ensaios de terrorismo. história oral do ccc

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    Copyright © 2014 Gustavo Esteves Lopes

    Projeto gráfico, preparação dos originaise editoração eletrônica: Editora Pontocom

    Editora Pontocom

    Conselho Editorial 

     José Carlos Sebe Bom Meihy (USP)Muniz Ferreira (UFRRJ)

    Pablo Iglesias Magalhães (UFBA)Zeila de Brito Fabri Demartini (USP)

    Zilda Márcia Grícoli Iokoi (USP)

    Coordenação Editorial André Gattaz

    L864e Lopes, Gustavo Esteves

    Ensaios de terrorismo: história oral da atuação doComando de Caça aos Comunistas / Gustavo EstevesLopes.

    Salvador: Editora Pontocom, 2014. – (SérieAcadêmica, 7)298 p.: ; 21 cm.

    Inclui bibliografiaISBN: 978-85-66048-38-4‘Modo de Acesso: World Wide Web:

    1. História oral. 2. Terrorismo - Brasil - História. 3.Regime Militar - Brasil - História. I. Título.

    CDD: B981.063CDU: 94(81)

    CIP - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

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    Editora PontocomColeção NEHO-USP 

    O  N N N N N úcl úcl úcl úcl úcl eo de Estudos em História Or eo de Estudos em História Or eo de Estudos em História Or eo de Estudos em História Or eo de Estudos em História Or al al al al al dadadadada U U U U U ni ni ni ni ni v v v v v ersidaersidaersidaersidaersidade de de de de de de de de de São P São P São P São P São P aaaaaul ul ul ul ul o (NEHO-U o (NEHO-U o (NEHO-U o (NEHO-U o (NEHO-U SP)SP)SP)SP)SP) foi fundado em 1991 e tem entre suas atribuições fomentar pesquisas sobre diversas manifesta- ções das oralidades. Trabalhando também com entrevistas, um

    dos compromissos básicos do NEHO consiste na devolução dos resultados. Como parte de uma proposta em que os entre- vistados são assumidos como colaboradores, o retorno do pro- duto transparente na passagem das gravações para o texto es- crito é tido como parte essencial dos projetos. Fala-se, contudo,de maneiras plurais de devolução: aos próprios colaboradores que propiciaram a gravação, às comunidades que os abrigam

    e às formas de disponibilidade pública das peças. Há níveis de comprometimento, é importante ressaltar. Pactos são formula- dos, sempre supondo duas esferas de atenção: pessoal – dire- tamente vinculado ao entrevistado, que deve ter voz nas solu- ções de divulgação, e à comunidade – que abriga a experiênciana qual se inscreve o propósito do projeto em História Oral.

    A abertura de uma coleção de publicações de trabalhos ge- 

    rados ou de inspiração nos procedimentos do NEHO-USP deve ser vista como desdobramento natural do sentido proposto pe- los oralistas que professam as indicações do Núcleo. Isto im- 

     plica pensar que a percepção desenvolvida por esse grupo de  pesquisas demanda consequências que vão além do acúmulo de gravações ou de seus usos particulares – acadêmicos ou de mera curiosidade. Porque se percebe que a formulação de co- 

    nhecimentos gerada pelos contatos entre entrevistados e en- trevistadores é fruto de uma situação social, a publicação dos resultados é parte inerente à ética que ambienta o processo de 

     gravações como um todo. O cerne deste tipo de devolução 

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    contém implicações que extrapolam os limites estreitos da sa- 

    tisfação miúda dos relacionamentos entre quem dá a entre- vista e quem a colhe. Entendendo por ética o compromisso social mediado pelo acordo entre as partes, é para o geral,

     para a sociedade, que se dimensionam os fundamentos da His- tória Oral praticada pelo NEHO.

    Munidos destes compromissos, o NEHO-U NEHO-U NEHO-U NEHO-U NEHO-U SPSPSPSPSP e a Edi Edi Edi Edi Edi tor tor tor tor tor aaaaaP P P P P ononononontocomtocomtocomtocomtocom inauguram essa coleção de livros eletrônicos. São 

    dissertações, teses, artigos e outras peças de interesse que com-  põem a mostra. A disponibilidade destes textos visa superar a intimidade acadêmica e assim inscrever o trabalho do gru- 

     po em uma missão maior que qualifica a História Oral como braço de uma proposta que busca compreender para expli- car e explicar para transformar.

    Prof. Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy Núcleo de Estudos de História Oral - USP 

    OUTROS TÍTULOS DA COLEÇÃO NEHO-USP 

     Vanessa Paola Rojas Fernandez • História oral de chilenos emcampinas: dilemas da construção de identidade imigrante 

    André Gattaz • Do Líbano ao Brasil: história oral de imigrantes 

    Lourival dos Santos • O enegrecimento da Padroeira do Brasil: religião, racismo e identidade (1854-2004) 

    Marta Rovai • Osasco 1968: a greve no masculino e no feminino 

    André Gattaz • Braços da resistência: uma história oral daimigração espanhola

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    A dissertação de mestrado dediquei a meu avô e à minha filha.A presente publicação dedico a Cinthia, minha companheira.

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    Sumário

    Prefácio 13Apresentação 21

    PARTE I: PROPOSIÇÃOIntrodução 27Situação do assunto no ambiente bibliográfico geral 37Descrição da documentação escrita preexistente 55

    Material de imprensa 58Documentos policiais e militares 69Livros de memórias 77

    A pesquisa de campo 83Procedimentos em história oral 83Apresentação dos colaboradores 87

    PARTE II: NARRAÇÃO

    Paulo Azevedo Gonçalves dos Santos 95Gustavo Augusto de Carvalho Andrade 117Cassio Scatena 133Percival Menon Maricato 149Lauro Pacheco de Toledo Ferraz 157Renato Leonardo Martinelli 167

     José Roberto Batochio 179 José Celso Martinez Corrêa 187Gabriel Fernández Otamendí 209

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    Franklin Leopoldo e Silva 219Antonio Candido de Mello e Souza 231

    Elaine Farias Veloso Hirata 243

    PARTE III – COMPREENSÃO HISTORIOGRÁFICAIdeologias e culturas políticas: origem e atuação do CCC 251Memória e ressentimento 259Lugares de memória, memória de lugares 267

    Ensaios de terrorismo ou “o gosto pelo desgosto dos outros” 289Apontamentos Finais 295

    Referências bibliográficas 301Fontes impressas consultadas 312Arquivos, bibliotecas e instituições de ensino e pesquisa

     consultados 312

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    Prefácio

    por Marta Rovai*

    MARC BLOCH, EM APOLOGIA DA H ISTÓRIA, pedia que o historiador não sedeixasse hipnotizar por suas escolhas, a ponto de não mais conceberque outra tivesse sido possível. Hoje, em meio à disputa por versõesem torno dos fatos ocorridos durante a ditadura civil-militar brasilei-ra, seu apelo – não apenas científico, mas também ético – permanececomo alerta, exigindo que se garanta o espaço para a multiplicidadede leituras.

    Num contexto de justiça de transição, muitas “memórias sub-terrâneas” emergem para marcar posição, revelar agressões de todosos tipos e responsabilizar o Estado por seus feitos nos vinte anos doregime autoritário. Ao mesmo tempo, é possível perceber ausênciase silêncios ligados às pessoas e grupos que vivenciaram situaçõeslimite e querem se poupar e aos seus, para continuar vivendo; paraevitar culpas; ou mesmo pelo temor de não ser compreendido. O

    silêncio como direito de não lembrar, como escolha, para apagarlembranças indesejadas, não mexer na ferida.

    Percebe-se, ainda, diferentes formas de silenciamento, produzi-das pela arbitrariedade do Estado no passado, pela memória do ven-cedor, que encerra em espaços íntimos as lembranças do dolo; assimcomo a indiferença de quem não vivenciou o trauma, diante da dor

    * Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. ProfessoraAdjunta do Magistério Superior da Universidade Federal de Alfenas.Autora de Osasco 1968: a greve no masculino e no feminino (Salvador:Pontocom, 2013).

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    do outro. Ou a amnésia como dever ou apatia, alimentada pela au-sência de respostas jurídicas e institucionais sobre a abertura de ar-

    quivos e responsabilizações, sobre mortos, desaparecidos, enlouque-cidos ou esquecidos. O trabalho de luto coletivo, a fim de apaziguarnossa relação com o passado doloroso, foi-nos negado na medida emque a abertura ao futuro se deu à custa do apagamento dos rastros,dos documentos e dos crimes, e por uma lei de anistia que impediu odebate mais profundo.

    Por outro lado, a criação da Comissão Nacional da Verdade procu-

    rou garantir, ainda que de forma restrita, a tomada de palavra da-queles que durante anos sofreram a violência e foram negligencia-dos. Começa-se a mexer no dolo... Nesse processo de “acerto de contas”e de escolhas, cria-se um mito de resistência ao regime autoritário,como se essa postura fosse predominante na sociedade civil, duranteos vinte anos em que ele perdurou. Enquanto as vítimas da violênciaditatorial ganham espaço para falar, depois de tanto tempo silencia-

    das, corre-se o risco de silenciar ou esquecer agora os movimentoscivis que apoiaram o golpe e procuraram legitimá-lo. Para não admi-tir que eles existiram, para não responsabilizá-los ou para negar-lhessuas motivações como justas, silencia-se outra versão: a de que ogolpe, assim como o projeto e a organização do regime, não foramobra exclusiva dos militares, mas contaram com o apoio de simpati-zantes entre estudantes e intelectuais, além de empresários, jornalis-

    tas e instituições civis, por meio do IPES e do IBAD, da Igreja, doMovimento Anti-Comunista (MAC) ou ainda de associações femini-nas como a União Cívica Feminina ou a Liga da Mulher Democrática.

    Com o cuidado ético e escuta atenta, Gustavo Esteves Lopes feza escolha pela multiplicidade de vozes, evitando o silenciamento deinterpretações que não correspondessem ao imaginário de resistên-cia ao regime. Para isso, percorreu os caminhos da história oral para

    ouvir a experiência daqueles que foram perseguidos, mas tambémdos que perseguiram e trabalharam para que a ditadura prevalecesse.Terrorismo, neste trabalho, ganha sentido amplo, pois não se tratadas ações da esquerda, como defendia o Estado autoritário, mas de

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    uma militância de direita que atuou de forma brutal, clandestina, esobre a qual pouco se sabe. Para entender a origem de parte dela e suas

    motivações, superando certas ausências documentais, Lopes lapidoureferências nos impressos (como a revista Cruzeiro), nos relatóriospoliciais e em memoriais. A partir de seleção minuciosa, ofereceuouvidos a membros pertencentes ao Comando de Caça aos Comu-nistas (CCC), grupo de direita fundado em 1963, a partir do CentroAcadêmico do Largo São Francisco XI e Agosto e da informal “Cana-lha Acadêmica”, – segundo os entrevistados, assim criado em oposi-

    ção aos operários e estudantes de esquerda, o populismo e o sindica-lismo representados pelo presidente João Goulart.

