nos alunos, pode-se propor que eles elaborem uma

reflexão – ou seja, que possam formular mais perguntas

e as tentativas de resposta – sobre a mesma questão.

Elaborada a pergunta pelo grupo de alunos, podemos

passar a uma fase individual: a produção de um texto

que seja uma tentativa de resposta, ou que ao menos se

apresente as dificuldades de encontrá-la – os prós e

contras de cada uma das respostas possíveis a que

puderam chegar, mas sem que pudessem ter resolvido

por uma ou outra. A discussão pode ser em grupo, os

alunos podem trocar informações e argumentos, mas é

interessante que haja uma elaboração individual de

registro.

Assim fecharíamos um ciclo, começamos discutindo as

perguntas de Sócrates, encaminhamos exemplos de

perguntas acerca de nossa disciplinas, aguçamos a

curiosidade dos alunos, incentivamos perguntas próprias

dos alunos e tentamos respostas. Partimos da atividade

coletiva para a elaboração individual e, para voltar ao

coletivo, precisamos pensar numa socialização dos

registros, em um encontro para divulgar as perguntas e

as tentativas de respostas. E talvez o encasquetamento,

mesmo depois de tudo isso, ainda permaneça. E, não é

assim a aventura do conhecimento?