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Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando agendas e agentes. 23 a 25 de abril, UNESP, Araraquara – SP Trabalho: A ascensão do PT a classe trabalhadora Francisco Pereira de Farias Universidade Federal do Piauí

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Page 1: Encontro Internacional Participação, Democracia e ... · democracia, chegando muitas vezes com isso à conclusão de que no capitalismo não haveria uma real democracia. ... 6 Cf

Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas:

aproximando agendas e agentes.

23 a 25 de abril, UNESP, Araraquara – SP

Trabalho: A ascensão do PT a classe trabalhadora

Francisco Pereira de Farias

Universidade Federal do Piauí

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A ASCENSÃO DO PT E A CLASSE TRABALHADORA

O objetivo deste texto é apresentar a política de classe como um padrão

em ascensão na democracia brasileira da década de 2000. Inicialmente,

apontamos as dimensões científica e ideológica do conceito de democracia

capitalista; em seguida, procuramos mostrar a construção metonímica da

identidade de classe na prática político-eleitoral do Partido dos Trabalhadores

(PT) no Brasil.

A democracia capitalista

Assumindo o conceito marxiano de democracia, enquanto um modo de

representação de classe, N. Poulantzas afasta-se do terreno ideológico

recoberto pelas idéias de exercício da soberania popular ou de competição

entre elites políticas. Em sua leitura de O 18 Brumário, Poulantzas ressalta

que, entre 1848-1851, a República Parlamentar na França representava os

interesses do conjunto da burguesia francesa, aparentando aos olhos de uns

defender as razões do povo e, aos de outros, sustentar os móveis de uma

minoria politicamente ativa.1

Nessa perspectiva, a democracia pode ser vista como um conceito, ao

mesmo tempo, científico e ideológico.2 A democracia não é um conceito

exclusivamente científico. Numa visão tecnocrática, a definição objetiva de

democracia seria suficiente para explicar os processos políticos na sociedade

capitalista. Nessa linha, a ideia imaginária de soberania popular, conectada ao

método de governo democrático, poderia perder sua função social, e as

sociedades capitalistas assistiriam a um declínio dessa ilusão. No entanto, não

se viu nenhuma Constituição política dos Estados capitalistas que tenha

suprimido a cláusula da “soberania do povo”. Então, a fórmula do “governo

para o povo” tem força social a partir da sua consagração no direito dos

1 Cf. Nicos Poulantzas, Pouvoir politique et classes sociales, citado. 2 As noções de “conceito científico” e “conceito ideológico” encontram-se em Louis Althusser, “L’objet du ‘Capital’”, em Lire le Capital (Paris, PUF, 1996). Francisco Sampredo - em “A teoria da ideologia de Althusser”, em Márcio Naves (org.), Presença de Althusser (Campinas, Unicamp/IFCH, 2011), p. 34 - indica que o filósofo francês faz referência “à companhia surda da ideologia junto à ciência”. Para Sampredo, a postulação da ciência como alternativa excludente da ideologia “deriva do interesse fundamentalmente ideológico da tecnocracia” (Ibidem, p. 34).

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Estados atuais. Assim, essa ideia não é apenas uma ilusão, fruto de um

desconhecimento, mas uma ideologia, isto é, uma falsa ideia com efeitos

práticos necessários à reprodução da ordem social.

A burocracia do Estado burguês, em decorrência de se organizar sob a

regra do acesso a todas as classes sociais para o exercício das suas tarefas,

precisa separar o que são recursos estatais (armas, prédios, dinheiro),

chamados públicos, e recursos da classe dominante, vistos como privados.

Ora, uma condição para a existência separada dos recursos estatais, ou seja,

de um fundo coletivo da classe dominante, é a organização de um sistema

unificado de coleta de impostos num território delimitado. Em função disso, a

burocracia do Estado burguês promove, através de algum “mito fundador” do

Povo-Nação, o sentimento de vínculo a esse território como um ponto de

interesse comum às classes sociais. Pode tal burocracia se apresentar como o

representante do povo-nação, à medida que se define como o agente de

concretização do interesse geral dos habitantes de um espaço geográfico

delimitado por ela própria. Assim, produz-se o sentimento da nacionalidade

para neutralizar, nos trabalhadores “manuais”, a tendência a organizarem-se

em classe social. Nesse sentido, o conceito de povo-nação restringir-se-ia a um

significado ideológico. As várias tentativas de se encontrar uma base comum

entre as classes fundamentais, que daria objetividade à ideia de valores

nacionais, não têm obtido êxito, seja tal base a língua, a etnia, a religião, a

história política, o território. Tomemos esse último elemento.