    Em sua pesquisa, não se utilizou da história oral para comple-mentar ou confirmar versões já existentes, mas apresentar a com-plexidade que é compreender aquele tempo de enfrentamento polí-tico, em que as noções de perpetradores e de vítima se confundemna memória dos entrevistados. Ou ainda, como lembra Lopes, perce-

    ber a construção de uma cultura em que o homem se transformaem máquina, coisa, praticando a “banalidade do mal”, nos dizeres deHannah Arendt. Essas práticas cotidianas, articuladas paralelamen-te ao Estado, colaboravam para a difusão do medo e a ampliação dasviolações contra os chamados “subversivos” (também entrevistadospor ele), processo que ele chamou de “formação de uma cultura au-toritária” do “gosto pelo desgosto dos outros”, concretizado na des-

    truição de patrimônios públicos e privados e na perseguição e violên-cia contra artistas, intelectuais e estudantes de esquerda – o que seusmembros procuraram justificar como necessárias ou mesmo busca-ram negar quanto à sua importância e peso político para o regime.

    Gustavo Lopes mostra os crimes do regime, por meio dos rela-tos dos militantes de esquerda, mas traz também uma memóriapositiva da direita, que justifica sua existência pelos ganhos materi-

    ais e pela necessidade de salvar o Brasil do perigo de uma ditaduracomunista. Faz-nos compreender que a complexidade da memóriasobre esse passado doloroso é importante para que a sociedade possatraçar os rumos do processo de redemocratização. É um importante

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    trabalho que não dá voz, mas demonstra escuta atenta aos que sofre-ram e também aos que apoiaram o regime, percebendo como cons-

    troem a percepção de mundo, a partir de suas referências políticas,simbólicas, econômicas e sociais. O resultado de seu trabalho signi-fica, desta forma, romper com o silêncio que certos grupos, como opróprio Comando de Caça aos Comunistas, procuraram manter emrelação ao peso de suas ações colaboracionistas, tentando isolar-sedas atitudes arbitrárias da ditadura, num momento em que o debatepolítico tende a condená-los ou mesmo ignorá-los.

    O historiador não deve ser furtar a ouvir “versões indesejáveis”,como lembra o autor, pois a escuta do perpetrador permite rompercom a divisão dicotômica em busca de verdades definitivas. Trazer àtona a temática sobre o CCC, como fez de forma sensível, não é pre-encher lacunas históricas, mas significa mudar a forma como enten-demos nossa consciência histórica. Trata-se de preocupação com adevolução pública, apresentando contraponto necessário – e difícil –

    para a construção de uma sociedade mais democrática, pois “o rela-to, enquanto documento, ensina o outro e a si mesmo a lidar com oconhecimento histórico e, por sua vez, humanístico”.

    Os colaboradores, à esquerda e à direita, não apresentaram ape-nas visões e elaborações sobre o passado, pois forneceram tambéminterpretações sobre o presente, num apelo contra a surdez que podemanter vivos os estigmas e os traumas não elaborados. Para seguir

    vivendo, é importante recordar aquilo que pode ferir, revisitar a pró-pria dor, revelar intencionalidades e motivações que ofendem o ou-vinte, mas que podem colaborar para que a justiça se cumpra, paraque feridas sejam finalmente curadas.

    É essa a contribuição de Gustavo Lopes. Para que o direito e odever de memória se realizem é preciso tornar pública cada história,defendendo o direito de se nomear os responsáveis e com eles esta-

    belecer um confronto político, histórico e até mesmo jurídico. É umaforma, como afirmou Paul Ricouer, de combater a anistia comoamnésia, como apagamento das discórdias públicas, de um passadoproibido.

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    As histórias contadas pelos narradores, à esquerda e à direita,revelaram ressentimentos ligados a ideias e sonhos não concretiza-

    dos, a perdas políticas e humanas, em diferentes proporções. Para osentrevistados ligados ao Comando de Caça aos Comunistas, o trau-ma se configura na culpa moral; na referência aos “justiçamentos”(violência contra apoiadores do regime) realizados pela esquerda epela demonização de suas figuras no presente. Para os opositores daditadura, a situação limite aparece na lembrança da perseguição eda tortura que não se realizaram apenas nos porões, mas nos “tentá-

    culos” do Estado, na “nódoa” que permaneceu nas instituições políti-cas, das quais muitos representantes do CCC participaram.

    O trabalho de Gustavo Esteves Lopes demonstra que, diferenteda história que sistematiza e cristaliza, a memória é dinâmica, cons-tante e viva, permitindo a revisão da vida pelos narradores, assimcomo pensar outros caminhos e apontar a mudança de postura, pos-sibilitada por novas experiências e pela ação do tempo. Coloca em

    confronto “memórias subterrâneas” contribuindo para um acerto decontas necessário, uma vez que “a omissão favorece o vigor do res-sentimento e do ressentido”.

    A memória permanece em aberto, num tempo que não se con-cluiu, pois sujeito a interpretações, análises e recomeços. Sua car-ga moral e afetiva pode ser reavaliada, pois com as lembrançascompartilhadas, refazem-se, também, projetos e expectativas futu-

    ras, pessoais, políticas e sociais, submetendo o passado à reflexão,avaliação e inventário.

    Assim são as referências aos “lugares de memória” e às “memó-rias dos lugares”, espaços simbólicos de disputa entre os narradores.Ao mesmo tempo, construção política, emocional e cultural, a ruaMaria Antônia, o largo São Francisco, o CRUSP e o Teatro Galpão/Ruth Escobar, são lembrados por militantes do Comando de Caça

    aos Comunistas como combate ao comunismo, enquanto para seusopositores remetem à invasão, censura e demolição; marcas dos “au-sentes”. A memória mostra-se, aqui, repleta de subjetividades e di-mensões políticas do presente; não é vazia, como diria Walter Benja-

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    min. A “história a contrapelo”, defendida pelo filósofo, também éentendida, por Lopes, como combate a qualquer tipo de silenciamento,

    seja do perpetrador ou da vítima, confundidos nas narrativas, por-que constituídos nas relações. A memória mostra-se, portanto, ma-chucada e inconclusa, para todos os narradores, cada qual em seuterritório simbólico.

    A análise de Gustavo Esteves Lopes sobre os relatos dos dife-rentes grupos deixa clara sua escolha como acadêmico e como cida-dão, pelo compromisso ético com a polifonia, com passado e o pre-

    sente. A ditadura é compreendida por ele como uma construçãosocial, não apenas marcada pelo processo de repressão e arbitrarie-dade do Estado, mas também por relações de pertencimento e con-sentimento de setores da sociedade civil, identificados com argumen-tos, estereótipos e valores defendidos pelo regime civil-militar. Nessesentido, tentar compreender as motivações dos entrevistados signifi-ca contribuir hoje para a contenção dos ensaios do terrorismo e seus

    rearranjos de forma mais ampla; evitar a repetição. Sem, no entanto,realizar qualquer julgamento, pois como afirmou Marc Bloch, “à for-ça de julgar, acaba-se quase fatalmente por perder o gosto de expli-car”. Perceber as práticas do terror no cotidiano nos ensina que opoder não se restringe ao espaço do Estado, mas diz respeito tam-bém às subjetividades, colocando em evidência a possibilidade deque toda e qualquer pessoa ser atingida, seja como perpetrador ou

    como vítima. Isso implica em poder optar ou não que o passado per-maneça infinitamente, ousando esboçar uma outra história e rein-ventar o presente

    Os testemunhos aqui apresentados mostram que o projeto de-mocrático não se constrói sob o manto da interdição imposta a umgrupo em nome de outro ou de uma identidade manipulada poruma memória rígida e acabada. As interpretações diversas, e muitas

    vezes opostas, são integrantes da nossa relação com o passado e coma nossa identidade. É preciso reconhecer sempre a força das narrati-vas diferenciadas como um elogio ao discurso contra o silêncio, nosentido de compreender, não de condenar ou absolver. Compreen-

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    der não implica, necessariamente, conceder o perdão, e isso não dizrespeito ao papel do pesquisador, que é esclarecer. Estudar o passa-

    do, ouvir os testemunhos de quem viveu determinada experiêncianão deve servir ao historiador como celebração ou lamento, com operigo de se desviar o olhar para longe das angústias e permanênciasdo presente. Pode contribuir para evitar o “esquecimento como ca-tástrofe”, considerando o passado, se não como exemplo, pelo me-nos como lição.

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     Apresentação

    O PRESENTE TRABALHO HISTORIOGRÁFICO tem como finalidade estabele-cer um corpus documental capaz de instruir investigações atentas à

    história da atuação do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).Esta organização paramilitar, cuja atuação se fundava na perpetra-ção de um terrorismo nitidamente com propósitos alinhados à ideo-logia de extrema-direita, foi partícipe de destaque em momentospolíticos decisivos desde o processo de instauração do regime civil-militar e até o completo fechamento ditatorial – período compreen-dido entre o golpe de 31 de março de 1964 e a decretação do Ato

    Institucional n°5 (AI-5), a 13 de dezembro de 1968.A importância de uma historiografia preocupada com o CCC e

    outras organizações paramilitares reside no entendimento de queestas foram germes da estruturação do terrorismo de Estado duran-te o regime civil-militar no Brasil. Órgãos paramilitares “semioficiais”,como a OBAN (Operação Bandeirante), e oficiais, como seu sucessor,o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro

    de Operações de Defesa Interna), após o AI-5 deram continuidade deforma profissional ao trabalho, até então “voluntário”, de perseguiçãoideológica e de caça aos “comunistas”, “subversivos” ligados a orga-nizações armadas remanescentes das lutas e mobilizações estudan-tis, operárias, artísticas e clericais da década de 1960. Esta historio-grafia, preocupada com tema ainda tão polêmico nos dias atuais,pretende ser resultado de uma experiência de cidadania e ética, cons-

    truída sob valores democráticos. Necessariamente, busca demonstrarque memória e história têm em suas essências argumentos jamaisunívocos, porque fundamentados no debate político que se faz entreoposições para além de ideológicas.