Supõe-se que burguesia e classe trabalhadora teriam um interesse

partilhado de habitar um território delimitado e estariam unidos na defesa da

fronteira nacional. No entanto, o fenômeno significativo das migrações de

trabalhadores no plano internacional parece contradizer esse suposto. É

crescente o interesse dos governos e empregadores de controlar esse fluxo,

sendo o primeiro tipo de migração a receber, no plano internacional,

regulamentação sistemática. A fim de controlar os mercados de trabalho, os

países mais procurados pelos trabalhadores migrantes estabeleceram, como

pré-requisito de entrada, a autorização para trabalhar, caso em que o

documento do passaporte tornou-se indispensável para o controle da

circulação internacional de pessoas. Essa necessidade de controle sobre a

força de trabalho instaura, no direito à migração, uma contradição, pois,

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reiterando o direito de ir e vir, a legislação internacional estabelece que os

trabalhadores migrantes são livres para sair do país, inclusive o de origem, sem

sofrer restrições, exceto se essas forem para proteger “a segurança nacional,

ordem, saúde e moral pública”, ou seja, os interesses das classes dominantes.3

Entretanto, alguns autores, como C. Buci-Gluckman, admitem uma

coexistência contraditória entre, de um lado, os interesses antagônicos de

classes e, de outro, o interesse comum de todos no interior da nação. Para

Buci-Gluckman, o aspecto nacional-popular é a expressão de um “consenso

compartilhado” das classes sociais,4 pelo que o povo-nação é visto como um

conceito não imaginário, mas real. A autora parece não ter dúvida de que “a

vontade coletiva nacional-popular” fundou os Estados modernos, e a essa

“vontade” estaria ligada a hegemonia, entendida como o consenso obtido pela

classe dirigente sobre as classes subordinadas. Mais especificamente, a

hegemonia pressupõe que sejam levados em conta os interesses dos grupos

sobre os quais será exercida para que se forme um certo equilíbrio de

compromisso, com o grupo dirigente fazendo sacrifícios de ordem econômico-

corporativa.5

Uma restrição de Poulantzas a essa abordagem, embora nem sempre

se mantenha nessa linha de crítica, seria a de que a hegemonia só tem base

objetiva no interior do bloco de classes dominantes. Normalmente, uma fração

de classe assume a liderança no interior do bloco dominante, o que se traduz,

no plano político, em capacidade de fazer valer os seus valores e interesses

específicos na orientação da política do Estado. Já entre as classes

fundamentais, a relação é exclusivamente de dominação, que é antes de

caráter estrutural-ideológico e menos com base na violência ou em vantagens

materiais. Poulantzas negaria, assim, a hipótese de um consenso que

integrasse as classes fundamentais. Nessa linha, as concessões materiais da

fração hegemônica do bloco dominante, se têm o papel de reforçar a

estabilidade política, não exigem o sacrifício de seus interesses econômicos

estratégicos, ou seja, não se requer um efetivo compromisso com as classes

trabalhadoras.

3 Cf. T. Cavarzere, Direito internacional da pessoa humana: a circulação internacional de pessoas (São Paulo, Renovar, 2001). 4 Cristine Buci-Gluckman, Gramsci e o Estado (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980), p. 363. 5 Cf. Idem, ibidem.

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Não se trata também, a democracia, de um conceito estritamente

ideológico. Porque, embora o coletivo povo-nação seja, de fato, uma

comunidade imaginária, uma vez que nenhum fim comum agrega

objetivamente os seus membros, a classe social é um coletivo objetivo, sendo

a idéia de interesses de classe não uma pura ilusão, mas uma realidade

mesma (a classe capitalista tem o objetivo de explorar o trabalho da classe

assalariada, e essa possui a meta de abolir a relação salarial). A democracia é

uma forma de a classe dominante exercer o seu domínio político, que faz

diferença se exercido em um regime não-democrático, isto é, ditatorial. Parece

uma via pouco fecunda a de se enfatizar a dimensão ideológica do conceito de

democracia, chegando muitas vezes com isso à conclusão de que no

capitalismo não haveria uma real democracia.

Na democracia do Estado capitalista, a burguesia participa na gestão

governamental através de um Parlamento eleito pelo voto e concorrência

partidária. A fração hegemônica no interior da classe capitalista, além dos

condicionantes institucionais do Estado, conta com recursos econômicos,

políticos e culturais capazes de fazer valer seus interesses e valores, mesmo

quando há no Parlamento uma maioria de membros oriundos da classe

trabalhadora. Nesse caso, não se trata necessariamente de um

“aburguesamento” das lideranças dos trabalhadores. Esses líderes podem

manter a sua independência política mesmo em uma aliança de classes na

qual estão impossibilitados estruturalmente de galgar a hegemonia nas

condições normais de vigência do modelo de sociedade. Um exemplo disso foi

a eleição do governo da Frente Popular na França, em 1936. Composta por

Socialistas, Comunistas e Liberais Radicais, a coalizão de esquerda, liderada

por Léon Blum, obteve uma maioria decisiva (na nova legislatura, a esquerda

tinha 376 deputados e a direita, 220). Inicialmente, o governo demonstrou

notável vontade política – não somente banindo as ligas de direita (que o SPD

havia tolerado), mas também trabalhando para a implantação imediata de seu

programa. “Fez aprovar 133 novas leis em apenas 73 dias, inclusive a

nacionalização parcial do Banco da França, a nacionalização da indústria de

armas, obras públicas, criação da Câmara de Negociação de Trigo, e

aumentou a idade de saída da escola para 14 anos. Mas depois veio a queda

rápida. O programa da Frente Popular era uma aposta no consumo: pretendia

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reativar a economia por meio do aumento do poder de compra e pelo incentivo

da legislação social à produtividade. O capital entrou em greve. Entre abril e

setembro de 1936, as reservas de ouro do Banco da França caíram de 63

bilhões para 54 bilhões de francos, e mais 1,5 bilhão que fugiram da França

entre 4 e 16 de setembro. Blum descumpriu uma promessa solene de

campanha e desvalorizou a moeda. A produção também não correspondeu.

Em outubro, Blum pediu uma mudança de ritmo, e sua mensagem de Ano

Novo sacrificava outras reformas à ‘reconciliação’ social. (…) Em 22 de junho

de 1937, as defecções dos radicais no Senado negaram a Blum os poderes

para uma nova emergência fiscal, e ele renunciou.”6

Por esse enfoque, o representante político no Parlamento é mandatário

da classe ou fração de classe burguesa, mesmo no caso do deputado do

partido de esquerda socialista, que tende a combinar as representações, por

um lado, da fração hegemônica burguesa e, por outro, da classe trabalhadora.7

As frações de classe capitalista buscam representação no Parlamento, e não

fundamentalmente o seu controle direto. Assim, a expressão “democracia

capitalista” remete antes aos condicionantes implicados pela estrutura jurídico-

política do Estado, que produz os efeitos ideológicos necessários à reprodução

da estrutura econômica capitalista. Não há, pois, o falso problema de descrever

a origem social dos ocupantes da cúpula dos aparelhos estatais para se inferir

a natureza do poder político.

A democracia capitalista possibilita coexistir vários padrões político-

ideológicos (individualismo, corporativismo, classismo etc), em razão dos

comportamentos diferenciados das classes, frações de classes e categorias

sociais na cena política.

6 Cf. Geoff Eley, Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000 (São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2005), p. 316. 7 Mas por que a burguesia prefere o mandato representativo, e rejeita o mandato imperativo? Seria pela simples conformação desse mandato à ideologia da vontade indivisível do povo, ou haveria, para além do simbolismo, uma outra razão? Uma hipótese seria que o mandato representativo induziria o deputado a orientar-se pelos interesses gerais da fração hegemônica, e não pelos específicos de seus segmentos. Por sua vez, o mandato imperativo parece mais condizente com uma política abertamente classista, que é reivindicada pela classe trabalhadora.

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O individualismo político

A burguesia tende a patrocinar um padrão político-ideológico de tipo

individualizante. Essa classe social, pela sua condição dominante, procura

negar a existência mesma do conflito de classes,8 vendo as formas de

associação (sindicatos, partidos políticos) antes como instrumentos dos

“indivíduos”. Como observa Umberto Cerroni, a classe burguesa é “um mundo

profundamente individualista, que concebe a esfera política como função

garantidora da esfera privada”.9 Assim, para a classe capitalista, o deputado

parlamentar deve ser o representante do indivíduo-cidadão, não devendo

subordinar-se a pressões dos tipos sindicais e partidárias. O sistema do voto,

nesse caso, favorece o indivíduo notável e não um partido político, que é visto

com o objetivo de reunir em seu interior os grandes vultos.

O individualismo político pode assumir formas diferenciadas, oscilando

entre, de um lado, práticas clientelistas e, de outro, práticas (aparentemente)

universalistas. O clientelismo, ou seja, a busca de satisfazer interesses

“privados” e “egoísticos”, não é incompatível com a ideologia do interesse

nacional, pois se concebe que, do entrechoque de “vontades individuais”,

poderia surgir um padrão “racional”. Já um comportamento aparentemente

universalista é a expressão mesma da ideologia do povo-nação.