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     Vítimas, perpetradores e testemunhas nesta pesquisa relataramsuas lembranças, versões de fatos, pontos de vista sobre o que foi o

    “Tempo de Ditadura”, sobre o que foi o CCC e sua atuação paramili-tar, terrorista. Seus relatos devem ser entendidos como documentos,produzidos segundo perspectivas metodológicas em história oral. To-das as pessoas que participaram desta pesquisa são consideradas co-laboradoras com o presente autor para a realização deste trabalho.São entrevistados que, mesmo no processo de textualização, revisa-ram com a liberdade de reformular seus respectivos relatos.

    O pesquisador, enquanto praticante de história oral, concreti-zou o estabelecimento do corpus documental a partir de mediaçõesefetuadas por meio da elaboração da rede de colaboradores; bemcomo na passagem do relato oral para o escrito; e sobretudo na de-volução pública deste corpus documental e demais resultados obti-dos nesta pesquisa. Espera-se que com as proposições conceituais,metodológicas e historiográficas desta pesquisa sobre a atuação de

    uma organização de extrema-direita terrorista que realmente con-turbou o processo político durante os “Anos de Chumbo”, noções dememória e história possam servir como fios condutores que aproxi-mem, mais e mais, também as noções de ética e cidadania, no senti-do pleno dos respectivos termos.

    O presente trabalho inicia-se com um debate no qual se apon-tam caminhos para possíveis definições de terror e terrorismo, e con-

    textualiza-se o CCC no bojo da formação e atuação de organizaçõesde extrema-direita –dentre as quais as paramilitares –, no decorrerda contemporaneidade. Em seguida, desenvolve-se uma exposiçãoda situação do assunto no ambiente historiográfico, que pretendedemonstrar como o tema foi tratado pelas investigações historiográ-ficas preocupadas com os Anos de Chumbo .

    As descrições dos procedimentos de pesquisa e o estabelecimen-

    to do corpus documental também são impreteríveis para se funda-mentar e justificar todo o desenvolvimento da pesquisa. Em capítulodedicado a estas questões, pretende-se esclarecer o que se entendepor história Oral; quais são as proposições desta metodologia de

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    pesquisa, e como se pode trabalhar com a mescla e cotejo destesrelatos de história oral junto ao selecionado de documentação escri-

    ta produzida desde a época de atuação do CCC, composta basica-mente por material de imprensa, prontuários policiais e livros dememória.

    O corpus documental emanado da própria pesquisa comportadoze relatos – onze dos quais obtidos em entrevistas gravadas emfita cassete e um fornecido por escrito, por solicitação do própriocolaborador. Conforme explicitado mais abaixo, as entrevistas fo-

    ram textualizadas pelo pesquisador e corrigidas e autorizadas peloscolaboradores.

    A compreensão historiográfica também encontra seu momen-to, em que o pesquisador expõe sua síntese  (não mero resumo) doque lhe foi dito pelos colaboradores, em consonância aos tons vitaisemanados dos respectivos relatos apresentados, e em cotejamento àdocumentação dita “tradicional” sobre a atuação do CCC. Ao final,

    pretende-se um diálogo sobre a defesa de ideais ou valores que ja-mais devem ser menosprezados, ou esquecidos, como ética, cidada-nia, memória, identidade. Espera-se que o presente trabalho seja, pois,uma tentativa de mediação sociocultural rumo ao exercício de cida-dania e de democracia, e de construção de uma cultura de paz.

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    PARTE I

     PROPOSIÇÃO

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    Introdução

    Eis porque o homem de direita decide ver na morte averdade da vida; ela lhe confirma que cada um vive 

    sozinho, separado; à luz da morte, eu não me preocu-  po senão comigo mesmo; esse “eu” é estranho a to- dos os que são estranhos à minha morte: precisamen- te, todos. Se a vida é uma forma vazia cujo único conteúdo real é a morte, convém manifestar nos com- 

     portamentos a preeminência da morte: assim, quemvive não tem outra ocupação válida senão de jogar 

    com ela, desafiá-la, eludi-la, aceitá-la.No tempo em que a direita era belicosa, fazia a apo- logia da guerra, do homicídio. Derramando sangue,afirmava a sua existência, e os sulcos da terra eramfecundados, preparando futuras colheitas.Simone de Beauvoir (1972, p. 104-5)

    DISSEMINAR, INSTAURAR O TERROR; praticar ações terroristas: estes fenô-menos tanto podem partir do Estado (atos subordinados ao Estado,ou terrorismo de Estado), provenientes de regimes de governo es-sencialmente autoritários, como podem advir do seio da própria so-ciedade, mesmo em regimes de governo ditos “democráticos” – ematos perpetrados por grupos e indivíduos, interessados no abalo dasestruturas sociais e políticas, fundamentados na violência como meioe fim. Tais grupos e indivíduos – alimentados por “fanatismos” detoda sorte – podem tanto se voltar contra o Estado e seus represen-tantes oficiais quanto contra todos adversários de suas pretensões, pas-sando indiscriminadamente por cima da sociedade civil.

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    Entendendo que para o terror e o terrorismo quaisquer normaslegais e cívicas vigentes devem ser suprimidas – porque devem dar

    lugar a ilimitados propósitos escusos –, a dignidade e o respeito àvida colocam-se à mercê do medo, da intimidação, da aspiração emanutenção do poder que torna a sociedade uma reles massa demanobra. Para o terror e o terrorismo, não há distinção entre inocen-tes e culpados, uma vez que todos são potenciais alvos – portanto,vítimas. E as dimensões do terror e do terrorismo são relativas aoalcance dos objetivos intentados e da repercussão dos consequentes

    traumas sociais e psíquicos, que podem ser causados em escala regio-nal, nacional, internacional e global.

    Terror e terrorismo são conceitos que permeiam debates queenvolvem questões de cidadania e direitos humanos ameaçados, sejano passado, seja no presente. Assim, definir tais conceitos dependede circunstâncias específicas, como apontar os direitos e deveres deperpetradores e vítimas conforme suas respectivas culturas, identi-

    dades nacionais e étnicas, classes sociais; orientações sexuais; ideo-logias e militâncias políticas, convicções religiosas.

    Há décadas, o terrorismo é discussão pertinente nos meios aca-dêmicos, políticos, intelectuais e de comunicação de massa – sendotema ainda mais discutido, principalmente, após a série de atentadosocorridos desde 11 de setembro de 2001. Ainda que a preocupaçãocom o recrudescimento desta forma de violência seja crucial na atua-

    lidade, em diversos países este problema foi patente antes mesmodos tempos da Guerra Fria (MEIHY , 2005a; IANNI, 2004; LAQUEUR, 2003).Nações de todos os continentes tiveram territórios divididos em fron-teiras, protetorados e zonas de segurança; regimes de governo fo-ram derrubados, por meio de golpes de Estado, atrocidades e dizima-ções. Ao longo destas conturbações políticas, pessoas e instituiçõesforam vítimas de atentados, torturas, depredações de patrimônios

    públicos e privados, explosões a bomba, controle ideológico, etc.(PINSKY  e PINSKY , 2005; GONZALBO, 1991; LAQUEUR, 1979).

    No que se refere ao terrorismo de extrema-direita, paramilitar,atentados antissemitas eram frequentes na França do final do Século

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     XIX, à época do Caso  Dreyfus . Freikorps nazistas saqueavam sindica-tos ainda em tempos da República de Weimar . Nos Estados Unidos,

    terrorismo confundia-se com fanatismo religioso: desde a guerra dasecessão, a Ku Klux Klan  (KKK) caçava famílias afro-americanas,crente na supremacia White Anglo-Saxon Protestant (WASP); noBrasil e em diversos países latino-americanos, durante os anos 1920e 1930, proliferaram diversas organizações de extrema-direita, in-clusive nazi-fascistas; o Macartismo era implacável na perseguiçãoideológica anticomunista, no pós-Segunda Guerra Mundial; (DIETRI-

    CH, 2012, 2007; PINSKY  e PINSKY , 2005; ARENDT, 1979, 1951).O Brasil não foi exceção a esta conjuntura política. O terroris-

    mo foi recurso extremo, utilizado pela direita golpista, bem comopelas esquerdas radicalizadas. O terrorismo foi um meio de exprimir“a violência do opressor e a violência do oprimido”, conforme indica

     Jacob Gorender em seu Combate nas Trevas  (2000). Dentre as açõesde que se acusam os militares e civis responsáveis pelo golpe ocorrido

    em 1964, podem-se levantar não somente cassações e prisões políti-cas, mas formas de violência que contradizem a Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos. Fervorosos apoiadores da “Revolução de1964” tornaram-se caçadores de comunistas. Quem fosse identificadoa uma ideologia, partido ou movimento social que se assemelhasse,

     grosso modo , ao “comunismo”, era considerado um “contrarrevoluci-onário”, “subversivo”, “terrorista”. Estudantes, operários, trabalhado-

    res, profissionais liberais e clérigos eram perseguidos como se fossemterroristas, por protestarem contra o processo ditatorial desencadea-do por meio da aplicação da Ideologia de Segurança Nacional  for-mulada contra qualquer “fantasma vermelho” (GASPARI, 2002, p. 241;GORENDER, 2000). O aparato militar disponível às forças armadas, aomissão do poder judiciário às ações repressoras, e a condescendên-cia da ordem pública para com simpatizantes da “Revolução de 1964”

    são fatores que podem supor uma vantagem bélica dos golpistas –que não diminuiu excessos de seus opositores – na “conquista doEstado” (REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA, 2004, 1994; CADERNOS AEL,2001; DREYFUSS, 1981).

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    Particularmente, dentre as ações terroristas praticadas pelasorganizações paramilitares de extrema-direita, notórios acontecimen-

    tos marcaram a vida de suas vítimas. O movimento estudantil, pre-sente na vida política brasileira desde os anos de 1930, com a funda-ção da União Nacional dos Estudantes, foi alvo capital dos maisfervorosos defensores de regime civil-militar brasileiro instalado em1964. Durante a chamada República Populista (1945-1964), à medi-da que organizações de esquerda (Partido Comunista Brasileiro, Ju-ventude Universitária Católica, Ação Popular) assumiram postos re-

    levantes no cenário estudantil brasileiro, organizando importanteseventos e entidades políticas e culturais (Centros Populares de Cul-tura, UNE-Volante), extremistas de direita se contrapuseram desme-didamente contra esta hegemonia política em construção (RIDENTI,2000; POERNER, 1994).

    Anteriormente ao golpe, proliferaram no país diversas siglasanticomunistas. Nos redutos acadêmicos, como as faculdades de Direito

    da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie, estudantesdireitistas resolveram agir de modo deliberado contra o sindicalismo, ocomunismo, etc. Em meados de 1963, fundaram um grupo radical edenominaram-no Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Suasprimeiras ações limitavam-se ao ambiente acadêmico. Intervieram comviolência em visitas de autoridades públicas do governo João Gou-lart, como no impedimento do discurso do ministro-chefe da Supe-

    rintendência de Reforma Agrária (SUPRA), João Pinheiro Neto, em1963. Junto de suas mães e avós, os estudantes direitistas participa-ram da Marcha da Família com Deus pela Liberdade  – um importan-te ato de mobilização da classe média inserido nos preparativos demarço para o golpe de Estado que estava por vir (GASPARI, 2002, p.251; CARVALHO, 1988, p. 138-42; BANDEIRA, 1983, 1978, p. 456-75).

    Desde 1962, ações de um Movimento Anti-Comunista (MAC)

    eram publicadas pelos jornais e revistas da época. No referido ano,por duas vezes: primeiro, devido à explosão de uma bomba em umaexposição de arte soviética no Bairro da Quitandinha; e meses de-pois, devido a um atentado a tiros contra a sede da UNE na praia do

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    Flamengo (ARNS, 1985, p. 132). Sem os meios legais necessários paraextinguir a UNE no momento imediato da “Revolução de 1964”, ra-

    dicais da direita atearam fogo na sede nacional da entidade. Nesteacontecimento, acusou-se a ação conjunta do Movimento Anti-Comunista (MAC) e do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).Silenciaram-se estas organizações paramilitares, terroristas, à esperade uma derrota definitiva da esquerda estudantil sem suas entidades.Com o Ato Institucional nº 1 editado dias depois do Golpe de 1964, aUNE e demais entidades estudantis seriam postas na ilegalidade e

    substituídas por outras fundadas pelo regime civil-militar – medidasque, todavia, surtiriam pouco efeito desde o momento imediato dogolpe.

    A esquerda estudantil, nos idos de 1966, reorganizava-se na clan-destinidade, baseada em suas antigas entidades. Seus militantes reivin-dicavam uma reforma universitária que se contrapusesse ao AcordoMEC-USAID (entre o antigo Ministério da Educação e Cultura, e a

    United States Agency for International Development ), acordo esteque sistematizaria ao modo estadunidense a educação universitáriabrasileira; que supostamente ofereceria mais vagas aos alunos in-gressantes no ensino superior, e que iria promover a modernizaçãodo sistema curricular em todas as áreas acadêmicas.

    Após o golpe, porém, no cotidiano acadêmico dominado pelaextrema-direita e com a esquerda estudantil em reconstrução, a cul-

    tura intelectual e a liberdade política perderam espaço para umacultura da violência juvenil – i.e., para o gangsterismo. O decoroacadêmico e a busca do saber deram lugar à brutalidade e covardia,promovidas por organizações como o CCC. A extrema-direita estu-dantil mantinha relações com os órgãos oficiais de segurança, nasgrandes cidades do país. Devido à conivência de autoridades públicaspara com estas organizações, somada ao alarde dos meios de comuni-

    cação da época, que noticiavam terrorismos de esquerda e de direita(seja como prestação de serviço, seja puramente como notícias-merca-doria), esta sigla foi amplamente reproduzida em outras localidades –– como Recife, Rio de Janeiro, e diversas cidades – em momentos

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    decisivos: como o golpe de 1964, o processo de fechamento dita-torial concluído com a edição do AI-5 em 13 de dezembro de 1968,

    e a perseguição às esquerdas “democráticas” e “armadas” após 1969(SERBIN, 2001; MAGALHÃES, 1997; OLIVEIRA, 1994; DECKES, 1985; ALVES,1979; ALARCÓN, 1971).

    Ainda que a trajetória da imprensa brasileira fosse duramentemarcada pela censura, passados os dois primeiros anos de golpe deEstado, entre 1967 e 1968 ocorreu um “surto” de liberdade de im-prensa (KUSHNIR, 2004; CARVALHO, 2001). Deste modo, foi possível

    denunciar ameaças, agressões e assassinatos perpetrados pelo CCCcontra estudantes, artistas, profissionais da imprensa e clérigos; alémda depredação e destruição de patrimônios públicos (antiga FFCL-USP, monumentos artísticos localizados em praças públicas) e priva-dos (Teatro Galpão/Ruth Escobar, etc.). E em vista da regularidadecom que reportagens sobre atos terroristas foram publicadas pelosmeios de comunicação da época, estas podem ser consideradas parte

    importante dos registros sobre a atuação do CCC e organizações corre-latas (MATHIAS et al , 1988; FERNANDES, MAGALDI, 1985; AÇÃO POPULAR,1972).

    O terrorismo perpetrado pelo CCC foi constituído de atos deviolência física e difamação contra a imprensa da época (ameaçan-do-a, atacando-a física e verbalmente, divulgando notas e manifes-tos), para promoção de seus atos e intuitos. Em suma, a atuação do

    CCC pode ser algo que se situa entre gangsterismo e paramilitaris-mo, balizado por um senso de terror que faz parte da essência destesdois modelos de conduta comportamentais e de vínculos sociais.Hannah Arendt, em As  Origens do Totalitarismo   (1979, p. 344-5),faz a seguinte consideração:

    As similaridades entre este tipo de terror [o de extrema-direi-

    ta] e o puro gangsterismo são por demais óbvias para seremdestacadas. Isto não significa que nazismo era gangsterismocomo se tem concluído algumas vezes; mas apenas que osnazis, sem admiti-lo, aprenderam muito com as organizações

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    gangsteristas americanas, da sua propaganda, admitidamenteaprendida com o mercado publicitário americano.

    O termo Ensaios de terrorismo  seria, pois, um modo de qualifi-car a violência perpetrada pelo CCC como um terror emanado deum espírito juvenil reacionário, delinquente, imbuído de um “malradical”, que em certo sentido pode ser traduzido por gangsterismo;e que, contudo, por estas mesmas razões, não pode ser equiparado aações (para)oficiais repressoras, dado as imensuráveis diferenças das

    estruturas organizacionais entre um CCC, uma OBAN e um DEOPS.No plano prático, o CCC por vezes não se diferenciava muito de

    uma gangue. Dentre as facetas identificadas à ideologia e culturapolítica que perfizeram a construção do CCC – desde sua concepçãoaté a deflagração dos principais atos e atentados nos quais esta orga-nização terrorista de extrema-direita se envolveu ao longo dos anos–, a definição e análise do crítico literário Anatol Rosenfeld para o

    conceito de “cultura de gangues” cabe adequadamente para uma elu-cidação sobre a possível estrutura organizacional, plano hierárquicoe relações de poder inerentes ao grupo. Eis a percepção de AnatolRosenfeld (1974, p. 229-30) sobre o tema, já exposta a inícios dosanos 1950:

    Assim se apresenta a situação em sociedades sujeitas a mu-

    danças violentas e profundas. Não admira o surto de seitas,que reduzem um mundo de crescente complexidade a umesquema de simplificações ingênuas, ou de bandos que se re-fugiam numa subcultura de valores coerentes, conquantoprimitivos, e normas de conduta, arcaicas embora, mas ajus-tadas à concretização desses valores. O desajustamento pessoal,enfim, é com frequência senão um tipo peculiar de ajustamen-

    to a seitas, bandos ou turmas desajustados. De certa forma,nas gangs juvenis adota-se a mesma meta da sociedade adulta– o prestígio – mas definida em termos de virilidade, heroísmoe aventura. A conduta adequada, coerente com tal aspiração,

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    consiste nas molecagens mais rudes e nas façanhas que maisdiretamente ferem as normas desprestigiadas da “grande”

    sociedade, com a vantagem de que esta conduta é imediata-mente premiada por um rendimento fabuloso em nimbo en-tre os rapazes e adoração entre as moças, dando ao “herói”uma importância que o mundo adulto lhe nega.

    A atrocidade que por vezes se manifesta em tais estroinices, já em si estimulada pela desinibição coletiva, é de certa for-ma “normal”, já que decorre das próprias normas do bando.

    Acrescente-se a influência embrutecedora da guerra e de umacultura de relações cada vez mais abstratas e impessoais, emque o homem se transforma em peça de máquina, “material”e coisa. Tampouco se deve esquecer que as normas de gang muitas vezes são impostas por psicopatas, indivíduos que sedefinem pelo mau ajustamento a determinada cultura, emconsequência de causas hereditárias ou remotas experiências

    familiais, mas cujo número, periculosidade e influência, en-tre os membros da gang , parece aumentar sobremaneira nascircunstâncias socioculturais apontadas.

    Não somente parcelas consideráveis de agentes administrati-vos e torturadores do Estado foram movidos por esta “banalidade domal”, por um cumprimento acrítico do dever de valores invertidos,

    como observou Hannah Arendt – para a qual, em seu relato sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, esta “banalidade domal” exemplifica-se neste perpetrador que, em sã consciência, “nun-ca percebeu o que estava fazendo” (2000, p. 310). A título de compa-ração, é bem possível que, segundo a constituição hierárquica e mo-ral interna ao CCC, a “banalidade do mal” também se fazia presenteentre seus membros, sobretudo no ato de cumprir ordens e posturas

    partidas de seus líderes e superiores, cujos códigos de conduta seri-am uma mescla, ainda que rudimentar, de um gangsterismo e umparamilitarismo. E neste sentido, essa “banalidade do mal”, bem aomodo do que defende Hannah Arendt, é que subsidiou a perpetração

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    destes “ensaios de terrorismo”, os quais precederam o terrorismo deEstado e paramilitar pós-AI-5.