A democracia “individualizante” floresceu na Europa e nos EUA a partir

dos anos de 1870 até à guerra de 1914. Maurice Duverger10 aponta dois

conjuntos de fatores para o surto do “individualismo político” desse período. O

primeiro diz respeito às organizações dos trabalhadores até a I Guerra Mundial,

que estão um pouco à margem do regime político e não modificam o

mecanismo das instituições, já que o centro da luta partidária se dá entre

Liberais e Conservadores, o que expressa, em linhas gerais, o conflito entre a

burguesia ascendente e a aristocracia agrária declinante. O segundo conjunto

de fatores refere-se ao enorme crescimento demográfico e à forte urbanização,

com a ascensão de uma indústria baseada no carvão e no aço, a expansão

dos meios de comunicação, o aumento das riquezas e da desigualdade de

fortunas - o que se traduz como a expansão do capitalismo industrial. “Ao

8 Cf. M. Pinçon et M. Pinçon-Charlot, Sociologie de la bourgeoisie (Paris, Découverte, 2000). 9 Umberto Cerroni, Teoria do partido político (São Paulo, LECH, 1982), p. 15. 10 Cf. Maurice Duverger, As modernas tecnodemocracias (Rio de Janeiro, Zahar, 1975).

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mesmo tempo, manifesta-se um declínio das religiões e o advento do

cientificismo, um avanço do nacionalismo, uma extensão das conquistas

coloniais e do imperialismo. Trata-se de um período dinâmico, caracterizado

pelo desenvolvimento da economia, da ciência, das idéias e das artes.”11

Assim, talvez se possa dizer que o individualismo político do final do

século XIX e início do XX teve um papel, em parte, progressista, com a

conquista da hegemonia política pela burguesia industrial nos países da

Europa e nos EUA. A nossa hipótese é que, nas democracias capitalistas

“neoliberais” das décadas de 1980/1990, há o ressurgimento da dominância do

padrão político-ideológico individualizante, depois de um intervalo da

ascendência da “política de grupos”, com a diferença de que a hegemonia

política inclina-se agora para as mãos das frações conservadoras da

burguesia.

No Brasil, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) nasceu

como uma dissidência do Partido do Movimento Democrático Brasileiro

(PMDB) durante o processo constituinte de 1988. O PSDB teve, pois, uma

origem intraparlamentar e emerge como um partido de quadros, em que os

cargos internos (direção, comissões, secretarias) estavam restritos a um seleto

grupo de parlamentares. Os documentos do partido fazem referência à

contribuição do capital estrangeiro como instrumento de integração e

crescimento na economia mundial, à privatização de empresas estatais e à

“desprivatização” do Estado, com o combate ao “patrimonialismo”. O PSDB

ascende ao poder, na década de 1990, em um contexto de transformação da

social-democracia na Europa. “Já no final dos anos 60 (…) os partidos da

social-democracia, que até então eram mais ou menos partidos ideológicos,

estavam se transformando em partidos do tipo catch-all, que quer dizer

absorver tudo, quer dizer: em vez de buscar votos em determinados setores da

população, teriam que pedir votos de todas as classes sociais para construir

uma maioria eleitoral”.12 Então, quando os analistas dizem que o PSDB não

tem uma base sindical, isso não seria, aos olhos do partido, um problema.

Apesar de as suas lideranças criticarem, em nome da disciplina partidária, o

11 Idem, ibidem, p. 58. 12 Timothy Power e outros, Dimensões da social-democracia brasileira (Brasília, Instituto Teotônio Vilela, 1997), p. 139.

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individualismo político, não é essa a realidade da coalizão liderada pelo partido,

na qual “essa maioria não se forma a partir dos acordos partidários, porque os

partidos continuam não tendo a capacidade de controlar efetivamente o

comportamento dos seus membros”. 13

Cabe indagar-se quais interesses sociais foram privilegiados com o

programa de políticas “neoliberais” (a desregulamentação das relações de

trabalho, as privatizações, a abertura comercial), implementado durante o

governo do PSDB. Poder-se-ia dizer que a principal força social beneficiada

com o conjunto dessas políticas foi o capital financeiro internacional, cujos

interesses são internalizados no país pela fração burguesa a ele associada. Se

de um lado a indústria e os bancos nacionais – portanto a burguesia interna –

sentiam-se prejudicados com a política de abertura comercial, de outro, o

médio capital – base de uma fração burguesa nacionalista – viu-se excluído

dos benefícios da política de privatizações. Somente a política de

desregulamentação do trabalho conferia unidade às várias frações do capital,

sob a hegemonia da burguesia associada.