    Decretado o AI-5, o regime civil-militar brasileiro paulatina-mente oficializou ações repressoras, terroristas, que até então vinhamprincipalmente de organizações paramilitares, clandestinas. Egres-sos do CCC, principalmente membros ou ex-membros oriundos declasses socioeconômicas menos abastadas, profissionalizaram-se nocombate à subversão “comunista”, ou “terrorista”, como eram cha-mados pelo governo. Estes se tornaram delegados e investigadores

    policiais, em órgãos como o DEOPS, e a semioficial Operação Ban-deirante (OBAN) criada em 1969, depois institucionalizada como oDOI-CODI (ou CODI-DOI) em 1970. Aqueles mais abastados, porsua vez, foram trabalhar em escritórios de advocacia ou em médias egrandes empresas, alguns dos quais, complementando suas forma-ções acadêmicas com cursos de mestrado e doutorado (GORENDER,2000; SOUZA, 2000; BIOCCA, 1974). Neste contexto de progressiva ação

    paramilitar e oficial após o AI-5, o CCC – uma vez que teve sua ori-gem anterior ao golpe de 1964, e teve seu auge de notoriedade em1968 – seria, pois, o autor ou perpetrador dos “ensaios de terrorismo”que prepararam terreno para o que teria prosseguimento, de fato,mais tarde pelas dependências da OBAN, e mesmo pelas mãos deagentes dos “Esquadrões da Morte” (BICUDO, 2002).

    A atuação do CCC foi tão contundente sobre o meio acadêmico,

    que, no decorrer das décadas de 1970 e 1980, esta sigla sazonalmentereaparecia em organizações paramilitares, “policialescas”, em seto-res conservadores do movimento estudantil, e entre policiais e milita-res espalhados pelo país afora. Estudantes extremistas de direita, atuan-tes principalmente no decorrer da década de 1960, a contragosto ounão, deixaram seu legado às posteriores gerações: ensinaram retóricaspreconceituosas, brincadeiras covardes, e formas de intervenção psí-

    quica e física sobre seus perpetrados. Desde os anos de chumbo omeio acadêmico e o movimento estudantil sofrem com movimentos deextrema-direita como os “CCC’s” que se renovam de geração em geração.O gangsterismo da extrema-direita estudantil pode ser considerado

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    terrorismo, a priori, porque ação política delinquente, que vitimapessoas, instituições públicas e privadas, e, inevitavelmente, a cultu-

    ra popular e de vanguarda – tudo isso pelo, ora intelectual, ora ba-nal, “gosto pelo desgosto dos outros”.

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    Situação do assunto noambiente bibliográfico geral

    A HISTORIOGRAFIA ACERCA DO T EMPO  DA D ITADURA é vasta e compreensi-va com os aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e religio-sos que fizeram o país viver 21 anos sob um regime de exceção. Asmarcas do legado político da “Revolução de 1964” são registradascom veemência, e analisadas segundo documentos tais como: a Cons- tituição Federal  outorgada em 1967; leis, decretos-lei e de atos insti-tucionais; prontuários policiais; correspondências; documentaçõesescrita e iconográfica produzidas pela mídia da época; e relatos me-morialistas. Somam-se mais de duas décadas de organização de ar-quivos privados (cite-se o do CPDOC) e públicos (APESP, AEL, AN,BN), e de investigações historiográficas dedicadas a expor a exten-são do sistema repressivo instalado pelo regime civil-militar brasi-leiro (AQUINO, MATTOS & S WENSSON, 2001).

    A repressão aos movimentos sociais de contestação, pacíficosou armados, ao regime civil-militar, é um dos temas mais pautadospor esta historiografia. Devido aos anos de censura que o país viven-ciou, principalmente entre o AI-5 e a Anistia, o processo de reabertu-ra política deu espaço para denúncias dos excessos cometidos pelasautoridades civis e militares. Se até 1979 o terrorismo era oficial-mente considerado ação praticada por “comunistas”, militantes deesquerda, desta data em diante a historiografia e os meios de comu-

    nicação de massa apresentaram o outro lado da mesma moeda, cujaconfirmação cabal autenticou-se com o atentado mal sucedido noRiocentro, no 1º de maio de 1980, que matou um militar e feriugravemente seu companheiro, dentro de um carro Puma, em serviçosecreto para o Serviço Nacional de Informações (SNI) (ARGOLO, 1988).

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    O CCC não esteve, contudo, entre as organizações paramilitaresmais investigadas pela historiografia, como a OBAN. Entende-se pelo

    fato de o acossamento aos “subversivos” não chegar aos tribunaismilitares como ação oficial do CCC, devido ao seu caráter clandestino,e ser composto por uma juventude estudantil coadjuvante dentro docenário golpista, em sua maioria sem responsabilidades profissio-nais – ou seja, “amadoras” em sua contribuição à repressão de Estadocontra opositores, ditos “subversivos”. Assim, pode-se supor que nãohouve a produção documental de inquéritos que o relacionem como

    colaborador formal, regular, da repressão. Entretanto há um conjun-to considerável de obras publicadas que relatam a atuação do CCC.

    Um relatório publicado por Rodrigo Alarcón (1971, p. 38-9) –membro do Comité de Denuncia a la Represión en Brasil , sediadoem Santiago do Chile –, ainda nos tempos de Eduardo Frei e Salva-dor Allende, foi uma das primeiras denúncias do sistema repressivoem instalação que tiveram divulgação junto aos meios de comunica-

    ção de massa internacionais. O CCC, junto à OBAN, teve destaquena apresentação do texto, bem como alguns de seus membros, so-bretudo o delegado Raul Nogueira de Lima, vulgo “ Raul Careca”,sempre junto do delegado Sérgio Paranhos Fleury e de outros tortu-radores. Abaixo, um excerto em que é descrito resumidamente pelopesquisador chileno o caso de uma das 62 vítimas, torturada na pre-sença de membros do CCC, segundo uma carta-testemunha remeti-

    da a Sartre y Domenach (um possível pseudônimo construído a par-tir da associação dos sobrenomes de J.-P. Sartre e do escritor Jean-MarieDomenach, ex-diretor da revista Esprit ), em janeiro de 1970:

    Diógenes de Arruda Câmara:Preso em São Paulo na noite de 11 de novembro de 1969,

    sob a acusação de pertencer a um partido político considera-

    do subversivo. Foi detido quando visitava um amigo no bairrode Pinheiros, por um grupo de militares da “Operação Ban-deirante”, golpeado com um cinturão porta-balas de metra-lhadora, despido e lançado dentro de um automóvel.

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    Foi transferido para a Ilha das Flores em dezembro de 1969,e foi proibido de ver seus advogados Marcelo Alencar e Sobral

    Pinto.Continua detido na Ilha das Flores.Torturas:Realizadas no DEOPS de São Paulo, no Quartel da “Opera-

    ção Bandeirante”, rua Tutoia, nos subterrâneos da 34ª Delega-cia, novembro e dezembro de 1969 e janeiro de 1970.

    Foi submetido a golpes de diversos tipos em todo o corpo.

    Nu durante 16 horas, no “pau-de-arara”, onde lhe aplicaramchoques elétricos nas partes mais sensíveis do corpo, até lheprovocar desmaios. (...) No sétimo dia, agentes do Comandode Caça aos Comunistas (CCC) e oficiais do II Exército o sen-taram na “cadeira de dragão” e lhe aplicaram choques elétricosnos órgãos genitais, nas orelhas e nas mãos, “roleta russa” esimulações de enforcamento com uma corda de nylon.

    Torturadores:Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe junto com os agentes

    do CCC, comandados por Parizze [sic ] e Raul Nogueira deLima, vulgo “Careca”, além de Luiz Apolônio e dezenas deoficiais do II Exército, dirigidos pelo capitão Antônio CarlosNascimento Pivato.

    O médico e antropólogo italiano Ettore Biocca é também umdos poucos autores que publicaram denúncias sobre as ações terro-ristas de extrema-direita ocorridas durante a década de 1970 no Bra-sil. Em seu livro Strategia del Terrore: il modelo brasiliano  (1974) érelatada a ação da OBAN com o apoio do CCC, como também de umoutro CCC em Recife, atuante após o AI-5. Dentre o que escreveusobre o CCC, vale mencionar dois breves trechos: um, que sob cita-

    ção de D. Hélder Câmara, relaciona o suposto CCC de Recife com os“Esquadrões da Morte”; e outro, quanto às torturas perpetradas pormembros do CCC junto de agentes da OBAN, reproduzidos de relató-rios internacionais sobre tortura no Brasil (BIOCCA, 1974, p. 169, 191):

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    Escreve o Bispo Hélder Câmara em 28 de agosto de 1969: Se-gundo o depoimento de duas testemunhas, os “executores”

    esperavam-no ao grito de CCC. Assim afirma a parte final dorelatório da comissão de inquérito. Bem, como desmentir que,segundo o relatório, as ameaças telefônicas feitas ao PadreHenrique foram igualmente feitas em nome do CCC? Porqueentão não ordenar um inquérito contra este horrível CCC?[...] Devemos chamar atenção sobre a presença de agentes doCCC nas sessões de tortura praticadas pela OBAN, que revela

    a extensão das infiltrações e da proteção que tem estes gruposde extrema-direita. Estes agentes agora dirigem um grupochamado Cruzada Nacionalista.

    O repórter Antônio Carlos Fon (1979, p. 9-10, 16), logo após aanistia, oficialmente declarada em 1979, publicou uma reunião detextos seus que abordam a história da repressão no Brasil durante os

    anos de chumbo. Inicia o livro narrando o momento de sua prisãoem casa, na qual foi detido pelo conhecido membro do CCC e policial,o delegado Raul Nogueira de Lima, o Raul “Careca”. Páginas à fren-te, o autor relata a inação do governo paulista em relação à presençade membros do CCC nos diversos escalões do governo paulista e acriação de um órgão extraoficial de repressão, assuntos que foramlevados ao então governador Abreu Sodré:

    Fui preso às seis e meia da manhã de 29 de setembro de 1969.Na época eu trabalhava no Jornal da Tarde, de São Paulo, co-brindo a área policial e naquela noite ficara até às quatro damadrugada conversando e bebendo com dois policiais – o es-crivão Waldemar de Paulo e o delegado Luiz Orsatti, amboslotados no DOPS. Cheguei em casa, um apartamento de ter-

    ceiro andar na esquina das avenidas São João e Duque deCaxias, às quatro e meia da manhã e, cansado e meio alto, fuime deitar no quarto de meu irmão Aton Fon Filho, que seencontrava viajando. Dormi duas horas e acordei com algo

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    frio encostado no nariz. Abri os olhos e o quarto estava cheiode homens armados de fuzis e metralhadoras. O objeto frio

    encostado no meu nariz era o cano de uma pistola calibre 45,empunhada pelo delegado Raul Nogueira – que eu já conhe-cia como integrante do grupo clandestino de extrema-direitaComando de Caça aos Comunistas e policial que encontravaum estranho prazer em espancar estudantes. [...]