A política eleitoral classista

O proletariado, por sua vez, tem a possibilidade de procurar exercer um

padrão político-ideológico “classista”. A partir de sua experiência no processo

de trabalho socializado das empresas, a classe proletária tende a ver-se como

classe social. Nesse caso, o associativismo (comissões de empresa,

sindicatos, partidos políticos) passa a ser visto como a expressão de uma

“consciência coletiva” específica. Como indica Cerroni, a classe proletária

valoriza a associação, inclinando-se, desde o seu nascimento, à “solidariedade

mútua” e à “reciprocidade da coligação”.14 Dessa maneira, para o proletariado,

o deputado parlamentar representa a classe social, tornando-se legítimas as

pressões sindicais e partidárias. O voto é dado em função da escolha de um

partido político, e não de pessoas; o partido político visa reunir antes um

grande número de adeptos que grandes notáveis.

A política eleitoral classista contém uma representação subjetiva de

classe, que pode assumir ao menos duas modalidades, uma indireta e outra

13 Fernando Henrique Cardoso e outros, Realizações e desafios de um programa social-democrata (Rio de Janeiro, Instituto Teotônio Vilela, 2000), p. 19. 14 Umberto Cerroni, Teoria do partido político, cit., p. 15.

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direta. Na primeira, os agentes políticos mobilizam as oposições conceituais -

como ricos e pobres, poderosos e necessitados, elite e povo – que remetem,

de modo por assim dizer metonímico, à divisão da coletividade em classes

sociais. Na segunda, os agentes utilizam os termos mesmos da relação de

classes – “burguesia” e “classe trabalhadora”.

O partido político proletário caracteriza-se, em parte, por elaborar um

programa com dupla armadura, que mantém distinto o projeto “para o imediato”

(as proposições a discutir e a adaptar na negociação com os outros) e o “para

o futuro” (o modelo antevisto e intencional de sociedade). Além disso, para

prever reformas e metas possíveis, o partido socialista orienta-se por

premissas teórico-científicas, em atenção às melhores teorias, “aquelas que

permitem a previsão de certos desenvolvimentos e a realização ulterior de

certos objetivos fundamentais” 15. Podemos indagar em quais condições

constitui-se e emerge a política classista, a “reformista” e a “revolucionária”.

Uma tentativa de resposta levaria em conta que: i) a socialização no processo

de trabalho e os limites jurídico-políticos da democracia capitalista concorrem

para explicar a constituição da política classista por reformas; ii) a possibilidade

de uma política classista revolucionária surge do enraizamento do antagonismo

das classes sociais na totalidade do processo histórico.

Um dos elementos decisivos da grande indústria moderna consiste em

pôr em causa o “processo de trabalho individual” (caráter artesanal) em

proveito da emergência do “trabalhador coletivo” (apoiado na divisão do

trabalho). A coletivização do processo de trabalho leva o produtor direto à

dupla e simultânea condição de trabalhador interdependente (tarefas

encadeadas) e independente (atividades executadas isoladamente, nos limites

impostos pela interdependência dos trabalhos). A tendência do proletariado à

ação coletiva está, assim, relacionada à socialização do processo de

trabalho.16 Por sua vez, o direito burguês, através da figura do contrato de

trabalho, limita o objetivo da associação sindical dos trabalhadores à

negociação das condições de venda da força de trabalho. O movimento

sindical pode ser designado como classista quando não funciona como força

15 Giuseppe Prestipino, “Le socialisme en Occident”, em Actuel Marx, n. 3, 1988, p. 21. 16 Cf. Antoine Artous, Travail et émancipation sociale: Marx et le travail (Paris, Syllepse, 2003).

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de apoio às políticas do Estado e da classe dominante.17 Da mesma forma, o

burocratismo burguês, por meio da regra do acesso a todos os membros da

coletividade às tarefas do Estado, limita a ação partidária proletária, na

suposição de negociar o interesse nacional, ao propósito de barganhar

concessões à fração hegemônica do capital. Acrescente-se que, por um lado, o

resgate do papel da “filosofia” como o conhecimento da totalidade histórica

constitui um momento decisivo da luta revolucionária de classe e, por outro, a

contribuição do “marxismo ocidental” (Korsch, Lukács, Gramsci) torna-se

imprescindível para se ampliar o combate econômico e político pela via da

incorporação da dimensão cultural no âmbito mesmo da luta reformista de

classe.18

O partido do socialismo cindiu-se, como se sabe, na Europa, desde o

final do século XIX, em duas correntes: o socialismo constitucionalista, que

concebe a transição para a sociedade socialista a partir de uma vitória eleitoral