    O desenvolvimento desses planos chegou a ser denunciado,ainda em 1968, ao então governador paulista Roberto Costa

    de Abreu Sodré a presença de elementos ligados ao CCC –Comando de Caça aos Comunistas – e outros grupos terroris-tas de extrema-direita. “É verdade”, confirma o ex-governadorAbreu Sodré. Quem eram estes extremistas de direita infil-trados na periferia da administração? “Eu prefiro não dizer”,desculpa-se o ex-governador Abreu Sodré. “Pode dizer que te-nho muito má memória para guardar nomes de pessoas que

    desprezo”.

    A brevidade com que o CCC foi tratado nas diversas publica-ções pode confirmar o seu caráter coadjuvante na historiografia acer-ca das organizações paramilitares, até mesmo inseridas no cenárioestudantil no brasileiro. A título de exemplo, após o processo de re-democratização no Brasil, três dos primeiros trabalhos que se dedi-

    caram a relatar a atuação do CCC foram: Radiografia do Terrorismo no Brasil: 1966/1980 , do jornalista Flavio Deckes; a publicação resu-mida da documentação relatada no projeto Brasil: Nunca Mais , pre-faciado pelo Cardeal Emérito da Arquidiocese de São Paulo, DomPaulo Evaristo Arns; e Combate nas Trevas , do historiador e históri-co militante da esquerda brasileira, Jacob Gorender.

    O trabalho de Flavio Deckes (1985), para a época, foi um dos

    mais extensos em relatar o terrorismo paramilitar de extrema-direi-ta, ainda que se limitasse a reproduzir integralmente reportagenssobre o CCC, noticiadas principalmente em 1968. Esta publicação éválida pela relação das fontes jornalísticas da época, que contribui

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    para a investigação de outros pesquisadores – principalmente paraestas serem confrontadas a outras fontes. Em meio à quantidade de

    informações reproduzidas de jornais de revistas, com as própriaspalavras fez um resumo de como o CCC conseguiu notoriedade jun-to à mídia da época (DECKES, 1985, p. 50-1):

    O CCC foi o responsável pelo assassinato do estudante JoséGuimarães na ocupação da Faculdade de Filosofia. O coman-do, protegido pela figura maternal da reitora Esther Figueiredo

    Ferraz, e bem municiado pela polícia estadual, desfechou oúltimo combate quando se consumou sua vitória ampla so-bre os alunos da Filosofia da USP. Um dos agressores, prova-velmente o que matou José Guimarães, foi reconhecido atra-vés de fotografia publicada nos jornais: Ricardo Osni, queaparece empunhando um fuzil no telhado da UniversidadeMackenzie. Revoltados, os professores da USP interpretaram

    os acontecimentos em nota oficial. Um dos melhores momen-tos do CCC em 1968, proporcionou o repórter Pedro Medeiros,que se infiltrou na Organização e depois publicou com foto-grafias a reportagem “CCC ou O Comando do Terror”.

    Nas “clássicas” obras devotadas ao relato das torturas, prisões,perseguições, e ações terroristas da direita, o CCC até o presente

    momento ainda é organização pontualmente citada. No denso resu-mo do projeto Brasil: Nunca Mais , o incêndio da sede da UNE em1964 é a única suposta ação terrorista do CCC relatada (ARNS, 1985,p. 132):

    A UNE lançou um Centro Popular de que, em atividade vo-lante por todo o país, disseminou músicas, peças de teatro,

    poesias e outras modalidades artísticas, com mensagens emdefesa do nacionalismo e da justiça social.

    Entende-se, dessa forma, porque as elites conservadorasempenhadas na agitação a favor de um golpe de Estado, não

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    vacilaram em apontar a UNE como uma das sete cabeças dodragão comunista no país.

    Com efeito, já no dia 1º de abril de 1964, a sede da UNE, napraia do Flamengo, Rio de Janeiro, foi ocupada, saqueada eincendiada pelos golpistas, através de uma organização parami-litar denominada CCC – Comando de Caça aos Comunistas.

    Mas – uma vez que os generais de abril se consideravamlegitimados, em seu movimento, pela própria classe médiade onde saiam os ativistas da UNE e das demais entidades –

    foi lógico, em certa medida, que a repressão não se abatessecom predileção sobre esse setor já nos primeiros meses doRegime Militar. Os novos governantes acreditavam na possi-bilidade de conquistar a simpatia dos universitários atravésde uma ideologia anticomunista assentada nos ideais do “mun-do livre”. Em 1964, foram abertos alguns processos, sim, paraapurar o envolvimento das lideranças estudantis no apoio ao

    governo deposto, mas em número reduzido comparativamenteao ocorrido nos meios militares e sindicais. Exemplo signifi-cativo foi o gigantesco processo formado na 2ª Auditoria daMarinha no Rio, contra dezenas e dezenas de jovens vincula-dos à UNE e que entretanto foi arquivado sem alcançar a fasede julgamento.

    De forma semelhante, porque mais preocupado com a luta ar-mada das esquerdas contra o regime civil-militar, Jacob Gorender,em Combate nas Trevas , originalmente publicado em 1987, comen-tou a atuação do CCC em 1968 contra o movimento estudantil e oteatro – um prelúdio das “ilusões perdidas à luta armada” (2000, p.161, 164):

    Em São Paulo, travou-se uma guerra entre a esquerda univer-sitária, com seu quartel-general na Faculdade de Filosofia daUSP, na rua Maria Antonia, e a direita universitária lideradapelo “Comando de Caça aos Comunistas”, protegida na

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    fronteiriça Universidade Mackenzie. A guerra vai das pedra-das aos disparos de armas de fogo do Mackenzie, que mata o

    estudante José Guimarães no dia 2 de outubro. Os alunos daUSP saem com o cadáver da Faculdade de Filosofia e percor-rem o centro de São Paulo. [...]

    Em São Paulo e no Rio, o CCC atacava teatros e livrarias eagredia artistas. Em julho, o teatro Galpão, na capital paulistaonde se apresentava a peça Roda-Viva de Chico Buarque deHolanda, sofreu a invasão dos desordeiros do CCC, que es-

    pancaram atores e pessoas do público. No Rio, uma bombaexplodiu na Livraria Civilização Brasileira em outubro, inci-dente repetido em dezembro no Teatro Opinião. Contudo, oauge havia passado e as lutas de massas entraram em declínio.Diminuíram os participantes das passeatas e a repressão poli-cial as dissolvia com facilidade. Um golpe decisivo veio a 12de outubro. Neste dia, as redações dos jornais ficaram perple-

    xas diante a escolha do assunto para a manchete: o “justiça-mento” do capitão Chandler ou a prisão de 739 universitáriosno 30º Congresso da UNE, numa fazenda do pacato municí-pio de Ibiúna, entre São Paulo e Sorocaba.

    Há também um corpo bibliográfico produzido por pesquisado-res “brasilianistas” (ALMEIDA, 2001; MEIHY , 1990) – pesquisadores oriun-

    dos ou atuantes a partir de centros de ensino e pesquisa internacio-nais– dedicados aos temas relacionados com o autoritarismo no Brasil.Desde a década de 1960, tais pesquisadores se mantiveram em observa-ção sobre os processos ditatoriais arrolados em países da AméricaLatina. Sobre o Brasil, encontraram espaço para comentar não somen-te as questões institucionais e das organizações “revolucionárias”, mastambém as ações perpetradas por grupos de extrema-direita. O CCC

    não ficou de fora, e assim relatou Thomas Skidmore (1988, p. 160):

    A direita também se mobilizava através do Comando de Caçaaos Comunistas (CCC) e do Movimento Anticomunista, as

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    duas organizações mais conhecidas. A tática favorita de ambasem 1968 era invadir um teatro durante a apresentação de uma

    peça taxada pelos seus membros de “subversiva” e atacar fisi-camente os atores e até às vezes o público. Em 1968, o CCC, juntamente com estudantes da Universidade Mackenzie, ins-tituição privada profundamente conservadora, sitiaram a Fa-culdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, cujos alu-nos e professores eram “agentes comunistas”. Os atacantes doCCC destruíram o interior do edifício principal enquanto a

    polícia apenas assistia.A política ganhou as ruas, e a pergunta que se fazia era se

    o governo Costa e Silva perdera o controle do processo de“humanização”. Nenhum grupo tinha mais interesse no as-sunto do que os militares.

    Além desta geração de historiadores, cientistas políticos e soci-

    ais, jornalistas, religiosos que acompanhou o processo de redemo-cratização no Brasil, e que se preocupou com as ações de extrema-direita no país, vale também fazer referência à publicação da trilogiasobre a memória militar de 1964, organizada por docentes e pesqui-sadores do CPDOC-FGV – principalmente ao segundo volume, Os Anos de Chumbo: a Memória Militar sobre a Repressão  (D’ARAÚJO;SOARES; CASTRO, 1994). Igualmente necessário é fazer referência a O 

    fantasma da Revolução Brasileira (1993), do sociólogo Marcelo Ri-denti – pesquisa de fôlego sobre as “constelações” da esquerda brasi-leira, vitimadas pelo terrorismo de estado e paramilitar.

    Essa publicação do CPDOC vale-se da metodologia da HistóriaOral, a partir da realização de entrevistas, que pretende fornecer nar-rativas em prol da construção de uma “história oficial”, senão aomenos de uma “história pública” sobre as visões militares sobre o

    golpe e o regime instaurado. No segundo volume sobre a “memóriamilitar” (isto é, “os anos de chumbo”), os autores assinalam a atuaçãodo CCC apenas em um “quadro cronológico” quando se data o anode 1968, mais precisamente um 18 de julho de 1968, data da destruição

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    do Teatro Galpão/Ruth Escobar. Porém, os militares entrevistadosnão fazem menção alguma a esta organização paramilitar, porque

    preocupados em relatar a atuação oficial de órgãos como o DOI-CODI; ocasiões de recrudescimento, como o plano de explosão deum gasômetro no Rio de Janeiro (envolvendo o brigadeiro João Pau-lo Moreira Burnier); e justificativas como para o mal sucedido aten-tado ao Riocentro – ocorrências estas estreitamente vinculadas a au-toridades militares.