dentro da democracia capitalista, e o socialismo insurrecional, que se orienta

pelo método da ação violenta para a conquista do poder de Estado. Do interior

da primeira corrente, surge, por influência do pensamento econômico de

Keynes e da instituição do welfare state, nos anos de 1950, o partido social-

democrático, cuja característica distintiva é a defesa de um capitalismo com

menos desigualdades sociais e o abandono do horizonte de uma

transformação socialista da sociedade.19 A segunda vertente, impulsionada

pelo processo insurrecional ocorrido na Rússia de 1917, vai desembocar, em

parte, desde a morte de Lênin, no partido de tipo staliniano, que converte o

centralismo democrático em burocrático e adquire uma feição militarista. Essas

duas heranças “desviantes” do partido socialista – a social-democracia e o

stalinismo – serão contestadas por caminhos diversos, com um ponto de

convergência nas revoltas de 1968. Na herança das lutas sociais dessa

conjuntura histórica encontraram-se os dissidentes dos Partidos Comunistas,

os trotskistas, os maoístas, os ecologistas, as feministas, os cristãos

17 Cf. Armando Boito Jr, “Pré-capitalismo, capitalismo e resistência dos trabalhadores: nota para uma teoria da ação sindical”, em Crítica marxista, n. 12, 2001. 18 Cf. Ricardo Musse, “Teoria e história do marxismo”, em Jornal de resenhas, v. 1, 2009. 19 Convém frisar que os partidos autodenominados social-democráticos, anteriormente à década de 1950, eram, na verdade, socialistas. Marx e Engels, por exemplo, foram membros do Partido Social-Democrático Alemão.

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revolucionários – formando o campo de uma nova esquerda anticapitalista ou

socialista.

Pode-se dizer que, após a Segunda Guerra Mundial até a crise da

década de 1970, tornou-se dominante na Europa ocidental um modelo de

democracia capitalista abertamente classista, referindo-se aos governos tanto

do partido do socialismo quanto do partido social-democrático. O trauma da

experiência do nazismo e do fascismo, a ajuda monetária americana, a fusão

de capitais bancários e industriais em grandes empresas financeiras, as

transformações capitalistas no campo e as novas vanguardas culturais foram

elementos que contribuíram para moldar um contexto favorável à ascendência

do “classismo”, que apresenta uma dupla face: de um lado, representa a

aliança da classe trabalhadora com a burguesia em torno de reformas sociais

e, de outro, significa a hegemonia do grande capital financeiro sob o modelo de

política intervencionista.

A nossa hipótese é que, nos contextos de democracia capitalista “pós-

neoliberal” da década de 2000, em especial na América Latina, reascende o

padrão político-ideológico classista, num contexto de conquista da hegemonia

política pelas burguesias internas e suas alianças com partidos de esquerda

em alguns países.

No Brasil, o PT, que na campanha eleitoral de 1982 tinha um discurso de

classe direto (“vote no 3 - o resto é burguês”), viu no seu fracasso eleitoral o

motivo para a sua revisão. Nas campanhas de 1988 e 1989, o partido assumiu

uma referência classista metonímica: aos pobres, marginalizados, excluídos.

Lula revela ter consciência da mudança do discurso de classe, ao afirmar:

“numa campanha como a de 88 nós não poderemos ser vanguardistas, não

poderemos fazer um discurso que só nós compreendamos”.20

Avaliando as experiências de governos petistas nos anos 2000, um

analista observou que “o PT procurou desenvolver uma forma de democracia

participativa mais eficaz, que ultrapassasse a simples participação em eleições

e votações, e reorientar a política governamental em direção aos interesses

20 Citado em Margaret E. Keck, PT. A lógica da diferença (São Paulo, Ática, 1991), p. 259.

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dos pobres e da classe trabalhadora brasileira”.21 Embora essa ideia da

reorientação da política governamental precise ser mais bem qualificada,

operou ela um realinhamento político que explica a reeleição de Lula em 2006,

numa campanha em que a polarização esquerda e direita se traduziu, no

segundo turno do pleito, no confronto (metonímico) de classes, como atestou

uma manchete de jornal de circulação nacional: “Eleitor liga Lula à defesa dos

pobres e Alckimin à dos ricos”.22

São vários os modos de “autonomia relativa” do Estado frente à classe

dominante. Um deles é a possibilidade de eleição de um partido de esquerda

ao governo. Uma conseqüência dessa autonomia relativa é a capacidade do

governo de impor à fração hegemônica da classe dominante uma política de

concessões aos interesses da classe trabalhadora, em troca de uma

estabilidade social e política. Um pressuposto dessa política de esquerda é que

ela não aposta na máxima de quanto pior, melhor. Isso não quer dizer que esse

partido de esquerda abre mão dos seus objetivos de longo prazo. Nesse

sentido, o governo do PT passou de fato a implementar um leque mais amplo

de reformas sociais favoráveis aos interesses materiais e culturais dos

trabalhadores. Para exemplificar, tomemos o caso da reforma educacional, e

mais especificamente a questão da educação profissional.

Como sabemos, o objetivo socialista da classe trabalhadora no plano da

educação escolar é o da formação polivalente, o que implica um ensino geral

das ciências e técnicas, como um pressuposto para a sua capacitação em

assumir a direção do processo social de produção. No entanto, dentro do

capitalismo, só uma minoria de trabalhadores tem a exigência de uma

qualificação politécnica; a maioria vive as condições de uma especialização

rotineira e pouco qualificada. Daí a tendência dessa maioria a comprometer-se,

para seus filhos, mais com a escolarização básica e a não revoltar-se com a

evasão ou fracasso escolar dos mesmos nos níveis médio ou superior, sob o

argumento de que eles precisam começar a trabalhar para suprir a renda

familiar. Nesse sentido, a educação profissionalizante no nível médio tem um

21 David Samuels, “A democracia brasileira sob o governo Lula e do PT”, em Vitor A. de Angelo e Marco A. Villa (orgs), O Partido dos Trabalhadores e a política brasileira (1980-2006) (São Carlos, Edufscar, 2009). 22 Jornal Folha de São Paulo, 10-09-2006.

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impacto mais significativo para a estratégia de reprodução da família do

trabalhador do que para a da família dos grupos sociais superiores. Ora, no

Brasil são consideráveis as diferenças como essa questão foi tratada nos

governos do PSDB e do PT.

No ideário neoliberal, a educação profissional deve ser assumida pela

empresa e pelo indivíduo, como forma de o Estado diminuir sua ingerência na

economia e evitar gastos. O Estado deveria, nessa visão, priorizar o

investimento em educação básica, por ser o nível mínimo de qualificação da

força de trabalho. Técnicos do Banco Mundial sustentam que a conjugação da

formação profissional com o ensino secundário seria admitida para o caso dos

países “ricos”, onde a exigência de qualificação do trabalho seria maior. No

caso das nações periféricas, a recomendação é de desmembramento do

ensino.

Assim, com a reforma do ensino profissionalizante de 1997, técnicos do

MEC, influenciados pela orientação neoliberal, propuseram a eliminação pura e

simples da parte generalista do currículo das escolas técnicas, buscando

separar a educação profissionalizante do ensino médio, como uma solução

para o problema visto de “desperdício” do dinheiro público. A estratégia de

redução de custos revelava-se na diminuição da carga horária dos cursos

técnicos, entre outros mecanismos.

Em 2004, no governo do PT, foi adotada uma nova política de educação

profissionalizante. A principal inovação possibilitada pela legislação federal é a

adoção, pela instituição de ensino, do modelo integrado (ensino médio e

técnico). Com isso os cursos técnicos voltaram a ter uma duração maior (agora

de quatro anos, em vez de três apenas). Além do que, houve uma expansão

significativa do sistema federal de educação profissionalizante neste período,

inclusive com a sua descentralização para atingir os pequenos municípios.

Não parece que alguns analistas tenham apresentados elementos

suficientes para caracterizar a CUT como uma central “governista”, significando

uma incapacidade de ela se opor às medidas governamentais que penalizam

os interesses da classe trabalhadora. Podemos dizer que, ao votar no governo

do PT e assumir cargos no aparelho de Estado, a CUT aceitou uma aliança

política com a fração hegemônica da classe dominante, mas isso não implica

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que tenha necessariamente perdido a sua independência de classe. Algumas

dissidências da CUT ocorreram mais por razões pragmáticas do que por

divergências político-ideológicas. Já as correntes sindicais que avaliam o

governo do PT como continuidade do modelo neoliberal só podem ser críticos

da aliança política da CUT. De qualquer modo, segundo a avaliação de alguns

analistas, o movimento sindical vem tendo conquistas durante a gestão do PT,

diferentemente das regressões ocorridas no período do governo do PSDB.

André Singer23 aproxima o “lulismo” do fenômeno clássico do

bonapartismo, interpretando este último como a presença de uma liderança

arbitral sobre as classes fundamentais a partir do Estado. Isso o leva a ver o

“lulismo” como próximo do “populismo” brasileiro, também interpretado como o

papel arbitral do Estado por meio de uma liderança personalista e com apoio

de uma base de massa. Para Singer, as coisas se passam, em parte, como se

o “getulismo”, depois de derrotado pelos militares em 1964, ressurgisse não

mais nos grandes centros urbanos-industrais, mas agora nas áreas menos

desenvolvidas, sob o nome de “lulismo”. Ao nosso ver, trata-se ainda de uma

visão abstrata da liderança de Lula nos setores subassalariados da classe

trabalhadora. A nossa hipótese é que Lula teve o mérito de atrair esses setores

para uma aliança da classe trabalhadora com as frações progressistas da

burguesia brasileira, em torno de políticas sociais mais amplas. Do contrário,

acabar-se-ia por apagar o caráter classista da liderança de Lula junto aos

trabalhadores subassalariados. De fato, Singer parece oscilar quanto a captar o

impacto do “lulismo” sobre o PT: este se transformou no “partido dos pobres”