    Quanto a O Fantasma da Revolução Brasileira, de Marcelo Ri-

    denti, da mesma forma que todas as principais publicações sobre operíodo, este faz do CCC um famigerado mas coadjuvante grupoterrorista, colocado em evidência somente no ano de 1968. O autor,com brevidade mas expressivo poder de síntese, descreve a atuaçãodo CCC contra a Faculdade de Filosofia da USP nos acontecimentosdos dias 2 e 3 de outubro. Eis o excerto (1993, p. 141-2):

    Alguns filhos de famílias burguesas ou tradicionais, decaden-tes ou não, menos ou mais ricas, tomaram parte no movimen-to estudantil. Algumas ovelhas desgarradas aderiram a posi-ções de esquerda, chegando mesmo a integrar os gruposarmados. Outros defendiam suas classes de origem, por exem-plo, ao formar entidades paramilitares de direita, como o Co-mando de Caça aos Comunistas, o conhecido CCC, que reali-

    zou inúmeros atentados e tinha bases, em São Paulo, naUniversidade Mackenzie e na Faculdade de Direito da USP.

    [Em nota de rodapé referente ao parágrafo acima] Alémdo CCC, havia outras entidades paramilitares de direita pre-sentes no meio estudantil, como MAC (Movimento Anti-comunista) e a FAC (Frente Anticomunista). Entretanto, aextrema-direita era minoritária até mesmo no Mackenzie, onde

    se encontrava apoio notório da direção da Universidade. Se-gundo José Dirceu, então presidente da UEE-SP, em 1968 houve“uma suposta briga entre o Mackenzie e a Filosofia, que nun-ca existiu. A direita do Mackenzie era minoritária lá dentro e

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    eles vieram contra 90% dos estudantes da Filosofia da USP”.No mesmo sentido, aponta Lauro P. Toledo Ferraz, na época

    presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direitodo Mackenzie, que ressalta a união das esquerdas naquelaUniversidade, contra os elementos de direita, ligados à polí-cia e à diretoria do Mackenzie.

    Outro autor que se preocupou em relatar a atuação do Coman-do de Caça aos Comunistas foi o jornalista Percival de Souza, que se

    dedicou em escrever uma biografia sobre o delegado Sérgio Para-nhos Fleury, do DOPS, intitulada Autópsia do Medo (2000). Nestelivro, utilizou de documentação escrita e iconográfica mantida emarquivos públicos e privados, acervos pessoais, bem como fontesoriundas dos meios de comunicação de massa, para o desenvolvi-mento de sua pesquisa. Para tecer esta biografia, o autor tambémtrilhou as histórias de vida de amigos pessoais e colegas de profissão

    do delegado Fleury, dentre os quais ex-membros do CCC, como Otá-vio Gonçalves Moreira Júnior e Raul Nogueira de Lima, e João Mar-cos Monteiro Flaquer, o suposto e autointitulado líder do grupo. Nocapítulo Réquiem para o Delegado do DOI-CODI , Percival de Souzadetalha o assassinato de Otavinho, em plena praia de Copacabana,por um GTA (Grupo Tático Armado) composto de organizações daesquerda armada – ALN, PCBR, VAR-Palmares (Aliança Libertado-

    ra Nacional, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, e Vanguar-da Armada Revolucionária-Palmares, respectivamente). Assim Per-cival de Souza faz seu Réquiem para o delegado, membro do CCC“justiçado” pelo GTA (2000, p. 163-6):

    Otavinho tombou morto instantânea e pesadamente com umasaraivada de tiros. Primeiro, um tiro de espingarda calibre 12

    nas costas; para conferir, mais tiros de calibre 9 milímetrosno peito e no pescoço. A emboscada foi armada por um co-mando misto da Aliança Libertadora Nacional, do PartidoComunista Brasileiro Revolucionário e da Vanguarda Armada

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    Revolucionária Palmares. O delegado tinha sido um dos pio-neiros da Oban, e integrara os quadros da Tradição, Família e

    Propriedade, além de ser ardoroso militante do Comando deCaça aos Comunistas, que aterrorizava os chamados “verme-lhos”, a esquerda do mundo estudantil. O CCC agia ostensiva-mente, sob a complacência de professores e diretores, porquea todos intimidava, já que mantinha ligações estreitas com oDOPS e o DOI-CODI. No dia da morte de Marighella, a rapazi-ada do CCC estava a postos na alameda Casa Banca, ajudando

    a fazer triagem entre os curiosos, filtrando comentários, levan-do suspeitos em potencial diretamente à presença do delega-do Fleury. Na Faculdade de Direito da USP, um aluno foi reti-rado da sala de aula e espancado no corredor, à vista de todos,porque os rapazes de cabelo cortado bem curto que o agredi-am não haviam gostado de um discurso contra o governo queele havia pronunciado, na noite anterior, no centro acadêmi-

    co. Otavinho havia estudado nas Arcadas de São Francisco. [...] Vestindo bermudas de brim azul, com camisa esporte bran-

    ca, florida, e usando sandálias creme, Otavinho carregava umaesteira de praia quando um carro Opala, da General Motors,encostou ruidosamente da calçada. Dele desceu um GTA; gru-po tático armado completo, que ocupou o meio da calçada, nafrente de todos, e sem hesitação executou o delegado.

    Eliminar assim um agente da repressão, ainda mais daOperação Bandeirante, foi considerado uma façanha entre osmilitantes da luta armada. Na repressão ficou a certeza deuma emboscada como aquela poderia vitimar qualquer umdeles. A Casa da Vovó colocou em funcionamento, a plenovapor, sua usina de ódio. Aquela morte não ficaria assim, de jeito nenhum, dizia-se entre muito ranger os dentes e a pro-

    messa coletiva de vingança exemplar, em proporção aindamais violenta.

    O delegado Sérgio Paranhos Fleury, contrito, foi buscar o cor-po de Otavinho no Rio de Janeiro. A execução tinha acontecido

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    num final de manhã de domingo, 25 de fevereiro de 1973, eFleury chegou ao Instituto Médico Legal à noite, acompanha-

    do pelo delegado-geral de polícia de São Paulo, Walter Moraesde Machado Suppo, informado pelo delegado Romeu Tuma,que viajou com eles. [...]

    Passagem de especial importância no mesmo capítulo de Au- tópsia do Medo , Percival de Souza apresenta passagens da transcri-ção de uma entrevista que este realizou com o ex-delegado Raul

    Nogueira de Lima, suscitando, já de início, que esta tarefa fora da-quelas raras e de árduo empenho. O ex-delegado, personalidade doDOPS encarregada de conter, perseguir e, se necessário, eliminar acrescente “subversão” inserida no meio estudantil durante a décadade 1960, foi um dos membros fundadores do CCC – seja porquedelegado policial, seja porque estudante de Direito na Universi-dade Mackenzie, seja porque anticomunista por vocação e ideologia.

    Segue abaixo a referida entrevista, iniciada com as palavras de Percivalde Souza (2000, p. 379-83):

    O fim de um silêncio de muitos anos: Raul Nogueira de Lima,Raul Careca, foi antes de Fleury o maior símbolo que o Dopsteve. Era o terror da classe estudantil, super-ligado ao Comandode Caça aos Comunistas, CCC, e tinha um enorme prazer de

    perseguir os “vermelhos”. Nas batalhas campais da rua MariaAntonia, nos anos 60, quando estudantes de Filosofia da USP,de esquerda, se armavam para enfrentar a pau e pedra os co-legas de direita da Universidade Mackenzie, Raul Careca esta-va armado do lado dos mackenzistas – tinha sido um deles.Andou pela Operação Bandeirante, perseguiu subversivos eterroristas e um dia sua vida mudou completamente: atirou e

    matou um jovem soldado do Exército, foi preso e exonerado. [...]Raul foi um dos fundadores do CCC, grupo de direita res-

    ponsável por uma série de ataques e intimidações. Para assus-tar a esquerda, chegou a distribuir em finais de ano um cartão

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    que tinha uma caveira no lugar do Papai Noel, enviado a pes-soas identificadas nominalmente (“simpatizante ativista da

    canalha comunista que enxovalha nosso país”), com votos deum “péssimo Natal” e de que o Ano Novo se realizasse entreeles um “confronto final”. Ele conta: “O CCC foi criado naFaculdade de Direito do largo São Francisco para enfrentar aesquerda organizada. Foi idealizado por mim, pelo João Mar-cos Monteiro Flaquer (estudante da Faculdade) e pelo Otavinho(delegado Octávio Gonçalves Moreira Júnior, do DOI-Codi,

    que também estudou na Faculdade, executado por um coman-do terrorista no Rio de Janeiro). O núcleo inicial era de unsquinze estudantes, só ali no Largo de São Francisco. Com ou-tras faculdades, o CCC chegou a ter uns 150 homens. Nossaproposta era dar cobertura aos líderes democráticos. Cober-tura física porque a AP e a Polop vinham de pau. Queríamoscombater a esquerda. Acho que no começo o CCC tinha uns

    vinte membros bem ativos. O QG era minha casa.O CCC era um estado de espírito. Foi exatamente isso o

    que relatou o delegado Alípio Flores, encarregado de fazeruma sindicância para a Secretaria de Segurança. Não deu emnada. Minha mãe era prima do Gamão (pai de Gaminha, oredator do AI-5). O Otavinho foi aluno do Gaminha na USP.Quando o Otavinho morreu, eu vesti o corpo dele para o en-

    terro. O Ricardo Osni da Silva Pinto, amigão do Gaminha (osdois voltaram juntos de Brasília depois que foi decretado oAI-5), era do CCC.

    Sim, resolvemos baixar o cacete na turma do Roda Viva.Naquele tempo o CCC era forte, estruturado, com muita gen-te da cúpula militar, noventa por cento eram do Exército. TodosOficiais. Por que foi feito aquilo? Porque queriam nos ridicu-

    larizar. A peça tinha um ator fazendo xixi num capacete mili-tar. Ridicularizava a família e a plateia, chamando todo mun-do de “burguês que precisava tirar a bunda da cadeira”. Depois,convidavam: “Suba ao palco e venha fazer a revolução

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    conosco”. Assistimos à peça e decidimos fazer uma ação re-lâmpago. A sindicância não deu em nada porque nós nos reu-

    nimos na Operação Bandeirante e de lá um de nós telefonoupara a Secretaria de Segurança para deixar bem claro um re-cado ao secretário Hely Lopes Meirelles. Ao mesmo tempo, osmotores das viaturas foram ligados e ficamos acelerando aomáximo. Aquele ronco era um recado. Ao telefone, o aviso:“Depende do senhor...”

    O início dos conflitos na Maria Antonia foram marcados

    pelo fato de o pessoal da Filosofia bloquear a rua para cobrarpedágio. Um estudante de Direito do Mackenzie, Ricardo Osnida Silva Pinto, foi reclamar. Um rapaz, estudante de Química,havia sido agredido e o diretor do curso, professor Odilon,ficou revoltado. Reuniu uma turma e foi para cima do pedá-gio. Aí, um grupo da Filosofia foi para dentro do Mackenzie.O pessoal da Química reagiu. O estudante Boris Casoy fez um

    manifesto de convocação aos mackenzistas. De cinco em cin-co minutos, o Boris convocava. Os mackenzistas foram paralá e começaram a preparar sua defesa. Os coquetéis molotov (gasolina dentro de garrafas, com mecha acesa) foram con-feccionados pelo pessoal da Química. E mais gás em tubos deensaio, com bombas de artifício, provocando vômitos em quemaspirasse. Percebemos que havia gente armada na caixa d’água

    do prédio da Filosofia. Preparamos estilingues gigantes, comcâmaras de ar de pneus, para arremessar à distância os molotov e gás.

    Estas referências bibliográficas acima apresentadas são partesignificativa do que se relatou sobre a atuação do CCC e de outrasorganizações paramilitares. E a leitura destas referências bibliográ-

    ficas pode contribuir de forma esclarecedora para um entendimentoinicial da historiografia acerca dos anos de chumbo , pois estas explo-ram diversas questões mais amplas – como relações institucionais,estrutura do aparato repressivo, movimentos políticos favoráveis e

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    opositores ao golpe e ao processo ditatorial – e que cruzam com opresente tema: a atuação do CCC.

    A atuação do CCC e de outras organizações similares ainda é aseara da investigação pouco explorada, se inserida em um debatehistoriográfico mais amplo sobre o período. A necessidade de estu-dar o terrorismo perpetrado por organizações paramilitares é im-prescindível para compreender o processo de fechamento ditatorialdo regime civil-militar brasileiro, entre os anos de 1964 e 1985. An-tes que as próprias forças armadas e as instituições jurídicas oficiali-

    zassem a repressão – formalizada em órgãos oficiais de segurança –organizações paramilitares atuavam desde antes do golpe de 1964.

    Faz-se necessário aprofundar outra questão acerca do terroris-mo de extrema-direita no Brasil. Organizações paramilitares origi-nadas inclusive no movimento estudantil, como o CCC – tanto quantoos baixos e altos escalões civis e militares golpistas – eram adversári-os diretos das esquerdas e demais opositores ao regime autoritário.

    Eis a questão: sem a argumentação do opressor, o oprimido inevita-velmente reconstrói uma memória limitada em sua experiência; e,por conseguinte, a historiografia assume posição oblíqua sobre umtema cujas parcialidades devem ser claramente estabelecidas. Coma manutenção do silêncio acerca deste polêmico tema, os motivospelos quais motivaram civis e militares a tomar medidas extremasna defesa de seus ideais golpistas se perdem no esquecimento – ou

    seja, tornam-se estacados em contingências de “memórias subterrâ-neas” (CATELA, 2001; POLLAK, 1989). Por conseguinte, “demônios” e“benfeitores” são esboçados como se estas fossem verdades unívo-cas, porque provenientes da memória das vítimas. No entanto, fur-tar-se das possíveis versões de acontecimentos, mesmo aquelas “in-desejáveis”, “politicamente incorretas”, é uma inocência que a atualgeração de historiadores deve evitar. A versão do perpetrador tem

    que existir, e não somente a do perpetrado, ao menos em pesquisahistoriográfica acerca do presente tema.

    Até o presente momento não houve nenhuma pesquisa his-toriográfica específica sobre o CCC e organizações “paramilitares”

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    similares (citem-se MAC e FAC). Não basta que a investigação sejaempreendida com documentos escritos e iconográficos contempo-

    râneos à época de atuação desta organização paramilitar. Buscar fon-tes documentais inéditas, que se mesclem com os documentos exis-tentes sobre o CCC, pode enriquecer a tentativa de traçar outroscaminhos no ambiente historiográfico acerca das ações terroristasno Brasil. Algozes, vítimas e testemunhas da atuação do CCC aindapodem ser encontrados, pois desde a fundação desta organização,passou-se quase meio século.

    Entrevistar estas pessoas pode ser uma forma construtiva decotejar as fontes documentais existentes com documentações emprocesso de produção. Porém, não é tão simples fazer de uma entre- vista um documento . Converter o estado da palavra da oralidade paraa escritura é uma dificuldade; por meio de metodologias de pesquisacomo a história oral, pesquisadores esforçam-se para produzir demodo articulado documentos textualizados, mediados pela gravação

    eletrônica. E somente com a devolução pública do material colhidoe produzido no decorrer do trabalho de campo é que se pode atestaro valor documental historiográfico da pesquisa em história oral.

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    Descrição da documentaçãoescrita preexistente

    A INVESTIGAÇÃO EM ARQUIVOS E BIBLIOTECAS – públicos e privados –, paraa colheita de documentação escrita referente ao CCC, é passo indis-pensável para o conhecimento do tema. Pesquisas regulares em ins-tituições como o Arquivo do Público do Estado de São Paulo (APESP),Biblioteca Municipal Mário de Andrade (BMMA-SP), Centro de Pes-quisa e Documentação Vergueiro (CPV – atualmente desativado),Centro Cultural São Paulo (CCSP-SP), Arquivo Edgar Leuenroth

    (AEL-Unicamp) e o Arquivo Nacional (AN-RJ), dentre outras, evi-denciaram a fragilidade do estudo sobre o terrorismo e ações para-militares ocorridas no Brasil ao longo de décadas de regime republi-cano. Esta situação de fragilidade, quanto a este e outros temascorrelatos, contudo, tende a ser superada; à medida que a atual Leide Acesso à Informação (Lei Federal nº 12.527/2011) não seja umaletra morta; que instituições públicas e privadas lancem mão de tec-

    nologias aptas à digitalização de seus fundos e coleções e disponibi-lizem sua visualização em sítios eletrônicos; e que a Comissão Naci-onal da Verdade (Lei Federal nº 12.528/2011) e correlatas comissõesestaduais, municipais, autárquicas e acadêmicas sejam observadas erespeitadas no cumprimento de seu escopo de revelar as memórias,sobretudo, para não esquecê-las.

    Em arquivos fora do Estado de São Paulo foram irrisórios ou

    nulos os resultados de buscas sobre o CCC e outras organizaçõesparamilitares, iniciadas desde 2000. A título de exemplo, no ArquivoNacional, Rio de Janeiro, na dificuldade de se deparar com docu-mentos relacionados ao CCC e organizações correlatas, tornou-se, à

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    época, comum a identificação de documentos referentes a outrasorganizações supostamente não paramilitares que participaram de

    eventos pré-golpe de Estado, como a ata de fundação da Campanhada Mulher Democrática (CAMDE) e outros recortes de jornais e re-vistas da época sobre esta “organização assistencial e filantrópica”,inclusive, com notícias de apoio desta a organizações paramilitares(CF. Fundo/Coleção Paulo de Assis Ribeiro , Cód. n°57, Seção de Guar-da “SDP”). Ademais, era latente a hipótese que o CCC, de fato, fosseorganização de extrema-direita atuante quase que exclusivamente

    em São Paulo: isto é, fez-se premente maior investigação em arqui-vos públicos paulistas, como o APESP – que vem processando pro-gressivamente seu acervo “DEOPS”).

    Em tempos que acessar acervos documentais digitalizados ain-da era algo a se tornar realidade a partir deste último decênio, umaalternativa apropriada para o início das investigações foi buscar pordocumentos elencados no trabalho do jornalista Flavio Deckes, limi-

    tado também a documentos produzidos pela imprensa da época, sobamparo de bibliografia concernente a fatos e nomes vinculados aoCCC e organizações similares (V ENTURA, 1988; GASPARI, 2002). Nospassos desta referência bibliográfica, significativos documentos es-critos e iconográficos oriundos da imprensa, sobre o CCC, forambuscados em hemerotecas particulares de empresas de comunica-ção de massa (O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo ) e públicas,

    como da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, da Biblioteca daEscola de Comunicação e Artes (ECA- USP), ambos em São Paulo, edo Arquivo Edgar Leuenroth (AEL) da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp). Atualmente, como afirmado acima, a consul-ta a estes acervos públicos e privados pode ser realizada a partir e/oudentro de sítios eletrônicos como www.arquivonacional.gov.br,memoria.bn.br, acervo.folha.uol.com.br e acervo.estadao.com.br, en-

    tre outros.Dentre estes documentos consultados ao longo de investiga-

    ções realizadas diretamente em arquivos públicos e privados, citem-se reportagens da antiga revista Veja e Leia (atual Veja) publicadas

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    entre 9 e 16 de outubro, que se encontram no setor de hemeroteca daBiblioteca da Escola de Comunicação e Artes da USP (assim como

    no acervo digital da revista, sob responsabilidade do próprio grupoAbril), e da extinta revista O Cruzeiro , publicadas entre 9 de novem-bro e 6 de dezembro de 1968, nas respectivas hemerotecas da Biblio-teca Municipal Mário de Andrade, da ECA-USP e do AEL-Unicamp.A transcrição quase que integral de reportagens e prontuários poli-ciais produzidos à época, referentes à atuação do CCC, é uma opçãodo pesquisador pela revelação de narrativas as quais, por si, podem

    elucidar o leitor sobre como foi tratado o tema no calor do momento– em que a própria grande imprensa também foi vítima, em certamedida, de um “terrorismo cultural”, como aponta Beatriz Kushnirem Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988   (2004, p. 41), para a qual, “por meio dessa tática, jornaisforam depredados, bombas foram explodidas, houve invasão de edi-toras, gráficas foram destruídas, tiragens foram apreendidas.”

    Outra fonte escrita, por sua vez emanada da pesquisa de campoem história oral, é o conjunto de relatos obtidos em entrevistas rea-lizadas com perpetradores, vítimas e testemunhas da atuação doComando de Caça aos Comunistas, denominadas transcriações . Ocotejo das informaçõ