ou no “partido do povo-nação”? Consideramos justa a visão de que o PT, com

a ascensão do governo Lula, adquiriu “duas almas”: uma que beneficia o

capital e outra que possibilita “a inclusão dos mais pobres”, com a melhora

relativa na situação dos trabalhadores. No entanto, não nos parece evidente

que a luta de classes perdeu “lugar de honra” no partido, tendo sido substituída

pelo “projeto nacional-popular”. Não teria sido o sentido da luta de classes que

se alterou? Antes, era uma aliança com o médio capital, de natureza anti-

imperialista e reformista radical; depois, tornou-se uma aliança com a grande

burguesia interna, de característica anti-neoliberal e por reformas moderadas.

23 Cf. André Singer. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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Alguns analistas sustentam a tese da hegemonia do capital financeiro

internacional e a continuidade da política neoliberal no governo do PT.24 No

entanto, há várias medidas do governo petista que significam uma inflexão no

padrão de política vigente na década de 1990. Em primeiro lugar, deu-se o

bloqueio da desregulamentação do “sistema financeiro” do país, sendo hoje a

maior lucratividade a dos bancos nacionais, ao contrário do período anterior,

em que o maior rendimento ficava nas mãos das filiais dos bancos

estrangeiros; não houve também o implemento da proposta de autonomia do

Banco Central, que interessa ao capital financeiro internacional; ademais, no

perfil da dívida pública a interna passou a ser superior à externa. Em segundo

lugar, freou-se a política de abertura comercial, ação simbolizada nas

restrições ao projeto da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), de

interesse dos Estados Unidos. Em terceiro lugar, ocorreu a paralisação na

agenda das privatizações, sendo a Petrobrás e o Banco do Brasil preservados

como empresas estatais. Em quarto lugar, impôs-se o bloqueio à

desregulamentação das relações de trabalho, com o aumento do emprego de

carteira assinada e a valorização do salário mínimo. Em quinto lugar, rompeu-

se com o parâmetro de Estado não-intervencionista, implicando uma retomada

neodesenvolvimentista através de políticas como o PAC (Programa de

Aceleração do Crescimento).

Mas quais são os principais interesses beneficiados com essa nova

política governamental? Poder-se-ia mostrar que os privilegiados com a política

neodesenvolvimentista do governo atual são os bancos e a indústria nacionais

e o agronegócio – em suma, a burguesia interna. Trata-se de setores

dominantes com conflitos diante do capital financeiro internacional, mas que,

devido aos seus laços de dependência tecnológica e monetária, não estão

dispostos a assumir uma postura anti-imperialista. Já a burguesia associada

(filiais de bancos estrangeiros, comércio de importação/exportação,

montadoras industriais) encontra uma expressão política de seus interesses na

oposição à direita ao governo liderado pelo PT.

24 Ver, por exemplo, Osvaldo Coggiola, Governo Lula: da esperança à realidade (São Paulo, Xamã, 2004).

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A análise das relações de frações de classe dominante que

envolve o fenômeno do ‘lulismo’, feita por Singer25, não nos parece totalmente

ajustada, à medida que privilegia os conflitos entre, de um lado, a ‘coalisão

rentista’ (capital ‘financeiro’ nacional e internacional) e, de outro, a ‘coalisão

produtivista’ (capital industrial e classe trabalhadora). Fica ausente o conflito

entre a burguesia interna (industrial e bancária) e a burguesia associada

(enfeudada no capital internacional). Por isso, a descrição da política

econômica do governo Lula termina por não abarcar as linhas principais das

disputas no interior da classe dominante.

Podemos, enfim, dizer que o governo do PT possui uma dupla face:

numa, concretiza a hegemonia política da burguesia interna por meio do projeto

neodesenvolvimentista; noutra, expressa uma aliança política da classe

trabalhadora com essa fração progressista da burguesia brasileira em prol de

reformas sociais.

Conclusão

Vimos que, em termos gerais, a prática político-ideológica da burguesia

tende aos modelos individualizantes, ao passo que a do proletariado inclina-se

para as ações classistas. O individualismo político, de progressista no final do

século XIX, passou a conservador no fim do século XX. A nossa proposição é

que, no Brasil, uma democracia “individualizante” prevaleceu na década de

1990, sob a hegemonia da burguesia associada (conservadora); enquanto que

uma democracia “classista” ascendeu na década de 2000, havendo a

coexistência de uma maioria partidária de centro-esquerda e o domínio político

da burguesia interna (progressista).

25 Cf. André Singer. Os sentidos do lulismo. Citado.

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